História, Cultura, Comunicação
Nêmesis(*)
Polícia Federal vai pra cima da mais nefasta quadrilha que já atuou no Brasil: Bolsonaro e personalidades diversas, civis e militares, todas com níveis variados de responsabilidade constitucional, conspiraram e agiram para fazer regredir o Brasil à condição de republiqueta de traficantes.
Acompanhe as principais matérias sobre a ação autorizada pelo STF e que pode agora levar suas lideranças à cadeia.
(*) Na mitologia grega, o castigo dos deuses contra a prepotência, a arrogância e a presunção do poder sem limites
Cenas monstruosas protagonizadas por gente da pior espécie, com e sem farda.
O Brasil precisa escorraçar essa turma do convívio social e político...
Se tiver estômago, assista a versão integral. Se não tiver, acesse a análise de Mônica Bergamo (Folha) sobre os principais trechos da gravação que pode selar o destino de Bolsonaro e de seus comparsas.
Tempus Veritatis
Notícias: G1: # Podcast: a trama golpista # Vídeo é a prova de toda a conspiração # O que as investigações revelam # PF encontra na sede do PL documento com justificativa para o Estado de Sítio # Bolsonaro pediu ajustes na minuta golpista, que previa prisões de Moraes e Gilmar # Em reunião gravada, Bolsonaro pediu disseminação de fake news # Heleno fala em "virada da mesa" antes das eleições. Carta Capital: # Como eram divididas as funções no núcleo bolsonarista que tramava o golpe. Intercept: # A casa de Bolsonaro vai cair # O que se sabe sobre a arquitetura do golpe de Bolsonaro. Uol: # Mourão continua conspirando e deputados acionam PGR e STF contra ele. Estadão: # Mourão recua, mas continua protegendo golpistas # PF fecha cerco a Bolsonaro e ainda apura elo do ex-presidente com o 8/1 # Neto do ditador João Figueiredo (aquele que disse preferir cheiro de cavalo a cheiro de povo) está envolvido na conspiração de Bolsonaro.
Análises: # Ana Clara Costa (piauí): Como Valdemar Costa Neto conspirou contra as eleições # Sérgio Lirio (Carta Capital): Chegou a hora dos mandantes? # Kotscho (Uol): Vídeo é bala de prata contra Bolsonaro # Torres Freire (Folha): PF conta parte do golpe, mas falta mostrar muito mais # Reinaldo (Uol): Já há elementos para a prisão de Bolsonaro # Brígido (Uol): Por que Bolsonaro não foi preso até agora? # Glauco Faria (Outras Palavras): 1. O golpe desmascarado. 2. O caminho que leva Bolsonaro à prisão # Gaspari (Folha): # O golpinho de Jair Bolsonaro # Rafael Mafei (piauí): Bolsonaro nas entranhas do golpe # Leonardo Rodrigues (Nexo): 10 chaves para entender a operação sobre a trama do golpe.
Nem o ombudsman consegue explicar o que a Folha pensa expandir
O golpe, versão do diretor
Por José Henrique Mariante
Por José Henrique Mariante
Imprensa deveria ser literal sobre o delicado momento institucional do país
O mundo não vai acabar em três anos, assegurou a Folha na última semana, diante de postagem em rede social fora de contexto, como tantas, que viralizou por sugerir um prazo exíguo para o juízo final. As razões do jornal para o esforço de esclarecimento, ainda que sob certo risco de ridicularização, são nobres e explicadas em nota ao fim desta coluna. Por enquanto e para a análise a seguir, é suficiente constatar que o noticiário destes tempos se obriga a ser tão literal quanto o possível, pois a audiência em geral não consegue mais raciocinar. Ou não quer.
Foi preciso explicar que havia um golpe em gestação no ano eleitoral de 2022. Que o então presidente Jair Bolsonaro e aliados disseminavam um discurso fantasioso de fraude nas urnas eletrônicas e conspiração para tirá-lo do poder. Na verdade, sabia-se antes e reitera-se agora, quem conspirava era o próprio, com a ajuda de ministros civis e militares, assessores, palavrões e português ruim. A três meses do primeiro turno, um dos generais brada que a hora de dar soco na mesa ou virá-la era antes do pleito. Assim aparece no vídeo da reunião, aquela que não estava sendo gravada, garantiu Bolsonaro aos presentes.
Um mês depois, parte da elite brasileira, esta Folha inclusa, ainda que não tenha se lançado nominalmente em campanha, mas pela extensa cobertura, manifestou grande preocupação com o cheiro de queimado que exalava de Brasília. No Largo São Francisco, a sociedade civil desenhou para Bolsonaro e para sua claque golpista que a Constituição tem mais do que quatro linhas.
O período eleitoral foi conturbado, e o espectro golpista se materializou no 8 de Janeiro. As instituições funcionaram, mas a que custo, insinuam as últimas revelações, ainda é uma história a apurar.
A cobertura da imprensa é intensa. Pela primeira vez, um repórter do Jornal Nacional repete o "cagão" usado por outro general para se referir a um terceiro em rede nacional. Os editoriais dos grandes jornais abdicam do vernáculo bolsonarista e, em comum, acendem alertas para a atuação heterodoxa de Alexandre de Moraes. O Estado de S.Paulo lembra a traumática experiência da Lava Jato. A Folha, que levou dois dias para opinar sobre o tema, escreveu que a acusação cabe à Procuradoria. O Globo disse tudo isso também, mas deu título e peso ao que primeiro interessa: em uma democracia, a acusação mais grave é a de golpe de Estado. Se é preciso ser literal, então é isso.
Ninguém duvida do caráter disfuncional do país. O inquérito que nunca acaba na mão do ministro do STF é um grande complicador, assim como a constatação de que, entre golpistas e legalistas, não deveria haver tropa tolerante. Ocorre que tudo isso deriva de um cada vez mais evidente movimento de subversão, algo absolutamente inédito para as gerações que não viveram ou não se lembram de 1964 ou do período da ditadura. Não é corriqueiro acordar com a notícia de militares sendo presos ou manchetes sobre golpe, tramas e conspirações. O momento é delicado, e os jornais, que tanto se preocupam em ser literais para um público malhado por notícias falsas, não deveriam se conter na descrição do que está acontecendo.
É um equívoco limitar o debate a qualquer dos aspectos do problema ou entendê-lo como uma disputa partidária. É um erro minimizar os atos de Bolsonaro pelo aparente improviso. Escapamos por pouco de uma turma de malucos, deveríamos estar discutindo como desestimular os próximos.
IT’S THE END OF THE WORLD
"Mundo não vai acabar em 3 anos, ao contrário do que diz post com fala de drag queen fora de contexto." Sim, a Folha publicou esse título na semana passada. Uma influenciadora discutia a crise climática em videocast e, em determinado ponto, disse que o mundo fracassaria se o curso da história não fosse alterado. A fala cortada viralizou a ponto deste jornal achar necessário explicar que o planeta ainda tem muita lenha para queimar.
Em crítica interna, o ombudsman observou que o enunciado, um dos mais sensacionais na história centenária da Folha, ganharia algum senso crítico com um toque de humor, algo como "Não, o mundo não vai acabar em 3 anos...".
Luisa Alcantara e Silva, jornalista que representa a Folha no Comprova, consórcio de veículos de imprensa que combate fake news, não recomenda a estratégia. "Temos que ser literais ao contradizer uma notícia falsa para afastar a chance de reforçá-la. Quem acreditou na postagem pode entender o humor como menosprezo", afirma. "Pode soar inusitado, mas há crenças de todo tipo, Terra plana, Lula votou em Bolsonaro. Que o mundo vai acabar é só mais uma."
O jornalismo fica cada vez mais travado. Conforme as instruções da Luisa, então: armaram, tentaram e vão tentar de novo o golpe se não formos literais em sua condenação.
A comunicação no governo Lula
Não há empenho, do PT ou do Governo, em suplementar o carisma de Lula por uma comunicação que vá aos afetos das pessoas
Renato Janine Ribeiro, A Terra é redonda (expandir)
Duas proposições principais: 1ª, Lula é um comunicador extraordinário. FHC também o foi, como presidente, mas com diferenças importantes. FHC falava em prosa, Lula em epopeia. Uma vez, perguntei a FHC como ele via a questão, e ele me disse que era mais racional, Lula apelava mais aos sentimentos. E engatou: racional no sentido bem rasteiro, senso comum. Não foi uma resposta vaidosa. Enfim, Lula conseguiu se comunicar com toda a população, incluindo os mais pobres, enquanto FHC falava mais com a classe média e alta.
As famosas metáforas: a jabuticabeira, a mãe. Nos dois casos, ele pede para esperar. Lembra que as primeiras jabuticabas não virão antes de sete anos, que o bebê vai levar um ou dois para andar e falar. Mas deixou claro em Porto Alegre, janeiro de 2003, que faria tudo o que prometeu, só que não de imediato. A metáfora da mãe foi interpretada, por ignorância ou má fé, como se ele estivesse colocando como Pai da Nação. O paternalismo do governante, sim, infantiliza os cidadãos.
Bem, Lula usava a imagem de mãe, não de pai. Mas ele também não se punha como mãe da nação; ele se comparava às mães, se igualava a elas, assumia o papel de quem sabe que a criança demora a andar e a falar. Tomava a mais democrática das experiências, a da maternidade, aquela que com frequência as mais pobres exercem com mais amor e competência do que as ricas, como modelo.
2ª, o PT não gosta das redes sociais. Nem mesmo Lula gosta delas. Estive numa live dele com ex-ministros da Educação, por volta de 2017 (eu acho). E, quando eu disse que podiam fazer recortes de 30 segundos de falas dele e jogar nas redes, e dei o exemplo de uma vez em que ele disse que era muito fácil beneficiar os pobres, pouco custoso em termos de dinheiro, isso daria um ótimo vídeo, Lula respondeu contando quando foi ao Acre e, com Chico Mendes, seguiu de carro por quatro horas até uma cidade do interior, para falar do PT. E não havia ninguém lá para falar com eles.
O que eu entendi: que não há solução fácil para esclarecer as pessoas, para fazer política. Meme e dancinha não substituem o olho no olho, o esforço de quem rala nas estradas, nos morros. Beleza.
Beleza, sim – mas será verdade ainda? Quão verdade ainda é? Em 2008, a propósito de uma revolta na Moldova, que explodiu após postagens do Twitter criticando a fraude eleitoral – e que derrubou o governo –, eu comentei que os 140 caracteres só tiveram esse poder porque todo mundo lá já estava convencido da fraude. O tweet foi apenas a fagulha de pólvora, a iskra, que pôs fogo em tudo. Ou seja: você não constrói uma consciência política com posts, em especial os curtos, os efeitistas, os que parecem de linguagem publicitária, as lacrações. (Aliás, entendo que lacração = você perdeu no atacado, fica feliz com um bon mot no varejo).
Mas, então, o que fazer?
Lembro a campanha de Fernando Haddad para a reeleição como prefeito de SP, em 2016. Um cenário péssimo, Dilma Rousseff destituída, Lava Jato mirando Lula para abatê-lo. Perdeu. Mas, durante a campanha, perguntei a amigos onde estavam as realizações da Prefeitura. Finalmente, recebi um vídeo curto, com 10 principais feitos. O primeiro eram lâmpadas LED em praças da periferia. Achei sem noção.
E de fato o PT perde de goleada no uso das redes sociais. Nas quais, por sinal, quem deita e rola é a extrema direita. Esta percebeu a possibilidade enorme da mentira, e dela faz uso e abuso. Reconheço que a esquerda tem mais compromisso com a verdade (ou acredita tê-lo), mas o fato é que instrumentos incríveis de comunicação, que curto-circuitam as empresas de mídia, têm sido ignorados pelos setores progressistas. Não sei se é por um espirito iluminista.
André Janones é a exceção que confirma a regra até porque não era nem é do PT, quis concorrer a presidente, e finalmente apoiou Lula. Ele usa as redes de maneira escancarada. Alguns até dizem que o faz sem pudor. Mas por que a esquerda não faz isso?
Quando faz, como em algumas postagens recentes do PT ou do próprio governo, faz menos bem do que a extrema direita. Resta, ao PT, descobrir e assumir as novas formas de comunicação. Fico na dúvida se ele não sabe ou não quer saber como são, porque há muito petista, sobretudo entre os jovens, mas não apenas, que as conhecem; talvez a cúpula do partido desconfie delas.
Finalmente, hoje, toda a comunicação do governo repousa nos ombros de Lula. Assim como a articulação política, aliás, uma vez que os responsáveis por ela, no governo, não têm tido êxito – por exemplo, quando vão conversar com o presidente da Câmara, Arthur Lira. É peso demais. Como Lula, por alguma razão que não entendo, parece ter priorizado a agenda internacional, e terceirizado em certa medida a política doméstica para os quadros principais do governo (em especial, os do PT – ministros palacianos e Fernando Haddad), ficou nas mãos destes últimos tocarem a principal agenda do País, que é, exatamente, a política interna. Ora, com exceção de Fernando Haddad, que tem mostrado grande habilidade na condução da política econômica, não vemos sucesso nesse jogo. Tem dado uma espécie de empate – nem a vergonha da derrota, nem o fulgor da vitória.
Em suma, tudo está – perigosamente – nas mãos de Lula, dele apenas. Uma comunicação melhor – e que não pode copiar aquela em que ele é um ás – ajudaria as coisas. Não seria a comunicação intensamente pessoal que o Presidente utiliza. Mas não vejo empenho, do PT ou do Governo, em suplementar o carisma de Lula por uma comunicação que vá aos afetos das pessoas, disputando com um afeto democrático o afeto autoritário que historicamente funcionou tanto no Brasil, e continua municiando a extrema direita.
*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP e ex-Ministro da Educação. Autor, entre outros livros, de Afeto autoritário – televisão, ética e democracia (Ateliê editorial)
Uma frase pinçada basta para o desmascaramento público
E o militante moral demonstra ter mais virtudes até do que o presidente Lula
Wilson Gomes, Folha (expandir)
Militar politicamente consiste principalmente em distribuir punições por falhas morais, em açoitar pecadores. Assim, viramos todos lobos de alguma alcateia, mesmo quando nos cremos únicos, singulares, de cabeça aberta e independentes.
A transformação digital da política há de ter um papel nisso. Os vários ambientes sociais digitais assemelham-se a um enorme e sortido supermercado de causas, agendas, doutrinas, ideologias e sentimentos de ultraje e indignação dos quais cada um se serve conforme seus interesses. A consequência disso foi um notável aumento no número de pessoas envolvidas em política nos últimos dez anos, assim como uma forma associativa que tende a formar grupos com afinidades muito estreitas, que recompensam pela reação mais imediata, mais indignada e mais radical. Em um ativismo em que há mais fúria do que substância, o resultado é fragmentação, sectarização e radicalismo em uma intensidade sem precedentes.
O que nos move às expedições punitivas são, invariavelmente, os princípios, mas também cálculos de recompensas psíquicas. Aqueles mais fervorosos nas causas, ideologias e nos seus princípios são frequentemente os mais dedicados a uma busca obsessiva por erros, pecados e deslizes alheios. Punir os transgressores torna-se uma forma consistente de valorizar nossa posição no grupo e reforçar nossa autoestima. Identificar e punir as falhas dos outros é uma maneira de demonstrar, tanto para os outros quanto para nós mesmos, como somos virtuosos e moralmente superiores.
Essa obsessão não poupa ninguém, nem mesmo líderes tribais como o velho Lula. Na última semana, jornais, revistas, sites de notícias e, sobretudo, suas vitrines nas redes sociais estamparam manchetes que, em essências e com poucas variações, diziam que Lula havia declarado a uma jovem negra que afrodescendentes gostam de batuque. No momento em que, no universo da informação política, título é tudo e conteúdo é quase nada —porque quase ninguém lê o que está depois do link e quando o faz a sua leitura é completamente dominada pelo título e pela ilustração—, Lula praticamente teria enviado a moça de volta para a África do século 16. Absurdo!
Identificado o pecado, pune-se o pecador: bolsonaristas e identitários convergiram nisso. Os primeiros, porque essa categoria de fala de Lula serve perfeitamente à estratégia deles de mostrar que Lula é racista, machista, misógino e transfóbico, porém que ninguém fala nada porque Lula é Lula, mas se fosse com Bolsonaro... Já os identitários atacam porque, claro, todo pecado precisa ser castigado.
O elemento sempre intrigante nessas punições é que os fatos não importam. Lula há de ter muitos defeitos, e certamente disse e fez muitas coisas cujas explicações são ainda devidas, mas acusá-lo de racismo? Francamente! Mesmo assim, a jovem envolvida poderia ter se sentido ofendida. Foi isso o que aconteceu? Jornalistas que se deram ao trabalho de investigar ouviram dela que não apenas não se sentiu ofendida, mas, ao contrário, ficou muito satisfeita. Enfim, pode-se sempre alegar que Lula não é racista, mas a frase era. Pode acontecer, mas é o caso?
Lula começa se dirigindo às "meninas e meninos" dizendo que "precisam se qualificar para enfrentar esse mundo maluco da inteligência artificial". Depois, volta-se à garota, toma-a pelo braço com gentileza e a apresenta ao público: "Essa menina bonita que tá aqui, eu tava me perguntando, o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela, eu falei ‘ela é cantora, ela vai cantar’. Aí perguntei. ‘Não, não vai ter música’. ‘Então ela vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta de um batuque, de um tambor’. ‘Também não’. Eu falei ‘Nossa, então ela é namorada de alguém’. ‘Também não é’. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada como a mais importante aprendiz dessa empresa e ganhou um prêmio na Alemanha". E continua: "É isso o que nós queremos fazer com as pessoas neste país. Nós anunciamos esta semana uma política para o ensino médio". O que tem de racismo nisso? Não vi.
O texto integral está lá, em todos os jornais e vídeos, mas as pessoas ficam nas chamadas. Para que ir ao conteúdo? No título há tudo de que precisamos para faturar no mercado de virtudes. Uma frase pinçada basta para o ritual de desmascaramento público. Dessa forma, o militante moral ganhou o dia. Afinal, ao repudiar o ato, ele demonstra, de maneira inequívoca, que possui mais virtudes até do que o presidente Lula. Saciado, o ego repousa, feliz e enorme.
O gênio da conspiração
Peter Thiel foi apresentado ao público que veio ouvir sua conferência na Universidade de Oxford como “um dos pensadores mais reflexivos do nosso tempo”. O filósofo inglês John Gray, que chamou ao púlpito o empresário alemão (nacionalizado norte-americano), exaltou seu livro de 1995, The diversity myth: multiculturalism and political intolerance on Campus (o mito da diversidade: multiculturalismo e intolerância política no câmpus), como uma avaliação “profética” do estado do debate intelectual nas universidades (Jerônimo Teixeira, piauí: continue a leitura).
Cofundador do PayPal, primeiro grande investidor do Facebook, presidente da Palantir Technologies – empresa de big data que tem os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido entre seus clientes –, apóstolo de um futuro no qual a tecnologia nos oferecerá a imortalidade, doador da campanha eleitoral de Donald Trump em 2016: nenhuma das credenciais que fizeram de Thiel um herói para muita gente e um dissidente do Vale do Silício foi mencionada.
A revista The new statesman publicou recentemente uma transcrição editada da conversa entre Gray e Thiel que se seguiu à conferência. A íntegra do evento, realizado em outubro do ano passado, está disponível no YouTube. A palestra fez parte das Roger Scruton Memorial Lectures, ciclo de conferências que homenageia o filósofo inglês morto em 2020. Nem Thiel nem Gray citaram a obra do homenageado – aliás, sequer mencionaram seu nome. Scruton decerto teria simpatia pela crítica de Thiel ao novo progressismo identitário, mas duvido que o autor de Como ser um conservador aceitasse a proposta de que essa crítica seja feita de uma inusitada perspectiva marxista-libertária.
Meu interesse pelo evento em Oxford foi despertado sobretudo pela participação de John Gray, um fino ensaísta que muito admiro – e que tive o prazer de entrevistar para a falecida revista Época. Há vários descompassos entre o pensamento muitas vezes controverso porém sempre rigoroso do ex-professor de Pensamento Europeu da London School of Economics e as elucubrações meio delirantes mas atravessadas por lances de fulgurante lucidez do ex-sócio de Elon Musk no PayPal. Na consideração do progresso científico e tecnológico, por exemplo, os dois têm concepções antagônicas. Para minha decepção, Gray conduziu a conversa pela monótona planície das opiniões que compartilha com o conferencista. É uma ironia que, depois de muitas críticas de Thiel ao establishment universitário, tenha se visto mais um morno “debate” acadêmico entre pessoas que pensam (ou que fingem pensar) da mesma forma.
Assisti ao vídeo da conferência para saber o que Gray teria a dizer sobre o libertário que financiou Mark Zuckerberg. Mas acabei fascinado pela retórica tortuosa do próprio Thiel – não tanto por seus acertos, que são consideráveis, mas sobretudo pela intrigante suscetibilidade de um homem com currículo tão notável à sedução do gênio enganador da política contemporânea: o pensamento conspiratório.
A conferência começa por uma ligeira autocrítica. Thiel avalia que o livro elogiado por Gray, The diversity myth (escrito em parceria com David Sacks, seu colega no PayPal), envelheceu mal. A obra ampara-se na experiência que os autores tiveram como alunos da Universidade de Stanford, na virada da década de 1980 para 1990. A controvérsia dava-se então entre conservadores que defendiam as leituras básicas do currículo de humanidades e progressistas que reclamavam da predominância de “homens brancos mortos” entre os autores recomendados. Thiel hoje diz que a energia que devotou a essas guerras culturais foi mal empregada. E o mesmo valeria para as discussões atuais sobre o difuso conglomerado de conceitos e doutrinas identitárias que vem dominando boa parte da esquerda – um universo ideológico que, em inglês, costuma ser designado pela palavra woke (acordado, atento). Thiel acredita que debates nessa área nos distraem dos problemas que realmente importam. “Distração” é a palavra-chave da conferência.
É então que ele propõe a aliança entre dois inimigos declarados: marxismo e libertarianismo. O argumento é mais razoável do que parece à primeira vista. Cada uma a seu modo, essas duas ideologias devotam-se a questões materiais, com ênfase forte em problemas econômicos que o progressismo woke negligencia. Em uma especulação histórica provocativa, Thiel propõe que expoentes do marxismo da primeira metade do século XX, como Lênin e Rosa Luxemburgo, não reconheceriam a pertinência das pautas identitárias para a revolução. Fica a sugestão de que o novo progressismo está a serviço das classes dominantes – e aqui Thiel está em consonância com o pop star do marxismo contemporâneo: o filósofo esloveno Slavoj Zizek também vem falando de um “capitalismo woke”.
Na opinião de Thiel, um problema recente do capitalismo com o qual ninguém quer se confrontar é a explosão dos preços da propriedade imobiliária, sobretudo em grandes metrópoles como Londres e Nova York. Aluguéis inviáveis em centros que concentram os melhores empregos são especialmente duros para as classes baixas e para jovens que estão se iniciando na carreira profissional. A imigração, debate central para a Europa hoje, também é impactada por esse problema. “Eu provavelmente seria a favor da imigração sem restrições se pudéssemos construir mais moradias”, diz Thiel, para então ironizar: “Acho que Elon [Musk] vai chegar a Marte antes que isso aconteça no Reino Unido.”
Distorções do mercado imobiliário provavelmente não figuram entre as preocupações típicas de bilionários da área de tecnologia, e é bom ouvir Thiel – cuja fortuna a Forbes estima em torno de 6 bilhões de dólares – soando o alarme sobre o tema. Esse importante recado perde-se, no entanto, nas tentativas de relacioná-lo à fixação da nova esquerda com identidades étnicas e sexuais (incidentalmente, Thiel é homossexual).
Muitos críticos do identitarismo dizem que discussões sobre temas como microagressão e apropriação cultural desviam a esquerda das questões de classe que lhe eram próprias. Yascha Mounk, cientista político da Universidade Johns Hopkins, reforça esse argumento no excelente The identity trap: a story of ideas and power in our time (A armadilha identitária: uma história de ideias e poder em nosso tempo, ainda sem edição no Brasil), lançado em 2023. Mas Thiel afunda um argumento relevante em terreno pantanoso. Ao longo de sua conferência, fica sempre a sugestão de que não é por acaso que estamos reivindicando a necessidade de banheiros para pessoas não binárias no lugar de moradia para a população de baixa renda: o woke, ele diz, seria um instrumento deliberadamente projetado pelo establishment esquerdista para nos distrair. No limite, seria virtualmente a causa da relativa estagnação econômica do século XXI.
Isso fica especialmente claro quando Thiel localiza nos anos 1970 o momento em que a desigualdade entre ricos e pobres começou a se ampliar drasticamente. Na mesma época, diz ele, a esquerda já se afastava do marxismo clássico em direção ao “marxismo cultural”, conceito muito enredado em teorias conspiratórias da alt-right. Thiel não é bobo e sabe bem a diferença entre correlação e causação. Ele toma o cuidado de esclarecer que não está afirmando que existe relação de causa e efeito entre a emergência do ideário woke e a especulação imobiliária desenfreada – o que é uma forma malandra de sugerir que a relação pode muito bem existir.
“Você não precisa ir até o fundo na teoria da conspiração”, diz Thiel a certa altura. Mas ele desce fundo no buraco conspiratório quando começa a falar de ciência e tecnologia.
Peter Thiel mostrou seu iPhone para o jornalista que o entrevistava. “Eu não considero que isto aqui seja uma revolução tecnológica”, declarou. O jornalista era George Packer, que incluiu um fascinante perfil do cocriador do PayPal em Desagregação: por dentro de uma nova América. Publicado em 2013, o livro é um amplo painel do abalo que a crise dos subprimes causou nos fundamentos do capitalismo norte-americano. Foi nessa crise que Thiel conheceu o fracasso. O Clarium Capital, fundo de investimentos criado por ele, acumulava um montante de 7 bilhões de dólares às vésperas da quebra do banco Lehman Brothers, em 2008. Em 2011, esse capital estava reduzido a 350 milhões, dois terços dos quais pertenciam ao próprio Thiel.
Packer diz que essa derrota fez de Thiel um pessimista. Desde então, ele começou a questionar o que a tecnologia de fato nos oferece. Pois não se cumpriram as promessas de avanços milagrosos na medicina e de viagens espaciais que o empresário, hoje com 56 anos, encontrou nos livros de ficção científica que lia na infância e na adolescência. Internet, redes sociais, smartphones – todo o progresso se deu no plano binário dos bits. No mundo físico em que vivemos, nossos carros ainda não voam e nossos corpos ainda são torturados pela doença e pelo envelhecimento.
Em Oxford, no ano passado, Thiel pintou um quadro ainda mais desolador. Ciência e tecnologia, diz ele, estão estagnadas. Áreas como a pesquisa sobre o câncer, na medicina, e a teoria das cordas, na física, entraram em becos sem saída. E de novo o progressismo woke serve para nos distrair da realidade infeliz: segundo Thiel, os administradores das universidades preferem que as controvérsias se concentrem em temas hoje caros aos departamentos de humanidades, como identidade e diversidade, pois assim o grande público não percebe que os departamentos de ciências também foram corrompidos. Sim, corrompidos: a pesquisa científica tornou-se uma área fraudulenta, cujos profissionais vivem de replicar incessantemente as experiências que uns poucos pesquisadores originais ainda fazem. De quebra, para ele, o establishment científico reforça uma série de tabus: não se pode questionar, por exemplo, a Teoria da Evolução ou… a vacinação!
A ciência estagnou mesmo? Tomemos a pesquisa do câncer. Nas primeiras páginas do recente A canção da célula: as descobertas da medicina e o novo humano, um deslumbrante relato da pesquisa sobre biologia celular dos pioneiros do microscópio no século XVII à era do sequenciamento genético, o médico e pesquisador indiano Siddhartha Mukherjee apresenta ao leitor leigo (meu caso) terapias inovadoras de reprogramação genética. Ele narra dois casos exemplares em que esses novos recursos foram empregados: uma menina que sofria de um tipo raro de leucemia e um homem com uma variedade muito agressiva de câncer de pele. Os resultados foram díspares. A criança foi salva pelo novo tratamento; o adulto morreu. No capítulo devotado especificamente ao câncer, Mukherjee, que é oncologista, divide-se entre a esperança e o desalento. Há novas descobertas e promessas de tratamentos mais eficientes, mas resta ainda muito a descobrir sobre os mecanismos moleculares que tornam as células cancerosas tão letais.
A ciência não parou no tempo. Ela apenas não corre tão rápido quanto Thiel espera. Pois o bilionário, que já financiou pesquisas sobre o prolongamento da vida, cultiva expectativas irrealistas: seu horizonte é a imortalidade. Confinity, o antecessor do PayPal criado por Thiel, foi a primeira empresa do mundo a oferecer criogenia no pacote de benefícios oferecido aos funcionários. Packer diz que Thiel vê “a inevitabilidade da morte como uma ideologia, não como um fato”.
Na conversa com Gray, Thiel tratou da antiga ambição humana de prolongar a vida. Mencionou o cosmismo, uma corrente do bolchevismo que nos anos 1920 anunciava um futuro no qual a ciência comunista ressuscitaria os mortos (Thiel não deu sinais de conhecer A busca da imortalidade, livro em que Gray examinou essa ambição messiânica da revolução russa – e Gray, elegante, não citou a própria obra). O bilionário ainda criticou certa “versão derrotista da ciência” que aponta para as limitações humanas, para “as coisas que você não é capaz de fazer”. A arrogância bilionária toma a avaliação objetiva da realidade por derrotismo.
Em obras como Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais e O silêncio dos animais: sobre o progresso e outros mitos modernos, Gray vem examinando as ilusões de progresso ilimitado cultivadas pelo liberalismo (liberalismo aqui no sentido histórico amplo: uma corrente de pensamento que nos legou democracia, tolerância à diferença e direitos individuais, entre outros valores – e não apenas livre mercado). O filósofo sempre se opôs à ideia de que a ciência destina-se a redimir ou salvar a humanidade. É uma pena que sua interação com Thiel tenha se pautado pela deferência, sem espaço para a contestação.
Desdenhado por Thiel na entrevista a Packer, o iPhone reapareceu na conversa com o filósofo inglês. Os habitantes de Londres e Nova York, diz Thiel, passam o dia imersos na telinha da Apple e por isso não atentam para a obsolescência de suas cidades, cujas linhas de metrô foram escavadas há mais de um século. Eu me pergunto se tal ânsia futurista por uma paisagem urbana sem resquícios do passado não daria um bom companheiro de armas para o ímpeto militante de expurgar “homens brancos mortos” dos currículos universitários.
Deus e as questões existenciais correlatas constituem, de acordo com Thiel, um terceiro campo de inquirição do qual a estridência woke estaria nos “distraindo”. Embora a noção de que o progressismo identitário seja uma forma de hipercristianismo sem Deus me pareça instigante, essa passagem da conferência é bastante desarticulada, e não vou me demorar nela.
Creio que o componente conspiratório do pensamento de Peter Thiel já está bem demonstrado. Quando falamos de teóricos da conspiração, imaginamos o incel de inteligência limítrofe que passa suas noites solitárias em discussões online sobre o globalismo e a derrocada da civilização judaico-cristã ocidental. Thiel não cabe nesse estereótipo vulgar: é um homem culto, dono de uma mente inquieta, que tem a desenvoltura de atacar consensos e lugares comuns, ainda que ao custo de sacrificar a racionalidade que julga defender.
Ao que parece, nas eleições do ano que vem, Thiel não voltará a apoiar Trump, que a esta altura já está virtualmente consagrado como o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos. Ainda que se afaste da política, Thiel segue o mesmo guerreiro cultural que editava um jornal conservador em Stanford. Embora ele se permita a heresia de convocar Marx para criticar os excessos do identitarismo, ele segue vendo o mundo a partir da oposição maniqueísta entre direita e esquerda. Em Oxford, dedicou-se até a uma questão que se tornou o equivalente pós-moderno da lendária especulação dos teólogos de Bizâncio sobre o número de anjos que podem dançar na cabeça de um alfinete: qual foi o pior totalitarismo do século XX, comunismo ou fascismo? Previsivelmente, sua resposta foi “comunismo”.
O conspiracionismo tornou-se um elemento inextricável da linguagem política de nossos dias polarizados. E isso é verdade também no campo ao qual Thiel se opõe: quando se dedicam a denunciar a opressão estrutural oculta nos mais comezinhos aspectos do cotidiano, os identitários de rede social rapidamente alcançam paroxismos paranoicos.
O gênio da conspiração é uma entidade insidiosa, que nos oferece a falsa dádiva de uma explicação unificada para as mais brutais injustiças do mundo. Também nos convence de que somos especiais, pois desvendamos intrincadas relações ali onde nosso vizinho só vê eventuais coincidências entre fatos díspares. Aos cinco anos, Thiel já sabia desenhar o mapa-múndi de memória. Na vida adulta, sempre demonstrou perspicácia e ousadia em apostas de risco: uma ferramenta para fazer pagamentos pela internet com segurança, uma rede social criada por um rapaz de 19 anos em Harvard. Mas às vezes nem a inteligência resiste ao gênio conspiratório.
É jornalista e escritor. Publicou o romance Os Dias da Crise (Companhia das Letras)
o que há de novo? 06-02-24
Atualizações:
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Escárnio # Itaú-Unibanco exagera nos lucros e amplia disparidades nacionais (Valor)
Este é o cara que quer ser eleito # Ricardo Nunes contra os direitos sociais e reprodutivos das mulheres (A Terra é redonda)
Ninguém aguenta mais # Chega de Bolsonaro na mídia (Uol)
O escândalo da Transparência Internacional: # Toffoli manda investigar TI por 'conluio' com a Lava Jato (GGN) # Transparência Internacional admite culpa (Uol) # O que as mensagens da spoofing revelam (Carta Capital)
Monumento à hipocrisia
Uma tal de Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB) divulgou nesses dias carta aberta ao presidente Lula fazendo coro com aquilo que os autores do documento consideram que é o foco principal de todas as decisões que sejam tomadas: o crescimento econômico, aumento da renda média dos brasileiros, estímulo ao consumo e ao desenvolvimento. E proclama: "Esse pensamento deve nortear a todos". Na verdade, o manifesto é o amontado das mesmas reivindicações que colocam o empresariado na contra-mão do que recomendam. O que essa turma quer mesmo é manter a desregulamentação do trabalho, ampliar a redução da carga fiscal e as facilidades de sempre que acabaram por deixar o Brasil na triste situação de um dos países mais desiguais do mundo. Leia aqui a íntegra do texto publicado pela Folha.
CARTA ABERTA DA CACB AO PRESIDENTE
CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil)
O cenário econômico brasileiro terá, mais do que nunca, um ano desafiador em 2024. Em meio a tantos temas de relevância, a CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil) defende que o foco de todas as decisões seja um só: o crescimento do país, com consequente aumento da renda média dos brasileiros e estímulo ao consumo e ao desenvolvimento. Esse pensamento deve nortear a todos, presidente. Executivo, Legislativo, Judiciário, sociedade civil, entidades, organizações....
É preciso que todos os entes estabeleçam um pacto com a sociedade, em prol do empreendedorismo sustentável, da abertura de oportunidades, do incentivo à criatividade e da volta do poder de compra, perdido ao longo dos últimos anos. Um dos pontos de fundamental importância para se chegar a esse objetivo é a regulamentação da reforma tributária. A carga dos empresários e de quem gera empregos precisa ser menor. Daí a importância, por exemplo, de liberar a contratação de mais funcionários pelos microempreendedores individuais. Hoje, a legislação permite apenas um, o que limita a geração de empregos.
Outro ponto que precisa ser defendido nesse pacto é a necessidade de igualar o empresário brasileiro ao estrangeiro no caso das compras internacionais, colocando os produtos nacionais nas mesmas condições de tributação ou isenção. O que é produzido no Brasil precisa ser valorizado. O caminho da produção também gera emprego, tributos e o incentivo tem que existir. A igualdade de oportunidades favorece a competitividade e a confiança do mercado interno.
Precisamos ter a coragem e o desprendimento de fazer a reforma administrativa - ainda que em ano eleitoral - para termos previsibilidade e, como consequência, mais investimentos. No âmbito privado, os empreendedores não podem ter a liberdade cerceada. Medidas que possam interferir nas rotinas, jornadas, restrições de dias e horários são retrocesso e não combinam com as demandas do atual mercado de trabalho. O empreendedor brasileiro é criativo e precisa de liberdade. O olhar pro futuro é a única garantia de que não ocorrerão retrocessos.
Por isso, esse chamamento por parte da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB), entidade nacional que representa 2 milhões de empreendedores do micro e pequeno negócio, segmento que emprega e gera renda. Somente por meio do crescimento econômico iremos diminuir as desigualdades sociais, que tanto afligem todas as regiões do nosso país. Essa é a nossa contribuição: um chamado por um pacto nacional, de aspecto abrangente e apartidário, em que as divergências políticas se concentrem apenas no período eleitoral, para que façamos de 2024 o ano da virada.
O ano em que as medidas anunciadas sejam determinantes para um retorno definitivo do crescimento econômico sustentável e inclusivo do Brasil e da nossa população. Alfredo Cotait Neto Presidente da CACB...
Pequeno vocabulário da imprensa cínica
Os donos da imprensa, assim como os senhores da guerra, sabem bem utilizar a ideologia do “direito de defesa” em favor das potências mundiais
Jean Pierre Chauvin, A Terra é redonda (expandir)
Domingo, 22 de outubro de 2023, das 16h em diante. A intervalos regulares, um empolgado locutor de corrida anuncia que, logo mais, o canal de televisão (cuja marca celebra os morticínios provocados pelas Entradas e Bandeiras, nos séculos XVII e XVIII) exibirá matéria exclusiva sobre a guerra de “Israel contra o Hamas”. Segunda-feira, 23 de outubro, das 20h45 em diante. O noticiário da mesma emissora dedica um bloco inteiro nomeando alguns israelenses desaparecidos, enquanto o rodapé do ecrã realça os dizeres “Israel x Hamas”.
Reparem bem: os mais de cinco mil mortos na Palestina ainda não entraram na conta da emissora; e, como sabemos, não se trata de fato isolado. Por sinal, seria preciso muita ingenuidade para acreditar que se trata de mero ponto de vista de um grupo ou setor. O que estamos a assistir é a tentativa de validar, como única e legítima, a perspectiva veiculada dia e noite por cartéis da comunicação de massa.
Não é o bom senso que alimenta as emissoras; é o cinismo de seus porta-vozes que forja o suposto senso comum, reproduzido orgulhosamente pelos “homens de bem”.
Os donos da imprensa, assim como os senhores da guerra, sabem muito bem como utilizar a ideologia do “direito de defesa” em favor das potências mundiais, reforçando estereótipos. No noticioso, de meia hora atrás, um homem fardado israelense declarou que o ataque ao Líbano (de hoje) teria prevenido ações do Hezbollah.
Foi graças à imprensa corporativa que aprendemos, pela opinião reproduzida por nossos pais, que uns são ditadores e outros, presidentes; que aqueles representam a liberdade de expressão, a propriedade individual e a “saudável” livre-concorrência, enquanto os outros simbolizam formas totalitárias e atrasadas de pensar ou lidar com setores da cultura e da macroeconomia; que uns têm poder de veto, pois seu assento é permanente, enquanto outros, chamados (por um oportunista sem escrúpulo) de países de “pequena relevância”,[i] não merecem sequer ser ouvidos no Conselho de Segurança da ONU.
Que as siglas ONU e EUA comungam de pseudovalores equivalentes, resta pouca dúvida. Porém, há que se perguntar ainda uma vez: qual o horizonte imediato de Israel, Estados Unidos e companhia? Escoar a produção da indústria de armas, despejando balas, mísseis e bombas sobre os civis palestinos, em nome do “bem”. Infelizmente, como as armas são teleguiadas, mas ainda não averiguam identidade, idade, religião e filiação partidária, não demora muito, os porta-vozes do massacre poderão reciclar afrontosamente o que também declarava George Bush sobre os milhares de mortos na guerra “contra o terror”, no Iraque, em outubro de 2015. Até mesmo a CNN reproduziu a notícia em tom crítico, na ocasião.[ii]
O objetivo maior, que corre em paralelo aos mísseis, é fortalecer a crença de que é preciso extirpar “o mal”, mesmo porque ele seria praticado por “animais”, como disse um membro do governo genocida israelense. Basta rolar o feed do instagram para topar com vídeos de gente sádica: uma atriz usa ketchup, talco, lápis preto e fruta para ridicularizar o sofrimento de mulheres palestinas e seus filhos; um grupo de israelenses, com crianças, homens e idosos, reúne-se com faixas de incentivo ao Tzahal e gritos de ódio, sugerindo que é preciso exterminar os árabes em geral, preferencialmente os palestinos.
Evidentemente, a luta não é “contra o Hamas”. A começar porque os conflitos entre Israel e Palestina se pautam em mitologias milenares, supostamente fundamentadas em livros sagrados. No Brasil, onde a Bíblia é mais conhecida pelos ateus e religiosos progressistas que pelos crédulos acríticos, os mesmos que se dizem pró-vida e vociferam que “aborto é assassinato” estão lá a hastear orgulhosamente seus preconceitos todos, cristãmente justificados, na defesa intransigente de Israel, fechando os olhos para homens, mulheres e crianças massacradas. Para começar, seria preciso averiguar se os fundamentalistas made in Brazil reconheceriam as diferenças entre os períodos mosaico e cristão.
O vocabulário, ou seja, a escolha lexical dos veículos corporativos de comunicação produz efeitos sérios e, em alguns casos, irremediáveis. Seria relevante investigar se os guardiões dos factoides aprenderam algo com o vendaval neofascista no Brasil. A julgar pelo modo brando como se referem ao candidato da ultradireita argentina, parcialmente derrotado ontem, o cinismo é mais lucrativo que a ética. A simulação de compromisso com a verdade continua a comandar as emissoras de rádio, os canais de tevê, os veículos “com maior credibilidade” e os podcasts, capitaneados por “produtores de conteúdo” tão superficiais quanto oportunistas.
Só um otimista incurável pode vislumbrar saída, neste país de golpistas, reacionários e hipócritas tarados por armas, que: (1) tentaram contatar alienígenas alternando sinais de luz com mensagens nas línguas dos terráqueos; (2) oraram em torno de pneus; (3) treparam no para-choque de um caminhão simulando heroísmo intransigente; (4) sequestraram filhos de povos originários para “evangelizá-los” segundo a teologia da prosperidade (lucrativa apenas para os pastores de televisão); (5) juram defender a honra da família, enquanto praticam feminicídio, violentam mulheres e crianças; (6) votam em inimigos da saúde, da moradia popular, da educação pública etc., etc., etc.
*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete falas: ensaios sobre tipologias discursivas (Editora Cancioneiro).[https://amzn.to/3sW93sX]
Notas
[i] https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2023/10/moro-diz-que-brasil-nao-tem-relevancia-internacional-e-e-rebatido-por-ministro-das-relacoes-exteriores-como-nao.ghtml
[ii] https://edition.cnn.com/2015/10/06/middleeast/us-collateral-damage-history/index.html
Mídia corta fala de Lula e gera fake news racista
Ao tirar o sentido de pronunciamento, agências de notícias acabam por disseminar notícia falsa em torno de uma fala afirmativa
Luiz Nassif, GGN (expandir)
Cortar uma fala pela metade, tirando seu sentido, é Fakenews.
As associações de agências de fakenews dizem que as empresas jornalísticas não usam Fakenews porque corrigem erros que cometem.
Veja a fala destacada pelo site Metropoles, por exemplo:
“Essa menina bonita que está aqui, eu estava perguntando: o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela? Falei: ‘É cantora? Vai cantar?’. Não, não vai ter música. ‘Então, vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta do batuque de um tambor.’ Também não é. ‘Nossa, então é namorada de alguém?’. Também não é. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada o ano que vem como a mais importante aprendiz dessa empresa e ganhou um prêmio na Alemanha. É isso que nós queremos fazer para as pessoas neste país”, disse Lula.
Espera-se que coloquem na íntegra a fala de Lula sobre a jovem negra premiada pela VW.
Com o corte, transformaram uma fala de afirmação do negro em uma fala preconceituosa.
Espalharam Fakenews.
Veja a íntegra da fala de Lula na VW:
“Essa menina bonita que está aqui, eu estava perguntando: o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela? Falei: ‘É cantora? Vai cantar?’. Não, não vai ter música. ‘Então, vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta do batuque de um tambor.’ Também não é. ‘Nossa, então é namorada de alguém?’. Também não é. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada o ano que vem como a mais importante aprendiz dessa empresa [Volkswagen] e ganhou um prêmio na Alemanha. É isso que nós queremos fazer para as pessoas neste país. Eu vou lhe contar uma coisa. Nós, anunciamos essa semana, uma política para o Ensino Médio. Nós criamos uma poupança para os alunos do Ensino Médio. [Em seguida Lula explica como funcionará este programa; depois ele continua falando sobre o jovem de baixa renda que consegue se formar no Ensino Médio]. Aí ele [o aluno formado] vai começar a sonhar em construir uma carreira e continuar estudando. Aí tem muita gente que falou para mim ‘Mas, Lula, você está gastando dinheiro, está gastando dinheiro…” Não, gastando não. Estou investindo. Eu vou gastar dinheiro quando esse jovem que não está estudando for para o crime organizado ou ir para o CAC ou ir para a cocaína ou ir para o crime organizado e virar bandido… Aí eu vou gastar fazendo cadeia. Vou gastar prendendo ele (sic). Então é preciso gastar com educação para que, neste país, não nasçam pessoas com a possibilidade de virar bandido. Porque eu quero que milhares de jovens tenham a mesma possibilidade que essa jovem teve e que muitos de vocês [dirigindo-se à plateia] tiveram.”
"Estou de volta ao meu aconchego..."
Votação consistente de Marta pode ajudar Boulos na periferia. # Folha e # RBA
Diga-me com quem andas...
# ACM Neto ajuda a construir plano de Kim Kataguiri para São Paulo (Folha)
# União Europeia-Mercosul: colapso de um acordo colonial
(Outras Palavras)
pensatas do fim de semana 02/05-02-24
No mundo todo, jornalismo brasileiro está em 2o lugar entre os que mais receberam dinheiro das big techs
Charis Papaevangelou apresenta dados em pesquisa divulgada no Intercept em matéria de Tatiana Dias (expandir)
O BRASIL é o segundo lugar no mundo em que as big tech Google e Facebook mais injetaram dinheiro no jornalismo – atrás apenas dos EUA, país de origem das empresas. Pelo menos 424 veículos e organizações jornalísticas, de todas as regiões do Brasil, já receberam algum tipo de financiamento das corporações de tecnologia.
Para o pesquisador Charis Papaevangelou, que estuda a influência e o poder dessas empresas sobre o jornalismo, a boa vontade não é gratuita: está relacionada às discussões sobre regulação de plataformas.
Pós-doutor na Universidade de Amsterdam, onde pesquisa legislação, plataformas e jornalismo, Papaevangelou publicou no ano passado um estudo que disseca as estratégias de financiamento e captura das big tech sobre o jornalismo. Elas incluem dinheiro – muito dinheiro –, mas não apenas isso. Estão envolvidos também influência e poder.
Sua pesquisa mostrou que, entre 2017 e 2022, Google e Facebook despejaram grana em mais de 6,7 mil veículos jornalísticos e entidades do setor em todo o mundo. O total investido nesses programas chega a 900 milhões de dólares, segundo declarações públicas de executivos do Google e da Meta. Mas Papaevangelou só conseguiu encontrar informações sobre 160 milhões – o que, para ele, destaca um problema de transparência significativo.
O que motiva as big tech? Para Papaevangelou, pode haver uma correlação entre os programas de financiamento das plataformas, especialmente a intensidade deles, e a possibilidade de serem aprovadas legislações que irão afetá-las.
Como exemplo, a pesquisa cita justamente o Brasil. Por aqui, as big tech foram vitoriosas para travar o PL 2630, conhecido como PL das Fake News, depois de muita campanha e lobby.
O projeto, que visa aumentar a responsabilidade das plataformas sobre determinados conteúdos, foi alvo de oposição de várias entidades jornalísticas – algumas que receberam financiamento – por dispositivos que ameaçavam a privacidade e a liberdade de expressão. Esses pontos mais críticos foram eliminados do texto final, mas ainda assim as big tech conseguiram derrubar a votação do projeto no ano passado.
Assim como no caso brasileiro, essa correlação entre financiamento e interesses em regulação pôde ser vista também na Austrália – em meio às discussões sobre o News Media Bargaining Code, lei que obrigou as big techs a remunerarem conteúdo jornalístico –, no Canadá e na França.
Foi lá, aliás, que tudo começou: em 2013, o governo francês estava tentando impor um pagamento ao Google para compensar os veículos jornalísticos cujo conteúdo estava sendo indexado na busca.
Correndo o risco de cair na regulação, o Google criou um fundo milionário para pagar os veículos. A partir disso, a iniciativa foi estendida para outros países. Em 2017, o Facebook também criou seu próprio programa.
Brasil é segundo país com maior investimento das big tech em jornalismo.
A maior dificuldade que Papaevangelou encontrou foi a matéria prima para sua pesquisa: não havia dados. Por isso, o pesquisador raspou textos de divulgação, relatórios de impacto e posts que encontrou no site das empresas e seus parceiros para criar uma base com 6.773 mil beneficiários entre 2017 e 2022.
O pesquisador argumenta que as crises financeiras recorrentes no jornalismo aumentaram a necessidade de mais financiamento externo e, ao mesmo tempo, legitimaram a intervenção das plataformas sem que houvesse uma resposta adequada de transparência e responsabilização.
Como resultado, há impacto em toda a indústria, em sua independência e influência em processos democráticos e na governança.
Os achados de Papaevangelou se somam a um artigo de 2018, em que o pesquisador e jornalista investigativo alemão Alexander Fanta mostrou que o Google estava moldando o jornalismo.
A condição para receber o financiamento da empresa, descreveu Fanta, era “mostrar inovação”. Assim, o fundo incentivava determinados modelos de negócio, que na maior parte dos casos complementava o ecossistema online do Google, ou eram simplesmente baseados nos serviços da empresa.
Agora, Papaevangelou mostrou também que grande parte do dinheiro não foi para veículos – mas para programas e associações intermediárias. Para o pesquisador, os dados deixam claro o esforço das big tech em “capturar e plataformizar a indústria do jornalismo o máximo de níveis possível”.
Quando se fala em ‘captura’, não se trata de influência editorial – não é necessariamente o Google decidindo se uma reportagem vai ou não ao ar. É, por exemplo, a validação das plataformas como ator fundamental na indústria do jornalismo e a prevalência de veículos focados em “soluções” e “produtos” alinhados com as expectativas comerciais das empresas.
A Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, que oferece cursos e treinamentos em parceria com Google e Facebook, é citada. Outro exemplo é a Internews, na Índia, que recebeu 1 milhão de dólares do Google para oferecer treinamentos e workshops sobre letramento digital.
Ao Intercept Brasil, o Google afirmou que se baseia em critérios como “conteúdo de qualidade”, com o objetivo de “fortalecer o ecossistema jornalístico”. A empresa afirma que “ofereceu suporte” a mais de 7 mil veículos de 120 países, totalizando mais de US$ 300 milhões. (Vale lembrar que, só em 2023, o conglomerado Alphabet, dono do Google, faturou US$ 73,79 bilhões). Sobre a correlação entre financiamento e regulação, a empresa não comentou. Já a Meta não respondeu meus questionamentos. A Abraji também não comentou.
Em entrevista, Charis Papaevangelou conta como fez para “seguir o dinheiro” das big tech – e o impacto da dependência crescente de veículos, especialmente no Sul Global, nas grandes plataformas de tecnologia.
O pesquisador Charis Papaevangelou, autor do estudo que disseca as estratégias de financiamento e captura das big tech sobre o jornalismo. Foto: Reprodução/La revue des médias
Intercept – De onde veio a ideia de pesquisar o financiamento do jornalismo por big techs?
Charis Papaevangelou – Durante minha pesquisa de doutorado, estudei a economia política da governança de plataformas e, especificamente, o crescente impacto das plataformas na indústria do jornalismo. Então, eu realmente quis “seguir o dinheiro” para entender o envolvimento financeiro das big tech no jornalismo.
Senti que faltava um entendimento claro de quão grande era esse envolvimento e que a falta de transparência tornava difícil se envolver neste tópico de uma forma fundamentada. Eu me inspirei nos trabalhos dos jornalistas investigativos alemães Alexandre Fanta e Ingo Dashwitz, que fizeram o mesmo em relação ao Google Digital News Initiative na Alemanha e na União Europeia.
Mas fui um pouco mais ambicioso e, graças a um fellowship no Centre for Media, Tech and Democracy of McGill University, pude conduzir o estudo que deu origem ao meu artigo, em que eu colhi dados dos programas globais da Meta e do Google – Google News Initiative and Meta Journalism Project respectivamente.
As plataformas, em geral, não são transparentes em relação aos projetos que apoiam. No Brasil, por exemplo, o Google não divulga essas informações. Quais foram os principais desafios na sua pesquisa?
Precisamente esse, que é o caso de todos os países, para a maioria dos projetos. Nem o Google nem a Meta têm um índice abrangente ou uma lista de todos os projetos e beneficiários. Tive que fazer isso do zero, criando uma colagem de cada informação que eu encontrei.
Além disso, o nível de transparência difere de um projeto para outro nas duas empresas. Por exemplo, o maior projeto de financiamento do Google, o Journalism Emergency Relief Fund [programa lançado na pandemia] continha uma lista de todas as organizações de mídia que receberam pagamentos, mas não quanto cada um recebeu. Havia alguns padrões de quantidades de dólares cada um poderia receber, de acordo com o tamanho.
Em geral, as empresas não parecem dispostas a divulgar a quantia específica. Felizmente, alguns veículos divulgam essas informações.
O Canadá aprovou recentemente uma lei para obrigar as big tech a remunerar jornalismo, e ficou claro o que acontece depois: os veículos foram punidos pelas plataformas. Isso mostra o poder de lobby e um certo desdém pelo jornalismo. Sua pesquisa mostrou que as plataformas realmente bancam os veículos – mas com seus próprios termos e regras. Qual é a diferença entre esses modelos?
Mais e mais países estão considerando ou já aprovaram legislações para endereçar essa questão diretamente, como a Austrália e Canadá, e indiretamente, como a União Europeia. Em todos os casos, vimos que, na forma como essas leis são aplicadas, a prática permanece a critério das plataformas.
Como a situação no Canadá demonstra, isso deixa os veículos – especialmente os menores – bastante vulneráveis ao poder das plataformas, podendo até ficar reféns da negociação de poder entre big tech e governos. Isso tem efeitos prejudiciais à qualidade de nosso ecossistema de informações e democracia.
‘As big tech tentam manter a assimetria de informações que enfraquece a possibilidade de barganha dos veículos’.
Considere, por exemplo, o que aconteceu quando o Facebook, em retaliação à lei australiana, bloqueou veículos de publicarem conteúdos jornalísticos no meio da pandemia, incluindo – erroneamente, eles argumentaram depois – fontes governamentais e autoridades. A mesma situação aconteceu no Canadá durante as terríveis queimadas no último verão.
A razão pela qual as plataformas agem assim é que regulações desse tipo reconhecem a responsabilidade que elas tiveram em prejudicar a mídia. E elas não querem ser vistas reconhecendo essa cumplicidade.
Além disso, regulações como a proposta no Canadá, muito mais do que na Austrália, delimitam certos padrões e parâmetros sobre que tipo de veículo deve ser remunerado por plataformas. Isso significa que as big tech devem entrar em negociações mais formais com os veículos, o que deve fortalecer a transparência. É algo que as big tech tentam evitar, mantendo a assimetria de informações que enfraquece a possibilidade de barganha dos veículos jornalísticos.
Sair desse modelo autorregulado de plataformas financiando jornalismo é benéfico para nivelar o campo entre elas, além de impedir que as plataformas decidam quais projetos e veículos merecem ser financiados.
No entanto, essa regulação não resolve as questões mais sistêmicas que o jornalismo está enfrentando atualmente e, no fim do dia, conecta uma parte significativa do lucro dos veículos às plataformas. Como resultado, eu acredito que políticas econômicas como o crédito para assinatura de veículos digitais que existe no Canadá poderiam ajudar os veículos a retomarem sua autonomia.
Há alguma especificidade em relação aos países do Sul Global? Sua pesquisa mostrou que o Brasil foi o segundo país que mais recebeu financiamento para projetos jornalísticos do Google e da Meta. O que, na sua opinião, explica isso?
Eu não conseguiria dar essa explicação, exceto pela conexão entre os níveis de investimento e risco de regulação e melhoria da imagem pública das plataformas – isso também foi confirmado para mim por um ex-executivo do Google News Initiative, em uma conversa em off.
Poucos meses atrás, publicamos um estudo com alguns colegas em que entrevistamos representantes de 13 organizações do Oriente Médio e da África que participaram de um desafio de inovação do Google.
Descobrimos que os programas relacionados à inovação e checagem foram priorizados pelas plataformas, e que eles servem como forma de aprovação para os veículos.
Também identificamos que a quantidade de dinheiro envolvido não era suficiente para levar a cabo esses projetos, e que o Google não levava em conta as nuances encontradas nos países e ecossistemas em desenvolvimento, como, por exemplo, falta de conhecimento técnico ou mão-de-obra.
‘Esses programas foram concebidos com uma mentalidade pseudo-universalista, que é baseada em valores brancos, ocidentais e liberais’.
Mais do que isso, o Google pareceu indiferente aos problemas e forneceu praticamente zero apoio e orientação aos beneficiários, resultando na descontinuidade de muitos daqueles projetos depois do período de financiamento (que foi na maior parte dos casos um ano).
Em outras palavras, esses programas foram concebidos com uma mentalidade pseudo-universalista, que é baseada em valores brancos, ocidentais e liberais, e desconsiderou as realidades e nuances das pessoas da maior parte do mundo.
Não gostaria de comentar o caso brasileiro, porque não tenho conhecimento. No entanto, fui informado por colegas brasileiros que plataformas financiaram sites de extrema direita que propagam desinformação.
Isso apenas demonstra meu ponto anterior sobre a falta de atenção e nuances das plataformas para esses casos e países do Sul Global. As plataformas, na maior parte das vezes, os enquadram como problemas a serem resolvidos financiando soluções de fact-checking.
Muitos veículos e associações financiados pelo Google e pela Meta dizem que não há interferência editorial e que se mantêm independentes. Mas, na sua pesquisa, você menciona o conceito de ‘captura’. Como é essa influência?
O meu argumentos sobre “financiando intermediários” é que, praticamente, as plataformas, por um lado, obscurantizam suas responsabilidades envolvendo mais atores no processo.
Por outro, apoiam um ecossistema inteiro em vez de apenas veículos específicos. Em outras palavras, elas aumentam a importância de si mesmas, as transformam em atores legítimos no funcionamento da indústria em geral.
Isso gera benefícios para elas. O principal é a dependência significativa para os veículos, editores e intermediários, que por sua vez exercem pressão sobre os legisladores para não regularem plataformas de forma que colocaria em perigo todo esse ecossistema.
‘Receber uma verba ou ter uma parceria com uma dessas gigantes de tecnologia dá uma espécie de ‘selo de aprovação’.
Não uso o termo captura para argumentar que há interferência editorial dentro das redações, mas para descrever essa forma de poder mais sutil, nuançada e estrutural, que busca estabelecer as plataformas como indispensáveis para o jornalismo.
Essas empresas majoritariamente financiam projetos sob o disfarce de apoiar a inovação. Isso cria certas expectativas sobre o que é inovação no jornalismo e enquadra isso como algo atingível apenas por meio de serviços e infraestrutura criados e controlados pelas big tech, criando o que chamamos de dependência de caminho.
Além disso, esses programas de financiamento também vêm na forma de treinar jornalistas para usar esses serviços das plataformas, ou na forma de créditos de anúncios para serem usados nos serviços de publicidade do Google e da Meta. Então, estão sempre conectados para reforçar a dependência dos veículos nas plataformas.
No entanto, a questão mais interessante para explorar é por que esses conglomerados de tecnologia estão financiando o jornalismo, enquanto argumentam que eles não estão lucrando significativamente com esse conteúdo. E, aqui, acho que os meus resultados de pesquisa são úteis: eles priorizam países em que enfrentam regulação.
Sempre fomos céticos e críticos em relação às estruturas de propriedade e às questões de conflito de interesses no jornalismo, por isso deveríamos também aplicar a mesma crítica ao financiamento das big tech.
No artigo, você mencionou a influência da Ideologia Californiana, um trabalho seminal que define o dogma liberal, capitalista e tecno otimista que alimentou o desenvolvimento do Vale do Silício. Como é possível enxergar, em veículos jornalísticos, essa ideologia?
Voltarei à minha resposta anterior sobre como, nesses esquemas de financiamento, as plataformas definiram os termos do que conta como inovação ou, de maneira geral, como merecedor de receber financiamento.
Por exemplo, programas de fact-checking – especificamente para o conteúdo que circula nos serviços dessas empresas – estão entre os mais financiados por elas.
Além disso, a maioria desses programas são para projetos específicos, o que significa que há uma desconexão entre o jornalismo voltado para o valor e o jornalismo voltado para projetos. Em outras palavras, eles financiam “soluções”, que são alimentadas por esse dogma do Vale do Silício chamado “solucionismo”, como Evgeny Morozov classifica.
Indo além, até mesmo esquemas de financiamento que não são específicos para projetos, como o Google News Showcase, ou simplesmente os serviços oferecidos pelas plataformas, como mecanismo de busca e redes sociais, estão implicitamente reforçando esse dogma (neo)liberal e os valores do Vale do Silício.
Ao mesmo tempo, jornalistas se tornam dependentes das infraestruturas que operam usando sistemas automatizados, que foram desenvolvidos para aumentar o lucro – manter os usuários no ecossistema das plataformas.
Por fim, também diria, especialmente sobre organizações menores de mídia, que receber uma verba ou ter uma parceria com uma dessas gigantes de tecnologia dá a elas uma espécie de “selo de aprovação”.
As big tech também contratam jornalistas e pessoas que tiveram cargos estratégicos em veículos e associações. A questão da porta giratória nessa indústria é algo em que você se debruçou?
A maioria dos projetos do Google e Facebook relacionados à notícias são tocados por ex-jornalistas e executivos da indústria. É algo que não olhei sistematicamente, mas com que cruzei muitas vezes na minha pesquisa.
É parte da estratégia mais ampla das plataformas de garantir que eles tenham acesso de alto nível à indústria do jornalismo e a adotar a linguagem usada por gente de dentro dela para parecer mais legítimo.
Além disso, essas pessoas muitas vezes chegam com conexões extremamente importantes, o que é basicamente um aspecto de sua mais-valia que é capturada pelas plataformas.
No entanto, estamos agora em uma fase em que as plataformas estão reajustando seu relacionamento com os veículos. Por exemplo, tanto Google e Meta descontinuaram muitos de seus serviços relacionados à notícias, e dissolveram seus times internos que engajavam com a indústria.
Isso sugere uma reavaliação do seu investimento no jornalismo, o que irá abalar partes da indústria. Mas também poderá ser uma boa oportunidade para o jornalismo reavaliar a sua relação com as plataformas e recuperar a sua autonomia.
Bye Bye Brasil: a vida imita a arte
Pacaembu agora abriga o 'admirável' mundo novo das mercadorias
Mario Sergio Conti, Folha (expandir)
Em lugar do tupi, a língua dos 'brands' e logos; Nike, Microsoft, McDonalds, Coke, Tesla
Os novos caciques do Pacaembu comemoraram na quarta-feira seu triunfo sobre a tribo tupi que um dia foi dona do pedaço. Uma corporação cucaracha pagará R$ 1 bilhão para, durante três décadas, pôr seu nome no estádio art-déco inaugurado em 1940.
Tinha razão Demócrito, o filósofo grego mais por fora que bunda de índio —tupi, no caso— quando disse que "as palavras são a sobra da ação".
Porque a nomenclatura do estádio mostra como flores tóxicas do presente brotam de raízes pútridas do passado.
O logotipo da várzea rebatizada traz primeiro a imagem do aperto de mãos da multinacional que se apropriou do nome. Depois, em letras graúdas, botou-se "Mercado Livre Arena". Abaixo, como uma acanhada nota de rodapé, vem o vencido "Pacaembu" do povinho originário.
O aperto de mãos significa fechar um negócio. O acordo comercial ocorre no mercado, lugar onde uns vendem o que produzem e outros compram o que consomem. Não é um mercado chinfrim; nele atuam uma baita multinacional e uma alta ideologia: o Mercado Livre e o livre mercado.
A megaempresa opera na América Latina toda. Tem 30 mil funcionários e não produz picas; vende e entrega mercadorias à mostra no site. O dono é o argentino mais rico do sistema solar, Marcos Galperin.
A ideologia é a do liberalismo econômico, o "laissez-faire" que começou com Colbert e passou por Adam Smith e Stuart Mill. Ela é hoje aríete da desregulamentação, arma com a qual o mercado acossa e arromba Estados —vide Javier Milei, apoiado com fervor pelo mascate Marcos Galperin.
O neo-Pacaembu saiu da pia batismal pingando sangue. Ele goteja do terceiro termo do novo nome: arena. Em latim, a palavra quer dizer areia. Não é uma areia qualquer, mas a que recobria o chão dos coliseus romanos. Sua função era absorver o sangue dos gladiadores que ali se trucidavam.
O Mercado Livre Arena é, pois, um anfiteatro onde a nata transnacional pratica a política da antiga aristocracia romana: pão e circo para a plebe. Mas, com o estádio privatizado e movido a grana, a plebe ignara não terá acesso a ele. Venderá churrasquinho de gato na porta.
Por fim, o Pacaembu propriamente dito. O vocábulo aborígene não é somente hipocrisia, tributo do vício à virtude. Também diz a meia-voz que a arena multiúso (argh) é fruto da elite público-privada de agora. Esclarecida, ela derrama lágrimas crocodilescas pelos tupis que a elite de outrora extinguiu.
"Pacaembu" quer dizer atoleiro. Denominava o riacho que ia do espigão da Paulista até o rio Tietê e, por vizinhança, os nativos que viviam nas margens alagadiças. Os jesuítas os amansaram e o consórcio luso-bandeirante mandou-lhes balaços de bacamarte na testa.
Logo, fique esperto e seja politicamente correto: faça três segundos de silêncio em homenagem aos mortos para se dilatar a fé, o império e o mercado d’além-mar. Aí curta os trinados de Wesley Safadão no Mercado Livre Arena Pacaembu —um nome com a eufonia de uma rabeca velha.
Em 1958, o estádio passou a se chamar Paulo Machado de Carvalho, o marechal da vitória canarinho na Copa, conhecido como cabeça de jaca devido ao crânio oblongo. Apenas locutores usavam o nome oficial.
Maluf, o huno, se apossou da prefeitura em 1969. Pôs abaixo a concha acústica curvilínea e fez subir o tobogã tenebroso —que alegrou empreiteiros e deve ter rendido uma piscina olímpica de dólares.
Bruno Covas vendeu o estádio ao desconhecido grupo Allegra Pacaembu. Ele está pondo de pé hotel, lojas, restaurantes e centro de convenções. Mas a ênfase será em espetáculos atordoantes. Se Bolsonaro voltar, periga petistas serem jogados aos leões para atrair fascistas à arena.
Ela deveria estar pronta, mas as obras estão mais atrasadas que as da Sé de Braga. Ao se justificar, o chefe da Allegra, Eduardo Barella, disse que o Pacaembu terá "uma abertura faseada". Quis dizer inauguração em fatias, sabe-se lá quando, e veio com a batatada fraseada.
Como usou também "naming rights", merece o quê? Ser empalado no obelisco do Ibirapuera, transplantado para o Mercado Livre Arena Pacaembu? Não, claro. São as múmias avessas ao progresso que têm de se amoldar à língua dos bambambãs do turbo-mercado.
É a língua dos "brands" e logos —Nike, Microsoft, McDonald’s, Coke, Tesla, Apple e quejandos—, entes que divulgam e vendem, além de mercadorias, modos de vida. Seu admirável mundo novo é um cruzamento entre duty free com shopping center, um Pacaembu do qual não dá para fugir nunca.
# Link para a matéria original da Folha
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Linha 3 do metrô de SP trava, gera caos e passageiros andam sobre trilhos na volta para casa
Em desespero, usuários quebraram janelas e caminharam em túneis; segundo o Metrô, acionamento de dispositivos de emergência forçou esvaziamento de trem; linha só voltou às 21h05
Fábio Pescarini Erick Almeida Clayton Castelani
SÃO PAULO
Uma falha na linha 3-vermelha do metrô de São Paulo transformou em caos a volta para casa de quem precisa desse transporte público na capital paulista, no início da noite desta quinta-feira (1º). Passageiros ficaram presos nos trens por quase uma hora, e muitas pessoas tiveram de sair dos vagões e andar pelos trilhos, inclusive em túneis.
Segundo o Metrô, a linha teve de ser paralisada por cerca de 2h30 em razão de uma composição que teve os dispositivos de emergência acionados por passageiros, no trecho entre as estações Belém e Bresser, na zona leste.
"Esses acionamentos demandam o esvaziamento do trem, iniciado às 18h34, para a sua retirada de circulação, a fim de normalizar os dispositivos", afirmou.
Às 19h40, a circulação foi restabelecida no trecho entre as estações Itaquera e Tatuapé, na zona leste. Ela foi totalmente normalizada às 21h05, de acordo com a empresa.
Por medida de segurança, a circulação foi interrompida e a energia retirada, até a remoção de todos os passageiros, de acordo com a companhia. O acesso às estações foi fechado por causa da paralisação da linha.
Dentro dos vagões, passageiros entraram em desespero quando o trem parou, as luzes se apagaram e o ar-condicionado foi desligado. Usuários forçaram a porta, e o metrô oficializou a evacuação.
A bancária Juliana Roos, 33, conta que ela e outros passageiros ficaram mais de dez minutos no escuro. "As pessoas começaram a passar mal, tinha gestante dentro do vagão, uma moça desmaiou, e aí foi esse momento que começaram a quebrar as janelas para poder entrar um pouco de ventilação."
"E aí, quando começou a entrar um pouco de ventilação, as pessoas começaram a sair na via por conta do calor que estava dentro vagão", relata.
Victor Durante, 29, analista de ecommerce, que pegou o metrô na estação Marechal, no centro de São Paulo, também relata momentos de tensão. "Comecei a ficar preocupado com o pessoal chutando porta, a gritaria", diz. "Pensei que alguém fosse perder a cabeça."
"Fiquei mais de duas horas aqui", diz Willyan Augusto Assunção, 33, gerente comercial. Ele afirma ter entrado na estação Belém às 18h, até receber um aviso de que havia pessoas na via. Segundo Willyan, os passageiros foram instruídos a descer na estação Bresser, onde até por volta das 20h esperavam por informações.
Passageiros caminham pelo túnel após falha na linha 3-vermelha do metrô - Erick Almeida/Folhapress
De acordo com o Metrô, por causa do problema, a velocidade da linha 1-azul teve de ser reduzida, para equilibrar o fluxo na transferência da estação Sé, no centro de São Paulo.
Vídeos publicados na rede social X, (antigo Twitter) mostram pessoas saindo do trem e andando pelos trilhos próximo à estação Belém.
Um outro passageiro publicou em rede social que o trem estava havia mais de 25 minutos parado dentro do túnel entre as estações Belém e Bresser. Uma mulher relatou que havia gente brigando e passando mal.
Na estação República, a multidão em frente a uma das saídas foi grande, com uma multidão aglomerada em frente a grade.
O Metrô disse ter acionado o sistema Paese (Plano de Apoio entre Empresas em Situação de Emergência) entre as estações Carrão e Barra Funda no período em que a linha esteve parada.
No momento em que os primeiros relatos de problemas começaram, o presidente da empresa, Julio Castiglioni, participava na Cidade do Panamá da mesa-redonda "Os desafios das empresas públicas na América Latina e no Caribe", dentro da programação da Conferência CAF América Latina e Caribe: Uma região de soluções globais.
Segundo apurou a reportagem, o executivo foi informado sobre os problemas da noite desta quinta-feira.
VALOR DO UBER MAIS QUE DOBRA DO CENTRO ATÉ O TATUAPÉ
Alternativa buscada por milhares de passageiros que não conseguiram embarcar, corridas com carros de aplicativos tiveram seus preços mais que dobrados devido à elevada procura.
Simulações feitas pela Folha para viagens com a Uber a partir da região central com destino para três pontos da zona leste fora do centro expandido passavam dos R$ 100.
Às 20h, a corrida entre a estação do metrô República, no centro, até Guaianases, no extremo leste, custava R$ 155. Partindo da mesma estação na região central, a viagem um pouco mais curta, até Itaquera, saía por R$ 130. Se a opção fosse pelo desembarque no Tatuapé, na borda do centro expandido, preço cobrado seria de R$ 100.
Passageiros na entrada do metrô Santa Cecília, da linha vermelha do metrô - Givanildo Rogrigues/Folhapress
Em nota, a empresa Uber informou que o preço se torna dinâmico e o valor da viagem pode ficar mais caro do que o habitual para um determinado trecho quando a demanda em uma determinada área é maior do que o número de motoristas circulando na região naquele momento.
O preço dinâmico é aplicado, segundo a Uber, para incentivar que mais motoristas se conectem ao aplicativo e assim os usuários tenham um carro sempre que precisar. Quando a oferta sobe novamente, os preços voltam ao normal.
A Uber ainda afirmou que, de qualquer forma, o preço dinâmico é informado ao usuário no momento em que a viagem é solicitada.
AUMENTO DA TARIFA E GREVES
Desde 1º de janeiro, a tarifa do Metrô aumentou para R$ 5. O valor de R$ 4,40 era o mesmo desde janeiro de 2020, apesar de a inflação no período ter sido de 26% (R$ 5,55). O acréscimo de 13,6% só fica atrás do aumento de 16,6% estabelecido em 2015.
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) justificou o aumento dizendo que os subsídios para o transporte sob trilhos, para CPTM e Metrô, estavam chegando "na casa do insuportável".
O governador disse que, mesmo reajustando, vai aportar um recurso importante em termos de subsídio. "Não podemos mais tirar dinheiro de outras áreas que são prioritárias. Estamos vendo os desafios na saúde, na segurança pública. Não dá mais para tirar [destas áreas] para subsidiar a atividade de transporte. Temos que equilibrar um pouco a conta", declarou, ao anunciar o aumento.
No ano passado, Tarcísio enfrentou três greves envolvendo os metroviários. No dia 28 de novembro, houve uma greve unificada do Metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), que contou com adesão da Sabesp (Companhia de Saneamento do Estado), de professores da rede pública e de servidores da Fundação Casa. Os grevistas pediam a suspensão de projetos de privatização em curso no estado, como a da Sabesp, de linhas da CPTMe do Metrô.
Em outubro, um protesto realizado pela categoria também tinha a concessão de serviços à iniciativa privada como alvo. A primeira paralisação deste ano ocorreu em março e, embora incluísse o fim de terceirizações e privatizações na pauta, também continha argumento diretamente relacionado a direitos trabalhistas.
Colaboraram Francisco Lima Neto, Givanildo Rodrigues e Juliano Machado
# Acesse aqui a matéria original da Folha
Neoliberais rangendo os dentes
A julgar pelos números da economia e pelos índices crescentes de popularidade, tudo indica que Lula está bem na fita. Desemprego em baixa, inflação e juros em queda, investimentos em alta, projetos desenvolvimentistas consistentes em diversos setores e uma filosofia coerente para equilibrar as contas do Estado e eliminar o déficit público que faz a alegria dos bancos e dos empresários que gozam de absurdas isenções fiscais. Posso estar enganado, mas é possível pensar na hipótese de que a maré de respaldo social que essas evidências fazem crescer se consolide nas eleições municipais deste ano e se desdobre no acanhamento dessa direita estúpida que, ao que parece, continua apostando na conspiração discursiva como a única saída para conter a reversão das expectativas políticas futuras. A coisa é tão grave para essa turma que nem mesmo esse almanaque de curiosidades em que o Estadão se transformou consegue contornar o fato de que os desmandos bolsonaristas acabaram (leia aqui a matéria do Poder 360). Xô com essa gente!
Regulamentação do ensino superior privado é urgente
Em artigo publicado no Correio Braziliense, presidenta da União Nacional dos Estudantes, Manuella Mirella, defende controle rigoroso da atuação das empresas que exploram o ensino superior. Proposta foi apresentada no CONAE (leia aqui)
O melhor de Lima Barreto
Crônica inédita descoberta pelo pesquisador Alexandre Juliete Rosa
Lima Barreto, A Terra é redonda (expandir)
A Bastos Tigre
Estava deveras velho! Já passava muito além da casa dos sessenta… Há quase cinquenta anos que sua vida era só uma ideia… Em começo, nos primeiros anos, foram lutas e obstáculos; depois, a serenidade do pensamento de que já se é senhor, e se expande naturalmente na obra, marcando cada página sua, cada parágrafo seu, cada linha dela… Uma grande vida, diz Alfredo de Vigny, é um pensamento da mocidade realizado na idade madura… Tinha feito isso…
Mas que voltas tivera que dar, para realizar o seu, plenamente, com toda a autonomia e independência…
Analisava-se a si e à sua vida, ali, entre os seus livros, numa manhã triste de Agosto.
Manhã de cerração. Os contornos das montanhas não eram vistos e as casas próximas se dissolviam na indecisão daquele ambiente flocoso; entretanto ele via o seu passado com os seus desejos e as suas lutas, tudo muito nitidamente.
A sua meninice e a adolescência foram iguais às de todos os outros. Colégios, colegas, exames – tudo na mesma bitola de qualquer. Depois dos vinte, aquelas desgraças domésticas, a humilhação de pedir, a necessidade de calar opiniões, de ter as que não tinha… Mas, à proporção que sofria, ficava melhor, mais humano, mais capaz de compreender os outros, de perdoar e mais corajoso até! Como lhe viera essa transformação nele que era tímido, inimigo de toda a violência? Não sabia! Era como Marco Aurélio, o piedoso amigo de todos os homens dos seus “Pensamentos”, que acasos da vida fizeram general e vitorioso…
Então, lembrou-se das reproduções dos baixos relevos que ornam o Arco do Triunfo desse Imperador estoico… Ele devia olhar para as suas vitórias com a mesma piedade com que olhava, do alto do seu cavalo, os bárbaros que lhe pediam perdão…
O grande historiador e sociólogo, naquela manhã de neblina, recordava as suas vitórias com aborrecimento, e, não fora a necessidade de obter meios de comunicar o seu pensamento, que era grande, mesmo teria ele vergonha do seu triunfo…
Tinha isso como uma missão superior, um dever sacerdotal; era preciso remover mais um obstáculo para a compreensão perfeita entre os homens; e, sabendo como, tivera que fazê-lo, por meio da arte de escrever, empregando, aparentemente, os meios mais diferentes e opostos ao seu temperamento, à impiedade mesmo.
Pobre, conhecendo a ousadia do seu pensamento que havia de ferir logo o mais honesto letrado que o pudesse ajudar a carreira, era preciso tornar-se popular, chamar a atenção sobre si, mascarando tudo isso com propósito de executar umas fúteis, ‘os pequenos trocos da inteligência’, de modo que o grosso público, daqui e daí, se fosse habituando com ele, habituando-se às suas aparentes banalidades, para, quanto viesse a grande obra, ele a procurasse também e os editores não se recusassem aos riscos de publicá-la.
Foram dez a vinte anos de fingimento, fingimento de ignorância e de hábitos, de vícios e de virtudes, de capacidades e inabilidades. Enquanto isso, ele, o verdadeiro, marchava de flanco, estudava, meditava. Todas as ciências árduas, todas as pesquisas especiais, todas as teorias nevoentas, lia, relia e assimilava.
O mais sagaz crítico não descobriria nas pequenas brochuras que ele deitava, de quando em quando, o mercado, esses propósitos e essas leituras.
Um ou outro amigo ou camarada, porém, podia adivinhar-lhe esse pensamento, mas nenhum esperava que ele o realizasse senão da forma mais ou menos fragmentária porque ia fazendo.
De todas as bobagens dos literatos e seus sequazes, ele se vestiu; de todas as suas verdadesinhas, ele procurou dar mostras de ter ambição; mas nada disso ele queria, nada disso mantinha o seu ânimo nas disputas e nas questiúnculas de vernáculo.
A popularidade mesmo não era seu fim; o seu fim era publicar a custosa obra, sonhada aos vinte e poucos anos, quando lhe chegaram as dores do mundo e ele viu melhor os homens e as coisas.
Seguro que podia fazer, ele se entregara de corpo e alma a ela. Não eram só leituras e estudos de que precisava; eram também viagens, inquéritos in situ, reproduções por meio das artes gráficas – todo um trabalho caríssimo e paciente.
Ele o fizera e acabara. Estavam ali os volumes e todos já se tinham despedido do espanto com que receberam o primeiro. A sua missão na vida estava completa.
Não tinha mais um parente próximo; os amigos estavam por ali e por acolá, em posições diferentes, mas já muito outros daquilo que foram.
Só no mundo, com as relações cerimoniosas do seu ofício, a vida não lhe pesava, apesar daquele quase total isolamento. Tinha cumprido o seu dever; tinha feito o que sonhara um rapaz, sem bajular, sem baixeza e sem diminuir o seu alto pensamento. O Galileu, desta feita, não tinha vencido Juliano.
Rico, considerado, tendo podido passar por todas as posições, obtivera muitas coisas que não desejava, mas sentia uma pequena falta, a de um companheiro, homem ou mulher, para relembrar nele ou nela os entusiasmos sagrados e os negros desânimos dos seus primeiros anos de atividade mental.
Talvez morresse já, talvez vivesse ainda muito – mas para quem ficariam aqueles livros, aquelas notas, aqueles papeis íntimos?
A sua herdeira, uma sobrinha, nem o seu nome trazia mais, mas o do pai, seu cunhado; e os filhos par aí. Mãe e filhos pareciam nada ter de sério na cabeça e só se lembravam dele para arreiar-se com parentesco, como se usassem um alfinete ou um camafeu caro.
Quando lhe vinham em casa, nem um olhar amigo deitavam sobre aqueles seus livros, alguns que seu pai lhe dera em criança, antes que pudesse compreendê-los; e ele os tinha compreendido, amado, estudado com proveito…
Lembrou-se de procurar os seus papeis mais íntimos e mais antigos. Coisas de quase quarenta anos passados em que não mexia há mais de trinta…
Achou logo o maço, umas tiras, com umas notas de diário:
‘Hoje, 14 de outubro de 18… fui à casa de T., poeta moço e dos de mais fama. Leu-me uma peça história em verso. Não lhe senti a substância da poesia; é tudo aparência, rimas ricas, enjambements e não sei o que mais. É ele mesmo: muito amável, muito agradável, mas incapaz de sentimentos profundos e amplos. A obra é o homem, mas de homem que não pode interessar ninguém.’
Não continuou a ler a página do diário inacabado e abriu um caderno em que havia tudo: notas de despesas, endereços de camaradas, indicações de livros etc. Encontrou, no meio de tudo isso, este apontamento:
‘Conversando há dias com A. C. M., no seu quarto, não sei a que propósito, ele me disse:
– A ciência, Malvino, demonstra isso…
– Você, retruquei eu, já pensou bem em demonstrar a certeza da ciência?
Ele, quase me cortando a palavra, objetou:
– Já vem você com os seus paradoxos.’
Nesse mesmo caderno, ainda topou com o seguinte, intitulado bizarramente:
‘O meu decálogo. Não me interessar por mulher alguma; não ambicionar dinheiro; evitar o convívio com os poderosos, menos daqueles que eu estimar; não frequentar mais nenhuma escola superior; etc., etc.’
Fechou o caderno, vexado com essas futilidades da sua primeira mocidade; ia restabelecer o maço de papeis e novamente amarrá-lo, quando um grande envelope fechado e lacrado, com alguma coisa volumosa dentro lhe chamou a atenção. Quebrou o lacre, abriu a sobrecarta e deu um uma flor, uma rosa, murcha, com esta etiqueta amarrada no pedúnculo: ‘Esta rosa foi-me dada por H., na tarde de Natal de 18…’
Pôs a ‘curiosidade’ em cima da mesa e ficou a pensar:
– Quem era?
Forçou a memória, recordou fisionomias, fatos, públicos e privados daquelas épocas e de que fora testemunha…
Tornou a perguntar a si mesmo:
– Quem era a H daquela rosa?
Não lhe escrevera todo o nome, nem a presença daquela relíquia era capaz de estimular-lhe a memória a ponto de o fazer recordar-se dele naquela hora.
– Quem era?
Absolutamente não sabia mais.
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Lima Barreto (1881-1922) foi jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Triste fim de Policarpo Quaresma.
Nota
[i] Esta é uma crônica inédita de Lima Barreto, inédita em livro. Encontrei-a no jornal humorístico Dom Quixote, cuja idealização e direção vinham do amigo Bastos Tigre, para quem a crônica é dedicada. Trata-se de um texto muito importante. Além de ser um verdadeiro testamento intelectual e literário, toca em assuntos extremamente delicados para o autor: a solidão (mesmo sendo um rapaz extremamente sociável) e a ideia de Amor.
Lima Barreto não se casou, nunca namorou. As poucas referências que encontramos sobre relacionamentos com mulheres normalmente falam de encontros rápidos ou passagens em casas de prostituição. Evidente que o texto tem um contorno ficcional: o tal homem sobre quem o cronista traça o perfil tem sessenta anos… era um grande historiador e sociólogo…
Quem conhece um pouco da biografia e da obra de Lima Barreto, o modo como se interpenetram, vai conseguir, sem muito esforço, reconhecer esse homem, plenamente consciente de que não foi um derrotado na vida, como muitos vieram a dizer dele. Pode ser que tenha faltado um grande amor em sua vida, ou pelo menos ele não se concretizou.
Sofia Coppola: Priscilla e as memórias coletivas das mulheres
Sofia Coppola é delicada e crítica ao demonstrar que, longe de jornadas de heroína romântica ou leituras simplificadas de empoderamento, o caminho de autonomia feminina é complexo
Marília Ariza e Paulo Augusto Franco, Gama/Uol (expandir)
“Priscilla” (2023) é o mais recente filme dirigido por Sofia Coppola. Nele conhecemos as memórias de Priscilla Presley publicadas antes no livro “Elvis and Me” (1985). Nada nas telas parece se tratar de uma simples narrativa biográfica caracterizada por aquele suposto heroísmo tão próprio a esse gênero. O foco não está em Elvis, tampouco nas grandes narrativas Hollywoodianas que trataram de vesti-lo como o “rei do rock”. O protagonismo é todo de Priscilla, até então, uma personagem pública relegada às sombras do namorado/marido: o “gênio”. Ao nosso ver, o filme de Coppola descongela e subverte as tão conhecidas fotografias da fama, imagens que foram tornadas cenas estáticas no tempo. Nelas podíamos ver apenas uma jovem mulher posando ao lado de seu belo “rei” que, por sua vez, ostenta uma esposa sorridente, superficial e esteticamente irretocável.
As primeiras sequências do filme nos apresenta Priscilla Beaulieu, uma jovem de 14 anos que mora com os pais num regimento militar norte-americano na Alemanha ocidental, em plena Guerra Fria. É na pacata cidade de Bad Nauheim que ela conhece o sargento Presley. Os enquadramentos, na escala evidente, dramatizam o encontro apaixonado: desde a diferença de estatura entre ambos até a indumentária. Os contrastes entre a menina e o homem, entre o anonimato e a fama, entre o tédio e a excitação já tratam de encenar o futuro. Em pouco tempo vemos a transformação rápida de Priscilla. O vestido de corte romântico com cores sóbrias da menina inocente passa a conviver com a maquiagem borrada pelas emoções e desejos da mulher que acaba de retornar de uma estada com o namorado em sua mansão em Memphis, nos EUA. A escola e a adolescência provinciana tornam-se uma prisão telúrica para quem já sonha longe.
Priscilla deixa os pais e se muda para Graceland – por anos, antes de finalmente casar-se com Elvis. Vive ali um anonimato em tudo oposto à fama superlativa do namorado. Sua vida nova e secreta, contudo, não dissipa o ar de deslocamento experimentado na Europa – pelo contrário, parece acentuá-lo, traduzindo-o, apesar da aura de sonho, num cotidiano de solidão cortante e permanente inadequação.
O mundo de Priscila, neste momento, orbita a expectativa de reencontrar o amado, sempre ausente: é uma estudante desinteressada e uma jovem entediada que procura distrações para preencher dias vazios. Os sapatos de salto com suas solas sempre limpas praticamente só conhecem os tapetes felpudos da mansão. A imensa propriedade é seu mundo inteiro — a princípio vasto, com seus jardins imensos e salas repletas de móveis claros e adornos luxuosos, mas quase sem presença de energia humana, ela é, afinal, grande apenas no tamanho da solidão que proporciona. Paradoxalmente, ali Priscilla constrói um universo social e cultural apequenado, alienado na imaginação solitária e algo infantil de amor romântico e completamente desvinculado das dinâmicas que faziam da década de 1960 um período de intensa vivacidade para jovens como ela — o movimento de direitos civis, as tensões da Guerra do Vietnã, as experimentações com a contracultura e as drogas, e os ensaios de liberação sexual feminina.
Essas duas últimas dimensões de possível subversão do projeto amoroso conservador de Priscilla e Elvis são, inclusive, objeto do olhar afiado de Sofia Coppola. As pílulas para dormir e acordar consumidas por ele e, logo, também por ela, significam pouca ou nenhuma transgressão; a viagem lisérgica de ácido que protagonizam no quarto escuro, onde os vemos isolados repetidamente, é autorreferente, pouquíssimo imaginativa, quase decepcionante.
Priscilla é uma espécie de bibelô, um objeto na decoração da imensa casa, uma personagem marginal da fotografia do astro em sua mansão
É sobretudo a captura da sexualidade de Priscilla pelo controle tirânico de Elvis, que denuncia os limites da vida a princípio ousada que a jovem criou para si: ele constrange seu desejo — primeiro o estimula, e depois lhe põe freios, dela retirando o controle sobre a própria sexualidade. Ao mesmo tempo, controla seu corpo e sexualiza a menina de feições angelicais: tinge seu cabelo, escolhe suas roupas e tenta redesenhar o seu sorriso, esvaziando a autonomia de forjar para si uma nova imagem de mulher. Essa tensão entre a sexualização autoritária e a esterilização da sexualidade de Priscilla está também traduzida na imagem da estudante de maquiagem pesada, cabelos escuros e uniforme escolar – algo entre a ingenuidade de menina e sua fetichização. Assim, Priscilla é, para Graceland e seu dono, uma espécie de bibelô – um objeto na decoração da imensa casa, uma personagem marginal da fotografia do astro em sua mansão, sentado à poltrona, criança no colo e esposa ajoelhada ao lado.
Mas eis aqui um ponto que nos parece fundamental. Em nenhum momento, contudo, a diretora sugere que a relação distanciada de Priscilla com o mundo a seu redor e a intromissão de Elvis Presley na imaginação que faz de si mesma sejam expressão de uma vida interior adormecida. Pelo contrário, há uma contraposição marcante entre a esterilidade do mundo exterior e a intensa angústia do mundo interior de Priscilla – angústia essa que, afinal, é subvertida numa atitude de enfrentamento e busca por autonomia.
Encontramos no filme, desse modo, uma janela interessante para pensar a agência e o protagonismo feminino — Coppola é delicada e crítica ao demonstrar que, longe de jornadas de heroína romântica ou leituras simplificadas de empoderamento, o caminho de autonomia feminina é complexo: é a história da menina que enfrenta os pais para cruzar o mundo e viver o amor que sonha; é a contestação da tirania do namorado e marido, e os recuos diante do medo de perdê-lo ou desagradá-lo; é a relação com o corpo que se renova na prática das artes marciais — e também na sugestão de um caso amoroso com seu professor. É, por fim, a decisão de reclamar a própria história e partir, deixando para trás, com esforço e com certeza, um sujeito esgotado, autocentrado e entregue à penumbra de um quarto de hotel. É bonita, ainda que literal, a imagem de Priscilla dirigindo o carro, cruzando os portões de Graceland, enquanto Dolly Parton — cantora que desafiou o gênero country, até então, tão dominado por homens — canta no rádio a dor de “I will always love you”…
Ao subverter o projeto amoroso na matriz reprodutiva do patriarcado que tanto tenta confinar a mulher ao “culto da domesticidade”, para usar a expressão da escritora Anne McClintock, “Priscilla”, de Coppola, descongela e recusa as fotografias da família e da fama nos padrões Hollywoodianos. São imagens emolduradas em porta-retratos que exibem, como monumentos, o sonho norte-americano tão repleto de padrões misóginos: um sistema organizado de imagens. Podemos por aí, finalmente, arriscar que os arquivos de “Priscilla” são, de certo modo, memórias também coletivas. Eles vocalizam trajetórias de muitas mulheres públicas confinadas às sombras e aos lares claustrofóbicos de seus “reis” -, Diana e Jackie Kennedy, retratadas por outro sensível realizador, Pedro Larraín, Maria Antonieta, também de Sofia Coppola, e, no limite, a própria diretora, cujo sobrenome de peso já sugere ser ela mesma uma personagem, mesmo que não explícita, em seus filmes
MARÍLIA ARIZA é historiadora, professora, doutora e pós-doutora pela USP
PAULO AUGUSTO FRANCO é antropólogo, pós-doutor e pesquisador da USP, professor do curso de Direito da ESPM-SP
(admirável?) Mundo Novo
# Neuralink, de Elon Musk, faz primeiro implante de chip cerebral em humano (G1)
# Fora Lemann!
Empresário envolvido no colapso das Lojas Americanas é vaiado no CONAE (CC)
# CONAE reforça pedido de revogação do Novo Ensino Médio (Rede Brasil Atual)
O valor volta à política
Renato Janine Ribeiro, A Terra é nossa (expandir)
Apresentação do autor ao livro recém-publicado
O futuro será melhor
“A política voltará a ter futuro” é um título-aposta, que preciso justificar. Hoje vivemos o descrédito dos políticos e da própria política. É um fenômeno mundial. Se deixarmos de lado o papa Francisco, o Dalai Lama e a chanceler alemã Angela Merkel, que líderes democráticos temos no mundo, no começo de 2021? E notem que os dois primeiros são do campo espiritual: no plano da política propriamente dita, que por definição é leiga, restou apenas a dirigente da Alemanha, que aliás quando sair este livro já deverá ter deixado o poder, como anunciou. Restam governantes medianos, médios ou medíocres, na melhor das hipóteses; a maior parte é realmente ruim. É verdade que Rússia e China, dois países ex-comunistas que não são democracias, têm governantes acima da média; mas isso apenas prova que hoje faltam lideres às democracias.
Já o descontentamento com a política pode se dever a muitas causas – até mesmo ao fato de que o mundo se democratizou. O descontentamento seria – paradoxalmente – fruto de um relativo sucesso? Como talvez meia humanidade hoje disponha de liberdade pessoal e política, já não a empolgaria lutar por mais, nem para si mesma, nem para os outros seres humanos a quem faltam essas liberdades.
A democracia, realizando-se – mas de forma banal, nada utópica – nos teria colocado frente a nossa própria banalidade: teríamos líderes medíocres, porque o eleitorado se reconhece neles. A frase célebre de Umberto Eco, segundo a qual a internet deu voz aos imbecis, implicaria que esses imbecis não queiram mais eleger pessoas que admirem, em quem se possam inspirar – mas sim os clones deles, imbecis. A mediocridade hoje é vista como sinal de autenticidade. Comparem, na França, Sarkozy e Hollande, em nosso século, a de Gaulle e Mitterrand, poucas décadas antes: um abismo separa os dois chefes de Estado que tinham noção da grandeza de seu país e os presidentes mais recentes (e que não foram os piores chefes de Estado de nosso século, notem bem).
Ou o descontentamento com a política pode decorrer, trivialmente, da crise econômica de 2008, que demorou a repercutir no Brasil mas, destruindo riquezas mundo afora, gerou uma queda generalizada do nível de vida. Nesta hipótese, a vida política se torna efeito da vida econômica. A confiança num líder derivaria do crédito com o qual ele irriga a economia, facilitando a compra de bens de consumo (o que desenvolvo num artigo deste livro). Já faz tempo se afirma um declínio do homem contemporâneo, que estaria indo de cidadão a consumidor. Parece que, finalmente, em nossos dias, a cidadania foi substituída pelo consumo – ou, pelo menos, se viu fortemente subordinada a ele. Se nosso nível de vida não subir o tempo todo, nos decepcionamos. Parece ser esse o principal critério para as pessoas decidirem o voto.
Não se trata de pessoas indignadas com a perda de seu nível de vida: elas se revoltam porque se frustrou seu desejo de terem sempre mais. Vivem na comparação: embora no Brasil os anos Lula tenham melhorado a vida dos miseráveis e pobres sem prejudicar os mais abastados, estes se sentiram diminuídos, muitas vezes, ao se compararem àqueles. Viveram uma perda de status, mas só por comparação. (Rousseau considerava isso o pior traço da vida em sociedade: o ser humano deixa de ser “homem da natureza”, o que traduzo simplificadamente como “ele mesmo”, do modo que nasceu, e passa a ser “homem do homem”, isto é, alguém incapaz de saber quem é e que só consegue se enxergar emprestando o olhar alheio).
Assim, estes anos se tornaram maus para a política. Ainda mais se eu tiver razão na hipótese que levantei, em meu livro A boa política, de que hoje política se torna sinônimo de democracia, isto é: em vez de política se referir a poder, e de o substantivo “poder” se dividir em democrático, ditatorial, despótico autoritário, totalitário, em suma, em várias espécies, somente haverá política (o regime no qual a força é substituída pela palavra, pela persuasão) em nossos dias quando houver democracia. Quer dizer: estes últimos anos também foram negativos para a democracia.
Por quê?
Há duas respostas possíveis.
1.
A primeira, sugeri acima, é que se teria chegado a certa satisfação com o que se obteve. Com metade da população mundial protegida da fome, da miséria, da opressão deslavada, o que essa maioria há de querer ainda? O pensamento liberal e o capitalismo – que sabe que não pode fornecer o melhor dos mundos imagináveis – promoveram uma desqualificação em regra da utopia. Ela passou a ser entendida como algo impossível, ou pior, negativo: porque, lutando por um homem melhor, se entraria no mundo da ditadura, do totalitarismo, da mentira.
Ora, se é inútil melhorar a sociedade, o que podemos esperar – além do consumo? Viveríamos numa “democracia resignada”. A cada tentativa de ir além, ouvimos a mesma resposta: é impossível. Muitos argumentos foram construídos para justificar tal mediocrização da política. Alega-se que o ser humano é egoísta e que o comunismo, querendo criar um “homem novo”, acabou produzindo contrafações, mentiras. Melhor, então, termos um homem egocêntrico, mas que respeite as leis e maximize seus ganhos, do que um homem que se diz melhor, mas, na prática, é pior. Nós nos deteríamos num saudável, ainda que enfadonho, meio termo. (E insistamos no enfadonho…).
Mas o erro dessa perspectiva é que só faz sentido se for contraposta a uma miragem, a um espantalho. Ela precisa desesperadamente do comunismo como contraponto. Daí que hoje, quando nada resta do comunismo no poder ou mesmo como alternativa de poder, haja quem denuncie como “comunismo” o que é simples social-democracia ou, mesmo, liberalismo. É o que faz a extrema-direita no Brasil, nos Estados Unidos, nos países em que chegou ao governo ou se tornou alternativa de poder, como na própria França, onde há um receio de que, por insistência, algum Le Pen acabe chegando à presidência… Daí que a própria ecologia, ou os movimentos por uma vida mais saudável mental e fisicamente, sejam desqualificados como totalitários, o que é puro absurdo.
Esse erro de concepção é, porém, muito eficaz, ao abortar voos maiores, ao manter a humanidade numa vida mesquinha, do ponto de vista espiritual e moral. Resumindo, o capitalismo triunfou ao custo de reduzir, o máximo que pôde, o alcance da democracia.
2.
A segunda resposta é que estejamos vivendo uma reação. Muitos estudiosos da sociedade já usaram a metáfora do coração, que alterna sístole e diástole. A um período de fechamento, segue-se um de abertura, e assim sucessivamente. Ocorre que se abriu muito o leque de liberdades. Houve quem se chocasse com isso. Com efeito, as mulheres se tornarem iguais em direito aos homens, os negros aos brancos, as diversas orientações sexuais serem aceitas, imigrantes se destacarem nas sociedades para onde foram – tudo isso aconteceu rapidamente.
Pensemos no casal: poucas décadas atrás, o homem era o chefe da família. Bastava ele se casar para ser investido numa série de poderes, entre eles o de definir o domicílio familiar (portanto, se quisesse mudar de casa ou mesmo cidade, poderia impor a mudança à esposa), para não falar numa quantidade de privilégios mesquinhos – como, por exemplo, a mulher só poder abrir conta bancária ou tirar passaporte com a permissão dele. O fim dessa prepotência é recente, e sucedeu praticamente de uma geração para outra. Então, um homem cujo pai mandava na mãe se casa hoje com uma mulher com quem precisa repartir todas as decisões, sem haver uma instância final que resolva todas as pendências.
Por milhares de anos, em todas as estruturas de poder, em caso de impasse, sabia-se quem decidia. Hoje, no casal, não há mais isso – ou há cada vez menos. E em outras relações de poder, como com os filhos, a mesma tendência se observa. Antes, o laço se mantinha a todo custo, porque um mandava. Hoje, não há mais esse Um que manda – não nas relações de amor, pelo menos. O impacto social dessa mudança é enorme. A quantos maridos seus pais não disseram, essas últimas décadas, que tinham de mandar na mulher, eventualmente até usando da força bruta? Só que isso, além de não funcionar mais, virou crime.
A reação então é exatamente isso: uma resposta reacionária. Diante do avanço da liberdade das mulheres, acumulou-se um rancor cada vez menos surdo dos que se sentiram diminuídos. Temos machos diminuídos, brancos diminuídos, ricos diminuídos (esses, nem tanto…), nativos “da gema” (como dizíamos das pessoas cujas famílias viviam havia muito tempo na mesma cidade ou Estado) ou “quatrocentões” (como se dizia dos paulistas cujas famílias imigraram há mais tempo para o Brasil) diminuídos. Confusamente, essas diminuições, essas humilhações com frequência mais imaginadas do que reais, se somaram. E, vindo uma crise econômica que debilitou o governo petista, o qual ficou diretamente associado a essas mudanças, e também o partido que antes governou o Brasil, o PSDB, que igualmente defendeu os direitos humanos, ambos foram assimilados como “imorais” e até mesmo “comunistas”, e o ódio envolveu a todos na mesma lama.
Se esta segunda resposta valer, estaremos diante de um período transitório de reação, como o que se chamou Restauração e dominou a Europa depois da derrota de Napoleão em 1814-15, mas depois ruiu. Em 1830, na França, o regime conservador foi substituído por uma monarquia burguesa, constitucional.[i] Em 1848, as revoluções que se alastraram pela Europa foram esmagadas na maior parte, mas mudaram decisivamente a forma de ver a política. No final do século XIX, restrições ao poder dos reis já valiam em muitos países. Espero, evidentemente, que não demoremos tanto tempo!
3.
Não demoraremos, pela simples razão de que o tempo se acelerou. O que tardava décadas hoje dura anos. Anos passam em meses ou semanas.
O que fazer? Depende do peso de cada uma das duas respostas que sugeri acima, mas as ações desejáveis convergem em ambos os casos. Se prevalecer a segunda possibilidade, isto é, se estivermos vivendo uma reação dos que neste mundo novo se sentem como peixes fora d’água, a retomada da onda democrática será questão de tempo. Lembro o plebiscito britânico sobre o Brexit: a saída do Reino Unido triunfou, mas graças aos mais velhos, mais interioranos, menos estudados.
O resultado de sua decisão é provavelmente irreversível – pelo menos por muito tempo – mas a verdade é que, se o plebiscito tivesse lugar dez anos depois, o eleitorado decidiria de outro modo. Como a igualdade tem crescido nos últimos tempos, dentro de alguns anos a reação reacionária (um pleonasmo proposital, para deixar claro de que se trata) se terá esgotado. Aqueles que escolheram o retrocesso perderão a parada. Terão causado sofrimento, às vezes agudo, mas não têm futuro.
E se valer mais a primeira resposta, isto é, o apelo democrático se tiver esgotado? Essa hipótese é mais grave. Mas sustento que, se ele se exauriu, foi porque se viu reduzido a um apelo medíocre, limitado, enfraquecido. Para a democracia vencer, ela abriu mão de muitas de suas potencialidades. Para ir direto ao ponto: a democracia parou na porta da empresa. Houve democratização na política, sim; no casal; até mesmo no amor e na família. Mas, lá onde o capital manda mesmo, democracia não houve. É o que temos de conquistar agora. Por um lado, manter a defesa e expansão da democracia no amor (que despertou os demônios da reação), por outro, assegurar que ali onde a maior parte das pessoas passa a maior parte de seu tempo – o local de trabalho – também aumente a liberdade.
Não será fácil.
“A política anda a passo rápido e, por isso mesmo, se a filosofia política quiser continuar discutindo apenas os grandes conceitos, terá dificuldade em apreender o que de fato acontece, o vivido imediato. Ou seja: temos que rever nossos grandes conceitos, acrescentar-lhes outros, aceitar o inesperado.
Mas tem que ficar claríssimo que para a democracia é essencial ela expandir-se. A democracia não é um regime do qual se possa dizer paramos aqui. Proclamamos a independência (no Brasil) ou ela e a República (nos Estados Unidos) e agora mantemos a escravidão. Fazemos democracia, mas só para os ricos, só para os brancos. Não, não: ela contagia. Stendhal percebeu isso muito bem, numa passagem que já citei em outro artigo – e a fantástica convergência conosco é que ele falava de um fenômeno brasileiro, a revolução de 1817 em Pernambuco: “A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, não se fez nada”. [ii]
4.
Os artigos aqui reunidos foram inspirados por um forte otimismo: o Brasil tinha consolidado a democracia e daí em diante apenas a fortaleceria. Hoje, vivemos um retrocesso que não consiste apenas na vitória do antipetismo, mas na da antipolítica, que levou PT e PSDB de roldão. A política foi substituída pelo ódio, e não apenas no Brasil.
Mas a política há de voltar. Ela tem futuro, melhor dizendo: o futuro depende dela. Por política, já afirmei que entendo a política democrática. Política não é mais uma palavra genérica que cobre todos os tipos de poder, inclusive os despóticos. Política não se refere mais a qualquer poder, mas à pólis, à organização de base em que os cidadãos decidem, em que o demos se faz ouvir. As crônicas que aqui reúno eram otimistas. Um moderado otimismo continua fazendo sentido. Isso depende muito de nós.
Comparo o período atual ao posterior à crise de 1929: também uma devastação econômica, à qual se seguem custos sociais elevados e o fortalecimento da extrema-direita. Contudo, hoje dispomos de (i) numerosos movimentos e organizações comprometidos com a melhora do mundo, (ii) um conhecimento sem precedentes dos problemas e de suas soluções. Assim, a grande questão agora é unir as forças favoráveis à democratização, não só da política como das relações macro e microssociais, bem como à sobrevivência de nossa espécie num planeta cuja natureza tem que ser respeitada. Eis nossa tarefa.
5.
Este livro faz parte de uma espécie de tetralogia: quatro obras que têm em comum, embora em formatos bem distintos, o empenho em aplicar a filosofia política e outros conhecimentos das ciências humanas, em especial a história, à política tal como se faz; aplicar a teoria à prática, em especial à brasileira, que vezes sem conta é tratada, em nossa academia, mesmo nas áreas de Humanidades e Ciências Humanas, como pouco digna da alta teoria; e, não menos importante, mudar a teoria a partir do confronto com o mundo político e social. Isso porque geralmente a filosofia política lida com altos conceitos, como soberania, representação, democracia, mas se ocupa pouco do frágil e tenso cotidiano da política, que é onde – numa sociedade democrática contemporânea – as coisas se jogam.
Houve uma mudança na temporalidade da política, que nem sempre a filosofia (política) levou na devida conta. Nos regimes não democráticos, o tempo fluía vagaroso. Um faraó, um rei podiam governar décadas. O poder não mudava muito de natureza ao longo de séculos. Hoje, a cada poucos anos há eleições – e não digo que elas sejam a causa da aceleração da política, podem ser sua consequência: a vida aumentou, muito, sua velocidade.
As instituições antigas, quando o poder descia em vez de subir, quando vinha dos Céus em vez de ascender do povo, eram mais sólidas. Já as nossas devem à vontade popular a pouca solidez que têm, mas enfrentam os sobressaltos da economia e a inconstância de seus elementos, que podem em poucos anos desfazer o que parecia consagrado. (Assim foi que o Brasil, em que a democracia parecia consolidada, veio dar no que deu).
A política anda a passo rápido e, por isso mesmo, se a filosofia política quiser continuar discutindo apenas os grandes conceitos, terá dificuldade em apreender o que de fato acontece, o vivido imediato. Ou seja: temos que rever nossos grandes conceitos, acrescentar-lhes outros, aceitar o inesperado.
Artigos escritos ao longo de quatro anos, toda semana, para um jornal sério me permitiram utilizar os conceitos que aprendi, somados a meu conhecimento histórico, para procurar entender o que estava acontecendo. Minha perspectiva não era a do cientista político nem a do economista, que geralmente são quem comenta a atualidade do poder no primeiro caderno dos jornais; não era do economista, por razões óbvias; a diferença com o cientista político pode ser mais difícil de estabelecer. Mas ela tem a ver com a relação com os conceitos e a temporalidade, como afirmei acima. E é claro que o teste dos conceitos na realidade levou-me a contestá-los, até mesmo modificá-los.
6.
Esta obra talvez devesse ter sido a primeira a sair da tetralogia mencionada, mas não é o caso. Ao longo de quatro anos, entre maio de 2011 e março de 2015, publiquei com absoluta liberdade uma coluna no Valor Econômico,em que discuti a política brasileira. Eram tempos de esperança, que coincidiram com o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff (no livro ora uso a forma presidente, ora presidenta; ambas existem em português; a segunda é abonada por Carlos Drummond de Andrade, o que me basta em termos de qualidade).
Escrever toda semana foi uma espécie de teste, de experiência para ver como os conceitos com que trabalhei a vida toda, na filosofia política e na ética, bem como no conhecimento de história que elas me obrigaram (com enorme prazer) a adquirir, funcionavam na prática. Não há frase do senso comum que eu deteste tanto quanto a teoria na prática é outra. Ela apenas significa que a teoria em questão é ruim. Tem que ser trocada. A prática é a grande fonte para as teorias, é o terreno também onde testá-las.
Aqueles também foram, para mim, anos de formação. Procurando entender o que acontecia na política brasileira por um viés que não é o do jornalista, nem o do cientista político, espero ter aprendido alguma coisa. Uma qualidade do intelectual, que me parece imprescindível, é estar sempre em formação: nunca parar de aprender, nunca parar de se surpreender.
A Boa Política, dos quatro livros o primeiro a aparecer (em 2017), inclui artigos anteriores a minha experiência de colunista, mas também a leva em conta. O objetivo principal dessa obra foi ver o que, em nossa cultura, brasileira e/ou latino-americana, destoa do mainstream do Atlântico Norte. Defendo há tempos a tese de que as teorias políticas hoje dominantes foram gestadas e aplicadas no território que coincide com a antiga OTAN, isto é, os dois países anglo-saxônicos da América do Norte (acho estranho que se inclua nesse subcontinente o México) e as nações da Europa Ocidental.
Lá nasceu, lá cresceu, lá prospera a democracia moderna ou contemporânea. Fora desse espaço podem estar a “maior democracia do mundo”, como é praxe designar a Índia, ou o Japão, potência econômica, bem como vários países da América Latina, mas todos nós temos diferenças específicas que não são devidamente consideradas na alta teoria democrática.
Pensando sobretudo no Brasil e por extensão na América Latina, tenho insistido no elemento afetivo, que é parte essencial de como vemos a política, seja sob a forma de um afeto autoritário (o nome de outro livro meu, em que testei esta questão usando, sobretudo, o corpus da televisão) ou de um afeto democrático, cuja construção pode ser a principal contribuição de nossa parte do mundo para a reflexão e a prática da democracia. Eu me explico: democracia e república, dois componentes essenciais do que chamo “a boa política”, são tratados de forma muito racional no pensamento do Atlântico Norte. Conseguir uma política democrática e republicana decorreria de um grande esforço por superar as tendências egocêntricas e particularistas, que seriam, pensam muitos, mais “naturais” ao ser humano.
A boa política seria uma construção laboriosa e racional. Já, quando a política se assenta nos afetos, ela tenderia a ser facciosa, parcial. O que sustento é que a democracia somente será forte se for capaz de democratizar os afetos: se ela se inscrever nos sentimentos, nas emoções. O que, por sua vez, dá sentido à educação (e a sua irmã, a cultura): são elas que podem gravar no mundo afetivo valores como a igualdade, a solidariedade, a decência. Ter sido ministro da Educação do Brasil, em 2015, obviamente me ajudou a pensar este ponto.
Tal ideia vem junto com a de que a democracia é um regime não só político, mas de convivência humana. Se na modernidade ela dizia respeito essencialmente ao Estado, aos poucos foi-se tornando cada vez mais pertinente à sociedade, isto é, às relações tanto micro quanto macrossociais. Tem que haver democracia no casal, na família, na amizade, assim como na empresa, no lazer – em toda a parte. E evidentemente tal necessidade colide com a realidade do capitalismo, que precisa, pelo menos, ser compensada por exigências sociais e legais que introduzam a democracia nas relações de trabalho.
Já A Pátria Educadora em Colapso (2018) é uma narrativa e análise do período de seis meses em que fui ministro da Educação, no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Eu já tivera uma experiência de gestão como diretor de Avaliação da CAPES, entre 2004 e 2008, mas isso não se compara à direção de um ministério importante: minha diretoria nos anos 2000 tinha um orçamento livre de 1 milhão de reais, em 2015 o MEC movimentava 140 bilhões… O importante, nesta posição, foi ver a política de um ângulo que o pensador independente dificilmente imagina. Aliás, sempre sustentei que uma das ideias mais fortes de Marx – e isso independe de você ser socialista ou não – consiste em enxergar os fenômenos políticos, sociais e econômicos do ponto de vista do poder.
É isso o que faz o marxismo ser diferente de um movimento reivindicatório, que pede (ou mesmo exige, isso não faz diferença) que o detentor do poder ceda ou faça alguma coisa: a questão marxista é tomar o poder e, a partir daí, fazer as mudanças que pretende. Não é se manter na posição pedinte, subalterna ou mesmo rebelde. É inverter radicalmente as relações de poder. Não digo que ser ministro seja propriamente ter poder; como desenvolvo no livro citado, não tínhamos dinheiro; isso enfraqueceu demais o governo Dilma e é a principal razão para ela ter sido destituída. Mas penso que a experiência do poder, forte ou fraca, faz falta a muita gente que pretende pensar a política ou a sociedade.
Assim, A boa política é a obra teórica, um livro de filosofia política, em que me empenhei em pensar a melhor política de nosso tempo e dos vindouros, utilizando em parte os clássicos da filosofia, em parte o que eu chamaria um estilo filosófico de lidar com a política. Tem em comum com este livro o otimismo, a convicção de que a democratização do mundo, inclusive do mundo da vida, das relações pessoais, é um caminho sem volta.
Já A Pátria Educadora em Colapso é um relato de minha experiência como ministro, bem podendo ser o anúncio da má política, ou de como a terra prometida se converteu em Armageddon. Ou, por outra: se A Boa Política é um livro de teoria descrevendo e talvez prescrevendo a prática, o presente livro é um esforço cotidiano, ao longo de quatro anos, para entender a política vivida, imediata à luz da filosofia. A Pátria Educadora em Colapso é o relato da queda de um anjo, este anjo sendo a democracia.
Ao mesmo tempo que terminava este livro, concluí uma obra mais curta, sobre Maquiavel, a democracia e o Brasil; ela converge com as outras três: nela discuto como Maquiavel, falando dos príncipes novos, pode servir para pensar a democracia, na qual por definição todo governante é novo, devendo seu cargo à eleição; e também uso seus conceitos de virtù e fortuna, para pensar a ação política, exemplificando com os presidentes brasileiros de 1985 em diante.
7.
Estes artigos foram escritos num período otimista, em que os problemas, como os apontados nos protestos de 2013, pareciam ter solução – talvez difícil, exigente, mas já despontando no horizonte. Depois, tudo mudou. Mas penso que estas colunas continuam valendo: selecionei aqui apenas aquelas que a meu ver têm futuro. Retirei todas as que diziam respeito ao cotidiano da política e cuja publicação obedeceria mais a um critério de registro do que de atualidade. Com isso, pude manter atual este livro, que em vez de se reduzir a uma memória, um documento histórico, pode ajudar a inspirar o futuro.
São Paulo, janeiro de 2021.
*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade). https://amzn.to/3L9TFiK
Referência
Renato Janine Ribeiro. O valor volta à política – discutindo a política a partir da filosofia e da história. São Paulo, Editora Unifesp \ Edições SESC, 2023. 312 págs. [https://amzn.to/48XlUe8]
Notas
[i] Embora a Carta outorgada em 1814 por Luís XVIII previsse um Parlamento, a legislação posterior e a prática dos governos desse rei e de seu irmão e sucessor, Carlos X, foi autoritária. Somente com Luís Felipe, a partir de 1830, se pode falar em monarquia constitucional, comparável à britânica.
[ii] Como o texto é notável, traduzo-o por inteiro:
A admirável insurreição do Br[asil], talvez a maior coisa que pudesse acontecer, me dá as ideias seguintes:
A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, não se fez nada.
O único remédio contra a liberdade são as concessões. Mas é preciso empregar o remédio a tempo: vejam Luís XVIII.
Não há lordes, nem brumas, no Brasil.
Stendhal, “Débris du manuscrit”, referentes a Rome, Naples et Florence en 1817, in Stendhal, Voyages en Italie, ed. Pléiade, Paris: Gallimard, 1973, p. 175.
Para os brasileiros pobres, continua um bom negócio votar na esquerda?
Wilson Gomes, Folha (expandir)
Adeus Marx, a luta racial explica tudo, a luta de classes nada esclarece, a população deve votar com o racismo em mente
Se uma pessoa é pobre ou vive na miséria, continua um bom negócio votar na esquerda? Os defensores do liberalismo econômico argumentam que a esquerda não resolve efetivamente o problema dos pobres, por ser incapaz de gerar riqueza. Na visão deles, tudo o que a esquerda consegue fazer é socializar a pobreza ou criar Estados que acodem os pobres, nada mais.
No entanto, esse tipo de argumento, seja verdadeiro ou falso, raramente se torna uma "razão de voto" para os mais vulneráveis da sociedade. Quem tem fome e vive na precariedade, com a vida por um fio, não tem doutrina econômica preferida, tem é urgência.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - Ariel Severino
É nessa perspectiva a minha indagação sobre se os pobres continuam tendo boas razões para votar na esquerda. Intuitivamente, pareceria que sim. Afinal, até onde meu conhecimento alcança, ser de esquerda consiste em priorizar a igualdade, inclusive a igualdade econômica.
A questão é que há muita gente se esforçando para convencer os pobres de que a esquerda não é um bom negócio. Conservadores de direita insistem com os pobres, com bastante sucesso há alguns ciclos eleitorais, que colocar a pobreza como principal razão para sua decisão eleitoral é um erro: mais importante do que escapar da pobreza é a vida moral.
Uma conclusão coerente em um universo em que já se aceitou a tese da equivalência entre a esquerda e a corrupção. Corrupção moral, que fique bem claro. Nesse caso, mais vale salvar sua alma imortal do que compactuar com a imoralidade por uma Bolsa Família.
Além disso, governos de esquerda, mesmo que programas sociais e iniciativas para aumentar emprego e renda causem um impacto significativo, não apresentam soluções consistentes para superar a pobreza, nem a curto prazo, nem de maneira sustentável ao longo do tempo. A pedra que nos governos Lula se empurrou ladeira a cima, rolou de volta no governo Dilma e continua lá embaixo.
Se você, como eu, não gosta do raciocínio, isso não tem a menor importância. Não apresento a realidade de que eu goste. Basta não ser cego para notar que muitos brasileiros pobres e miseráveis consideram a moralidade como fator decisivo para o voto, em vez de políticas sociais destinadas a combater a pobreza.
Sabe quem mais está fazendo um esforço significativo para comunicar aos pobres que a esquerda deixou de ser uma opção vantajosa? A própria esquerda. Ou pelo menos uma parte dela que hoje faz muito barulho no governo e no debate público. Essa parcela transmite incessantemente a seguinte mensagem: a razão principal para o voto não deve ser seus interesses de classe, mas sim sua identidade racial, de gênero e orientação sexual.
Se você é pobre e miserável, mas também preto, trans, mulher e homossexual, tudo bem; no entanto, se for pobre e não pertencer a qualquer uma dessas identidades, você é parte do problema. Eu não sou um homem, branco, heterossexual e cisgênero, mas se o fosse —e adotasse a minha "identidade" como principal razão eleitoral, como os identitários propõem— é provável que não votasse em uma esquerda que nada tem a me oferecer a não ser culpa e exigências de compensação por delitos que julgo não ter cometido.
No caso racial, se você pensar que apenas 10,2% dos brasileiros se identificam como pretos, 43,5% acham que são brancos, enquanto 45,3% consideram que não são nem pretos nem brancos, é muita gente deixada de fora do barco da nova esquerda. Se você disser a uma população formada desse modo que ela precisa votar "como negro", condição com a qual cerca de 90% das pessoas não se identifica, e não "como pobre", os resultados são previsíveis. Façam as contas.
No entanto, é disso que se trata. Recentemente, foi noticiado que metade dos concluintes do Ensino Médio no Brasil não participou das provas do Enem. Esse é, sem dúvida, um dos dados significativos para qualquer projeto que pretenda enfrentar efetivamente o problema da pobreza no país. Fora um registro de perplexidade do ministro da Educação, o escandaloso dado praticamente escapou ao debate público.
Como ninguém "racializou" o fato de que metade dos nossos estudantes interrompeu sua formação, condenando-se automaticamente a uma vida muito mais difícil, o assunto foi deixado de lado. Em vez disso, o foco central da discussão foi a ministra da Igualdade Racial explicando enchentes e desigualdade urbana com base no racismo.
Adeus Marx, a luta racial explica tudo, a luta de classes nada esclarece. Sobretudo, não vote com base na sua condição de pobre, vote com o racismo em mente.
Vai dar muito certo, confia.
Forças democráticas empolgam Conferência Nacional de Educação e teses progressistas ganham destaque em documento final do evento
cena brasileira
Você compraria alguma coisa dessa gente?
O que a PF investiga contra os Bolsonaro
# O vereador Carlos Bolsonaro faria parte do ‘núcleo político’ de um esquema de monitoramento ilegal por meio da Abin (leia aqui a matéria completa em Carta Capital) # O que se sabe e o que ainda não se sabe sobre a Abin paralela (BBC) # Uma organização criminosa sob Bolsonaro, define ministro Padilha (RBA)
o que há de novo? 29-01-24
O que está por trás da pressão contra a indicação de Guido Mantega para a presidência da Vale?
# Lula tenta escapar dos tubarões da Bíblia
(Carta Capital)
# Número de resgatados da escravidão dispara em 2023 (Sakamoto, Uol)
# Estudantes de licenciatura desistem da carreira de professores (Carta Capital)
Campos Neto confronta Lula e articula PEC para ampliar descontrole do Banco Central
Eduardo Gayer, Estadão (expandir postagem)
Presidente do BC defende dar ao Congresso o poder de fiscalizar a instituição, enquanto Fazenda prefere supervisão pelo Conselho Monetário Nacional; autarquia não se pronunciou
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, negocia a PEC da autonomia financeira da autoridade monetária em termos rechaçados pelo governo federal. Na avaliação de interlocutores do Palácio do Planalto, uma crise entre o economista e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — após meses de calmaria — está contratada para fevereiro, se os bombeiros de plantão não buscarem mediar o impasse já na volta do recesso parlamentar.
Sem ter procurado, até agora, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) para falar sobre o assunto, Campos Neto sinalizou a aliados no Senado seu apoio ao trecho da PEC que dá ao Congresso o poder de supervisionar o Banco Central. Pelo texto, de autoria do senador Vanderlan Cardoso (PSD-MG), o BC terá “a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial sob supervisão do Congresso Nacional”. Procurado, o BC não comentou.
A tese está em rota de colisão com o pensamento de Lula, que tenta frear o avanço de Câmara e Senado sobre o que considera prerrogativas do Executivo. Nos bastidores do governo, uma proposta considerada razoável para negociação seria designar o Conselho Monetário Nacional (CMN) como o fiscalizador do BC. O órgão é formado pela presidência do banco, pelo ministério da Fazenda e pelo ministério do Planejamento, hoje sob o comando de Simone Tebet.
A autonomia do BC em três dimensões —operacional, administrativa e financeira — era uma bandeira de Roberto Campos. Seu neto, o atual presidente da autarquia, não quer deixar o cargo em dezembro sem transformar ver o sonho do avô se concretizar. Com o calendário de votações no Congresso apertado pelo ano eleitoral, Campos Neto sabe que precisa acelerar as tratativas.
Designado relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Plínio Valério (PSDB-AM) diz não ter opinião formada sobre a divergência entre BC e governo em torno da fiscalização da autoridade. “A única coisa que decidi é que vou conversar com todos: com Roberto Campos Neto, com os funcionários do Banco Central e com o Jaques Wagner (líder do governo no Senado)”, afirmou à Coluna do Estadão. As tratativas devem esquentar com o fim do recesso parlamentar, em fevereiro.
De qualquer forma, Plínio Valério é favorável a dar mais independência à autoridade monetária. Ele foi o autor da lei complementar que deu autonomia ao BC, ainda no governo Jair Bolsonaro. “Se agora for para melhorar a autonomia do nosso projeto, legal, eu vou melhorar”, acrescentou.
Histórico entre Lula e Campos Neto é de divergências
No início do mandato, Lula direcionava sua artilharia em Campos Neto pela alta taxa de juros, e chegou a chamá-lo de “esse cidadão”. Com o início do ciclo de cortes na Selic, a tensão diminuiu e o presidente do BC chegou a comparecer à confraternização de fim de ano promovida pelo presidente a seus ministros na Granja do Torto.
A relação institucional entre Lula e Campos Neto foi costurada por Haddad e por Gabriel Galípolo, ex-secretário executivo da Fazenda e hoje diretor de Polícia Monetária da autoridade por indicação do presidente.
pensatas do fim de semana 26-28-01-24
O escândalo Ramagem I
# Investigação da PF devassa operações clandestinas da Abin (Folha)
O escândalo Ramagem II
# Caso First Mile derruba membro da PF por espionagem (Pública)
# Cai o número 2 da Abin (Uol)
O escândalo Ramagem III
# Espionagem ilegal da Abin atingiu 30 mil pessoas e dados foram guardados em Israel (G1)
O escândalo Ramagem IV
# Abin fez monitoramento paralelo no caso Marielle (Uol)
Americanas: delícias do capitalismo brasileiro
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o que há de novo? 24-01-24
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(Carta Capital)
# Quem tem medo da reconstrução industrial?
(Outras Palavras)
Quem mandou matar Marielle
Ronnie Lessa delatou Domingos Brazão como mandante da morte de Marielle Franco. André Uzeda, Fávio Costa, Carol Castro (Intercept).
Marielle Franco virou um símbolo internacional após seu assassinato no dia 14 de março de 2018. Com os olhos do mundo no Rio de Janeiro, todos estão perguntando:
# Quem mandou matar Marielle? E por quê?
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Ronnie Lessa, o ex-PM acusado de matar Marielle Franco e Anderson Gomes, delatou Domingos Brazão como um dos mandantes do atentado que matou a vereadora e seu motorista. A informação exclusiva foi confirmada pelo Intercept Brasil por fontes ligadas à investigação.
Preso desde março de 2019, Lessa fez acordo de delação com a Polícia Federal. O acordo ainda precisa ser homologado pelo Superior Tribunal de Justiça, o STJ, pois Brazão tem foro privilegiado por ser conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.
Procuramos o advogado Márcio Palma, que representa Domingos Brazão. Ele disse que não ficou sabendo dessa informação. Disse também que tudo que sabe sobre o caso é pelo que acompanha pela imprensa, já que pediu acesso aos autos e foi negado, com a justificativa que Braz
Em entrevistas anteriores com a imprensa, Domingos Brazão sempre negou qualquer participação no crime.
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O também ex-policial militar Élcio de Queiroz, preso por participação na morte da vereadora do Psol, já havia feito uma delação em julho do ano passado. À Polícia Federal, ele confessou que dirigiu o carro durante o atentado que chocou o país. O crime aconteceu no dia 14 de março de 2018, no bairro de Estácio, centro do Rio de Janeiro.
Ex-policial do Bope, Ronnie Lessa foi condenado em julho de 2021 por destruir provas sobre o caso. Lessa, a mulher, o cunhado e dois amigos descartaram armas no mar – entre elas, a suspeita de ter sido usada no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Conselheiro do TCE do Rio, Domingos Brazão foi apontado como mandante do caso, segundo informação exclusiva obtida pelo Intercept. Foto: Foto: Tércio Teixeira/Domingos Brazão
A motivação de Brazão para mandar matar Marielle Franco
Ex-filiado ao MDB, Domingos Brazão figurou entre os suspeitos do caso. Em 2019, chegou a ser acusado formalmente pela Procuradoria-Geral da República, a PGR, de obstruir as investigações.
Brazão passou quatro anos afastado do cargo de conselheiro no TCE, após ser preso, em 2017, na Operação Quinto do Ouro, um desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro, sob acusação de receber propina de empresários.
A principal hipótese para que Domingos Brazão ordenasse o atentado contra Marielle é vingança contra Marcelo Freixo, ex-deputado estadual pelo Psol, hoje no PT, e atual presidente da Embratur.
Quando era deputado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Domingos Brazão entrou em disputas sérias com Marcelo Freixo, hoje no PT, e com quem Marielle Franco trabalhou por 10 anos até ser eleita vereadora, em 2016.
Domingos Brazão foi citado, em 2008, no relatório final da CPI das milícias, presidida por Freixo, como um dos políticos liberados para fazer campanha em Rio das Pedras.
Marcelo Freixo teve também papel fundamental na Operação Cadeia Velha, deflagrada pela Polícia Federal em novembro de 2017, cinco meses antes do assassinato da vereadora. Na ocasião, nomes fortes do MDB no estado foram presos, a exemplo dos deputados estaduais Paulo Melo e Edson Albertassi e Jorge Picciani – morto em maio de 2021.
Freixo defendeu a manutenção da prisão dos três deputados no plenário da Assembleia Legislativa. A Comissão de Constituição e Justiça da casa votou no dia 17 de novembro de 2017 um relatório favorável à soltura dos deputados. Freixo enfatizou sua posição contrária aos colegas da Casa.
Em maio de 2020, quando foi debatida a federalização do caso Marielle, a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, informou que a Polícia Civil do Rio e o Ministério Público chegaram a trabalhar com a possibilidade de Domingos Brazão ter agido por vingança.
“Cogita-se a possibilidade de Brazão ter agido por vingança, considerando a intervenção do então deputado Marcelo Freixo nas ações movidas pelo Ministério Público Federal, que culminaram com seu afastamento do cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro”, diz o relatório da ministra.
“Informações de inteligência aportaram no sentido de que se acreditou que a vereadora Marielle Franco estivesse engajada neste movimento contrário ao MDB, dada sua estreita proximidade com Marcelo Freixo”, escreveu Vaz.
Ministério Público levantou informações sobre Brazão
O Intercept Brasil mostrou na quinta-feira, 11, que o Ministério Público já tinha voltado a analisar documentos e anexos do inquérito policial sobre a milícia em Rio das Pedras, na zona oeste do Rio.
Esse grupo é suspeito de ter ligação com a família Brazão e também com o Escritório do Crime, de acordo com as investigações da Polícia Civil e do próprio MP.
A família Brazão é um importante grupo político do Rio de Janeiro. Além do líder, Domingos, o clã é composto pelo deputado estadual Manoel Inácio Brazão, mais conhecido como Pedro Brazão, e Chiquinho, colega de Marielle na Câmara na época do assassinato.
Nova Indústria Brasil
Lula anunciou projeto de estímulo à recuperação da indústria brasileira com forte participação do Estado através do BNDES. O modelo que inspira a proposta é claramente desenvolvimentista e resgata a percepção de que os agentes privados da economia nacional acomodaram-se aos vícios da forte concentração da renda, da estagnação dos investimentos e da reduzida inovação tecnológica.
Com isso, a dinâmica da acumulação que estimula o mercado consumidor com ocupação da mão de obra e salários é frágil e não produz crescimento econômico. Na verdade, isso mostra que o capitalismo brasileiro é parasitário e se apropria da renda gerada pelo trabalho de forma a reproduzir as condições de pobreza e marginalidade social. É só olhar em volta...
O projeto NIB contraria essas práticas e põe em discussão uma nova formulação do Estado do Bem-Estar Social. O debate em torno de seus fundamentos já aparece nas primeiras matérias sobre o assunto publicadas nos veículos de comunicação e tudo indica que tende a contaminar o jogo político das forças que atuam nos cenários da representação na sua articulação discursiva: o Congresso, a Sociedade Civil e... a mídia.
As intenções são as melhores possíveis e do ponto vista dos seus enunciados parece que a 1a virtude do projeto NIB é por os neoliberais em retirada, mais do que já vem acontecendo com a reforma fiscal e com outras iniciativas relevantes como é o caso da redução da jornada de trabalho sem a redução dos salários...
O que ainda está faltando é a voz dos sindicatos na arquitetura do novo projeto. A CNI e a Fiesp já anunciaram seu entusiasmo com o que Lula anunciou. Fica a pergunta: qual é a contrapartida dos trabalhadores do campo e da cidade nessa reorientação da política econômica.
As postagens do site a respeito do tema estão disponíveis em página específica (acesse aqui)
# Quem tem medo da reconstrução industrial? (Outras Palavras)
o que há de novo? 22-01-24
Diretas Já! 40 anos
Na foto, uma das maiores concentrações populares da História do Brasil: em 1984, em São Paulo, partir de janeiro, o movimento que empolgou a luta contra a ditadura e se estendeu por todo o país. Leia mais na postagem do site sobre o tema.
Depois de anos defendendo operação policial e ações de Moro, jornal lamenta "final melancólico da operação" (Luis Nassif, GGN)
Almas gêmeas
Ex-presidente devia R$ 1 milhão a São Paulo
Tarcísio perdoa multas da pandemia, abre mão de 72 milhões e beneficia Bolsonaro
Carta Capital (expandir)
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou, nesta quinta-feira 9, a lei que concede anistia a quem foi multado durante a pandemia da Covid-19 por descumprir as medidas sanitárias (continue a leitura)
Estafeta de Bolsonaro e militar golpista é o primeiro para promoção a coronel
Cézar Feitosa, Folha (expandir)
A cúpula do Exército espera que o MPF (Ministério Público Federal) apresente denúncia contra o tenente-coronel Mauro Cid antes de abril.
O prazo é considerado crucial para generais ouvidos pela Folha, já que a turma de Cid na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) disputa a promoção para coronel no dia 30 daquele mês.
Pelas regras atuais, Cid poderia ser impedido de concorrer à promoção caso se tornasse réu na Justiça. Há outras situações em que militares ficam com a carreira congelada, sem possibilidade de promoção, mas o tenente-coronel não se encaixa em nenhuma delas.
Mauro Cid está entre os primeiros lugares da turma e é um dos mais cotados a receber a terceira estrela de fundo dourado. O desgaste no Exército com uma possível promoção do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), porém, tem gerado apreensão entre militares próximos do comandante do Exército, general Tomás Paiva.
Mauro Cid no Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília, no dia em que foi solto - Pedro Ladeira - 9.set.23/Folhapress
O militar ficou quatro meses preso no ano passado e é investigado em diferentes apurações relacionadas a Bolsonaro. Entre os casos, estão a organização de uma live em que o ex-presidente fez ataques contra o sistema eleitoral, suspeitas envolvendo a gestão de recursos da família presidencial, a apuração da venda de joias recebidas por Bolsonaro e a falsificação de cartões de vacinação para ingresso nos Estados Unidos.
A Polícia Federal espera avançar também com investigações sobre um possível planejamento de golpe de Estado por parte de apoiadores de Bolsonaro após a eleição de Lula (PT), no fim de 2022. O ex-ajudante de ordens firmou um acordo de colaboração premiada com a PF.
Cid se formou na Aman em 2000 com a terceira melhor nota da turma e foi coroado com o primeiro lugar do mestrado na Esao (Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais). O prêmio fica exposto em medalha na farda do tenente-coronel.
Colegas de turma consultados pela reportagem, sob reserva, afirmam que, sem um desdobramento no Judiciário, ele é o principal candidato à promoção em abril. Se Cid não se tornar réu até lá, os tenentes-coronéis formados com ele acreditam que somente notas desfavoráveis concedidas no âmbito da Comissão de Promoção de Oficiais poderiam evitar sua progressão na carreira.
O processo para a promoção a coronel da turma de Mauro Cid começou em novembro, com a disponibilização do RIProm (Relatório de Impedimentos de Promoções). Trata-se de um documento montado pelo Exército que mostra quem está impedido ou habilitado a concorrer à promoção.
Segundo relatos feitos à Folha, o RIProm de Cid não apontou impedimento. O tenente-coronel está habilitado para concorrer à promoção e já assinou e enviou os documentos necessários ao órgão responsável por analisá-los.
Os processos internos de avaliação de documentação e mérito para a promoção, porém, ainda não começaram. A fase atual é a de atualização da base de dados de pessoal.
"O Centro de Comunicação Social do Exército informa que não foi dado início ao posicionamento para as promoções que ocorrerão em 30 de abril de 2024. Fato este que inviabiliza a resposta", disse a Força, em nota, ao ser questionada sobre a situação de Cid.
Também acrescentou que "informações de caráter pessoal são protegidas" pela Lei de Acesso à Informação e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais".
Colegas de Cid na Aman afirmam que o tenente-coronel está confiante com a promoção e espera seguir na carreira militar apesar das investigações conduzidas pela Polícia Federal e os impactos de sua superexposição à família.
Como forma de demonstrar apoio ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, os amigos de Cid iniciaram uma vaquinha no fim de dezembro para arrecadar R$ 300 mil. O objetivo, segundo as mensagens que circularam em grupos de WhatsApp, seria auxiliar no pagamento dos honorários do advogado do militar, Cezar Bittencourt.
O texto disparado para atrair colaborações dizia que o objetivo era ajudar Cid "a pagar os custos com advogados, que são imensos". Relatava ainda que os elevados gastos fizeram com que "ele vendesse vários bens para honrar com os custos de honorários advocatícios".
"Vamos juntos ajudar esse amigo que sempre foi leal, pai de família e um excelente militar. Nosso objetivo com essa vaquinha é arrecadar 300 mil, pois é apenas uma parte do que ele precisa pagar. Vamos juntos unir forças para conseguir esse valor para o nosso companheiro. Compartilhe essa mensagem ao máximo", dizia o texto.
A lei que define os critérios e processos para a promoção de oficiais das Forças Armadas é de 1972, período de endurecimento da ditadura militar. Ela foi sancionada pelo general Emílio Garrastazu Médici.
O decreto que regulamenta as promoções é de 2001, período em que o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tomava medidas duras de restrição orçamentárias e cerco a benefícios dos militares.
Pelas normas do Exército, as promoções são analisadas pela Comissão de Promoções de Oficiais. O grupo é composto por 18 generais e presidido pelo chefe do Estado-Maior do Exército.
O colegiado analisa ao menos nove critérios básicos, como o rendimento escolar, o desempenho nos cargos ocupados e a capacidade de chefia e liderança.
Mauro Cid está sem função no Exército desde setembro passado, quando o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), decidiu soltar o militar após ele fechar acordo de colaboração premiada.
Na decisão, Moraes determinou que Cid utilizasse tornozeleira eletrônica e comparecesse semanalmente à Vara de Execuções Penais. Ele decidiu ainda que o Exército deveria deixar Cid sem cargo durante o avanço da colaboração premiada.
Bomba! Ronnie Lessa, autor dos disparos, fecha acordo de delação no caso Marielle
RBA: Se homologado pelo STJ, acordo pode levar ao esclarecimento do crime, que irá completar 6 anos em março (expandir)
São Paulo – O ex-policial militar Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018, no Rio de Janeiro, fechou um acordo de delação premiada com a Polícia Federal. A informação foi publicada neste domingo (21) pelo jornalista Lauro Jardim, do jornal O Globo.
A delação, que ainda precisa ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pode, enfim, levar aos mandantes do crime, cuja investigação estaria em sua fase final, como afirmou o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.
Leia também: Assessora que sobreviveu ao atentado lança livro sobre o ‘mandato interrompido’ de Marielle Franco
Em dezembro, Dino disse que o caso seria finalizado “em breve”, e se dirigiu ao diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, para cobrar uma solução. “É claro que eu não controlo o inquérito, não tenho a honra de ser policial. Mas o Dr. Andrei está aqui. Eu quero reiterar e cravar. Não tenham dúvida, o caso Marielle em breve será integralmente elucidado”, declarou, durante evento de balanço do ano de 2023 no Ministério. No dia 22 de fevereiro, Dino assume uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF).
Quase seis anos após o crime, o que se sabe é que o ex-policial Élcio Queiroz, conforme admitiu aos investigadores, dirigia o carro de onde partiram os tiros, disparados, segundo ele, por Ronnie Lessa. Élcio foi preso em 2019.
A investigação
O processo de investigação do crime, ocorrido no dia 14 de março de 2018, no Centro do Rio de Janeiro, foi conturbado. A Polícia Civil teve cinco delegados responsáveis pelo caso na Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro. No Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), três equipes diferentes atuaram no caso durante esses anos.
Em fevereiro do ano passado, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou que a Polícia Federal (PF) abrisse um inquérito paralelo para auxiliar as autoridades fluminenses.
pensatas para o fim de semana 19/21-01-24
Livro sugerido: Vida ao vivo
A mídia como ela é
Romance de Ivan Angelo faz um retrato do país que os grandes veículos de comunicação ajudaram a construir (expandir)
Maurício Stycer, 451
Ivan Angelo
Vida ao vivo
Companhia das Letras • 296 pp • R$ 79,90
No episódio inaugural da série Black Mirror (2011), o primeiro-ministro britânico é acordado no meio da noite com a notícia de que a princesa mais popular do Reino Unido foi sequestrada. Num vídeo vazado no YouTube, o governo é informado sobre a exigência para a libertação: que o primeiro-ministro faça sexo com um porco numa transmissão ao vivo pela TV.
O episódio termina (atenção: spoiler) com o país parando para assistir à inimaginável cena de zoofilia. Segue-se, então, a libertação da princesa, o suicídio do artista plástico que arquitetou tudo como “a primeira grande obra de arte do século 21” e a notícia de que a popularidade do primeiro-ministro triplicou. A audiência global da cena foi de 1,3 bilhão de espectadores. Vida ao vivo.
A premissa do mais recente romance de Ivan Angelo lembra vagamente a distopia britânica, mas com sinal invertido. É por vontade própria, e não em consequência de uma chantagem, que o dono da maior rede de televisão do país decide expor detalhes sobre a sua vida pessoal no horário nobre, antes da novela das nove. “Boa noite. Hoje, 24 de novembro de 2021. Desculpem adiar a novela e o prazer de vocês. Não vão sair perdendo, o que vão ver é inédito. Prometo emoções”, avisa na primeira das dezoito transmissões que fará.
Numa sequência vertiginosa de desabafos, Fernando Bandeira de Mello Aranha ajuda a compor um retrato sobre a elite, da qual faz parte, e do país que ajudou a construir com seus veículos de comunicação. Ainda no primeiro dia, ele faz uma síntese esclarecedora do seu papel na história:
Redirecionei os negócios, reequipei nossa primeira emissora de televisão, a pioneira, em vez de vender fui financiando, comprando, pagando dívidas, recuperando, comprando […] tomando, aproveitando os corruptos dos governos dos generais, […] as oportunidades da redemocratização, entrando em extração de metais raros, fertilizantes, agronegócio, olho no futuro, tecnologias da comunicação… Agora parei.
O protagonista (eu ia escrever “herói”, mas pode soar exagerado) de Vida ao vivo tem nome e sobrenome tanto de quatrocentão paulista quanto de gente que batiza rua na zona sul do Rio. Não se precipite, porém. Dando uma pista aqui, outra ali, o autor construiu um tipo que parece um amálgama dos donos das grandes empresas de comunicação do Brasil. Um homem que, ao chegar ao último turno da vida, recorre ao “sincericídio” para avaliar os seus erros e, de certa forma, demonstrar alguma evolução moral.
Trata-se de um personagem orgulhoso de sua formação intelectual, que abusa de citações pedantes, e é também chantagista (ameaça políticos com vídeos comprometedores), fofoqueiro (tece considerações sobre a sexualidade de Carlos Lacerda) e grande observador. Debochado e autoirônico, relembra o relacionamento pouco republicano dos ditadores com os empresários de comunicação nos anos 60 e 70. Faz comentários sensatos sobre a elite política do país, lamenta os anos Bolsonaro. E deixa claro como ele e seu grupo de comunicação se beneficiaram da impunidade.
Fernando Bandeira de Mello Aranha é fruto da imaginação de Ivan Angelo, mas também da vivência profissional e do bom ouvido do autor. Nascido em 1936, em Barbacena, iniciado no jornalismo em Belo Horizonte na década de 50, Angelo se mudou para São Paulo no final de 1965. Fez parte do que Humberto Werneck descreveu em O desatino da rapaziada (Companhia das Letras, 1992) como “a primeira leva de mineiros do Jornal da Tarde”. Foi um dos jovens jornalistas contratados por Murilo Felisberto para montar a redação do vespertino da família Mesquita, lançado em 1966, sob o comando de Mino Carta.
De temperamento cordial, Ivan Angelo fez longa carreira no JT em funções na chamada “cozinha” da redação, ou seja, na administração do trabalho dos repórteres. Foi editor, editor-executivo e, por décadas, secretário de redação, abaixo apenas do editor-chefe. Atuou lá até se aposentar. Entre amigos, ganhou o apelido de “bon vivângelo”, porque raramente se estressava ou levantava a voz, fato incomum em ambientes jornalísticos. Como é possível perceber em algumas passagens de Vida ao vivo, conheceu muito de perto diferentes integrantes da família que comandava o conservador Estadão.
Em paralelo ao ofício jornalístico, desenvolveu uma respeitada carreira literária. A festa, seu romance mais conhecido, ganhador do Jabuti em 1976, se tornou uma referência pelo retrato de época que captou e por sua construção engenhosa, em que os capítulos podem ser lidos fora de ordem como contos. Também ganhou o Jabuti em 1996, com a novela Amor?, na qual o narrador descreve num monólogo sua hesitação entre o bom casamento com a esposa e o romance com uma amante. O livro pode causar, aos olhos do leitor de hoje, algum estranhamento, mas creio que o ponto de interrogação no título alivia a barra do autor.
Como outras obras de Angelo, Vida ao vivo chama a atenção por uma construção formal que foge ao modelo mais convencional. A cada capítulo em que o protagonista se exibe na televisão corresponde um outro, igualmente mirabolante, com a repercussão e os desdobramentos da sua fala. A narrativa assume um ritmo que lembra o universo jornalístico, num diálogo permanente entre fatos, versões e interpretações. Políticos, artistas, familiares, gente anônima e até o crítico de televisão dialogam com Fernando Bandeira de Mello Aranha durante o reality show que ele promove.
Ivan Angelo, em depoimento ao livro de Werneck, confessou não enxergar maiores qualidades no texto jornalístico: “Tão desinteressante, tão sem colorido, tão sem invenção”. No máximo, afirma, o jornalismo pode contribuir para a ficção com pequenos truques, como os que ajudam a prender o leitor já na primeira linha do texto.
Vida ao vivo deve muito à imaginação, mas também, e inegavelmente, ao jornalismo entranhado no autor. “Ah, antes que me esqueça: toda narrativa é versão”, avisa o protagonista deste romance hilário e imperdível.
Os sentidos do trabalho
Neoliberalismo incorporou ética conservadora: labor é um dever, a ser cumprido nas condições que o mercado fixar. Contra ela emergiu a ideia do trabalho significativo, socialmente necessário e digno. História de um conflito inacabado (expandir)
Elizabeth Anderson, Dissident Magazine, via Outras Palavras
Em março de 2020, a maioria dos governadores dos Estados Unidos emitiu ordens de permanência em casa para todos, exceto os “trabalhadores essenciais” – pessoas envolvidas na prestação de serviços necessários para apoiar as necessidades humanas básicas. O público saudou os trabalhadores essenciais como heróis e apelou para que recebessem subsídios de periculosidade. Muitos empregadores aceitaram esta exigência. No entanto, pouco depois, o tratamento severo dos trabalhadores essenciais tornou-se a ordem do dia. Os empregadores acabaram com o adicional de periculosidade. Hospitais demitiram profissionais de saúde por reclamarem da falta de equipamentos de proteção individual. Os proprietários de matadouros aceleraram as linhas de desmontagem, forçaram os trabalhadores a aglomerarem-se e aumentaram a propagação da COVID-19.
Este conflito sobre o tratamento adequado dos trabalhadores durante a pandemia da COVID-19 é a mais recente batalha numa luta de três séculos sobre as implicações políticas da ética do trabalho que tradicionalmente vige no país. O fato de os trabalhadores estarem envolvidos em trabalho socialmente necessário dá-lhes direito a respeito, remuneração digna e condições de trabalho seguras? Ou significa que têm o dever de trabalhar incansavelmente, sem reclamar, sob quaisquer terríveis condições e baixos salários que o seu empregador imponha em sua busca pelo lucro máximo? Chamo a primeira visão de versão progressista ou pró-trabalhador da ética do trabalho; a segunda, chamo de ética do trabalho conservadora. Em vários períodos da história europeia e norte-americana, um lado ou outro dominou o pensamento moral e a política econômica.
As três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram o ápice da social-democracia, um período de triunfo para a ética do trabalho progressista. Nas democracias ricas da Europa e da América do Norte, o período pós-guerra foi caracterizado por altas taxas de crescimento econômico, amplamente partilhadas entre as classes econômicas, com sindicatos fortes, um robusto estado de bem-estar social orientado pelo seguro social universal, investimento estatal na educação e na saúde, poderosos governos liberais e instituições democráticas e um sentimento geral de otimismo.
Hoje, os habitantes da Europa e da América do Norte sofrem a reversão dessas conquistas. As políticas neoliberais são em grande parte culpadas. A financeirização, a austeridade fiscal, as reduções fiscais para os ricos, as duras restrições sociais, os ataques aos sindicatos e os acordos comerciais internacionais favorecem os interesses do capital e restringem a governação democrática. Estas políticas aumentaram a desigualdade econômica, minaram a democracia e reduziram a capacidade do Estado de responder às necessidades e interesses das pessoas comuns.
No meu novo livro, Hijacked: How Neoliberalism Turned the Work Ethic Against Workers, and How Workers Can Take It Back [Sequestro: Como o neoliberalismo virou a ética do trabalho contra os trabalhadores e como os trabalhadores podem recuperá-la], defendo que o neoliberalismo revive a ética do trabalho conservadora, que diz aos trabalhadores que devem aos seus empregadores trabalho incansável e obediência sem questionamento. Diz aos empregadores que eles têm direitos exclusivos para governar os seus empregados e organizar o trabalho com vistas a obter o lucro máximo. E diz ao Estado para consolidar a autoridade destes executivos por meio de leis que tratam o trabalho como nada mais do que uma mercadoria. Para reforçar a mercantilização do trabalho, a ética do trabalho conservadora instrui o Estado a minimizar o acesso dos trabalhadores à subsistência a partir de outras fontes que não o trabalho assalariado, incluindo bens fornecidos publicamente, segurança social e benefícios sociais.
A ligação entre o neoliberalismo e a ética do trabalho conservadora pode não ser óbvia à primeira vista. Os neoliberais definem a sua posição em termos de uma preferência libertária por ordens de mercado “voluntárias” em detrimento da ação estatal, supostamente deixando os indivíduos livres para buscarem a sua própria concepção de bem. À primeira vista, diferem ligeiramente neste aspecto dos proponentes originais da ética do trabalho conservadora, como Joseph Priestley e Jeremy Bentham, que sublinharam a necessidade de impor uma visão única do bem – a ética do trabalho – aos trabalhadores preguiçosos e imprudentes. Mas estas opiniões são apenas duas faces da mesma moeda. Os defensores da ética do trabalho conservadora, como Edmund Burke e Thomas Malthus, argumentaram no final do século XVIII, tal como fazem hoje os neoliberais, que o trabalho é uma mercadoria devidamente sujeita às leis do mercado. Os conservadores tornaram explícito o que os neoliberais hoje deixam implícito: os mercados de trabalho são os canais através dos quais a maioria dos trabalhadores fica sob o governo dos seus empregadores, que lhes impõem a disciplina da ética do trabalho.
A melhor maneira de caracterizar o neoliberalismo não é, portanto, em termos de liberdade individual dentro do mercado. Em vez disso, ele pode ser visto como um modo de governo por e para interesses de capital – por parte de empresas e proprietários ricos. Isto é exatamente como insistiram os defensores britânicos da ética do trabalho conservadora durante a Revolução Industrial, quando o direito de voto estava atrelado à propriedade. A doutrina neoliberal do capitalismo de acionistas – a afirmação de que o único objetivo de uma corporação é maximizar seus lucros – é simplesmente mais uma implementação do governo por e para os interesses do capital. Durante a Revolução Industrial, os proprietários de terras e os capitalistas usaram o seu poder para apropriar-se de riqueza às custas de outros, através de práticas como cercamentos, monopólios, aluguéis exorbitantes, colônias privadas autorizadas pelo Estado e a usura. Hoje, as políticas neoliberais autorizam inúmeras práticas comerciais exploratórias semelhantes, incluindo a monopolização, os empréstimos predatórios, a repressão aos sindicatos, o rebaixamento de funcionários estáveis para trabalhadores temporários e vários esquemas de capital privado que prejudicam os cuidados de saúde, os cuidados veterinários, as vendas de varejo, as organizações de imprensa, o aluguel de moradia e a diversos outros setores, explorando tanto os trabalhadores como os consumidores.
Há mais de um século, Max Weber apresentou a sua própria avaliação sombria da ética do trabalho na conclusão do seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ao promover um regime de trabalho disciplinado, baseado no ascetismo religioso, escreveu ele, a ética do trabalho acabou por dar origem a um sistema capitalista secular que prendeu as pessoas numa “gaiola de ferro” de trabalho penoso e desprovido de sentido, em prol da infindável acumulação de riqueza. Mas Weber formulou apenas uma leitura parcial dos ministros puritanos do século XVII que inventaram a ética do trabalho. Ele não percebeu que os pastores também formulavam uma visão edificante para os trabalhadores – uma visão que antecipava características importantes da social-democracia.
Qual era, então, a ética do trabalho protestante original? No âmbito da moralidade individual, compreendia um conjunto de virtudes: competência, frugalidade, temperança, castidade e prudência. O hábito de trabalhar arduamente era altamente valorizado nesta ética. Mas os puritanos também tinham atitudes ambivalentes em relação ao trabalho que, em última análise, foram tomadas em direções contraditórias. Por um lado, argumentavam que o trabalho era uma disciplina ascética que exigia labuta incessante em busca do ganho. Eles criticavam os mendigos fisicamente aptos como parasitas. E instrumentalizavam todas as atividades, não deixando espaço para lazer e prazer, exceto quando necessário para restaurar a capacidade de trabalho. Por outro lado, exaltavam a dignidade do trabalho, insistiam na igualdade de todas as vocações e promoviam a liberdade de escolha profissional. Eles exigiam salários justos e dignos, condições de trabalho seguras e alívio contra os empregadores tirânicos. Procuravam proporcionar empregos aos desempregados involuntários – uma tentativa inicial de garantia de emprego – e argumentavam que qualquer pessoa incapaz de trabalhar tinha direito à caridade. Os seus sermões e textos sobre a ética cristã condenavam os ricos ociosos e predadores – proprietários de terras, monopolistas, usurários, arrendatários exorbitantes, manipuladores de preços, maquinadores financeiros, comerciantes de escravos e qualquer outra pessoa que lucrasse tirando partido da vulnerabilidade e necessidade dos outros. Eles promoviam um ideal de trabalho que, em última análise, inspirou a concepção de trabalho não alienado de Marx. A vocação de um trabalhador, argumentavam eles, deve ser uma atividade livremente escolhida que promova o bem-estar dos outros e inspire o entusiasmo do trabalhador, proporcionando um campo para o desenvolvimento e exercício dos seus talentos pessoais.
Os puritanos foram capazes de reconciliar as tensões entre estes dois lados da ética do trabalho porque os seus modelos de trabalhadores eram os pequenos agricultores e os artesãos – isto é, trabalhadores que eram simultaneamente trabalhadores manuais e proprietários. As mesmas pessoas que cumpriam as exigências da ética do trabalho conseguiam colher os seus frutos. (No século XVII, o trabalho assalariado ainda era relativamente raro.) No entanto, no final do século XVIII, a Revolução Industrial separou os proprietários de capital dos trabalhadores manuais, estes últimos ficando reduzidos a trabalhadores assalariados. Isso levou a uma profunda divisão de classe na ética do trabalho. Os defensores da ética do trabalho progressista continuaram a insistir que as mesmas pessoas que cumprem os deveres da ética do trabalho – envolvidas num trabalho que ajuda os outros – têm direito a uma vasta gama de benefícios. Os proprietários de terras e os capitalistas predatórios – os alvos da crítica puritana da classe alta – sequestraram a ética do trabalho e transformaram-na num instrumento de luta de classes. Eles enfatizaram a disciplina, a frugalidade e o ascetismo para os trabalhadores, ao mesmo tempo que retiravam para si a maior parte dos benefícios desse trabalho disciplinado. Usando a riqueza como prova de virtude e a pobreza como prova de vício, rentistas ociosos e capitalistas ocupados que lucravam com a exploração de outros se apresentavam como heróis e os pobres como canalhas. Assim surgiu a ética de trabalho conservadora.
À medida que os capitalistas da Revolução Industrial levaram os trabalhadores à pobreza, destruindo as suas alternativas ao trabalho assalariado, a procura de alívio ao abrigo da tradicional Lei dos Pobres – o sistema britânico de alívio da pobreza com base em condições de recursos – aumentou. Os defensores da ética do trabalho conservadora atribuíram a pobreza à preguiça, à imprevidência e à licenciosidade, e culparam a Lei dos Pobres por promover estes vícios. O economista político (e químico famoso) Joseph Priestley propôs substituir a Lei dos Pobres por planos de poupança individuais obrigatórios. Thomas Malthus propôs a sua abolição gradual, deixando os pobres dependentes de uma caridade privada incerta. Jeremy Bentham propôs que a administração da ajuda fosse terceirizada para uma empresa privada licenciada para encarcerar indigentes e forçá-los a trabalhar em panópticos por pouco ou nenhum pagamento. A reforma da Lei dos Pobres inglesa de 1834 e a política britânica durante a fome irlandesa de 1845-1852 impuseram condições punitivas e estigmatizantes à assistência, incluindo trabalho forçado, confinamento em asilos, perda de direitos civis, despojamento de bens, limites de tempo arbitrários e burocracia onerosa.
Nos últimos 40 anos, os neoliberais nos Estados Unidos propuseram e por vezes implementaram políticas semelhantes. George W. Bush tentou substituir a Segurança Social por planos de poupança individuais. O cientista político Charles Murray argumentou que os benefícios sociais para os saudáveis deveriam ser abolidos, lançando um debate que acabou por levar à substituição parcial do bem-estar social [welfare] pelo workfare – pagamentos vinculados às necessidades de trabalho – em 1996. Esforços recentes para colocar os requisitos de trabalho no acesso para Medicaid e SNAP seguem a mesma lógica. Os legisladores neoliberais impuseram requisitos de documentação onerosos que impedem muitas pessoas, que teriam esse direito, de usufruir do seguro de invalidez, do Crédito de Imposto sobre o Rendimento do Trabalho, da ajuda financeira para a faculdade e de numerosos programas administrados pelo Estado. Os limites punitivos de ativos nos programas de segurança social de alguns estados forçam os pobres a liquidar as suas poupanças para a reforma e para a faculdade, a fim de se qualificarem, garantindo a sua pobreza na velhice e ao longo das gerações. As políticas neoliberais de baixos impostos levaram os departamentos de polícia a financiarem-se a si próprios e aos tribunais, multando os pobres com multas excessivas por infracções insignificantes e arbitrárias. Numa represália ao plano de Bentham para os panópticos indigentes, alguns que não podem pagar estas multas e taxas são remetidos para casas de recuperação geridas por empresas prisionais privadas, onde são forçados a trabalhar por pouco ou nenhum salário. Pessoas que lutam contra o vício em drogas são frequentemente sujeitas a tratamento semelhante.
Como podemos superar este regime vicioso? Os defensores da ética do trabalho progressista oferecem algumas sugestões. Desde a Revolução Industrial até ao século XX, têm surgido debates sobre a melhor forma de promover e recompensar o trabalho. Os conservadores argumentavam que os pobres só poderiam ser induzidos a trabalhar arduamente se estivessem sujeitos à precariedade e sujeitos ao governo dos seus empregadores. As classes médias, nesta perspectiva, poderiam ser motivadas através de uma cultura de consumo conspícuo competitivo. Os progressistas responderam que todos os trabalhadores trabalhariam arduamente se recebessem todos os frutos do seu trabalho. Rejeitaram a ideia de que uma boa vida é uma questão de aquisição competitiva num jogo de estatuto de soma zero essencialmente antagônico. Defendiam arranjos econômicos que emancipassem os trabalhadores da subordinação rastejante aos superiores e nos quais o trabalho fosse um domínio significativo para o exercício de competências variadas e sofisticadas. Eles ansiavam por uma sociedade em que todos pudessem desfrutar de uma vida além da ética do trabalho – que, embora reconheça as virtudes da ética do trabalho, também promove um conjunto mais amplo de valores e bens. Em vez de fazer horas extras no que David Graeber chamou de “empregos de merda”, as pessoas desfrutariam de amplo tempo de lazer, bem como de um trabalho significativo que fosse genuinamente útil para os outros.
Esta linha de pensamento progressista começa com os Levellers do século XVII e John Locke e continua através de figuras revolucionárias americanas e francesas como Thomas Paine e Nicolas de Condorcet, economistas clássicos como Adam Smith e James e John Stuart Mill, socialistas ricardianos como William Thompson e marxistas como Friedrich Engels e Eduard Bernstein. Estes pensadores apresentaram análises e propostas muito diferentes, mas cada um compreendia que as relações de propriedade precisavam mudar para enfrentar os desafios dos seus tempos. Longe de considerarem sagrada a propriedade privada, até os economistas políticos liberais desta linhagem propuseram mudanças dramáticas na lei de propriedade para promover o bem-estar das pessoas comuns. Todos defenderam a abolição dos direitos de propriedade feudal porque rejeitaram qualquer ligação entre a propriedade da terra e o direito de governar outras pessoas. Todos se opunham à primogenitura, aos vínculos e a outros dispositivos de herança que mantinham grandes propriedades intactas em perpetuidade para o benefício exclusivo de algumas famílias. Smith defendeu a abolição da escravidão, dos estágios de aprendizagem não remunerados, dos monopólios autorizados, das colônias privadas e da maioria das sociedades por ações. Paine e Condorcet inventaram a ideia do seguro social universal. O programa de segurança social proposto por Paine, que seria financiado por um imposto sobre heranças, também incluía subsídios universais às partes interessadas. Os Mills argumentaram que os aluguéis dos terrenos deveriam ser limitados por meio de um imposto de 100% sobre o aumento dos aluguéis. J.S. Mill, defensor do proprietário camponês, usou a teoria da propriedade do trabalho de Locke para justificar a expropriação dos proprietários irlandeses e a redistribuição das suas propriedades aos camponeses que trabalhavam a terra. Ele também apoiou os sindicatos e argumentou que as cooperativas de trabalhadores eram a forma organizacional ideal para a indústria moderna.
As ideias apresentadas pelos defensores da ética do trabalho progressista foram parcialmente concretizadas nas social-democracias do pós-guerra da Europa Ocidental. Estes países adotaram um conjunto de políticas para atingir os seus objetivos, incluindo seguro social abrangente, facilitação de sindicatos e negociações setoriais, codeterminação (gestão conjunta do local de trabalho por representantes do trabalho e do capital), expansão dramática do ensino superior público acessível ou gratuito e garantia de férias remuneradas e licenças familiares. No entanto, como argumentaram Sheri Berman e Thomas Piketty, a social-democracia perdeu a sua visão e vigor, em parte sob a pressão das instituições e da ideologia neoliberais.
Para renovar o projeto social-democrata, podemos aprender com o seu antecessor, a ética do trabalho progressista. A nível político, os economistas políticos da tradição progressista da ética do trabalho propuseram revisões criativas e ousadas dos direitos de propriedade. Deveríamos experimentar não só o rendimento básico, mas também os subsídios concedidos às partes interessadas por Paine – que proporcionam acréscimos à riqueza – como forma de prevenir a precariedade. Deveríamos também considerar limites rígidos à herança, como J.S. Mill propôs. Ele argumentou que ninguém deveria herdar mais do que o suficiente para uma “independência moderada”. Seguindo as esperanças de Mill, poderíamos também fazer muito mais para promover as cooperativas de trabalhadores, uma ideia que os países social-democratas do pós-guerra nunca levaram a sério.
Também podemos aprender com os economistas políticos da tradição progressista da ética do trabalho a renovar a visão normativa da social-democracia. Eles compreenderam que, de longe, o produto mais importante do nosso sistema económico somos nós próprios. Ao considerar o desenho institucional, a nossa primeira questão deveria ser: como são as pessoas moldadas pelos nossos modos de organização da produção, troca, distribuição e fornecimento de bens públicos? Esta questão se desenvolve em pelo menos mais duas. Primeiro, o trabalho e outros arranjos institucionais melhoram ou degradam as capacidades e virtudes dos indivíduos? E, em segundo lugar, como é que as diferentes formas de conceber a produção e a troca, os modelos de negócio, a governo empresarial, a distribuição de bens públicos e as políticas de bem-estar social afetam a forma como nos relacionamos uns com os outros? Será que os nossos arranjos econômicos encorajam a confiança, a simpatia e a cooperação, ou fomentam a desconfiança, a exploração, a dominação, o desprezo e o antagonismo entre indivíduos e grupos sociais? Com a ascensão de empresas de alta tecnologia que lucram com a disseminação de desinformação e semeando indignação e malícia, investidores de capital privado que lucram com a quebra de confiança de outras partes interessadas e prestadores de cuidados de saúde que tiram partido dos vulneráveis e os enterram em dívidas intermináveis, é mais do que tempo de integrarmos a preocupação com a qualidade de nossas relações sociais em nossas avaliações das regulamentações de empresas.
Como J.S. Mill antecipou e os social-democratas como Bernstein compreenderam, a democracia está no centro dessa visão normativa mais ampla. Um lugar para construir a democracia é o local de trabalho. O modo de governo neoliberal no local de trabalho sob o capitalismo acionista desqualificou o trabalho e degradou os trabalhadores. Também infligiu grandes danos morais aos trabalhadores, forçando-os a participar em danos a outras pessoas, animais e ao ambiente no processo de maximização dos lucros. Se os trabalhadores tivessem uma voz poderosa no governo do seu local de trabalho, não escolheriam reduzir-se a escravos desqualificados ou infligir danos morais a si próprios. A democratização do trabalho é uma forma poderosa de promover competências e disposições democráticas, demonstrar que a democracia pode responder às preocupações das pessoas comuns e, assim, fortalecer a democracia a nível estatal. A maioria das pessoas deseja um trabalho significativo, tal como entendido na tradição da ética de trabalho progressista: um trabalho que proporcione um meio para uma pessoa exercer o seu arbítrio e habilidade ao ajudar outras pessoas. A democratização do trabalho, através de cooperativas de trabalhadores e de modelos melhorados de co-gestão, é uma forma promissora de garantir um trabalho significativo para todos.
Professora de Filosofia Pública da Universidade de Michigan.
Pe. Júlio Lancelotti: "moradores de rua são pessoas"
Entrevista à revista Focus publicada no site IHU (expandir)