
O que mais importa me parece ser aquilo que Peter Gay identifica como um transbordamento do modernismo - e sua eventual superação - no início do século XX, isto é, um sentido de revelação da complexidade do mundo que acaba por expor as fragilidades das correntes estéticas convencionais; um exemplo claro, na minha opinião, do tensionamento que se estabelece entre forma e conteúdo em toda a história da arte. Indagado sobre Leopold Bloom - o Ulisses - foi o próprio Joyce quem o definiu como "um ser humano completo da literatura... o homem comum (...) despido de todas as exterioridades sociais, de todas as inevitáves hipocrisias impostas pela cultura". E isso só poderia ser atingido pela transgressão linguística.
O mergulho na (in)consciência de Bloom é também um amargo (e onírico) mergulho sobre as convenções burguesas que reinavam (e ainda reinam) na ordem social exterior a ele. Não é certamente por outro motivo que Ulisses sempre esteve entre as obras prediletas daqueles que querem a censura a tudo quanto desestabiliza o main frame do conservadorismo.
Pois não é que Leopold Bloom acaba de ser censurado quase um século depois de sua primeira aparição em 1922? A notícia está nos jornais de hoje: a Apple exigiu que a ilustração do Ulisses destinada ao IPad - com imagens de uma mulher nua, certamente referentes a Molly Bloom, mulher de Leopold - fosse suprimida. O episódio pode servir como um sintoma desse descompasso surdo entre processos midiáticos e tecnológicos revolucionários e padrões culturais esvaziados que remetem à apreensão da complexidade que nos cerca; um vazio que, se não é o mesmo denunciado por Joyce, tem validade na sua essência: uma imensa lacuna existencial muito semelhante àquela de Dublin retratada no livro.
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