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O que há de novo?

As luzes se apagam na Europa?

# Página do site com resultados e análises sobre as eleições para o parlamento europeu de 9/6/24

Em nome da paz, Israel fora das Olimpíadas

"Como cidadãos e cidadãs de todo o mundo, pedimos que Israel seja banido dos Jogos Olímpicos até que seu governo pare de atacar civis inocentes em Gaza."

# Assine o manifesto internacional contra a presença dos genocidas israelenses em Paris.  

Evangélicos de extrema-direita são cúmplices do genocídio em Gaza

Sem Itamaraty, líderes evangélicos responsáveis pela Marcha para Jesus realizaram encontro oficial em Israel (Leia no 247)

Destaque: Avalanche de trevas

É obsceno o prognóstico de Tarcísio de Freitas sobre as escolas cívico-militares. Muniz Sodré (expandir)

Uma avalanche é feita do acúmulo de pequenas coisas, físicas ou mesmo morais, que convém esmiuçar para estimativa dos riscos. Foi assim obsceno, coisa de fazer tremer a compostura do espírito público, o prognóstico do governador paulista sobre escolas cívico-militares: daqueles alunos poderá surgir no futuro um novo Bozo. Não é, aliás, a primeira vez que se pode pensar em obscenidade como categoria aplicável a esse político. Foi como o jornal inglês "The Guardian" se referiu a uma das famigeradas motociatas em que ele, em plena pandemia, subiu na garupa presidencial.

Obscenidade, na acepção dada pela crítica pós-modernista da cultura, não faz referência à pornocultura, mas à ausência das mediações socialmente requeridas para a apresentação de fatos sensíveis da vida. É a cena crua, exibida sem véus. Algo pertinente aos tempos de estupidez sistêmica em que se rompem limites para proliferação de discursos alheios à verdade e ao consenso. Não se consultaram famílias para saber se elas confiariam seus filhos a uma escola que tivesse como bedel ou professor um misógino, homofóbico, fetichista armado, expulso do exército, cujo ídolo é o único torturador condenado pela Justiça brasileira. No entanto, o governador do estado mais opulento da federação pode declarar, sem qualquer mediação pedagógica ou comunitária, que a excelência educacional de jovens será aferida pelo padrão desse mesmo indivíduo,

"Os homens querem ser enganados", dizia Ernst Bloch (O Princípio Esperança), mas ainda havia abrigos contra a mentira. A obscenidade, entretanto, tipifica a falência da representação mediadora, portanto, da razoabilidade que lastreia bem ou mal as instituições. Entrou-se no ciclo radioativo do vazio de sentido. A regra do tudo dizer nas redes é obscena por seu anonimato. O mesmo acontece de viva voz, porém, quando uma autoridade anuncia candidamente a pais e mães que o futuro de seus filhos será moldado pelo binômio fascista das armas e do retrocesso ideológico. Acrescenta-se escola ao ecossistema digital da mentira.

Obscenamente, para muito além do que supunha a pedagogia de Émile Durkheim, equacionou-se o problema da disciplina: spray de pimenta e algemas. É o que já ocorre em escolas cívico-militares paulistas, agora avalizadas por lei. A famílias às voltas com naturais dificuldades de seus adolescentes, isso pode parecer de somenos. Mas é também matéria de avalanche moral, já pressentida.

Na mentalidade plástica do jovem, disciplina militarizada, ainda mais sem a finalidade institucional do exército, é manufatura de hostilidade à consciência civil e de enrijecimento humano na mobilidade social: pedagogia para autômatos, desinteligência degenerativa. A avalanche por vir será feita de trevas.

Ps: Está na hora de rever esse eufemismo com o quai o projeto fascista de educação tem sido tratado na esfera pública. Trata-se de escolas militares, pura e simplesmente. (J.S.Faro)

Estadão: notícia ou propaganda?

Jornal publica anúncio como se fosse uma notícia e ultrapassa os limites entre o jornalismo, que deve estar atento para interesse público, e a gestão dos interesses político-financeiros privados da empresa que produz o Estadão. É essa a fronteira da ética e da transparência sem a qual a liberdade de imprensa não passa de simulacro (leia a notícia original ou a sua versão hackeada)

Construtoras detonaram a cidade à revelia da qualidade de vida. Ao misturar propaganda com informação, o jornal abdica de sua independência editorial para investigar isso...

Sobre a autonomia dos movimentos sociais frente aos partidos

Surge na periferia paulistana nova convergência de lutas, que se reivindica autônoma. Ela bebe de uma longa tradição, que atravessou o marxismo e no Brasil envolve anarquistas, comunistas, PT e 2013. O governo Lula deveria saudá-la. Rudá Ricci, Outras Palavras (expandir)

Nos últimos dias, as periferias da cidade de São Paulo se movimentaram. Na quarta-feira, dia 4 de maio, ocorreu um encontro de lideranças de todos os cantos da cidade na Câmara Municipal da capital paulista. Rapidamente, o tema da autonomia frente aos partidos políticos ressurgiu.

Autonomia significa “autogoverno”. Parece um tema puxado exclusivamente pelo anarquismo, mas envolve um amplo espectro da esquerda mundial. E esteve no centro da criação do PT. Em Marx, ressurge em diversos textos, da análise da Comuna de Paris aos textos do rascunho d´O Capital, os Grundrisse.

Marx tinha esta questão como central na construção do comunismo, onde o Estado seria substituído por estruturas autônomas dos cidadãos que não precisariam mais trabalhar por obrigação e sobrevivência. Chegou a pensar numa enquete operária, inaugurando o que mais tarde se denominaria pesquisa-participante tal a preocupação de dar voz aos operários.

A reflexão sobre autonomia envolveu evidentemente os anarquistas, das vertentes anarcomunistas aos sindicalistas revolucionários. Na revolução russa, Nestor Ivanovyč Machno liderou um famoso agrupamento guerrilheiro que incomodou o Exército Vermelho após a vitória revolucionária.

Mas, no marxismo, o tema sempre foi central. Afinal, como criar uma estrutura de poder operário ou popular se os trabalhadores dependerem o tempo todo de uma estrutura burocrática central? Como dar “todo poder aos sovietes” (soviete significa “conselho popular”) se não tiver autonomia operária?

Temos uma imensa discussão a respeito envolvendo Rosa Luxemburgo e diversos textos de Trotsky. Na Itália, os Quaderni Rossi e Classe Operaia forjaram o operaísmo naquele país.

Um grupo oriundo do movimento sindical de Turim, do Partido Socialista Italiano (PSI) e do Partido Comunista Italiano (PCI), reunidos em torno de Raniero Panzieri, Mario Tronti e Antonio Negrid fundou em 1961 a revista Quaderni Rossi (“Cadernos vermelhos”). Dois anos depois, um subgrupo conhecido pelo jornal Classe Operaia passou a refletir e propor a autonomia da classe e das lutas operárias frente ao sindicato.

Aqui é preciso explicar que a Itália pós-guerra vivenciou uma expansão industrial no norte do país que atraiu muitos camponeses para as cidades. Ocorre que as grandes organizações sindicais – como a CGL – não tinham contato com trabalhadores não-qualificados. E era justamente aí que havia uma lacuna a ser coberta pela auto-organização.

No Brasil, tivemos ao menos quatro ciclos de discussões sobre autonomia dos movimentos sociais – incluindo o sindical – nos debates internos da esquerda nacional. O primeiro, já citado, do anarquismo trazido pelos migrantes europeus na virada do século XIX para o XX. Pouco se discute sobre a criatividade anarquista no período.

Cito as “rodas de conversa” que os anarquistas criaram para “papear” sobre política com trabalhadores das fazendas do interior do país ou as ações de cultura nas grandes cidades, como os piqueniques culturais ou peças de teatro relâmpago nas praças urbanas.

O segundo ciclo ocorreu nos anos 1940, a partir de uma espécie de dissidência no PCB. Ricardo Maranhão, no seu livro “Sindicatos e democratização”, retrata que entre 1940 e 1947 mais do que duplicou o número de trabalhadores sindicalizados no Brasil, o que alimentou movimentos de protesto e reivindicações. Maranhão registra muitas mobilizações que nem sempre seguiram a orientação partidária.

Em abril de 1945 foi criado, pelo PCB, o MUT (Movimento Unificador dos Trabalhadores), organização intersindical de trabalhadores de âmbito nacional, com o objetivo de assumir o controle dos sindicatos. Ocorre que o MUT foi além do PCB e atraiu muitos sindicalistas calejados, abrindo certo conflito entre orientação do partido e a autodefinição sindical. O PCB adotava uma política cautelosa naquele período e Prestes chegava a sugerir que “o Partido deve dirigir e não se deixar levar pelo movimento espontâneo das grandes massas”.

As greves, que pipocavam pelo país afora, impunham um forte dilema no interior do PCB, confrontando a liderança sindical com a linha cautelosa da direção partidária. O tema da autonomia sindical emergiu nesta década.

O terceiro ciclo ocorreu durante a criação do PT, logo no seu início. Um núcleo de intelectuais de destaque do PT paulista, como Marilena Chauí e Eder Sader, passou a promover debates sobre a autonomia dos movimentos sociais e o papel do PT. Uma revista foi criada onde o debate se organizava, a revista Desvios. A revista citava desde autores como Cornelius Castoriadis e Negri, até lutas sociais que ocorriam na Polônia (envolvendo o sindicato Solidariedade), Itália e no Brasil.

O que os neopetistas, que ingressaram ou ascenderam às direções do PT neste século XXI muitas vezes desconhecem é que o PT nasceu confrontando a ideia do partido como “correia de transmissão” de imposição de sua linha para os movimentos sociais. O PT nasceu contra o trabalhismo varguista por substituir a autonomia dos trabalhadores por lideranças de classe média externas à base social, assim como confrontava com o mundo soviético (ou o SOREX, socialismo real existente) que substituía as organizações autônomas operárias e de bairro pelas direções burocráticas partidárias.

A autonomia fez parte da identidade do PT e da CUT no início dos anos 1980 e se alimentou dos debates que ocorriam nas organizações semiclandestinas que faziam a conversão da luta armada para a organização de base, além da forte presença de organismos de base da igreja católica vinculadas à Teologia da Libertação.

O último ciclo foi a explosão autonomista em junho de 2013. A despeito da reação da cúpula de alguns partidos de esquerda do país procurarem ver nas manifestações de junho a digital da extrema-direita, os fatos hoje relatados em inúmeros estudos desmentem tal ilação. A cultura anarquista e autonomista estava presente desde o início. O autonomismo era a cultura do MPL, a organização que puxou o embate com os valores das passagens do transporte público.

O autonomismo esteve presente em vários Comitês da Copa, a articulação que se instalou nas 12 capitais que sediaram a Copa das Confederações. Esteve presente no comando das manifestações em muitas capitais – como RJ, Recife e BH -, assim como os anarquistas estiveram presentes na organização dos protestos do RJ e Porto Alegre.

Agora, retorna o debate a partir da articulação das periferias, ainda dando seus primeiros passos, em São Paulo. Os líderes dessa iniciativa não são apartidários. Ao contrário, a grande maioria é filiada a partidos de esquerda e é conhecida pela participação nas instâncias e debates partidários. Mas, retomam a tese original do PT: os partidos precisam se alimentar da energia e criatividade dos movimentos sociais e não o contrário.

Este é o centro das discussões que recentemente povoou as redes sociais da esquerda brasileira: a esquerda institucionalista (ou governista) e a esquerda social. O institucionalismo é uma concepção política muito acalentada pela ciência política dos EUA que sugere que o centro da disputa política é o campo institucional (partidos, governos e parlamentos). As lutas sociais e a sociedade civil configurariam uma dimensão secundária da vida política.

Ora, o que os jovens das periferias de São Paulo estão dizendo (sem falar abertamente) é que eles têm vida própria na condução política de suas lutas e organizações. Não confrontam com os partidos. Ao contrário, convidam direções partidárias e parlamentares para participarem. Mas, como convidados.

Tal postura independente (ou de interdependência) vai na contramão do que o lulismo vem propondo nas últimas duas décadas. Antes do encontro da quarta-feira na Câmara Municipal de São Paulo, dirigentes de partidos de esquerda se dividiram entre apoiar e participar, sugerir que não é o momento (devido à proximidade das eleições municipais) ou procurar assumir a liderança desta iniciativa.

A questão posta é o conceito de autonomia da sociedade civil. Lembremos, autonomia não é liberdade total ou exclusivismo (como ocorre com o identitarismo). É decisão sobre meu comportamento a partir da leitura do seu papel no todo, no coletivo. Autonomia é o inverso de heteronomia, ou seja, a norma definida por outro que não seja eu.

Esta é a base do que se denomina democracia socialista ou de esquerda. Se não vem dos próprios partidos – como ocorreu na década de 1980 com o surgimento do PT -, emerge dos próprios movimentos sociais, como ocorre agora na capital de São Paulo.   

Rudá Ricci

Cientista político formado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na década de 80. Mestrado em Ciência Política pela Unicamp e Doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. Presidente do Instituto Cultiva em Minas Gerais.


Chile: a memória do futuro (2019-2022)

Uma revolução contra o neoliberalismo, Pierre Dardot, A Terra é redonda (expandir)

Introdução do livro recém-editado

Uma revolução contra o neoliberalismo

Segunda-feira, 7 de outubro de 2019, cerca de 18 horas: entrevistado pela CNN Chile, o ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, anuncia que o preço do bilhete de metrô de Santiago aumentará 30 pesos, minimizando, ao mesmo tempo, o impacto da medida na vida cotidiana dos usuários do metrô. Na verdade, desde 6 de outubro, véspera do anúncio, a nova alta dos preços já estava em vigor no serviço do metrô nas horas de pico. Para bem dimensionar esse aumento, o terceiro do ano, é preciso levar em conta que dois bilhetes por dia custam 1.790 pesos, o que, na escala de um mês, equivale a 35.600 pesos, ou seja, cerca de 12% do salário mínimo.1

É preciso levar em conta também que o aumento anunciado só se aplica aos horários de pico, quando muitíssimos trabalhadores pegam o metrô para ir trabalhar e voltar do trabalho. A tarifa de metrô é definida com base em três horários: bajo, valle e punta. Só estudantes e idosos pagam uma tarifa fixa (230 pesos, em outubro de 2019). O bajo corresponde ao intervalo entre 6h00 e 6h59 e entre 20h45 e 23h00; o valle se aplica de 9h00 a 17h59 e de 20h00 a 20h44; o punta, entre 7h00 e 8h59 e entre 18h00 e 19h59. O ministro previa o aumento do preço dos horários valle e punta e, proporcionalmente, a diminuição do preço do horário bajo.

A responsabilização neoliberal do indivíduo

Essa modulação diferenciada das tarifas em função dos horários permite ao ministro argumentar que a medida não visa de forma alguma aos mais pobres. Por três vezes na mesma entrevista, o ministro martela a mesma ideia, formulada de maneiras diferentes: “Quem acorda cedo pode se beneficiar de uma tarifa reduzida”, “Quem sai mais cedo e pega o metrô às 7h00 da manhã tem a possibilidade de pagar uma tarifa mais baixa”, “Um espaço foi aberto para ajudar a quem madruga a pagar uma tarifa inferior”.

Para além de seu caráter provocador, essas respostas às questões de uma jornalista são perfeitamente reveladoras do espírito neoliberal que anima com grande frequência a política dos governantes do Chile há décadas. Com esses elementos de linguagem, diz-se tudo: é preciso incentivar financeiramente o trabalhador a acordar mais cedo.2 É uma cantilena ao pé do ouvido de cada um: “Se você acorda tarde demais, a responsabilidade é toda sua, o culpado é você”. Em outras palavras, trata-se de imputar a cada indivíduo a responsabilidade pela penalidade financeira que ele pode sofrer e de fazer crer que tudo depende, no fim das contas, da conduta que ele escolher adotar pessoalmente.

Esse é um traço característico do neoliberalismo que vai muito além das fronteiras da experiência chilena, embora, desde o início, tenha encontrado nessa experiência uma expressão muito típica: o neoliberalismo não se reduz de forma alguma a uma doutrina acadêmica importada da Escola de Chicago, ou mesmo a uma política econômica inspirada nessa doutrina; ele é uma forma de vida singular, definida por uma exigência de se escolher a si mesmo em condições que estão além de qualquer escolha.

Em 7 de outubro, por volta das 14h00, os estudantes conduzem a primeira ação de recusa de pagamento, invadindo a estação da Universidade do Chile, fazendo dessa recusa, nas suas próprias palavras, “uma outra forma de lutar”. De 7 a 18 de outubro, manifestações pontuais de estudantes ocupam as estações de metrô, sem dar lugar ainda a uma ação coordenada em escala metropolitana. As coisas mudam em 18 de outubro. O que impressiona o observador nas primeiras horas desse dia não é a efervescência de um tumulto, mas sobretudo a qualidade do silêncio que impera nas ruas, um silêncio estranho e muito raro.

Mas, por volta de 16h00, na hora da saída da escola, as primeiras aglomerações se improvisam na entrada das estações de metrô: os estudantes, então, convidam as pessoas a pular as catracas sem pagar, e as aglomerações crescem à medida que as pessoas que saem do trabalho veem o que se passa e decidem se juntar ao movimento. Há nisso uma espontaneidade que desafia todos os cálculos e todas as estimativas. A rua será por fim bloqueada por manifestações de massa que se repetirão a cada sexta-feira. É o início do alastramento da revolta para outras camadas sociais.

É claro que não faltam iniciativas estudantis desde as primeiras manifestações de oposição a Augusto Pinochet em 1984. Especialmente as ações de bloqueio das escolas são uma espécie de tradição, de modo que os estudantes estão acostumados a esse tipo de ação e de intervenção que carrega a marca de uma inventividade ligada a uma irrupção política que não é, em si mesma, nova.

O secundarista descabelado (chascón) há muito tempo faz parte da iconografia das mobilizações sociais. Já houve no passado movimentos estudantis pela gratuidade do transporte, mas seria um erro estabelecer uma relação de causalidade direta entre esses movimentos e a emergência do 18 de outubro de 2019: certamente esses movimentos deixaram marcas duradouras, mas não é a ação subterrânea dessas marcas que explica que a revolta tenha sido desencadeada pelo preço da passagem do metrô. Não é o passado que ressurge constrangendo os atores a dele tirar as reservas de um sentido que faltaria cruelmente ao presente, mas, pelo contrário, é a irrupção do novo que, retrospectivamente, dá sentido ao passado, trazendo à luz a continuidade de uma política.

“¡No son 30 pesos, son 30 años!”3

Mais exatamente, o que emerge aí é a consciência ativa da estreita relação entre essa medida de um ministro do presidente Piñera e a continuidade da política praticada pelos governos que se sucederam no Chile ao longo de décadas. Um bom exemplo disso é a frase que ecoa em todos os setores sociais que participam do movimento e mesmo além dele: “¡No son 30 pesos, son 30 años!”. Os “30 anos” referem-se às três décadas que vão de 1989 a 2019, os anos da Concertação, o sistema multipartidário de governança política, que inclui o Partido Demócrata Cristiano (DC), o Partido Socialista (PS) e o Partido por la Democracia (PPD), criado depois da saída de Pinochet, com o fim de preservar o núcleo do sistema Pinochet de qualquer contestação, sob o pretexto de assegurar uma “transição democrática”.

Nos dias seguintes ao anúncio do aumento, jornalistas da TV aberta coletam testemunhos de apoiadores do movimento e todos eles seguem a mesma toada: “Não aguentamos mais! Já faz 30 anos!”. Tal consciência exclui a dissociação escolástica entre causa ocasional (os 30 pesos) e causa profunda (a gestão da Concertação): é num imediatismo brutal que os 30 pesos revelam o sistema implacável que se perpetua sem interrupção desde 1989.

O “Despertar de Outubro”, expressão popular que é bem mais que uma simples metáfora, pode ser entendido no sentido de fim de um longo pesadelo, não como uma súbita tomada de consciência do caráter neoliberal do sistema, adquirida muito tempo antes e amplamente compartilhada, mas como resposta havia muito adiada a uma promessa quebrada pela Concertação: no referendo de 1989, o slogan em forma de refrão pelo qual a Concertação convocava a dizer “não” a Pinochet era “La alegría ya viene” (“A alegria está chegando”). Ora, a alegría prometida nunca chegou, e o Despertar de Outubro é, antes e sobretudo, uma resposta a essa promessa feita pela Concertação durante 30 anos. O Despertar dos chilenos se consuma pela ação coletiva.

Ao contrário do que se diz muito frequentemente, não somente a espontaneidade não exclui, de nenhuma forma, a consciência política, como ela anda de mãos dadas com certo planejamento. Não havia um plano político fomentado por um grupo ou uma organização, mas havia, sem dúvida, um planejamento das ações. Os alvos escolhidos nos primeiros dias do movimento revelam uma seleção totalmente deliberada.

As instituições atacadas são, além das 164 estações de metrô de Santiago, os grandes centros comerciais, os supermercados e os bancos (uma sucursal do Banco do Chile foi a primeira visada), que vendiam, todas elas, sonhos de realização pessoal por meio do crédito. O alvo aí é nada menos que o coração do sistema neoliberal implantado pela ditadura, que transformou profundamente a vida de milhões de chilenos. Ainda aí, o que chama atenção é a que ponto esse sistema, longe de se restringir à “superestrutura” política, se tornou ao longo do tempo parte integrante da experiência cotidiana dos chilenos.

Nesse sentido, é possível falar não só de uma experiência chilena do neoliberalismo, mas também de uma experiência neoliberal vivida em massa pelos chilenos. Em outras palavras, no caso do Chile, o neoliberalismo não é apenas um objeto de experiência que pode ser mantido a distância para ser analisado de todos os ângulos; ele também penetrou nas camadas da experiência e moldou-a de forma persistente, gerando aquilo a que se poderia chamar cansaço existencial, aliado a um sentimento de frustração, alimentado por uma persistente precariedade.

É isso que explica que, mesmo a tarifa fixa protegendo-os do aumento do preço da passagem, os estudantes estejam na vanguarda do movimento e recebam o apoio imediato e maciço da população. Na referência aos “30 anos”, é a subjetividade da revolta que encontra expressão. É como se os manifestantes dissessem: “Vocês nos enganaram durante 30 anos, nunca cumpriram suas promessas, e hoje estamos na rua para dizer chega!”.

Desse ponto de vista, o governo de Piñera limita-se a se acomodar a um sistema posto em prática por seus antecessores. De modo algum, entretanto, é poupado de responsabilidade. Pelo contrário, é apontado como responsável pela perpetuação desse sistema. A referência aos “30 anos” associa diretamente o sofrimento vivido no cotidiano à gestão política dos diferentes governos, inclusive o de Piñera.

No dia 8 de outubro, num programa popular de grande audiência, Piñera afirmou: “No meio de uma América Latina em convulsão, o nosso país é um verdadeiro oásis. […]. Temos uma democracia estável, o país está crescendo, estamos criando 176 mil empregos por ano, os salários estão aumentando. […]. Quanto mais crises vejo, mais temos que apreciar o nosso país”.

No mesmo dia, numa entrevista à CNN Chile, o ministro Felipe Larraín Bascuñán não hesitou em elogiar a estabilidade do índice de preços ao consumidor, convidando os “românticos” a aproveitar a queda do preço das flores, como se essa queda pudesse compensar o aumento do preço do bilhete de metrô. Para a maioria dos chilenos, toda essa ladainha é insuportável. É por isso que, desde o início, a reivindicação que dominou as palavras de ordem não foi o impeachment, mas a renúncia de Piñera. Há uma diferença abismal entre ambos: o impeachment colocaria o destino do presidente nas mãos do Congresso, enquanto a renúncia é uma exigência política incondicional, que prescinde dos procedimentos legais previstos na Constituição de 1980, aquela mesma que Pinochet impôs sob o regime ditatorial que se seguiu ao golpe de Estado de 1973.

O isolamento do governo

Desde o início, o governo procura criminalizar as ações dos estudantes secundaristas e universitários. Em 16 de outubro, a ministra dos Transportes, Gloria Hutt, ameaça publicamente os estudantes que participam dessas ações de suspender os benefícios decorrentes de seus cartões nacionais de estudantes. Na noite de 16 para 17 de outubro, o diretor do metrô,4 Clemente Pérez, um perfeito representante da Concertação, já tinha manifestado sua arrogância e seu desprezo ao dirigir-se aos estudantes manifestantes nestes termos, numa entrevista em rede nacional: “O que vocês estão fazendo”, disse, “não funcionou”.

Ou, mais vulgarmente: “Cabros, esto no prendió” (literalmente: “Gente, isso não pegou”, no sentido em que um fósforo “pega” fogo).5 Mas, como mostra a aceleração dos acontecimentos, o fósforo, ao contrário, pegou fogo muito rapidamente. A frase foi muitas vezes ridicularizada durante as manifestações.

Em 19 de outubro, Piñera decreta estado de emergência e nomeia um general de divisão como chefe da Defesa Nacional. Em 20 de outubro, à medida que se multiplicavam os confrontos entre os manifestantes e as forças de repressão, ele declara a nação em guerra contra “um inimigo poderoso e implacável que não respeita nada nem ninguém” e que está “disposto a usar a violência e a delinquência sem limites”.

Convém determo-nos um pouco nessa construção discursiva do inimigo, que não é propriamente uma novidade na história do neoliberalismo, mas que assume aqui um significado particular. Desde sua formação nos anos 1930, o neoliberalismo qualificou seus inimigos – o socialismo, o Estado de bem-estar social e o sindicalismo – como inimigos “civilizacionais”.6 Há aí uma clara diferença em relação ao conceito de inimigo desenvolvido por Carl Schmitt em 1932, segundo o qual é uma decisão absolutamente primitiva, irredutível a qualquer norma civilizacional, que constitui o inimigo enquanto tal, a ponto de o conceito de guerra subordinar-se ao de inimigo.7 Já para os doutrinários do neoliberalismo, trata-se de uma relação de antagonismo com a “civilização ocidental”, entendida na sua suposta permanência como tradição, conjunto de valores (incluindo a concorrência de mercado) e religião, por oposição ao igualitarismo.

Isso não impede que o neoliberalismo sinta necessidade de encarnar esse inimigo em diversas figuras, adaptadas a cada situação. Trata-se de uma segunda identificação que opera o que se poderia chamar de instanciação (ou exemplificação) da primeira identificação pela oposição à civilização (hoje, por exemplo, vemos a inimização de minorias de gênero e raciais).

No caso do Chile do início dos anos 1970, a junta militar identificou o “marxismo” ou o “comunismo” como um inimigo mortal da nação que devia ser combatido sem piedade, não sem um interesse puramente político pelo conteúdo da “doutrina”.8 Essa segunda identificação, longe de ser secundária, é essencial para a construção discursiva do inimigo. O seu fracasso compromete a primeira identificação. E quanto ao momento em que a revolta irrompe em 2019?

A declaração de estado de guerra interna em 20 de outubro, até mesmo em seus termos e além da circunstancial dramatização retórica, é significativamente constrangedora: se estamos em guerra contra “um inimigo poderoso e perigoso”, como diz o presidente, que rosto tem esse inimigo que está por trás dos tumultos de 18 de outubro? Podemos equiparar os jovens de 15 a 18 anos que bloquearam o metrô e atacaram bancos e lojas de departamento com o inimigo de sempre, o “marxismo” e o “comunismo”? Devemos culpar uma conspiração arquitetada no exterior?

A pedido do governo, e com base em um exame das redes sociais, uma agência privada conclui que o movimento foi organizado por “mapuches treinados por Cuba e Maduro”. A direita chega a ponto de recorrer ao termo “Chilezuela” para denunciar o risco de um regime autoritário no estilo venezuelano. As palavras de Piñera, entretanto, são escolhidas de forma a sugerir que esse inimigo é fundamentalmente sempre o mesmo: aquele que ataca a propriedade privada e o Estado.

Mas essa retórica do governo é vazia e sem qualquer credibilidade, precisamente porque não consegue dar um rosto ao inimigo, ou seja, instanciar o inimigo civilizacional em uma figura concreta, tangível a todos. O que se segue mostra até que ponto essa incapacidade é sintomática do completo isolamento político de Piñera.

A atitude dos partidos políticos

A maioria dos partidos políticos, inclusive os da esquerda tradicional, adota uma atitude conservadora, manifesta no lema de “apelo à ordem”. Os partidos da Concertação – PS, DC e PPD –, assim como o Partido Radical (PR), condenam as ações de bloqueio do metrô. Sua mensagem para os jovens amotinados é invariável e pode ser resumida da seguinte forma: “Deixem-nos cuidar disso, nós que somos políticos profissionais”. As coisas começam a mudar com a grande manifestação de 25 de outubro, que reúne um milhão de pessoas em Santiago. Desse dia em diante, até mesmo a direita passa a se juntar ao movimento, incluindo a Unión Demócrata Independiente (UDI), partido fundado em 1987 por Jaime Guzmán, o pai da Constituição de 1980.

Qual é a atitude das outras formações à esquerda das forças da Concertação? Elas são essencialmente o Partido Comunista (PC) e o Frente Amplio (FA). Na pessoa de Camila Vallejo, porta-voz do movimento estudantil em 2011 e deputada desde 2014, o PC apoia o movimento desde o início e se organiza para tentar aprovar leis a favor do trabalhador, contra o capital (em particular, aumentos salariais, redução da jornada de trabalho para 40 horas e fortalecimento do papel dos sindicatos).

O Frente Amplio não é um partido político em sentido estrito. É uma formação recente (fundada em 2016) que reúne vários pequenos partidos em uma coalizão.9 Surpreso com a amplitude da mobilização, ele a apoia, mas é em seguida cindido por um debate interno sobre a legitimidade da violência: o uso de violência física pelos jovens que compõem a linha de frente é justificável, ou deve ser condenado, descolando-se, ao mesmo tempo, da atitude conservadora dos partidos da Concertação? O fato de o debate se concentrar nessa questão da legitimidade da violência, enquanto a repressão dos carabineros se abatia brutalmente sobre o movimento,10 diz muito sobre a hesitação e a debilidade das posições do Frente Amplio nos primeiros dias do levante.

Aos olhos de alguns ativistas da Izquierda Autonoma (IA),11 não há tarefa mais urgente do que instalar a revolta a longo prazo estabelecendo um ponto de confronto político com o governo. Eles publicam uma série de textos sobre o movimento, inclusive, em 8 de novembro, um documento de orientação intitulado “Pondo fim à Constituição de 1980, o desafio de superar a revolta”. Nesse título, a superação da revolta deve ser entendida como uma superação da ilusão de uma retomada permanente e indefinida da mobilização, ao ritmo de uma sexta-feira por semana, uma retomada intermitente que condenaria à exaustão e à derrota.

Uma revolução popular

Para entender essa percepção da situação, é preciso considerar um dado da história nacional que assombra a memória de centenas de milhares de chilenos: a repressão do movimento operário e popular pelo Exército não começou em setembro de 1973, já tinha se abatido sobre os camponeses que foram trabalhar nas minas do norte do país, em Antofagasta e Iquique, a partir do final do século XIX. Em 1890 e em 1898-1903, as greves nas minas de salitre de Iquique foram duramente reprimidas pelo Exército e pela Marinha, e assim foi novamente em 1906 e 1907, quando as greves se multiplicaram por todo o país, estendendo-se até a região de Iquique.

O massacre de Santa María foi o cúmulo: os mineiros e suas famílias, entre mil e três mil pessoas, foram mortos pelo Exército na escola e nas ruas de um vilarejo.12 Assim, quando Piñera decide enviar veículos blindados para patrulhar as ruas e assustar os manifestantes, ele desperta velhos traumas, e não apenas os da geração dos anos 1970, que vivenciou o golpe de Estado de Pinochet. O que está em jogo é a historicidade do trauma como o “traço psíquico de um evento trágico”,13 o que está muito longe de uma suposta constância insensível às variações da história. Esse traço volta a assombrar o presente em outubro de 2019, mas não causa uma paralisia da ação coletiva, muito pelo contrário.

De nada adianta: com o passar dos dias, o “turbilhão do Outubro Chileno” atinge setores cada vez mais amplos da sociedade. Desde os primeiros dias, as feministas desempenham um papel decisivo, situando-se como protagonistas. Em 25 de outubro, na Plaza de la Dignidad, em Santiago, uma enorme manifestação reúne um milhão de pessoas. É nessa mesma praça que a bandeira mapuche é hasteada no topo da estátua do general Baquedano, um símbolo imortalizado em uma foto que instantaneamente entrou para a história: esse general se destacara na guerra contra os mapuches no final do século XIX.

Nesse fenômeno, destaca-se o papel dos cabildos, que surgem em função do movimento e de sua expansão. A instituição do cabildo, responsável pela administração urbana e herdada da Castela medieval, é muito antiga no Chile. Em situações de crise, essa assembleia é aberta a todas as pessoas notáveis.14 Mas o Outubro Chileno lhe confere outro significado, radicalmente democrático: o de uma assembleia autoconvocada e aberta a todos os cidadãos de um bairro ou localidade, na qual prevalece a prática da deliberação coletiva.

A composição social dessas assembleias indica também algo significativo: elas incluem agentes comunitários, feministas, ativistas dos direitos dos animais, ativistas dos direitos das crianças, trabalhadores da educação e trabalhadores têxteis. Aí, mais uma vez, verifica-se até que ponto o renascimento de uma forma antiga, longe de condená-la à repetição, pode significar uma reapropriação inventiva que lhe dá um novo conteúdo.

Sem dúvida, por tudo isso, em poucos dias, o movimento do Outubro Chileno assume o caráter de uma revolução. Não queremos dizer, com esse termo, tomada do poder do Estado por um partido à frente de uma insurreição armada. Por mais clássico que seja, esse significado exagera a centralidade do Estado e, por essa razão, deixa escapar o essencial: a capacidade da sociedade de se transformar por si mesma.

Como Castoriadis escreve, “revolução não é somente uma tentativa explícita de reinstituir a sociedade. A revolução é essa reinstituição por meio da atividade coletiva e autônoma do povo ou de uma grande parte da sociedade”.15

Em outras palavras, “revolução” é, antes de tudo, um movimento de autoinstituição da sociedade. No exemplo chileno, essa contestação da sociedade instituída foi feita em nome de um imaginário instituinte que bebe em grande medida nas fontes da democracia. A centralidade rapidamente adquirida pela demanda por uma nova Constituição e, portanto, pela revogação da Constituição de 1980 é um testemunho da vitalidade desse imaginário coletivo.

O fato de essa contestação ter levado apenas à criação de uma nova instituição efêmera, a Assembleia Constituinte (julho de 2021 a julho de 2022), e de um ciclo político ter se encerrado com a vitória da rejeição da proposta de uma nova Constituição (o Rechazo), em 4 de setembro de 2022, não justifica o abandono do termo “revolução”. O sentido mais amplo que extraímos da definição de Castoriadis (“movimento de re-instituição da sociedade”) não é um sentido historiográfico, mas um sentido político, que define um processo não em termos de seu resultado, mas em termos de seu significado.16

O primeiro objetivo deste livro é inscrever essa revolução na história chilena, não para delimitar seu alcance ou reduzi-la a uma falsa continuidade, mas, ao contrário, para compreender melhor sua dimensão de ruptura, constitutiva de qualquer revolução digna desse nome.

Ao mesmo tempo, este livro tem outro objetivo. É claro que não se trata de transpor as lições do Outubro Chileno para outras situações nacionais. Evitaremos, portanto, a tentação de considerar esse movimento como um modelo a ser seguido (por exemplo, aplicando irrefletidamente a exigência de uma Assembleia Constituinte a situações nacionais muito diferentes).17

Entretanto, independentemente da diversidade de situações nacionais, a esquerda enfrenta hoje múltiplos desafios, alguns deles, não menos importantes, de natureza estratégica.

A esse respeito, o exemplo do Chile é singular, pois oferece um valioso campo de reflexão. A ilusão do “pós-neoliberalismo” (rótulo confuso usado para descrever Chávez, Lula, Morales e Kirchner, entre outros) na América Latina deve dar lugar a uma visão mais lúcida: o populismo autoritário (do qual Maduro é uma versão ditatorial) e a “democracia hegemônica”,18 encarnada por Andrés Manuel López Obrador, longe de serem alternativas genuínas ao neoliberalismo, como alguns na Europa ainda gostam de pensar, tendem, ao contrário, a reforçá-lo. A situação na América do Norte e na Europa enseja um diagnóstico semelhante: globalistas e nacionalistas parecem ser duas versões complementares do neoliberalismo.

A singularidade do Chile que se inventou na revolta consiste em seu anseio por experimentar uma ruptura com o neoliberalismo globalista e o populismo autoritário em nome da democracia. Só por isso, merece toda a nossa atenção.

*Pierre Dardot é filósofo, pesquisador da Unversidade de Paris-Nanterre. É autor, entre outros livros, com Christian Laval, de A nova razão do mundo (Boitempo).

Referência


Pierre Dardot. A memória do futuro. (Chile 2019-2022). Tradução: Clarissa Penna. Campinas, Editora da Unicamp, 196 págs. [https://amzn.to/4caQR09]

Notas


Pensatas para o fim de semana

Aceleracionismo e IA: a distopia do controle total da tecnologia sobre todos e sobre tudo

# Os capitalistas de desastre

Na crise climática com a catástrofe das enchentes, os neoliberais se travestem de socialistas, e a demagogia do mercado autorregulado é trocada pelo estatismo de conveniência
Luis Marques (A Terra é redonda)

# O homem, El Niño e a tragédia climática

Anotações de um estudo internacional que se debruçou sobre as causas das enchentes gaúchas e os desafios do estado - mais que ambientais  (Piauí)

# Tragédia climática ou política?

Já é possível fazer um balanço, uma avaliação do ocorrido no Rio Grande do Sul, que vá além da crise humanitária que daí decorre e da necessária prioridade do atendimento às vítimas Raul Pont (A Terra é redonda)

O que há de novo nesta 4a?

# STF decide por unanimidade: Moro continua réu 

Ex-juiz é processado por calúnia contra Gilmar Mendes (G1)

# Privatização de escolas públicas no Paraná é ilegal

Projeto de Ratinho Jr confronta LDB (RBA)

# Quanto custa uma criança?

Privatização da escola pública cria mercado perigoso (Outras Palavras)

# Servidão voluntária?
Saiba como é a rotina das escolas militares: continência, uniforme completo, sem namoro e sem piercing (G1)

# Renato Janine Ribeiro sobre a militarização das escolas
"É preciso dizer para os alunos e para todos que é um mau negócio" (GGN)

Associação comandada por bolsonarista lucra milhões com projetos de escolas "cívico"-militares

Segundo o site Metrópoles, a Abemil, comandada por Capitão Davi Lima Sousa, suplente de deputado federal pelo PL, já recebeu pelo menos R$ 11 milhões dos cofres públicos (Carta  Capital)

Papo sindical: por que a Andes não pode negociar

Isso implicaria negar a concepção de carreira docente que sempre defenderam e sua própria concepção de Universidade. Roberto Campos Giordano (A Terra é redonda)

Em um momento de aguda polêmica nas redes sobre o papel de ANDES e PROIFES na atual greve de docentes de Universidades e Institutos Federais, pode ser interessante jogar luz em uma questão de fundo que, creio, não vem sendo tratada claramente. Qual seja: em minha modesta opinião, a ANDES (o artigo feminino é intencional) não pode negociar seriamente com o governo. Pois isso implicaria negar a concepção de carreira docente que sempre defenderam e, portanto, sua própria concepção de Universidade.

Em outras palavras, a ANDES não pode aceitar propostas que se baseiem em uma carreira construída pelo PROIFES, em negociação com as gestões democráticas do governo federal, entre 2003 e 2016. Essa carreira seria, para a ANDES, “assimétrica, elitista, academicista, meritocrática”…

Com efeito, a ANDES defende uma carreira com 13 “degrauzinhos”, em que a/o docente chegaria ao topo após 24 anos, passando de professor 1 a professor 13 ao longo de sua vida profissional. Ou seja, a ANDES não aceita degraus salariais diferenciados ao se passar de categoria (adjunto, associado e titular), após processos de avaliação acadêmica. E toda contraproposta do governo federal, que está na mesa, se baseia nessa estrutura (que por simplicidade, denominarei da “carreira do PROIFES”, pois foi em sua essência por ele concebida).

Como bem sabem todas(os) colegas, em qualquer lugar do mundo a academia reconhece essas denominações da carreira docente como refletindo o merecimento da/do docente. Após uma avaliação por pares, ascende-se a essas categorias – com um natural incentivo salarial correspondente. Por isso, quando me apresentava como “full professor” a colegas no exterior, da China ao México, da Dinamarca à África do Sul, imediatamente reconheciam minha situação na academia.

A ANDES quer que nós nos apresentemos como professores 5, 11 ou 13? Note-se que essa não é apenas uma questão de nomenclatura: o fato objetivo é que a ANDES é contrária a uma carreira em que a progressão se baseie na avaliação do trabalho acadêmico (em ensino, pesquisa e extensão), tendo etapas diferenciadas: lecturer/reader/adjunct, associate, full/chair professor. Claro, há alguma variação nas denominações, mas existe um conceito universal por trás delas: mais que uma classificação funcional, esses títulos pressupõem merecimento, reconhecimento por pares.

O PROIFES propôs e defende uma carreira consistente com essa visão universal, que em última análise busca refletir, na carreira, a excelência acadêmica.

Elitismo? Não creio. É só a adoção de um modelo, consagrado a partir da própria história da Universidade no mundo inteiro, como elemento estruturante da qualidade acadêmica.

Claro, quem quiser pode acreditar que esse modelo “meritocrático” pode ser modificado a partir da “correta” concepção da ANDES. E que isso não ajudaria a mediocrizar a Universidade e os Institutos Federais, cuja excelência é tão necessária para construirmos um país mais justo. Sim, pode-se ter essa opinião, assim como se pode crer que a vacina tem um chip chinês ou que a Terra é plana…

Acredito que também por esse lado o sectarismo infantil, em última análise, vem engrossar a extrema direita. Continuemos então a “tensionar à esquerda” esse governo “reformista de conciliação de classes”, ora. Até a vitória final…

*Roberto de Campos Giordano é professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Química da UFSCar. Foi presidente da ADUFSCar em 1985-86.

Das mulheres invisíveis às mulheres com direitos

Em situações extremas como guerras e calamidades, a vulnerabilidade das mulheres e crianças aumenta e, com isso, a violência de gênero também se aprofunda. Carmela Zigoni (Le Monde)

As políticas públicas de combate à violência contra as mulheres são concebidas e colocadas em prática a partir de abordagem intersetorial, na articulação de diversas políticas públicas, como as de saúde, assistência social e justiça. Além disso, devem ser desenvolvidas e financiadas no marco do pacto federativo, com responsabilidades compartilhadas entre o governo federal, estados e municípios. Cabe ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) realizar o controle social de tais ações.

Essas diretrizes não foram consideradas no governo Bolsonaro, e na gestão de Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH). No PPA 2020-2023 que elaboraram, o Programa 2016: Enfrentamento a Violência e Promoção da Autonomia foi extinto, e as mulheres passaram a ser mais um público entre outros (idosos, PCDs, crianças e adolescentes, quilombolas e indígenas) do Programa 5034: Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa de direitos humanos para todos.

Esse olhar genérico da gestão pública em relação às mulheres – não mais vistas na sua especificidade, diversidade, no contexto de desigualdades sociais –, se materializou na baixa execução dos recursos ou cortes orçamentários nos quatro anos de governo. No auge da pandemia de Covid-19, em 2020, quando as mulheres estavam mais expostas à violência doméstica, o Ministério deixou de executar 70% do recurso disponível. Naquele momento, estava decretada a calamidade pública e, em função disso, as regras para licitações e contratos foram flexibilizadas visando acelerar a execução financeira do orçamento.

Em 2023, o governo Lula, de forma participativa, realizou a elaboração do novo PPA 2024-2027, trazendo de volta as mulheres para o campo prioritário. Foram criados três programas específicos: “Igualdade de decisão e poder para as mulheres” (Programa 5661), “Mulher viver sem violência” (Programa 5662) e “Autonomia econômica das mulheres” (Programa 5663). Além disso, outros órgãos como o Ministério da Justiça, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) criaram ações orçamentárias específicas para mulheres.

O governo de Jair Bolsonaro previu somente R$ 13,6 milhões no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023 para o enfrentamento da violência contra as mulheres, ou seja, o pior orçamento de todos os anos para a pauta. Os recursos foram incrementados pelo novo governo e chegaram a R$ 152 milhões, o que equivale a onze vezes mais do que o originalmente previsto pela gestão anterior. A execução financeira foi de R$ 83,7 milhões e o empenho foi de R$ 146,6 milhões, respectivamente, representando 55% e 96% dos recursos autorizados.

Para 2024, foram alocados R$ 370,5 milhões, distribuídos nos três novos programas, prevendo o acolhimento em situações de violência, ações de promoção de autonomia – sem a qual as mulheres não conseguem romper com o ciclo de violência doméstica –, e participação nos espaços de poder. Além disso, o fomento e aprimoramento dos mecanismos de participação e controle social são imprescindíveis: as medidas do Ministério das Mulheres no Rio Grande do Sul, por exemplo, estão sendo construídas tanto pelo diálogo entre governo federal, estado e municípios, como em diálogo com as mulheres afetadas e movimentos feministas.

O caminho ainda é longo para que todas as políticas públicas considerem os impactos na equidade de gênero e raça, mas alguns importantes passos foram dados no novo PPA. A tragédia climática do Rio Grande do Sul revelou que o planejamento das políticas públicas é fundamental para evitar catástrofes. E a proteção de mulheres e crianças precisa integrar este planejamento, uma vez que existe a previsibilidade de possíveis ocorrências.

As mulheres brasileiras são urbanas e rurais, indígenas, quilombolas e ribeirinhas. São atravessadas por especificidades que impactam de forma diferente os direitos das mulheres negras, com deficiência, lésbicas, trans, jovens e idosas. Algumas são impactadas, ainda, por políticas públicas que violam direitos socioambientais, a exemplo das mulheres afetadas por tragédias climáticas.

O capitalismo senil e os CEOs popstars

Para as corporações, a regra já não é produzir, mas capturar. Brilhar na mídia, excitar investidores e vender ações sobrepõe-se a realizar. O CEO tornou-se um marqueteiro – pago a peso de ouro e incensado como herói em biografias (Leia Michael Eby, em Outras Palavras)

# Como a IA e o Google ameaçam devastar a Web 

A principal ferramenta de buscas na internet quer oferecer apenas resumos... (Outras Palavras)

# Quem é Cláudia Sheinbaun, a nova presidenta do México
"Não chego aqui sozinha. Chegamos todas" (GGN)

Bye Bye, Brasil...

# Extrema direita inicia ataque final ao patrimônio público: o cercamento privado da beleza natural do país com a transformação das praias em áreas de especulação imobiliária e de destruição ambiental (leia mais no G1) # Alexandre Padilha: governo é contra a PEC das praias (Carta Capital)

Metáforas existencialistas desenham utopias revolucionárias

Byung-Chul Han: sobre a esperança radical

Por não esgotar-se (sic) no consumo, ela é antítese da lógica capitalista, sugere filósofo. É a portadora do futuro, mas só surge da negatividade da crítica. Está em rupturas. Exige crítica, desespero e escuta. E sempre é cega, pois move-se ao desconhecido (leia em Outras Palavras)

O que há de novo?

Duas imagens históricas da Avenida Paulista:
multidão verde-amarela exalta democracia e ensaia vaia ensurdecedora contra Tarcísio e Nunes

Na mais politizada de todas as versões, Parada do Orgulho LGBT+ pode ter atingido a marca de 3 milhões de participantes (matérias: CNN, Pública, G1

# Vinicius Jr: A masculidade jovem e negra em jogo
Sociedade da branquitude não suporta o gozo da masculinidade negra, sua pulsão de vida em êxtase (Daniel Bento Teixeira, Folha)

Racistas egolem a seco o brilho de Vini Jr 

"Vinícius, Bola de Ouro!" Esse foi o grito que ecoou pelo estádio de Wembley, em Londres, na Inglaterra, na noite deste sábado, 1º, quando o craque brasileiro coroou mais uma grande atuação pelo Real Madrid

Craque brasileiro brilhou na final da Liga dos Campeões e foi o grande nome do título do Real Madri (leia Aline Küller, Terra)

Escola: nem empresa nem quartel

No Brasil, a panaceia “técnica-sem-ideologia” caminha de mãos atadas ao discurso que pretende justificar os cortes massivos nas já diminutas verbas destinadas à Educação e à Pesquisa. Jean Pierre Chauvin, A Terra é redonda (expandir)

“O golpe não se reduziu a mera operação político-militar, com a finalidade de expulsar o Presidente da República. Consistiu também em ampla e prolongada campanha de convencimento da população brasileira, acima de tudo sua camada média” (Evaldo Vieira).

“[…] comparada a outras profissões, a militar representaria um caso-limite sociológico, contribuindo para uma grande coesão ou homogeneidade interna (“espírito de corpo”), mesmo que frequentemente ao preço de um distanciamento entre os militares e o mundo civil” (Celso Castro)

1.

A apologia de mentalidades e práticas supostamente novas é um antigo clichê reproduzido de alto a baixo nestas Bruzundangas. É sintomático que a grade curricular do assim chamado novo Ensino Médio descontinue atividades e disciplinas que estimulam a criatividade e a reflexão, substituindo-as por instruções para melhor empreender e inovar, sob os auspícios de uma existência digna e útil, quando o aluno deixar a escola.

István Mészáros ensinava que “Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação social quantitativa”.[i]

Mais recentemente, Christian Laval mostrou que “As reformas liberais na educação são duplamente orientadas pelo papel crescente do saber na atividade econômica e pelas restrições impostas pela competição sistemática entre as economias”.[ii] Luiz Carlos de Freitas ressalta que a reforma empresarial da educação “remonta ao nascimento de uma ‘nova direita’ que procura combinar o liberalismo econômico (neoliberal, no sentido de ser uma retomada do liberalismo clássico do século XIX) com autoritarismo social”.[iii]

Numerosos historiadores, sociólogos e filósofos (Perry Anderson, Noam Chomsky, Mark Fisher, Grégoire Chamayou, Florestan Fernandes, Marilena Chaui, Rubens Casara etc.) já mostraram que o neoliberalismo defende a “não-intervenção” do mercado; o que não implica a ausência do Estado, mas sim sua atuação decisiva para reduzir os danos, desregular os direitos e assegurar a manutenção da ordem social – fatores indispensáveis tendo em vista o bom andamento dos negócios.

No Brasil, pelo menos desde a década de 1990, as instituições de ensino básico (e superior) passaram a adotar o idioma e os trejeitos do mercado, desestimulando qualquer raciocínio que não ensine os estudantes a se (de)formarem na arte de barganhar por notas, estágios e outras “oportunidades de crescimento profissional”. Como se sabe, a terminologia usada nos novos manuais de Empreendimento, Finanças e Marketing está repleta de alusões ao jargão militar do mundo pós-guerra: “cavar trincheiras”, “promover campanhas agressivas”, “nichar” produtos, “enfrentar a concorrência” etc.

Em nosso país, a panaceia “técnica-sem-ideologia” (aprimorada com os acordos MEC/USAID, na década de 1970) caminha de mãos atadas ao discurso que pretende justificar os cortes massivos nas já diminutas verbas destinadas à Educação e à Pesquisa. Entretanto, como ainda proliferam alunos e professores indóceis, vez ou outra o Estado aplica novos métodos repressivos, recordando aos “cidadãos de bem” que lecionar é um ato de vocação: embora desprezado como um profissional com formação especializada, o educador deve se sentir satisfeito, pois recebe pouco, mas ama o que faz.

2.

Desde a ditadura brasileira mais longa (1964-1985), conceitos amplos e vagos como “modernidade”, “liberdade”, “democracia” e “patriotismo” são sequestrados pelas vozes de comando para serem repercutidos, com sinal trocado, por locutores de rádio e telejornais, apresentadores de programas de auditório, correspondentes internacionais, repórteres exclusivos, colunistas especializados e editores de veículos de notícia, escancaradamente alinhados com os generais tutelados pela CIA, irmanados a industriais, banqueiros, pastores de televisão e outros charlatães.

Cristalizadas como palavras da disciplina e da ordem, essas “categorias” se incorporaram ao senso comum. Ser moderno, livre, democrata e patriota implicava combater, torturar, eliminar o simpatizante comunista, encarnado na figura do professor subversivo, do aluno militante, do cientista maluco, do sindicalista vadio, do intelectual que negava os valores da família etc.

Desde o golpe de 1964 – repercutido na Marcha da Família com Deus pela Liberdade (em uma série de eventos amplamente disseminados pela imprensa reacionária e entreguista) – raros foram os legisladores, prefeitos e governadores cujo programa não fosse excludente e alinhavado pelos interesses das classes dominantes.

Nesse quesito, o paulista pode se orgulhar. Epicentro do Integralismo e porta-voz do anticomunismo, desde a década de 1930, parte expressiva dos neo-bandeirantes continua a celebrar os atos de covardia e sadismo, em nome da “ordem”, do “direito de ir e vir” e das pautas controversas que só interessam a megaempresários, especuladores e rentistas.

A farta distribuição de cacetetes a alunos e professores que protestavam na Alesp no dia 21 de maio contra as escolas cívico-militares reedita episódios tenebrosos, mas recorrentes, protagonizados segundo a lógica da guerra na “Casa do Povo”. Essas tristes cenas não constituem um fato isolado ou natural; relembram que aproximadamente metade de nossos conterrâneos (muitos deles, colegas do mesmo ofício) persistem em depositar passaportes para o embate físico (e simbólico) nas urnas.

Embora suspeite do efetivo alcance destas linhas, não me furto a recomendar duas obras decisivas que ensinam a localizar as raízes do assanhamento por transformar a sala de aula em reduto de quartel, substituindo o avental pela farda. Refiro-me à Estado e miséria social no Brasil, de Evaldo Vieira (meu ex-professor, durante a Licenciatura), publicado em 1982; e O espírito militar, de Celso Castro, editado em 1990. Não é por outro motivo que eles assinam as epígrafes.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas. [https://amzn.to/4bMj39i]

Notas


[i] A Educação para além do capital. 2ª ed. 3ª reimp. Trad. Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 27). [https://amzn.to/3V9dv38]

[ii] A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Trad. Mariana Echalar, 2019, p. 18. [https://amzn.to/3ULkRbO]

[iii] A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo: Expressão Popular, p. 13. [https://amzn.to/3VbiPTA]

# Universidade e formação no contexto neoliberal Cláudio Almir Dalbosco Angelo Vitório Cenci Marcelo José Doro Educação & Sociedade (Scielo)

# A Universidade Operacional. Em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo. Marilena Chaui (A Terra é redonda)

# A aliança mercado-ciência. A passagem de atribuições do Estado para o Mercado, que consolidou a aliança deste com a Ciência. Ivan da Costa Marques (A Terra é redonda)

Tanto Campos Neto quanto Armínio Fraga fazem parte de um mundo ideológico anacrônico, viúvas de uma ortodoxia que a maioria dos países desenvolvidos abandonou. Lindbergh Farias (247)

Deus nos livre dessa gente!

(...) Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam. Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los (Mateus, 23)

Competência intelectual, espírito crítico, subjetividade livre e sensibilidade social, são esses os atributos de uma boa escola, não a disciplina alienante e conformista da ordem unida. Isso é coisa de quartel...

Escola não é quartel

# Cumprir ordens, obedecer de forma cega, vai na contramão das exigências da vida moderna. Cesar Callegari e Clara Cecchini.

Educação e repressão não combinam. As cenas de violência da Polícia Militar contra estudantes que protestavam durante a aprovação da lei instituindo o programa de escolas militarizadas no estado de São Paulo revelam um mau começo e um fim preocupante para essa iniciativa. Policiais espancando e prendendo jovens em pleno exercício do direito de manifestar sua opinião é algo intolerável em qualquer tempo ou lugar, muito menos no Legislativo – e jamais no ambiente educacional (continue a leitura)

Cabeças de papel

# Em expansão no País, as escolas cívico-militares são caras, ineficientes e parecem servir apenas para inflar a renda de oficiais da reserva. Fabíola Mendonça 

Na Constituição de 1988, não existe menção alguma sobre a atuação dos militares na política educacional brasileira. Essa ausência também se observa no Plano Nacional de Educação (Lei 13005/2014), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/1996) e no Estatuto dos Militares (Lei 6880/1980). Ainda assim, o Brasil tem 42 colégios militares, administrados diretamente pelo Exército, pela Marinha ou pela Aeronáutica, e quase mil escolas cívico-militares em funcionamento, modelo híbrido em ascensão no País e que tem gerado intensa celeuma e disputa ideológica (continue a leitura)

Brasil reage: soberania nacional e dignidade diplomática exigem rompimento de relações com Israel

Corpos carbonizados por toda parte: a maioria era de mulheres e crianças


Depoimento de Gaia Giletta, efermeira do Médicos sem Fronteiras, sobre os esforços de resgate: “É impossível dizer quem morreu no incêndio e quem morreu no bombardeio. Estamos tentando tratar os feridos, mas os suprimentos estão bloqueados no Egito: dentro de um mês os remédios acabarão”. A entrevista é de Fabio Tonacci, publicada por Repubblica, 28-05-2024 (leia aqui)

O que há de novo?

Benditas Leituras

No feriado prolongado, um programa com textos inteligentes: # O amor é a experiência da impossibilidade e é isso o que o torna resistente à razão capitalista # Qual é a ideologia do neoliberalismo? # A rebelião contra o Estado # O mundo com e sem a União Soviética # Pele negra, alucinações brancas # A ditadura expionou 300 mil brasileiros # A crítica ao identirarismo (acesse a página aqui)

Intermitências

Ronnie Lessa confessa ter matado Marielle por US$ 20 milhões

"Então, na verdade, eu não fui contratado para matar Marielle, como um assassino de aluguel. Eu fui chamado para um sociedade" (leia a matéria do G1)

Pensatas para o fim de semana

Eleições na PUC: vitória conservadora ameaça conquistas

# O indicado na consulta para o cargo de reitor - Vidal Serrano, do curso de Direito - fez campanha pobre em propostas e farta em apelos populistas e autoritários. O resultado vai exigir articulação permanente das forças democráticas da universidade (leia aqui o Puc Viva)

Muralha paulista: a distopia de Tarcísio

Governador quer impor gigantesco sistema de vigilância – e contrata corporação ligada ao bolsonarismo. Promete até prever crimes com reconhecimento facial e espionagem. É projeto-vitrine da gestão que bate recorde de letalidade policial. Mariana Braghini, Outras Palavras (expandir)

Nas últimas semanas, uma série de reportagens tem sido publicada acerca da proposta do governo do estado de São Paulo para o programa denominado Muralha Paulista, um projeto high-tech de segurança pública que promete reduzir os índices de criminalidade nas cidades paulistas. Em parceria com uma empresa militar estrangeira, a gestão Tarcísio tem articulado uma megaestrutura de espionagem em massa da população do estado, ignorando legislações sobre proteção de dados e direitos constitucionais. Além disso, está priorizando uma proposta de alto custo, enquanto faltam embasamentos sobre a eficácia e o custo-benefício dessas tecnologias para a segurança pública.

Um marco importante da gestão Tarcísio na segurança pública tem sido as taxas de letalidade policial, que vem estabelecendo novos recordes. Em apenas um ano, mortes causadas por policiais militares cresceram 138% no estado. Uma iniciativa que também é digna de atenção, com potencial de atentar contra direitos civis e que tem tudo para perdurar durante governos futuros, é o Muralha Paulista, que conta com um esquema de vigilância integrada, captação de dados, imagens e compartilhamento das informações. O programa é operado essencialmente por meio de centros de comando e controle herdados da estratégia do Exército para o esquema de segurança de grandes eventos internacionais que ocorreram no país, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol.

Para o Muralha Paulista, o governo vem somando esforços com uma empresa árabe de defesa e segurança, a Edge Group, representada no Brasil por Marcos Degaut, ex-secretário do Ministério da Defesa no governo de Jair Bolsonaro. Desde que chegou ao Brasil, a gigante de defesa já comprou duas empresas estratégicas brasileiras, a Siatt, fabricante de mísseis, e a Condor, fabricante de armamento não letal. Em seu amplo leque de atuação, a Edge também está associada a empresas que fornecem softwares de espionagem de celulares. Com um eufemismo corporativo para evitar conotações pejorativas aos serviços que fornece, é mais comum que se encontre termos como “equipamentos de monitoramento“ ou, para inglês ver, equipamentos de surveillance.

Estas estruturas, bem como sua aquisição e operação, são de alto custo. Com foco principal em tecnologias de reconhecimento facial, elas requerem câmeras de alta resolução espalhadas pelas cidades e softwares avançados de leitura automatizada de imagens. Para garantir a empreitada, a Edge e o governo apostam no projeto batizado de Bola de Cristal. É notável um apelo místico, que seduz governantes (e até mesmo populações) com a promessa de soluções mágicas para problemas sociais complexos. A ideia de Bola de Cristal é a ideia de que é possível prever crimes antes que eles ocorram, semelhante ao roteiro do filme Minority Report e que, na realidade, se manifesta como perfilamento racial potencializado à era do algoritmo.

A proposta da gestão Tarcísio, com o apoio da Edge, se apoia em um conjunto de palavras-chave como “melhor alocação de recursos”, “estruturação de dados” ou “integração de soluções”, uma retórica apelativa que cria um véu de um posicionamento técnico e objetivo de seu escopo, algo comum nas tecnopolíticas. O que falta ser evidenciado é o seu conteúdo, e como essa proposta é uma solução embasada e de longo prazo para a segurança pública.

Perguntas importantes a serem colocadas são: quais outras respostas estão sendo negligenciadas para dar lugar a um programa de alto custo e com falta de estudos que comprovem sua eficácia como política pública? O foco no esquema de mega vigilância da população se dá em detrimento de quais outras respostas que um estado pode dar para promover segurança pública?

Com uma operacionalização que exige altos investimentos, é de se perguntar quais outras escolhas o governo está deixando de considerar. Ainda mais quando se trata de um projeto controverso que envolve a vigilância de toda a população paulistana por uma variedade de dispositivos. Um sistema C4ISR, como aquele oferecido pela Edge em parceria com o governo estadual, vai além da simples captação de imagens. Ele rapidamente amplia sua coleta para incluir uma vasta gama de fluxos informacionais deixados pelas pessoas em seus ambientes privados e públicos. Hoje em dia, hábitos e localizações são informações facilmente obtidas, representando rastros que podem ser captados sem o consentimento ou conhecimento das pessoas. A partir desse universo de dados captados e processados que se determina o padrão de normalidade ou de ameaça que são infligidos aos cidadãos.

O que a Edge Group, está vendendo para o governo do estado é uma solução criada para contextos de conflito armado internacional (os sistemas C4ISR), de guerra, de ambientes altamente militarizados. O que está sendo feito é uma transposição dessa concepção para uma política de segurança pública. Guerra e segurança pública são campos diferentes, que têm raízes diferentes e não podem contar com as mesmas soluções. Quem pensa segurança pública como guerra não pensa em soluções de longo prazo, pensa em violação de direitos civis como emergência em tempos de exceção.

O governo do estado inicia cometendo ilegalidades já na apresentação desse sistema a grupos de interesse, ao apresentar seu aparato de espionagem em tempo real para população civil, burlando a legislação vigente sobre proteção de dados e outros direitos constitucionais.

Conforme evidenciado por notícias veiculadas, a proposta do governo do estado de SP é reunir imagens captadas pelas câmeras de condomínios, de comércios, empresas de transporte público, hospitais e centros de saúde, espaços de lazer e mais. Em última consequência, qualquer infraestrutura da cidade é uma infraestrutura de vigilância em potencial.

Aqui, não há preocupação com a necessidade de proteger direitos civis e são criadas as bases para espionagem em massa da população, com o auxílio de empresas privadas estrangeiras.

Os limites dessa atuação e da responsabilização não podem ser deixados nas mãos das próprias empresas, que muitas vezes regulam suas próprias atividades, como é comum entre empresas de inteligência artificial e outras Big Techs. Essa fiscalização também não pode ficar apenas a cargo das entidades policiais, que não estão imunes de corrupção. É essencial que esses limites sejam estabelecidos em um ambiente democrático.

Se há potencial para melhorar a segurança pública, mas também um potencial para espionagem em massa da população, os governos devem se envolver ativamente na definição desses limites e garantir o direito da sociedade à transparência. Ao mesmo tempo, as empresas devem ser responsabilizadas por suas atividades que possam violar os direitos civis. Afinal, quando falamos de tecnologias com potencial para melhorar a segurança e, ao mesmo tempo, para infringir direitos civis, é crucial que haja controle, transparência, debate público e accountability.

Ou é isso, ou continuamos avançando em direção a distopias em que um pequeno grupo de empresas e governantes exerce um poder autoritário sobre as populações através de sistemas de vigilância e dispositivos tecnológicos.

É possível superar a crise sistêmica atual?

A ciência e a técnica não conseguem mais deter a mudança climática, mas podem apenas advertir sua chegada e minor os efeitos danosos. Leonardo Boff, A Terra é redonda.

O modo capitalista de produção se caracteriza fundamentalmente por considerar a Terra não como algo vivo e sistêmico, mas como um baú cheio de recursos a serem explorados para benefício humano, em especial, para aqueles que detém o ter, o saber e o poder sobre tais recursos e sobre o curso da história (continue a leitura)

Retomo o tema “Reflexões sobre as causas da crise sistêmica”, que estão na raiz da atual crise. Interrompemos para refletir sobre a manifestação clara da mudança climática em curso, causando devastadores enchentes no Rio Grande do Sul. É um dos sinais que Gaia, a Mãe Terra, nos está dando de que ela não suporta mais o modo capitalista de habitar o planeta. Pairam, em suspenso, na atmosfera cerca de dois trilhões de toneladas de gazes de efeito estufa que permanecem por cerca cem anos. Como a Terra pode digerir toda essa imundície?

O modo capitalista de produção se caracteriza fundamentalmente por considerar a Terra não como algo vivo e sistêmico, mas como um baú cheio de recursos a serem explorados para benefício humano, em especial, para aqueles que detém o ter, o saber e o poder sobre tais recursos e sobre o curso da história. Esse sistema se impõe sem qualquer sentido de limite, de respeito e cuidado para com os ecossistemas. Encontra sua expressão política no neoliberalismo, dominante em quase todas as sociedades, mas não entre os povos originários que se sentem natureza e cuidam dela.

Além do eclipse da ética e da asfixia da espiritualidade no mundo atual, quero acrescentar ainda mais dados. O primeiro, nas palavras do Papa Francisco na Laudato Sì: “Ninguém pode ignorar o fato de nos últimos anos termos assistido a fenômenos meteorológicos extremos, períodos frequentes de calor anormal, secas severas”. O que ocorreu em maio no Sul do país, simultaneamente ocorreram enchentes fenomenais na Alemanha, na França, na Bélgica e no Afeganistão.

Outro ponto é a Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot): precisamos de 1,7 Terra para atender ao consumo, especialmente das classes opulentas do Norte Global. Pretendem tirar da Terra aquilo que ela não pode mais dar. Em resposta, por ser um Super Organismo vivo, reage com mais aquecimento, envio de uma gama de vírus e com os referidos eventos extremos.

Por fim, um grupo de cientistas, a pedido da ONU, definiram as nove fronteiras planetárias (planetary bounderies) que devem ser mantidas para garantir a estabilidade e a resiliência do planeta (mudança climática, integridade da biosfera, mudanças no uso do solo, disponibilidade de água doce, fluxos biogeoquímicos, representados pelos ciclos de nitrogênio e fósforo, acidificação dos oceanos, carga de aerossóis na atmosfera, esgotamento da camada de ozônio e o que foi chamado de “novas entidades” — partículas que não existiam na natureza  — e foram introduzidas pela ação humana — como microplásticos, transgênicos e rejeitos nucleares). Verificou-se que seis das novas fronteiras foram ultrapassadas. Por serem sistemicamente articuladas, pode dar-se o efeito dominó: todas caiam. Então a civilização colapsa.

O certo é o que tem atestado muitos cientistas: a ciência e a técnica não conseguem mais deter a mudança climática, mas podem apenas advertir sua chegada e minorar os efeitos danosos. Mesmo assim cabe a pergunta: temos chance de sair da crise sistêmica?

Depende de nós, se aceitamos mudar ou prosseguir no mesmo caminho. Como bem notou Edgar Morin: “A história várias vezes mostrou que o surgimento do inesperado e o aparecimento do improvável são plausíveis e podem mudar o rumo dos acontecimentos”. O ser humano pode se conscientizar e traçar outro rumo. Pelo fato de ser um projeto infinito e habitado pelo princípio esperança, estão dentro dele virtualidades que, desentranhadas, poderão instaurar uma saída salvadora. Mas antes devemos enfaticamente dizer: temos que inviabilizar o projeto capitalista, seja pela rebelião das vítimas ou pela natureza, pois ele é suicida: na sua lógica de acumulação infinita dentro de um planeta finito, pode continuar na sua insânia até fazer da Terra um local inabitável. Se ele começou um dia, pode também desaparecer um dia. Nada é perpétuo.

As grandes narrativas do passado não nos vão tirar da crise. Temos que auscultar a nossa própria natureza. Nela estão os princípios e valores que, ativados, mesmo sob grandes dificuldades, nos poderão salvar.

Em primeiro lugar, temos que definir o ponto de partida. É o território, o biorregionalismo. É na região, assim como a natureza a desenhou que podemos construir sociedades sustentáveis e mais igualitárias. Elenquemos os valores que estão em nós.

Como os bioantropólogos mostraram o amor pertence ao DNA humano. Amar significa estabelecer uma relação de comunhão, de reciprocidade, de entrega desinteressada e de sacrifício de si em função do outro. Amar a Terra e a natureza implica criar um laço afetivo com elas: sentir-se unidos a elas. De mais a mais sabemos que todos os seres vivos possuem o mesmo código genético de base (vinte aminoácidos e quatro bases nitrogenadas).

Somos irmãos e irmãs de fato, entre nós e com todos os demais seres. Não basta sabê-lo, mas senti-lo e vivenciar o laço de comunhão. Além disso, o estudo da evolução do ser humano (ele tem 7-8 milhões de anos e como sapiens/ demens uns 200 mil anos) revelou que foi a solidariedade na busca e no consumo dos alimentos, juntos criando a comensalidade, que permitiu o salto da animalidade à humanidade.

Somos seres naturalmente solidários, como se tem mostrado nas milhões de ajudas aos desabrigados e afetados pelas enchentes no Sul do país. Somos também seres de compaixão: podemos nos colocar no lugar do outro, chorar com ele, partilhar suas angústias e nunca deixá-lo só. Ainda somos seres de cultura, da criação do belo, nas artes, na música, na pintura, na arquitetura.

Podemos fazer aquilo que a natureza por si jamais faria, como uma música de Villalobos ou uma pintura de Portinari. Como disse Dostoievski: “será a beleza que salvará o mundo”. Não a beleza como mera estética, mas a beleza como atitude de estar junto a um moribundo, segurando-lhe a mão e dizendo-lhe palavras de consolação: “Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração”.

Somos, desde a mais alta ancestralidade, quando emergiu o cérebro límbico há 200 milhões de anos, seres de afeto e de sensibilidade. No coração sensível reside o enternecimento, a ética e o mundo das excelências. Já o escrevi no artigo anterior: somos, no mais profundo de nossa humanidade, seres espirituais. Somos capazes de identificar aquela Energia vigorosa e amorosa que se esconde dentro de cada criatura e em nosso interior (entusiasmo) e a faz continuamente existir e co-evoluir.

Como espirituais vivemos o amor incondicional, o cuidado por tudo o que existe e vive e alimentamos a esperança de uma vida que vai além desta vida. Acompanha-nos também sombras que podem reverter o amor em indiferença e a solidariedade em insensibilidade. Mas dispomos de uma força interior, não de negá-las mas de mantê-las sob o controle e fazê-las uma energia para o bem.

Uma biocivilização, fundada sobre tais valores e princípios, pode abrir uma senda inicial, capaz de transformar-se num largo caminho, assinalar-nos marcos na caminhada e apontar-nos uma luz no fim do túnel. Tudo isso poderá ser conquistado com muito suor e luta contra aquilo que um dia fomos (inimigos da Terra), em favor de uma nova forma de habitar amigavelmente este pequeno e único planeta que temos, nossa Casa Comum, a generosa Mãe Terra.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de A opção Terra (Record). [https://amzn.to/3WroJkR]

O capitalismo senil e os CEOs popstars

Para as corporações, a regra já não é produzir, mas capturar. Brilhar na mídia, excitar investidores e vender ações sobrepõe-se a realizar. O CEO tornou-se um marqueteiro – pago a peso de ouro e incensado como herói em biografias. Michael Eby, Outras Palavras (expandir)

Uma das muitas contradições presentes no campo ideológico das Big Techs é a que opõe a fé na descentralização e a sedução dessas corporações pela “liderança” empresarial. Identificar as empresas pelos apelidos dos seus executivos-chefes, ou CEOs – Altman, no caso da OpenAI; Zuckerberg, no da Meta; Ellison, no da Oracle – tornou-se jargão. Na imprensa especializada prevalece a sensação de que esses nomes servem mais como sinônimos do que como metonímias, como se o indivíduo que dirige a corporação fosse também o eixo sobre o qual gira seu sucesso ou fracasso. As aquisições malsucedidas, as violações de segurança e os problemas de monetização do Yahoo ao longo da década de 2010 tornaram-se indelevelmente associados à sua CEO, Marissa Mayer. O retorno triunfante da Apple, praticamente falida no final da década de 1990, foi atribuído ao lendário golpe dado por Steve Jobs em seu conselho de administração.

Os CEO nem sempre ocuparam um lugar tão privilegiado na cultura empresarial global. Na opinião de Rakesh Khurana, professor da Harvard Business School, os líderes empresariais já foram tão anônimos para o público “como o eram suas secretárias, motoristas e engraxates”. No seu trabalho de 2002, Searching for a Corporate Saviour: The Irrational Quest for Charismatic CEOs [“Procurando um Salvador Corporativo: a busca irracional por CEOs carismáticos”, em tradução preliminar], Khurana descreve a mudança do papel prático e simbólico destas figuras desde o final do século XIX. Os primeiros titãs da indústria – os Carnegies e os Rockefellers, os Henry Fords e Charles Eastmans, e outros grandes líderes empresariais – adquiriram notoriedade pública pela sua construção de impérios, inovações técnicas e de gestão, esforços filantrópicos e seu ativismo antioperário. Eles personificavam um tipo distintamente burguês de autoridade carismática weberiana, sob a qual a acumulação de riquezas era vista como uma recompensa divinamente ordenada pela sua excepcional ética de trabalho. Em meados do século XX, contudo, esta imagem foi transformada à medida que o desenvolvimento de rotinas, procedimentos, leis e normas corporativas conduziu a uma forma reconhecidamente moderna de autoridade legal ou racional.

Naquele momento, o magnata reencarnou como um administrador competente. Embora Khurana atribua isto à ascensão de tiranos como Hitler e Mussolini, que explodiram o “mito do self-made man”, uma explicação mais completa poderia estabelecer uma ligação entre o CEO de meados do século XX e os princípios formais de gestão do taylorismo. O apelo à racionalidade e à eficiência despersonalizou a subjugação do trabalho pelo capital. A exploração já não podia ser personificada pelo barão da empresa, uma vez que as condições existentes no local de trabalho eram o resultado de um sistema de análise, cálculo e planejamento eticamente neutro e semelhante à norma legal. Embora os trabalhadores organizados continuassem a rebelar-se contra o “chefe-espantalho” da fábrica fordista, durante a década de 1950 a escala crescente das operações empresariais, bem como a substituição dos empresários e dos seus herdeiros pelos acionistas e, posteriormente, pelos conselhos de administração e equipes de gestão, ajudou a inaugurar um período no qual o CEO delegou grande parte das operações diárias visíveis da empresa.

Na década de 1980, as condições estavam propícias para que outra transformação ocorresse. Os efeitos do desempenho de cinco anos de alta da bolsa de Nova York, seguidos por uma série muito mais longa de aumento dos preços das ações na década seguinte, refletiram-se na sorte dos fundos mútuos. Depois que o Congresso dos EUA aprovou a Lei da Receita de 1978, que legalizou e popularizou os planos de aposentadoria privados, cuja contribuição beneficia-se de generosas isenções fiscais – os famosos planos 401(k) – o dinheiro fluiu para eles, o que significou que o capital de investidores não profissionais ou “comuns” começou a ser canalizado para uma gama diversificada de ações de inúmeras empresas. Adivieram duas consequências importantes: uma ampla demanda por estas ações e um envolvimento emocional generalizado com o desempenho geral da bolsa. A mídia dos EUA continua a dedicar uma quantidade esmagadora de tempo à evolução dos preços das ações; Donald Trump frequentemente parece vincular o sucesso de sua presidência ao desempenho do S&P 500 [um dos índices de Wall Street], enquanto os fundos que acompanham o desempenho desse índice cresceram em popularidade nas últimas décadas entre a comunidade internacional de investimentos.

Isso permitiu a rápida expansão da imprensa de negócios, com a fundação de veículos como CNBC, MSNBC e Bloomberg News durante as décadas de 1980 e 1990 e a proliferação de inúmeras publicações financeiras especializadas, bem como o surgimento do cobiçado novo título de “analista de ações”. O jornalismo econômico concentrava-se no desempenho de curto prazo das empresas, para as quais o preço das ações era um barômetro claro e prontamente disponível. É claro que, como ressalta Khurana, essa cobertura sempre foi “tingida com o viés individualista da cultura americana”, concentrando-se em personalidades individuais em vez de estratégias complexas. O principal deles era o CEO, a personificação mais visível do destino de uma empresa.

Ao mesmo tempo, os deveres do CEO começaram a mudar para aparições na mídia, reuniões de acionistas, conferências do setor, apresentações de lucros, briefings individuais e outras responsabilidades, que passaram a ser chamadas de “relações com investidores”. O líder empresarial ideal era aquele que chamava a atenção e inspirava a confiança de um número muito maior de partes envolvidas ou conectadas de uma forma ou de outra com a empresa. Aqueles que conseguiam cumprir essas tarefas eram remunerados com uma renda estratosférica por seu trabalho executivo. Khurana descreve o surgimento dos “CEOs terceirizados” e o processo pelo qual a busca por um novo CEO deixou de ser uma formalidade sem graça, ou seja, simplesmente a constatação da promoção iminente de um funcionário antigo que havia subido na escada corporativa, para se tornar um espetáculo de mídia transmitido com grande alarde.

Esse período também viu o renascimento da mitologia do fundador-empreendedor, que, não por coincidência, coincidiu com o boom da tecnologia, bem como um aumento significativo na popularidade dos modelos de financiamento de capital de risco e no número de empresas que buscavam acesso ao capital. Nesse ambiente, os magnatas da tecnologia precisavam proclamar ambições de mudança de paradigma para seu trabalho e buscavam formas criativas de narrá-las. Isso se refletiu no gênero literário peculiar que surgiu na época e que até hoje permanece nas listas de best-sellers: a biografia ou autobiografia empresarial evangelística.

Um elemento básico desse gênero, como aponta Khurana, é mostrar como o sujeito alcançou o sucesso apesar dos infortúnios dos primeiros anos de sua vida: a gagueira no caso de Jack Welch da Chrysler, a dislexia de John Chambers da Cisco. Hagiografias mais recentes seguiram essa tendência: o estudo de Walter Isaacson sobre Steve Jobs se concentra em sua adoção na infância e no diagnóstico de câncer de pâncreas, enquanto o retrato de Elon Musk feito por Ashlee Vance explica os efeitos do bullying e da ruptura do casamento neste “Tony Stark da vida real”.

O culto ao “inovador” pode ser mantido na década de 2020? Considere a apresentação de Steve Jobs na MacWorld 2007, uma cerimônia pomposa na qual a Apple anuncia seus próximos produtos. Em seu discurso principal, Jobs listou os três novos dispositivos a serem lançados naquele ano – “um iPod com controles de toque, um telefone e um dispositivo inovador de comunicação pela Internet” – antes de levantar o véu para revelar que essas eram, na verdade, as funções de um único dispositivo híbrido, o iPhone. Esse se tornou o modelo predominante de inovação tecnológica: o que Jason E. Smith chama de “canivete suíço do século XXI”, por meio do qual as capacidades e os recursos existentes são misturados, assimilados, adaptados e incorporados em ferramentas compostas multifuncionais. Os aparelhos de consumo das últimas décadas são quimeras engenhosas que podem recombinar e aprimorar superficialmente funções tecnológicas conhecidas. Na visão de Smith, isso indica a ausência sistêmica do tipo de inovação revolucionária que outrora transformou o cotidiano da população em geral – automóveis, ferrovias, eletrificação, telecomunicações, fotografia e cinematografia – e que trouxe ganhos significativos de produtividade para a economia capitalista como um todo.

Hoje, a reprodução dessa inovação por recombinação está ocorrendo em nível corporativo. A morte do laboratório de pesquisa interno, outrora sinônimo de instituições como o Bell Labs ou o Projeto Manhattan, sinaliza uma estratégia organizacional que Nancy Ettlinger chama de “paradigma da abertura”, por meio da qual as empresas reduzem ou eliminam o investimento interno em Pesquisa & Desenvolvimento, optando, em vez disso, por uma prática coordenada de inovação tericeirizada, caracterizada pelo fornecimento externo de pesquisa, tecnologia e habilidades. Assim como o iPhone, a empresa de tecnologia do século XXI torna-se uma ferramenta composta, uma coleção heterogênea de patentes e licenças proprietárias, de vendedores e fornecedores contratados, de divisões e equipes autônomas, de projetos e estruturas de código aberto, de integrações de terceiros e provedores de nuvem, de aplicativos e plataformas de navegador nativos e competências educacionais transferíveis reunidas em um pool corporativo transnacional. Em meio a esse fluxo, o CEO deve projetar uma imagem de unidade e integridade. Entretanto, quando o valor de mercado de uma empresa cai, o CEO é revelado como apenas mais uma unidade modular na panóplia de recursos.

O que há de novo?

atualizações

Escolas militares: a pedagogia do opressor
Vamos chamar isso pelo nome: são centros militares de embrutecimento de jovens. Essa excrescência (mais uma) do Tarcísio não tem nada nem de cívico nem de escolas. Aliás, na sessão de ontem (22/5) da Assembleia Legislativa a moçada teve seu primeiro contato com o que serão as "aulas" nesses espaços de construção da violência totalitária.
Plano de militarização das escolas paulistas é mais um episódio de atraso na formação educacional da juventude. Djamila Ribeiro (Folha)

Moro, escolas miitares, Palestina, Rio Grande do Sul, falta Estado na vida brasileira, tragédia

 gaúcha mostra racismo ambiental

Tsunami pró chapa 2 corre solto na PUC. É hora da virada!!!

Eleições na PUC: nosso tempo é agora, nosso tempo é o de sempre

No centro da foto ao lado, de blusa azul, Márcio (candidato a reitor); do seu lado esquerdo, Patrícia (candidata à vice-reitoria). Gente de espírito jovem, liberal de raiz, sem estresse autoritário e prepotente... É o que a PUC mais precisa, para o presente e para o futuro 🤞🏽🤞🏽🤞🏽

O que há de novo?

Mudanças climáticas atravessam a literatura e saem do plano da fábula para entrar no cotidiano: cenário de horror, como testemunham as cenas de Porto Alegre

Êxodo climático: a ficção se tornou realidade

Estamos entrando na mais dura das realidades, onde um contingente cada vez maior de pessoas tem sido compelido a imigrar de sua terra natal. O mundo contabiliza mais de 114 milhões de refugiados, premidos entre guerras, fome, perseguição religiosa, étnica e eventos extremos cada vez mais frequentes.  

# Leia no Le Monde

Caminhando sobre gelo fino

Leda Paulani analisa o novo arcabouço fiscal do Brasil e seus antecedentes, Boitempo

No dia seguinte ao anúncio pelo governo da proposta do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), escrevi numa rede social que a equipe do Ministério da Fazenda dera nó em pingo d’água, pois conseguira conciliar um desenho de política fiscal não totalmente avesso ao mercado (financeiro) com o necessário espaço para o cumprimento das promessas de campanha de Lula, principalmente aquelas associadas às políticas sociais. Ressalvei, no entanto, que a brilhante proposta fora desenhada dentro de uma camisa de força que não precisaríamos estar vestindo. (continue a leitura)

Poucos dias antes, em seminário sobre desenvolvimento promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a conhecida economista indiana Jayati Ghosh disse que o Brasil era um país masoquista, visto que, sem dívida líquida externa, com dívida interna baixa e sem ter exigências do FMI, praticava uma taxa de juros elevadíssima e se autoimpunha a tarefa de gerar superávits primários em meio a tantas demandas sociais e à necessidade de elevar o investimento público. O inusitado da situação, que, em sua perplexidade, a economista, sem encontrar outra explicação plausível, creditou a um suposto traço masoquista do caráter nacional, deriva justamente de, algumas décadas atrás, termos sido obrigados a vestir uma roupa apertada e de a continuarmos vestindo, apesar da chance que tivemos de rasgá-la e que não soubemos aproveitar. 

É um pouco da história de como chegamos a essa situação que pretendemos trazer aqui. Essa história teve um capítulo decisivo a partir do impeachment da presidenta Dilma e do período Temer-Bolsonaro que se seguiu. Tal capítulo passa, dentre outros elementos, pelas condições muito peculiares que permitiram a derrota de Bolsonaro, mas não do bolsonarismo (frente muito ampla, concessões ao mercado financeiro, ao fisiologismo parlamentar etc.), pela necessidade de se negociar com um Congresso ultraconservador e que exibe poder político crescente (avultado pelo próprio processo de impeachment), pela força exponencial que foi ganhando em nossa sociedade o projeto econômico liberal e o domínio da riqueza financeira, e pela premência de se revogar a bizarrice de uma regra fiscal abrigada no seio mesmo da Constituição Federal (CF).

Tão logo foi anunciado, o NAF recebeu uma saraivada de críticas. Dos liberais, grande mídia incluída, por supostamente confiar demais na recuperação das receitas do Estado e não se preocupar devidamente em “cortar gastos”. Da esquerda, por ter sido visto como um novo teto, mais frágil talvez, mas ainda assim um teto, restritivo à ampliação dos gastos públicos, sobretudo dos investimentos públicos. Independentemente de qual seja a análise que possamos fazer do NAF enquanto instrumento de política econômica per se, é só no contexto anteriormente sumariado, e com a posição de seus antecedentes, que faz sentido discuti-lo. Trata-se, portanto, de resgatar a história da austeridade no Brasil que é, simultaneamente, a história da dominância financeira, a qual vem acompanhada pelo enfraquecimento crônico do poder Executivo, em conjunto com uma sorte de rarefação da democracia que está em pleno curso, e à qual mais à frente retornaremos. 

Vestindo uma camisa de força

Em 15 de dezembro de 2016, apenas quatro meses depois de consumado o golpe que retirou Dilma Rousseff do poder sem crime de responsabilidade,1 foi promulgada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional 95 (EC 95). Seu objetivo era alterar as disposições transitórias da Constituição de 1988 para instituir um novo regime fiscal, popularmente conhecido como “teto de gastos”. Formatada de modo rígido, a emenda congelava, em termos reais, pelos 20 anos seguintes, as despesas correntes e os investimentos públicos federais. 

A deposição da ex-presidenta como condição sine qua non para a aprovação da draconiana EC 95 foi indiretamente admitida pelo próprio Michel Temer, ex-vice-presidente que assumira o poder maior com o impedimento de Dilma. Apesar da narrativa oficial de que a destituição se devera a “pedaladas fiscais” (o suposto crime de responsabilidade), em reunião no Conselho das Américas (Council of the Americas) em Nova York no final de setembro de 2016, Temer reconheceu, com todas as letras, que Dilma fora afastada por não ter concordado com a aplicação ao país do programa “Ponte para o Futuro”, um libelo ultraliberal elaborado pelo PMDB,2 partido político de Temer. 

Supostamente destinado a “preservar a economia brasileira e tornar viável seu desenvolvimento”,3 o documento arrolava uma série de iniciativas que, em conjunto, conformavam um programa liberal puro-sangue, ou seja, sem os arroubos sociais dos programas do Partido dos Trabalhadores (PT). Dentre elas encontravam-se todas as mudanças necessárias à instituição do teto de gastos (ainda que tal expediente não aparecesse ali com esse nome). A seu lado alinhavam-se, entre outros elementos: o fim das vinculações constitucionais de educação e saúde, a livre negociação trabalhista, a terceirização total, o endurecimento de regras e capitalização da previdência, a privatização sem peias e a liberdade comercial plena (fazendo tábula rasa de Mercosul, Brics, etc.).

A aprovação do teto de gastos ao final de 2016, como já adiantado, foi apenas um capítulo de uma história que começara muito tempo antes. O NAF, aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Lula em 30 de agosto de 2023, que veio em sua substituição, é também parte inequívoca dessa história. Um pouco mais folgada que a camisa de força anterior, essa roupa nova continua, contudo, muito apertada. Como chegamos a isso? 

As circunstâncias que nos obrigaram a começar a usar esse traje desconfortável remetem aos anos 1980, quando o Brasil se tornou insolvente em dólar por conta dos seguidos choques do petróleo e, sobretudo, do golpe financeiro que os Estados Unidos aplicaram ao mundo, em 1979, com a quadruplicação de suas taxas de juros. O elevado nível do endividamento externo quando o país foi atingido pelos juros extorsivos da “política do dólar forte”4 decorreu da necessidade que tivera o governo militar de fazer frente ao desequilíbrio externo provocado pelo primeiro choque do petróleo, de 1973, sem prejudicar em demasia o crescimento, que vinha embalado no ritmo do “milagre”.

Ao mesmo tempo, o país prestava com isso um enorme serviço a uma riqueza financeira internacional crescente e ávida por aplicações, no contexto de um cenário de crise mundial. Como os contratos tinham sido estipulados, em sua maioria, a taxas flutuantes, o aumento superlativo dos juros quebrou o país (assim como vários outros países da América Latina). A partir de então, o Brasil enfrentou uma década e meia de altíssima inflação e teve que se submeter aos ditames do FMI. Depois de atender algumas exigências dos credores internacionais (securitizar a dívida externa, abrir o mercado de títulos privados e públicos e dar continuidade à abertura financeira da economia, com a retirada gradativa dos controles ao livre fluxo de capitais), o país conseguiu, nos primeiros anos da década de 1990, solucionar a questão da dívida externa, pendente desde a moratória de 1987, destravando assim o mercado internacional de crédito. 

O retorno dos capitais ao Brasil possibilitou o sucesso do Plano Real que, depois de muitos outros planos frustrados ao longo de 15 anos de pressão inflacionária ininterrupta, foi bem-sucedido em alcançar a estabilidade monetária de nossa economia.5 Lançado em 1994 e elaborado pela equipe econômica de Fernando Henrique Cardoso (FHC), então ministro da Fazenda, o Plano Real, no entanto, não foi apenas um plano de estabilização. Ele trouxe consigo também a intenção, explícita no governo de FHC (1995-2002), de abraçar os dogmas liberais (tal como então arrolados pelo chamado Consenso de Washington) e transformar o país numa potência financeira emergente. 

Assim, ancoradas na estabilização monetária, outras providências foram tomadas, com FHC já presidente da República, visando transformar o país num porto seguro para a valorização da riqueza financeira internacional, cujo volume aumentava velozmente. Vieram desse modo a concessão de isenções tributárias a ganhos financeiros de não residentes, alterações legais para dar mais garantias aos direitos dos credores do Estado, uma reforma previdenciária para cortar gastos públicos e abrir o mercado previdenciário ao capital privado, uma política monetária de elevadíssimos juros reais6 e, como não poderia deixar de ser, a busca incansável por polpudos superávits primários.7 Começava aí, digamos assim, oficialmente, a história do país dentro dessa roupa apertada demais.

No entanto, mostrou-se quimérica a crença de que o crescimento doméstico poderia se apoiar integralmente na poupança externa, livrando definitivamente o país das recorrentes crises externas que marcavam sua história. Em janeiro de 1999, como desdobramento da crise que atingira primeiro os países asiáticos (Tailândia, Indonésia, Coreia do Sul e Taiwan) e depois a economia russa, o Brasil enfrentou forte crise cambial, enorme perda de divisas, e recorreu mais uma vez ao FMI. 

Em consequência, não só o país viveu um período de crescimento medíocre, quando não recessivo, como houve uma mudança substantiva na política econômica. Em vez do câmbio fixo, um dos responsáveis pela crise, dado o populismo cambial operado por FHC no ano anterior visando sua reeleição, foi adotado o regime de câmbio flutuante, e, junto com ele, o sistema de metas de inflação. Foi só aí, na realidade, que o traje do país como pretendente a potência financeira emergente foi concluído, pois o controle da política monetária deixou de ser feito via taxa câmbio, para ser feito através do regime de metas. 

Dentre os preceitos caros ao chamado Consenso de Washington, que balizava nossa política macroeconômica pós-Plano Real, estava a adoção de um regime cambial de taxa única e definida pelo mercado, ou seja, um regime de câmbio flutuante. Contudo, o câmbio fixo era o fiador do sucesso da nova moeda, que foi mantida sobrevalorizada e se constituiu como trunfo político maior de FHC. Somente depois de já reeleito,8 movido pela grande crise de dezembro de 1998/janeiro de 1999, FHC alterou a política cambial. Os dois novos elementos (câmbio flutuante e regime de metas de inflação) combinaram-se com a imposição de resultados primários sempre positivos para constituir o famoso tripé macroeconômico, o qual conforma até hoje o ambiente em que as decisões econômicas são tomadas no Brasil. 

Assim, se a adesão incondicional às recomendações do Consenso de Washington foi uma espécie de batismo da economia brasileira nas águas pesadas da política fiscal contracionista, a substituição da antiga “âncora cambial” pela “âncora monetária” (regime de metas e superávits primários) submergiu de vez o país nessa atmosfera turva, tornando o novo traje ainda mais apertado. Tão apertado que, mesmo a ascensão ao poder federal de um presidente e um partido forjados na luta cotidiana pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores não mudou quase nada nessa história. 

No início da primeira gestão de Lula, os parâmetros macroeconômicos vigentes foram inclusive aprofundados: elevação ainda maior da taxa de juros, chegando aos 26,5% ao ano em março de 2003, enorme arrocho monetário, com corte de cerca de 10% nos meios de pagamento da economia e, sobretudo, adoção de uma meta de superávit primário maior do que a exigida pelo próprio FMI. No último acordo, assinado em junho de 2002, a meta de superávit primário acordada fora de 3,75% do PIB e Lula, tendo que beijar a cruz com mais fervor para que acreditassem nele,9 elevou voluntariamente a meta para 4,25%. 

Ao longo do tempo, os governos do PT foram se diferenciando de seus antecessores porque, combinadas com a continuidade dessa agenda liberal10 e com os superávits primários, que continuaram a ser produzidos, foram sendo adotadas políticas sociais de alto impacto, capazes de reduzir a desigualdade e praticamente extinguir a miséria absoluta, além de permitir, entre outras coisas, o acesso ao ensino superior de milhões de jovens oriundos das famílias de mais baixa renda (principalmente negros). O ciclo de commodities dos anos 2000, que beneficiou enormemente o Brasil, foi o elemento decisivo na possibilidade então existente de conciliação entre a roupa apertada que o país continuava a vestir e as políticas públicas que se implementavam. 

Mas o boom de commodities produziu ainda um outro resultado alvissareiro: a elevação substantiva das reservas em divisas do país, que cresceram mais de cinco vezes, saltando de US$ 35,9 bilhões em dezembro de 2001 para US$ 180,3 bilhões em dezembro de 2007. Nessa nova situação, não só o país resolvera definitivamente os problemas com seus credores externos, como recuperara preciosos graus de liberdade na condução da política econômica, não dependendo mais do FMI e podendo deitar fora de vez aquela vestimenta tão incômoda.  Mas, para tanto, era mister a existência de um projeto para o país capaz de redesenhar os parâmetros de sua inserção na divisão internacional do trabalho, de elevar a produtividade e de gerar empregos de melhor qualidade. 

O projeto, porém, não existia. O governo de Lula, reeleito em 2006, buscava extinguir a miséria e reduzir a desigualdade, mas sem mexer nos marcos legais, institucionais e socioeconômicos que davam protagonismo à riqueza e aos interesses financeiros. Ademais, quase duas décadas de juros reais elevadíssimos (quase sempre os maiores do mundo) e câmbio sobrevalorizado — medidas afinadas com o projeto de transformar o Brasil numa potência financeira — desindustrializaram precocemente o país, provocando um retrocesso em nossa matriz produtiva, que passara a se apoiar cada vez mais em atividades de baixo valor agregado (agropecuárias e extrativas). 

Mesmo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado por Lula nos primeiros dias de sua segunda gestão (janeiro de 2007), foi, nesse sentido, iniciativa tímida, mero reconhecimento do poderoso efeito multiplicador de produto, renda e emprego acionado por investimentos públicos. O processo de resgate da autonomia do Estado brasileiro na condução econômica poderia ter evoluído e se consolidado desde então? Sem dúvida, mas já estourava no plano internacional a grande crise financeira, embaralhando mais uma vez as cartas e, ao fim e ao cabo, transformando nossa roupa fiscal apertada em verdadeira camisa de força.  

De início driblada pelos expedientes de subsídios aos setores de maior efeito multiplicador (automóveis e eletrodomésticos) e por uma agressiva expansão do crédito ao consumidor, a crise veio a se agravar no início da primeira gestão da presidenta Dilma. O período coincidiu com a agudização da crise financeira nos países da periferia da Europa, o que teve consequências graves para todo o comércio mundial, afetando negativamente o componente externo de nossa demanda agregada. Para enfrentar a nova conjuntura e, ao mesmo tempo, tentar reverter o processo de desindustrialização, o governo lançou o plano “Brasil Maior”, visando fortalecer as exportações e elevar a competitividade da indústria nacional também no mercado interno.  

Além do fortalecimento do crédito subsidiado do BNDES para investimentos e para empresas exportadoras, previa-se reintegração de tributos em contrapartida a vendas externas, isenção de impostos na aquisição de máquinas e equipamentos, e desoneração da folha de pagamentos para os setores que fossem grandes empregadores de mão de obra. Políticas de conteúdo local para determinados setores, como veículos, máquinas e medicamentos também foram acionadas. Ao lado desses expedientes, tiveram início, em conjunto com medidas de controle do fluxo internacional de capitais, um processo de relaxamento monetário visando reverter o movimento de apreciação do real e uma política de intervenção nos preços administrados (combustíveis, energia) para conter os impactos inflacionários da desvalorização do câmbio. Por fim, para enfrentar o ruidoso discurso “anti-gastança” que alegava ser necessário compensar o gasto tributário decorrente das isenções e desonerações do plano “Brasil Maior”, efetivou-se um aperto substantivo na política fiscal, afetando sobretudo os investimentos públicos, que vinham acelerados desde o lançamento do PAC. A taxa média real de crescimento dos investimentos do governo central cai de 26% ao ano no período 2006-2010 para 1,8% na primeira gestão de Dilma.11 

Mas a aposta não vingou. A ausência de resposta do investimento privado (a folga fiscal concedida às empresas transformara-se em margens de lucro majoradas), o corte efetuado nos investimentos públicos para acomodar as isenções e desonerações, o esgotamento dos impulsos derivados do consumo e a continuidade da crise externa, com enorme redução do preço das commodities exportadas pelo país, começaram a produzir resultados desastrosos do ponto de vista do crescimento, culminando com a taxa de 0,52% em 2014, último ano da primeira gestão Dilma. Além disso, o advento das taper tantrum nos EUA a partir de 2013, com especulações em torno do estancamento da política de quantitative easing, trouxe ainda mais incerteza, o que levou a uma piora das contas externas. Isso fez o país, pela primeira vez desde 2002, perder reservas (foram menos US$ 14,4 bilhões), interrompendo-se assim um período de altas impressionantes, que levara os estoques de divisas dos US$ 35,9 bilhões de 2001 para mais de US$ 370 bilhões em 2012.  

O agravamento do cenário econômico levou à conturbação do cenário político, fazendo com que o país, depois das manifestações de maio/junho de 2013, se encaminhasse dividido às eleições presidenciais de 2014. Dois modelos estavam em disputa: de um lado, a tentativa de, mesmo em meio à crise, dar prosseguimento à estratégia conciliatória; de outro, a busca por resgatar in totum a agenda liberal e romper com esse arranjo. A vitória apertada de Dilma e o terrorismo econômico praticado pela grande mídia corporativa levaram a presidenta a uma equivocada tentativa de agradar ao mercado, trazendo, em 2015, para o comando da política econômica, um prócer do setor financeiro: Joaquim Levy. 

A guinada ortodoxa de Levy, tendo como meta única e exclusiva melhorar o resultado primário (um corte brutal no PAC – R$ 58 bilhões, correspondentes a 1,1% do PIB –, um reajuste brusco dos preços administrados, elevação contínua da taxa de juros básica), levou a um imediato agravamento do cenário. A retomada da ortodoxia combinou-se, para um desfecho ainda pior, com os efeitos deletérios da “Operação Lava Jato” sobre setores chave para a formação bruta de capital fixo, como petróleo e construção civil, e com as pautas-bomba12 que um Congresso cada vez mais poderoso lançava sobre o Executivo, elevando a instabilidade político-econômica do país. Os resultados de 2015 foram péssimos: o PIB caiu 3,6%, a inflação ultrapassou a barreira dos 10% anuais e o resultado primário ficou negativo em 2,1% do PIB – muito pior dos que os 0,56% negativos de 2014 e que tanto barulho havia causado na mídia.  

O ambiente economicamente sombrio transformou a inquietação política, mantida há dois anos em fogo brando, num verdadeiro fogaréu, levando às cinzas não só o mandato da presidenta, mas a fugaz possibilidade de recuperarmos nossa autonomia e nos livrarmos finalmente da aflitiva indumentária que fôramos obrigados a trajar por um quarto de século. Veio, junto com o golpe de 2016, o mandato tampão de Michel Temer e o famigerado teto de gastos, o capítulo mais característico da história brasileira nas águas venenosas da austeridade e do domínio dos interesses financeiros, com o qual abrimos estas reflexões. Terminado o mandato de Temer e com Lula preso, veio Jair Bolsonaro, a nuvem fascista e o ultraliberalismo de Paulo Guedes, um defensor de primeira hora do garrote fiscal.

Ressalte-se que a adoção do teto de gastos não veio ocupar um lugar vazio, como se não existisse até então nenhum mecanismo doméstico capaz de exercer qualquer tipo de controle sobre as contas públicas, para além dos mecanismos de pressão do FMI nos períodos em que a economia andava submetida a seu comando. Ao contrário, a CF já previa, por exemplo, a chamada “regra de ouro”, que proíbe ao Executivo contrair dívidas para financiar despesas correntes, incorrendo o ente público em crime de responsabilidade em caso de desobediência. Além disso, desde a adoção do tripé, em janeiro de 1999, a necessidade de produzir resultados primários positivos tornou-se cláusula pétrea do regime macroeconômico vigente. Esse princípio foi reforçado, no ano seguinte, com a aprovação da Lei Complementar 101/2000, que criminaliza o gestor que a contraria. Conhecida como Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF), ela institui limites e condições para despesas com pessoal e renúncia de receitas, a par de obrigar o estabelecimento de metas anuais relativas às receitas, despesas, resultados primário e nominal, e montante da dívida de cada ente federativo. 

Isto posto, e dada a situação bastante confortável tanto do ponto de vista externo (ao final de 2016 o país não tinha nenhuma pendência e acumulava US$ 365 bilhões em reservas) quanto da relação dívida/PIB (que não chegava a 70%,13 quando a de países desenvolvidos como EUA, Reino Unido e Japão era da ordem de 100% ou mais), o teto de gastos foi uma imposição adicional desnecessária, pra não dizer criminosa, de enorme severidade, que encontra evidente explicação no plano ideológico, mas que indica também a clara afinidade eletiva entre, de um lado, as forças políticas que se combinaram para destituir Dilma e, de outro, o peso cada vez maior dos interesses ligados à riqueza financeira e ao rentismo, em permanente luta em prol das políticas de austeridade. 

O terrorismo econômico que nos acompanha desde a estabilização monetária, mobilizando fantasmas vários (retorno da inflação, crise externa, explosão da dívida interna etc.), sempre no sentido de forçar o poder Executivo a adotar as medidas do agrado do mercado financeiro, subiu o nível dos ataques a Dilma, quando, ao final de 2014, o resultado primário ficou negativo em 0,56% do PIB. Sendo produto muito mais da desaceleração do PIB do que de explosão descontrolada dos gastos públicos, o déficit foi um dos principais argumentos a enfraquecer Dilma, já bastante fragilizada politicamente pela apertada vitória nas urnas. Também não é mera coincidência o fato de o crime de responsabilidade (não provado) atribuído a Dilma ter sido o das “pedaladas fiscais”;14 era evidente aí a ascensão agora vertiginosa da ideologia fiscalista que culminaria no teto de gastos de Temer. 

Mas o impeachment de Dilma revelou também um outro fator de fundamental importância na constituição da camada de gelo, finíssima, sobre a qual caminham hoje as autoridades econômicas: o progressivo poder do Legislativo — levando alguns especialistas a falar na existência de um semipresidencialismo ou de um parlamentarismo à moda da casa, sem primeiro-ministro nem a prerrogativa de dissolução do Congresso — e, junto com ele e associado ao domínio dos interesses financeiros e dos preceitos liberais (como a obsessão por resultados fiscais positivos), uma sorte de rarefação da própria democracia. A ascensão de Temer jogaria muita água nesse moinho, pois o novo presidente se submeteu integralmente ao Congresso, fazendo a balança de poder entre Executivo e Legislativo pender cada vez mais para o segundo.

Caminhando sobre gelo fino

A vitória do presidente Lula nas eleições de 2022, ainda que por margem mínima e inferior à inicialmente prevista, tirou de cena, ao menos por ora, o horizonte lúgubre de ultraliberalismo e terror fascista. Dado o teto de gastos e a anarquia instaurada por Bolsonaro nas contas públicas no último ano de seu mandato, tentando a reeleição, havia uma tarefa urgente para o governo que assumiria em 1.o de janeiro de 2023: negociar com o Congresso um respiro fiscal para esse ano, capaz de permitir que as promessas mais notórias de Lula, sobretudo as referentes ao Bolsa Família (R$ 600 mensais por família, mais R$ 150 por criança até 6 anos), pudessem ser cumpridas logo de início.  

Sob os auspícios da frente ampla que se formara para derrotar Bolsonaro, mas também por conta da competência e tenacidade da equipe de transição constituída pelo novo governo, as negociações foram extremamente bem-sucedidas. A discussão em torno da chamada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição (que a grande mídia logo batizou de “PEC da gastança”) resultou na Emenda Constitucional 126. Aprovada e promulgada pelo Congresso em 21 de dezembro de 2022, a Emenda autorizava um gasto extra-teto de R$ 145 bilhões em despesas correntes em 2023 (cerca de 1,5% do PIB). Excluíram-se também desse limite despesas com investimentos relacionados a excesso de arrecadação no ano anterior, desde que limitadas a R$ 23 bilhões. Além disso, logrou-se um acordo entre os parlamentares e a equipe de transição no sentido de retirar a política fiscal da Constituição.

O preço a pagar por tudo isso, além da elevação do montante de recursos a destinar às emendas impositivas dos parlamentares, foi a promessa de substituir o grilhão fiscal constitucional por um novo expediente, em forma de projeto de Lei Complementar (LC),15 a ser enviado ao Congresso pelo novo governo até 31 de agosto de 2023. Eis a costura que viabilizou o NAF, roupa, como veremos, ainda apertadíssima e que, repetimos, não precisaríamos estar vestindo. Ela é, de todo modo, muito mais inteligente e — importante dizer, mais flexível do que o pernicioso teto, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista jurídico (dado que está fora da Constituição). 

Vejamos os elementos fundamentais do NAF, tal como aprovado (LC 200/23, de 31 de agosto de 2023), para especular depois acerca da existência (ou não) de espaço político para algo muito diferente. Voltaremos assim à questão da relação entre política econômica e rarefação da democracia a que aludimos ao final da seção anterior.

O primeiro expediente importante e diferenciador no desenho proposto e aprovado é a existência de bandas para o resultado primário. Em lugar de uma cifra certeira para ele, como proporção do PIB, tem-se um intervalo em torno de uma meta (que vai de menos 0,25% a mais 0,25%), dentro do qual os valores obtidos são considerados satisfatórios. Como o Executivo não tem o controle total das cifras envolvidas (a arrecadação, por exemplo, depende da performance da economia como um todo), a flexibilidade é bem-vinda.

O segundo elemento a destacar é um dispositivo anticíclico que limita, nos dois sentidos, o crescimento real das despesas primárias. Assim, de acordo com a LC 200/23, tais despesas deverão crescer anualmente, em termos reais, pelo menos 0,6%, o que garante um mínimo de recursos para fazer face aos gastos inescapáveis com a manutenção da máquina pública, mesmo que, num período de crise, a arrecadação esteja em queda. De outro lado, num período de bonança, em que a receita esteja se expandindo a taxas elevadas, o crescimento real da despesa fica limitado a 2,5%, sendo que, no caso de resultado primário acima da banda, o excedente poderá ser parcialmente utilizado para investimentos no período seguinte. Uma crítica comum aos expedientes que buscam instituir controles sobre os gastos públicos é seu caráter naturalmente pró-cíclico. O NAF procura contornar esse problema.

Por fim, dado que toda essa engenharia contábil-fiscal-orçamentária se destina supostamente a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, existe uma cláusula (o inciso I do caput do artigo 5o da LC 200/23) que limita o crescimento real das despesas primárias, num determinado ano, a 70% da variação real das receitas primárias nos 12 meses encerrados em junho do ano anterior, sendo que o não cumprimento das metas de resultado primário rebaixa este limite para 50%. Fazendo a despesa crescer sempre a taxas inferiores às da receita, fica garantido que, pelo menos do ponto de vista fiscal, não haverá pressão para o crescimento da relação dívida/PIB.16

Combinada com o mecanismo anticíclico já apresentado, a última regra, considerado o limitador de 70%, significa que, mesmo que a receita cresça, em termos reais, abaixo de 0,86%, as despesas deverão crescer no mínimo 0,6% nos mesmos termos. De outro lado, mesmo que a receita cresça, em termos reais, mais do que 3,57%, as despesas não poderão crescer mais do que 2,5% nos mesmos termos. Respeitadas essas balizas, o limitador de gastos do NAF não é determinado em termos absolutos, como no antigo teto, mas estabelecido a partir do comportamento das receitas, o que parece muito mais lógico.  

No seu conjunto, o NAF é um instrumento muito mais versátil e razoável do que o desacreditado teto de gastos, mas, ainda assim, uma roupa muito apertada, que, vale repetir, não precisaríamos estar trajando se não tivesse ocorrido o golpe de 2016, a “ponte para o abismo” de Temer e, na sequência, a ameaça fascista de Bolsonaro, casada com o ultraliberalismo de Paulo Guedes. Sendo assim, evidentemente, o que se exigia do expediente a substituir o teto era alguma coisa da mesma família, ou seja, um mecanismo que contasse com travas, limitadores e sistemas de ajuste dos gastos públicos. Em termos de desenho, portanto, não parece razoável supor que houvesse espaço para algo mais progressista (voltaremos mais adiante à questão do espaço).

 De toda forma, as críticas mais elaboradas ao NAF17 tocam mesmo é no valor dos parâmetros: a meta de resultado primário zero para 2024, o limitador de gastos de 70% da variação da receita; e as barras inferior e superior (0,6% e 2,5%) do mecanismo anticíclico. São críticas que fazem sentido. De fato, a meta de resultado primário zero para 2024 parece bastante ambiciosa, assim como parece um tanto restritivo demais o limitador de gastos, além de muito baixas tanto a barra inferior quanto a barra superior do mecanismo anticíclico. 

Todavia, convém lembrar que, diferentemente do antigo teto, incluído na Constituição e requerendo PECs para sua alteração (Bolsonaro, por exemplo, teve de propor várias PECs visando furar o teto — para o auxílio emergencial na pandemia, para não pagar precatórios etc.), os parâmetros em discussão são todos estabelecidos em instrumentos jurídicos infraconstitucionais, ou seja, em lei ordinária, como as metas de resultado primário, ou, no máximo, em lei complementar, como as barras inferior e superior do mecanismo anticíclico, a dimensão das bandas do resultado primário e o limitador de gastos. No caso destes dois últimos (bandas e limitador), cumpre observar que, no projeto originalmente enviado pelo executivo ao Congresso, seus valores seriam estabelecidos a cada ano pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), uma Lei Ordinária, mas o poder Legislativo não aceitou a proposta e colocou os parâmetros na lei complementar que instituiu o NAF. 

Essa alteração, bem como tantas outras mudanças destinadas a produzir, a partir da proposta do Executivo, um desenho de regime fiscal o mais cerceador possível para a atuação do governo, evidenciam a força e o peso crescentes que o poder Legislativo vem adquirindo no país. Em entrevista que concedeu ao site A Terra é Redonda, publicada em 8 de janeiro de 2024, o cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP) André Singer afirmou que, pelo menos desde 2015, “parece que o Congresso, mais especificamente a Câmara dos Deputados, veio se encaminhando na direção de governar o Brasil”. Segundo Singer, desde Eduardo Cunha (2015-2016), as presidências da Câmara vêm se sucedendo sempre sob essa marca. Por exemplo, na época de Rodrigo Maia (2016-2021), o traço era tão evidente que se falava até em “parlamentarismo branco”. Em artigo escrito a quatro mãos ao final de 2023, o mesmo Singer e Fernando Rugitsky asseveram que a elevação do valor das emendas parlamentares individuais de 1,2% para 2% da Receita Corrente Líquida (uma das moedas de troca para a aprovação do NAF) reforça as tendências semipresidencialistas que crescem no país desde pelo menos Eduardo Cunha.18

Ora, dado o quadro e considerando ser este, por força do crescimento do próprio bolsonarismo, um dos congressos mais conservadores da história,19 parece evidente que ficou muito estreita a margem de manobra do executivo na negociação dos parâmetros, sobretudo na definição das metas de resultado primário para o período 2024-2026.20 Apesar de julgar que a meta de resultado zero em 2024 “definitivamente não faz sentido”, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda e da Administração, ressalvou, no entanto, que o compromisso de Fernando Haddad, atual ministro da Fazenda, com esse resultado, serviu para aprovar o NAF no Congresso.

Mas o quadro dos elementos que convertem o andamento das negociações em torno do regime fiscal numa verdadeira caminhada sobre gelo fino não ficaria completo se não mencionássemos outra importante alteração institucional que resultou do levante conservador-liberal que tomou conta do país depois do golpe de 2016. Além da adoção do teto de gastos, o governo Temer foi responsável por outras contrarreformas de peso, que implicaram transformações significativas do ponto de vista social, com enormes perdas para os direitos dos trabalhadores, como a reforma trabalhista e a generalização da terceirização. Todavia, do ponto de vista que aqui nos concerne, ou seja, dos graus de liberdade que detém o poder Executivo para implementar uma dada política econômica, a mudança mais profunda veio mesmo com o governo posterior. Em fevereiro de 2021, Bolsonaro sancionou a Lei Complementar 179/21, que concedeu autonomia ao Banco Central do Brasil (BCB). A principal alteração introduzida pela lei foi o mandato de quatro anos do presidente e de seus diretores, não coincidente com o mandato do presidente da República.  

A autonomia retira da alçada de cada novo governo eleito uma das pernas mais importantes da política econômica, a política monetária, pois terá que conviver, por dois anos, com um BC não escolhido por ele. No caso brasileiro, Lula foi o primeiro governante a ter que passar por essa experiência danosa, haja vista, quando a lei entrou em vigor, no início de 2021, que coube a Bolsonaro indicar o presidente do BCB, cujo mandato encerrar-se-á apenas em dezembro de 2024. Ora, se a necessária coordenação fiscal-monetária já fica dificultada pela mera existência de uma autonomia conferida à autoridade monetária, imagine-se o grau de dificuldade que vai envolver a relação entre, de um lado, um recém-eleito governo de centro-esquerda, com objetivos sociais substantivos, e, de outro, um BCB indicado pelo governo anterior, marcado pelo ultraliberalismo. O embate que se estabeleceu, desde o início desta terceira gestão de Lula, entre as autoridades econômicas do novo governo e o presidente do BCB, que manteve uma taxa de juros absurdamente elevada, a despeito das melhoras crescentes em todos os indicadores macroeconômicos (preços, resultados externos, câmbio etc.), é forte evidência dessa imensa dificuldade.

Essa substantiva alteração no panorama regulatório-institucional do país ratifica a margem mínima de manobra da equipe do atual governo na negociação sobre os termos do novo regime fiscal. Não é difícil perceber como isso se relaciona também com uma sorte de rarefação da democracia em muitos dos expedientes celebrados pelo pensamento liberal, tais como as privatizações e o teto de gastos. Em todos esses casos trata-se de reduzir o espaço de atuação da política, seja porque se confere ao mercado a gestão e produção daquilo que passava, antes, de algum modo, pela atuação do Estado, seja porque o gasto público passa a ser pautado, e constrangido, não por escolhas políticas, mas por “questões técnicas”.  

No caso da autonomia do BCB, essa redução na capacidade de operação da política parece ser ainda mais verdadeira. Refletindo sobre a história intelectual e factual da ideia de austeridade, Mark Blyth, professor da Brown University, lembra, em livro de 2013,21 que foram os “achados” do monetarismo de Milton Friedman e da teoria da escolha pública de James Buchanan que conferiram ao corte indiscriminado de gastos públicos um estatuto teórico que havia sido perdido desde a avalanche keynesiana. Mas o que é mais interessante na reflexão é a conexão que efetua entre o predomínio dessas ideias desde os anos 1980/1990 e a defesa de uma autoridade monetária independente.22 Para ele, esse conjunto de teorias chega a um resultado inescapável: o único jeito de salvar a economia das forças destrutivas que derivam da própria organização democrática seria banir a democracia. Como isso parece um tanto impopular, a alternativa é tornar a autoridade monetária independente, pois, segundo esse ideário, essas autoridades podem comprometer-se de forma crível com a estabilidade dos preços, coisa que os políticos não podem. 

Tomados esses elementos em conjunto, parece haver certa lógica e estratégia no comportamento das autoridades econômicas do governo Lula 3 na condução das negociações que lograram aprovar, seja o desenho do NAF, seja a dimensão de seus parâmetros.  A própria meta zero para o resultado primário em 2024 parece fazer algum sentido, pois cumpria retirar de uma autoridade monetária ultraliberal, e com autonomia total para comandar a política monetária, qualquer argumento que reforçasse a prática de manter os juros reais em níveis estratosféricos. Não por acaso, mesmo tendo prazo, até 31 de agosto de 2023, para apresentar a proposta do novo regime fiscal, o Ministério da Fazenda antecipou em cinco meses o anúncio, dando a público a proposta do NAF em 31 de março.

Um bom indicador dos fortes constrangimentos a que está submetido hoje o poder Executivo no Brasil é considerar o Inflation Reduction Act (IRA), aprovado pelo governo dos EUA em agosto de 2022. Visando apoiar a transição energética para fontes renováveis e de energia limpa, são previstos polpudos investimentos, inclusive sob a forma de incentivos fiscais. Para financiá-los, o governo americano criou um novo imposto de 15% sobre qualquer empresa que apresente receita anual acima de US$ 1 bilhão por três anos consecutivos, além de uma alíquota de 1% sobre a recompra de ações. Segundo o presidente Joe Biden, o IRA restaura a justiça tributária, fazendo com que as grandes corporações paguem sua parte.23 Bem, qualquer coisa parecida com isso que se tentasse por aqui geraria um barulho ensurdecedor e poderia acabar em impeachment. 

Por conta disso, a tão discutida proposta de reforma tributária está sendo conduzida pelo atual governo de forma fatiada. Em 20 de dezembro de 2023 foi promulgada a Emenda Constitucional 132, que trata de uma parte da reforma tributária. Apesar de conter tributos sobre o patrimônio—Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) para jatinhos, iates e lanchas, e tributação progressiva sobre heranças—, o foco maior da EC 132 são os impostos indiretos, com a criação de dois tipos de imposto sobre valor adicionado, que substituirão outros cinco tributos. Essa parte da reforma, porém, não mexe com a carga tributária, nem com sua distribuição; visa primordialmente a modernização do sistema, tornando-o mais moderno e eficiente e com menor custo de fiscalização para o Estado. A parte mais difícil, e que certamente gerará enorme pressão no sentido contrário visto que os interesses das grandes corporações e do grande capital estão encastelados no Congresso, é aquela a ser discutida neste ano de 2024, que tocará nos impostos diretos, e por meio da qual se buscará fazer os mais ricos pagarem a sua parte (por exemplo, tributando dividendos; fora o Brasil, apenas Estônia e Letônia não cobram tal tributo). 

Sabendo da dificuldade que será efetuar esse rearranjo no sistema tributário, o Ministério da Fazenda vem buscando, por enquanto, combater os chamados “jabutis”, espertezas inseridas no arcabouço jurídico, principalmente a partir de 2014,24 que promovem privilégios tributários injustificados, dos quais se beneficiam sobretudo as maiores empresas. Os dados do Tesouro Nacional indicam que a razão receita federal/PIB passou de uma média de 19,7% no período 2004-2013 para uma média de 17,7% no período 2014-2023. Mesmo desconsiderando o ano de 2020, completamente atípico por conta da pandemia, essa última razão fica em 18%.25 Como explicar esse sumiço de quase 2% do PIB em termos de receita? Os “jabutis” são parte importante da resposta e o Ministério da Fazenda resolveu trabalhar por aí para resgatar a capacidade de gasto do Estado, enquanto a reforma tributária não se completa.

Coerente com esse esforço, várias medidas já foram tomadas:  a) a mudança das regras no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), garantindo o voto de qualidade para o fisco, em caso de empate; b) a reversão parcial da isenção de imposto de renda sobre juros do capital próprio; c) a tributação de fundos exclusivos e offshore; d) a reoneração da folha de pagamentos de 17 grandes setores; e) a reinserção na base de cálculo do imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos valores decorrentes das receitas de doação ou subvenção efetuadas pelo poder público;26 f) a regularização de importações via e-commerce; g) a taxação das bets (apostas esportivas on-line); h) a revogação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), criado durante a pandemia, mas  prorrogado pelo Congresso até 2026; i) a trava colocada nas regras de emissão de títulos com isenção de imposto de renda, como as Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e as Letras de Crédito do Agronegócio (LCA);27 j) a limitação em valor de fundos exclusivos previdenciários (que contam com isenção tributária). Algumas dessas medidas já se tornaram lei, outras ainda vigoram como medidas provisórias e outras demandaram tão somente alterações administrativas para que pudessem ser implementadas. Considerado todo esse conjunto de iniciativas, é razoável pensar que a meta de déficit zero pode funcionar também como elemento de pressão sobre o Legislativo no sentido de transformar em lei as medidas provisórias que instituíram muitas dessas alterações.

Em livro recente, o atual ministro da Fazenda defende a tese de que, com a Proclamação da República ao final do século XIX, o Estado brasileiro, caracteristicamente patrimonial, mudou de mãos sem se republicanizar.28 A substantiva coleção de “jabutis” encontrados pelo governo no arcabouço regulatório-tributário do país, propiciando todos eles a evasão fiscal daqueles que mais podem pagar, é evidência clara de que essa situação, produtora de anomia social, lamentavelmente não se alterou. Se associamos a esse quadro o momento histórico em curso, com um quarto poder representado pelo Banco Central, o Congresso mais conservador da história querendo (e em parte conseguindo) governar e o fascismo à espreita, é fácil perceber quão fina é a camada de gelo sobre a qual teve de caminhar o Executivo federal na árdua tarefa de engendrar para o sinistro teto de gastos um substituto que não incomodasse tanto.   

No entanto, como tentamos demonstrar, não se tratou aqui meramente de encontrar um expediente técnico adequado para resolver um problema macroeconômico de ordem fiscal. Há toda uma trajetória ideológico-político-econômica, construída ao longo de décadas, que obriga hoje o governo Lula 3, como nunca antes, a adotar um figurino fiscalista. As forças materiais (riqueza financeira, rentismo) que continuam a se beneficiar da impossibilidade de desvestirmos essa camisa de força possui atualmente no binômio “Executivo enfraquecido & Legislativo com poder inflado”, um forte aliado no sentido de perpetuar essa situação. Evidente que não são largos os limites dessa estratégia de conciliar postura pró-austeridade com justiça tributária. Só a história poderá dizer até que ponto ela foi bem-sucedida, se conseguiu minimamente começar a reverter o jogo e, sobretudo, se conseguiu livrar o país da volta do ultraliberalismo abraçado ao horror fascista.   

Artigo publicado originalmente no site Phenomenal  World, em 16 de maio de 2024.

Notas
1 Dilma foi inicialmente afastada de seu cargo em 16 de maio de 2016 e teve o mandato presidencial definitivamente cassado em 31 de agosto do mesmo ano. A acusação era tão frágil que Dilma perdeu o cargo, mas não perdeu, sequer temporariamente, seus direitos políticos.
2 PMDB era a sigla do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que em 2018 removeu a palavra “partido” do nome e tornou-se Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
3 Veja-se: Uma Ponte para o Futuro, Fundação Ulysses Guimarães, 2015, p. 2.
4 O termo, muito apropriado, é de Maria da Conceição Tavares, em: Tavares, M.C. (1997). A Retomada da Hegemonia Norte-americana. In: Tavares, M.C. e Fiori, J. L. (org.) Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes.
5 Além da recomposição das reservas do país, também pesou para o sucesso do Plano Real o remédio técnico adequado para driblar uma inflação com caráter fortemente inercial: a Unidade Real de Valor (URV), uma moeda virtual. Veja-se a respeito: Paulani, L. M. (1997). Teoria da Inflação Inercial: um episódio singular na história da ciência econômica no Brasil? In: Loureiro, M. R. (org.) 50 anos de Ciência Econômica no Brasil. Petrópolis: Vozes.
6 A política de juros reais elevados beneficiava duas vezes o capital rentista, elevando seus rendimentos e, ao mesmo tempo, tornando muito baratos os ativos reais e financeiros aqui produzidos.
7 Resultado primário, como se sabe, decorre do cotejo entre receitas e despesas do setor público em dado período, não considerados, entre as despesas, os recursos destinados ao pagamento do serviço da dívida pública. No Brasil, o resultado do setor público é composto por três elementos: resultado do governo central (governo federal mais Banco Central), resultado dos governos regionais (estados e municípios) e resultado das empresas estatais.
8 O segundo mandato, cabe mencionar, era vedado pela Constituição Federal até 1997, quando o Congresso mudou a norma constitucional para autorizar a reeleição, num processo legislativo abertamente apoiado pelo então presidente.
9 A muito apropriada metáfora que utilizo aqui é de Paulo Arantes, em: Arantes, P. E. (2003). Beijando a Cruz. Reportagem, n. 44.
10 Além da manutenção do regime macroeconômico herdado de FHC, medidas adicionais para completar o processo de inserção da economia brasileira nos circuitos internacionais de valorização financeira foram imediatamente tomadas: reforma da lei de falências (para aumentar a segurança dos credores do setor privado), extensão da reforma da previdência aos servidores públicos e aprofundamento do processo de abertura financeira. O único item do menu relativamente refreado foi o processo de privatização.
11 Os dados são da nova série das contas nacionais – base 2010 – divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), instituição responsável no Brasil pela elaboração das contas nacionais e pelas estimativas dos agregados macroeconômicos, como o PIB.
12 No contexto da crise entre os poderes Executivo e Legislativo que se aprofundou em 2015, a Câmara passou a colocar em pauta e aprovar uma série de projetos que criavam despesas permanentes, dificultando ainda mais a situação fiscal do governo. Na mídia, essas iniciativas ficaram conhecidas como pautas-bomba.
13 O conceito aqui é o de Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que abrange o governo federal (menos o Banco Central), os governos estaduais e municipais e as empresas estatais. Em dezembro de 2016, quando é aprovado o teto de gastos, a relação está em 69,8%. A informação, do Banco Central, está disponível aqui (acesso em 17/02/2024).
14 Manobras contábeis envolvendo repasses do Tesouro Nacional a bancos federais, de modo a se postergar despesas, produzindo-se artificialmente resultados fiscais mais favoráveis.
15 Ainda que de aprovação mais restritiva do que uma Lei Ordinária, a Lei Complementar é, no entanto, de aprovação mais fácil do que uma Emenda Constitucional. No caso da Lei Ordinária, exige-se maioria simples (metade mais um dos presentes na casa legislativa), enquanto no caso da Lei Complementar (que trata necessariamente de assuntos mencionados de modo explícito na Constituição) exige-se maioria absoluta (metade mais um do número total de membros da casa legislativa). Por fim, para a aprovação de uma Emenda à Constituição exige-se maioria qualificada (2/3 dos membros da casa legislativa).
16 Vale observar aqui que, nas últimas décadas, a pressão maior para o crescimento dessa relação vem do elevado patamar dos juros pagos aos detentores da dívida pública e não dos gastos públicos. Mas o primeiro tipo de despesa, ao contrário do segundo, não causa escândalo nenhum, seja dentre os economistas liberais, seja na grande mídia corporativa.
17 Veja-se, por exemplo: Baptista JR, P. N. (2023).Há Conciliação com a Faria Lima?; Bastos, P. P. Z. (2023). Quatro Tetos e um Funeral. Centro de Conjuntura do IE Unicamp – CECEON, Nota 21; Bastos, P. P. Z.; Decache, D.; Alves, JR, A. J. (2023). O Novo Regime Fiscal Restringirá a Retomada do Desenvolvimento em 2024? Centro de Conjuntura do IE Unicamp – CECEON, Nota 22.; Singer, A.; Rugitsky, F. (2023).Governo Lula – Ano I – Economia.
18 Deputado federal, então no PMDB, que comandou a Câmara dos Deputados de 1º de fevereiro de 2015 a 16 de julho de 2016, quando teve seu mandato cassado.
19 Veja-se a respeito, por exemplo, os anúncios doPleno News, Conjur e R7.
20 Sobre a questão da meta de resultado primário para 2024, surgiu inclusive um manifesto de economistas pedindo sua revisão, assinado também pela autora destas linhas. Apesar de entender os expressivos constrangimentos que marcam as negociações (e que tento explicar no texto), julguei que assinar um tal manifesto ajudaria a pressionar politicamente o parlamento para aquiescer com a mudança. O próprio presidente Lula, de resto, também já havia feito um pleito no mesmo sentido. A respeito do manifesto, veja-se aqui
21 Blyth, M. (2013). Austerity: The History of a Dangerous Idea. Oxford: Oxford University Press.
22 Vale observar que, a partir da LC 179/21, o BCB passou a ter autonomia administrativa (mandato fixo para presidente e diretores) mas não independência stricto sensu, uma vez que parâmetros importantes como as metas de inflação continuam a ser definidos pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), constituído pelo Ministério da Fazenda e Ministério do Planejamento, além da própria autoridade monetária. De todo modo, trata-se de mudança expressiva, uma vez que o Executivo deixa de poder influenciar a forma de operacionalização da política monetária. Se, por exemplo, julgar que os juros estão em níveis abusivos, nada pode fazer, impedido que está de substituir o presidente da autoridade monetária.
23 Veja-se a respeito esta notícia e este discurso do presidente.
24 O ano de 2014 é chave, porque é o primeiro a receber o impacto cheio da extensão das desonerações tributárias sobre a folha de pagamento (na realidade uma mudança de base da cobrança da contribuição previdenciária patronal da folha para o faturamento das empresas; a mudança se torna desoneração porque a alíquota sobre o faturamento não compensa a retirada da contribuição sobre a folha). A medida já havia sido introduzida em 2011, no âmbito do “Brasil Maior”, mas abrangia pouquíssimos setores. Como forma de enfrentar o agravamento das consequências da crise internacional sobre a economia brasileira, o governo Dilma envia ao Congresso, ao longo de 2012 e 2013, medidas provisórias que estendem o benefício a setores como construção civil e comércio varejista, grandes empregadores de mão de obra. Mas o Congresso, no ritmo das pautas-bomba, o amplia para inúmeros outros setores. Segundo Laura Carvalho, o número de setores beneficiados passa de quatro, originalmente, para 56 em 2014. Ver em: Carvalho, L. (2018). Valsa Brasileira. São Paulo: Todavia, p.70.
25 Os cálculos utilizaram os dados da receita total do governo federal deduzidas as transferências constitucionais e legais a estados e municípios, disponíveis aqui. Os dados sobre o PIB são do IBGE, recolhidos do site Ipeadata.
26 A exclusão desses valores da base de cálculo desses tributos destinava-se a incentivar os investimentos, mas uma medida do Congresso (LC 160/2017) equiparou as subvenções de custeio às subvenções de investimento. Pela nova legislação (Lei 14.789, de 29/12/2023), no caso das subvenções destinadas a investimentos, será gerado um crédito fiscal.
27 Visando incentivar investimentos nos setores agrícola e imobiliário esses títulos, assim como os Certificados de Recebíveis Agrícolas (CRAs) e os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) são isentos de imposto de renda. Ocorre que os lastros elegíveis para a emissão desses títulos foram se alargando, desvirtuando assim sua finalidade original. Em duas resoluções emitidas pelo Conselho Monetário Nacional ao final de fevereiro de 2024, ajustes são feitos para barrar a emissão indevida de títulos isentos.
28 Ver em: Haddad, F. (2022). O Terceiro Excluído: Contribuição para uma Antropologia Dialética. Rio de Janeiro: Zahar, p. 13.



Voto Chapa 2

Márcio e Patrícia: Humanismo e determinação na reitoria da PUC-SP

Eleições na PUC: nosso tempo é agora

Participação da comunidade de professores, estudantes e funcionários na escolha da nova reitoria mostra energia democrática de uma instituição que permanece viva como espaço de defesa da inteligência, da diversidade cultural e do pensamento livre e soberano

Pensatas para o fim de semana

Atualizações

Cássio acerta rescisão com o Corinthians e vai para o Cruzeiro

Uma era chegou ao fim no Corinthians nesta sexta-feira. Após mais de 12 anos, 712 partidas e nove títulos conquistados, o goleiro Cássio acertou sua rescisão contratual e está fora do clube. Ele será anunciado em breve como jogador do Cruzeiro (leia mais no Globo)

Desemprego recua em 21 estados e no DF e chega à menor taxa em 10 anos

Uol: O nível de desemprego no Brasil diminuiu em 21 estados e no Distrito Federal no primeiro trimestre de 2024, na comparação com o mesmo período do ano passado, mostram dados divulgados nesta sexta-feira (17) pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O movimento fez a taxa de desocupação encerrar os três primeiros meses deste ano em 7,9%, o menor patamar em 10 anos. Os dados são um detalhamento maior da pesquisa de Pnad Contínua trimestral divulgada no início do mês (expandir)

Rondônia, Mato Grosso e Santa Catarina têm os menores níveis de desemprego. Com taxas de, respectivamente, 3,7%, 3,7% e 3,8%, os estados atravessam uma situação de "pleno emprego". A definição representa um equilíbrio entre a procura e a disponibilidade das vagas nas localidades. Nessa situação, a busca por uma nova colocação tende a ser pequena.

Bahia (14%) e Pernambuco (12,4%) apresentam os maiores níveis de desemprego. Os estados do Nordeste são seguidos por Amapá (10,9%), Rio de Janeiro (10,3%), Sergipe (10%) e Piauí (10%). Alagoas, Paraíba, Amazonas, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, Acre, Ceará e Pará também apresentam taxas acima da média nacional.

Na comparação trimestral, a desocupação recuou em sete estados e no DF. Ao comparar os valores com os últimos três meses do ano passado, o desemprego está menor no Amapá (de 14,2% para 10,9%), em Mato Grosso (de 3,9% para 3,7%), em Rondônia (de 3,8% para 3,7%), no Pará (de 7,8% para 8,5%), no Ceará (de 8,7% para 8,6%), em Sergipe (de 11,2% para 10%), no Piauí (de 10,6% para 10%) e no DF (de 9,6% para 9,5%).

As variações percentuais positivas ante o quarto trimestre de 2024, foram verificadas em 20 estados. As altas são do Acre, Alagoas, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

A Pnad coleta a taxa de desocupação das pessoas de 14 anos ou mais de idade. Para ser visto como desempregado na análise, o profissional não pode ter exercido nenhuma atividade profissional no trimestre. Há também a necessidade de que tenha buscado por uma colocação no período. Caso contrário, ele é enquadrado como desalentado.

No Brasil, praticamente três de cada quatro trabalhadores têm carteira assinada. Conforme os dados da Pnad, 73,9% dos empregados do setor privado do país era celetistas. As regiões Norte (62,4%) e Nordeste (57,9%) apresentaram os menores patamares, enquanto o Sul (83,1%) teve o maior percentual.

Disfarces do que há de pior no discurso neoliberal - vendido à esfera pública como a saída para a crise que o próprio neoliberalismo criou... 

Narrativas...

# Fogo cruzado

No centenário de James Baldwin, a entrevista a P. Francis para o 'Pasquim' lembra a complexidade de intelectuais que nunca falaram o mesmo dialeto político (Paulo R. Pires, 451)

# Coppola apresenta Megalopolis em Cannes

 "Há uma tendência à tradição fascista. E isso é assustador"  (Flávia Guerra, Uol)

# Israel não chora mais

Tortura não é novidade na Terra Santa; novidade, porém, está na motivação (Demétrio Magnoli, Folha)

# Bebê Rena

Como a série da NetFlix parte de traumas e situações de abuso para encarar a masculinidade em crise e sair dos clichês psicológicos (Ivana Bentes, A Terra é redonda)

Ogros fascistas ameaçam eleições para reitoria na PUC

Tática de criar clima de medo e caos para interditar o processo democrático de escolha da nova reitoria da universidade foi posta em prática na Monte Alegre: intimidação e violência como discurso. Leia abaixo a nota sobre o episódio de que a PUC foi palco na campanha eleitoral. 

❗ Nota de Repúdio: Isso é Democracia?❗

Repudiamos veementemente a invasão criminosa ocorrida durante a reunião da Associação de Pós-Graduandos da PUC São Paulo (APG). O propósito original da reunião era promover o diálogo com os candidatos à reitoria, Prof. Márcio Fonseca e Patrícia Penha - CHAPA 2, para discutir propostas e realizar um bate-papo. No entanto, fomos surpreendidos pela presença de indivíduos mal-intencionados que, além de exibirem comportamento inadequado, proferiram ofensas aos presentes. Essa atitude lamentável impossibilitou a participação dos estudantes, cerceando nosso espaço de debate, construção coletiva e democrática.

A APG PUC-SP, pensando em auxiliar a escolha entre os candidatos à reitoria, estava promovendo diálogos entre os estudantes e os postulantes ao cargo em dois eventos com as respectivas chapas, sendo este o primeiro evento. Dessarte, é inadmissível que momentos de interação com a comunidade acadêmica sejam alvo de práticas baseadas no ódio. Em um momento crucial, em que vivemos uma eleição na universidade, convidamos a todos e todas a refletirem sobre o ocorrido e a reafirmarem a importância do diálogo e do confronto saudável de ideias na construção de uma instituição mais justa e plural.

Repudiamos veementemente as fake news e todas as formas de disseminação do ódio no seio da comunidade puquiana. Juntos, resistiremos e não permitiremos que tais práticas prevaleçam!

Política de privatizações do governo gaúcho agravou a tragédia

# Náufragos do descaso (Carta Maior)

Nancy Fraser: feminismo contra a barbárie

Em novo livro, filósofa provoca: são tempos de pensar grande. Luta antineoliberal precisa ir além do combate da mercantilização das condições de vida. E sugere uma terceira dimensão: uma nova aliança entre emancipação e proteção social (Outras Palavras)

# Este é um capítulo do livro Destinos do Feminismo, de Nancy Fraser, publicado pela Editora Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras


A atual crise do capitalismo neoliberal está alterando o panorama da teoria feminista. Durante as últimas duas décadas, a maioria das teóricas manteve distância do tipo de teorização social de grande escala associada ao marxismo. Aparentemente aceitando a necessidade de especialização acadêmica, optaram por um ou outro ramo de investigação disciplinar, concebido como um empreendimento independente. Quer o foco fosse a jurisprudência quer fosse a filosofia moral, a teoria democrática ou a crítica cultural, o trabalho prosseguiu relativamente desligado das questões fundamentais da teoria social. A crítica da sociedade capitalista – fundamental para as gerações anteriores – praticamente desapareceu da agenda da teoria feminista. A crítica centrada na crise capitalista foi declarada redutora, determinista e ultrapassada.

Hoje, porém, tais realidades estão em frangalhos. Com a oscilação do sistema financeiro global, a queda livre na produção e no emprego mundiais e a perspectiva iminente de uma recessão prolongada, a crise capitalista fornece o pano de fundo inevitável para todas as tentativas sérias de teoria crítica. Daqui em diante, as teóricas feministas não podem evitar a questão da sociedade capitalista. A teoria social de grande escala, voltada a esclarecer a natureza e as raízes da crise, bem como as perspectivas de uma resolução emancipatória para ela, promete recuperar seu lugar no pensamento feminista.

No entanto, como exatamente deveriam as teóricas feministas abordar essas questões? Como superar os déficits das desacreditadas abordagens economicistas, que se concentram exclusivamente na “lógica sistêmica” da economia capitalista?

Como desenvolver uma compreensão expandida e não economicista da sociedade capitalista, que incorpore as ideias do feminismo, da ecologia, do multiculturalismo e do pós-colonialismo? Como conceituar a crise como um processo social em que a economia é mediada pela história, cultura, geografia, política, ecologia e direito? Como compreender toda a gama de lutas sociais na conjuntura atual e como avaliar o potencial de transformação social emancipatória?

O pensamento de Karl Polanyi oferece um ponto de partida promissor para tal teorização. Seu clássico de 1944, A grande transformação, elabora um relato da crise capitalista como um processo histórico multifacetado que começou com a Revolução Industrial na Grã-Bretanha e prosseguiu, ao longo de mais de um século, de modo a envolver o mundo inteiro, trazendo consigo sujeição imperial, depressões periódicas e guerras cataclísmicas. Para Polanyi, além disso, a crise capitalista tinha menos a ver com o colapso econômico no sentido estrito que com comunidades desintegradas, solidariedades rompidas e natureza espoliada. As raízes dessa crise residem menos nas contradições intraeconômicas, tais como a tendência de queda da taxa de lucro, e mais numa mudança importante no lugar da economia em relação à sociedade. Invertendo a relação até então universal na qual os mercados estavam inseridos em instituições sociais e sujeitos a normas morais e éticas, os proponentes do “mercado autorregulado” procuraram construir um mundo em que a sociedade, a moral e a ética estivessem subordinadas aos mercados e, na verdade, modeladas por eles. Concebendo o trabalho, a terra e o dinheiro como “fatores de produção”, trataram essas bases fundamentais da vida social como mercadorias comuns e sujeitaram-nas às trocas de mercado. Os efeitos dessa “mercantilização fictícia”, como lhe chamou Polanyi, foram tão destrutivos para os habitats, os meios de subsistência e as comunidades que acabaram por desencadear um contramovimento contínuo pela “proteção da sociedade”. O resultado foi um padrão distinto de conflito social, que ele chamou de “duplo movimento”: um conflito em espiral entre os defensores do livre mercado, de um lado, e os protecionistas sociais, de outro, que levou ao impasse político e, em última análise, ao fascismo e à Segunda Guerra Mundial.

Eis, então, um relato da crise capitalista que transcende os limites restritos do pensamento economicista. Ação magistral, ampla e abrangente em múltiplas escalas, A grande transformação entrelaça protestos locais, políticas nacionais, assuntos internacionais e regimes financeiros globais numa poderosa síntese histórica.

Além disso, é de especial interesse para as feministas a centralidade da reprodução social no relato de Polanyi. É verdade que ele próprio não usa essa expressão. Mas a desintegração dos laços sociais não é menos crucial para sua visão da crise que a destruição dos valores econômicos – na verdade, essas duas manifestações estão inextricavelmente interligadas. E a crise capitalista é em grande parte uma crise social, uma vez que a mercantilização desenfreada põe em perigo o fundo de capacidades humanas disponíveis para a criação e manutenção de laços sociais. Por colocar em primeiro plano essa vertente social reprodutiva da crise capitalista, o pensamento de Polanyi ressoa com o recente trabalho feminista sobre o “esgotamento social” e a “crise dos cuidados”. Seu referencial é capaz de abranger, ao menos em princípio, muitas preocupações feministas.

Esses pontos, por si sós, qualificariam Polanyi como um recurso promissor para as feministas que procuram compreender as dificuldades da sociedade capitalista do século XXI. Mas há outras razões mais específicas para recorrer a ele hoje. A história contada em A grande transformação tem fortes ecos nos desenvolvimentos atuais. Certamente, há um argumento prima facie para a opinião de que a crise atual tem suas raízes nos esforços recentes para libertar os mercados dos regimes reguladores (tanto nacionais como internacionais) estabelecidos no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. O que hoje chamamos de “neoliberalismo” nada mais é que a segunda vinda da mesma fé do século XIX no “mercado autorregulado” que desencadeou a crise capitalista narrada por Polanyi. Hoje, como à época, as tentativas de implementar esse credo estão estimulando esforços para mercantilizar a natureza, o trabalho e o dinheiro: basta ver os florescentes mercados de emissões de carbono e de biotecnologia; de cuidado das crianças, de escolarização e de cuidado dos idosos; e de derivativos financeiros. Hoje, como à época, o efeito é de devastar a natureza, romper comunidades e destruir meios de subsistência. Além disso, hoje, tal como no tempo de Polanyi, os contramovimentos estão se mobilizando para proteger a sociedade e a natureza da devastação do mercado. Hoje, como à época, as lutas em torno da natureza, da reprodução social e das finanças globais constituem os nós centrais e os pontos críticos da crise. À primeira vista, então, é plausível ver a crise de hoje como uma segunda grande transformação, uma “grande transformação” redux.

Por muitas razões, a perspectiva de Polanyi é hoje uma promessa considerável para a teorização. No entanto, as feministas não deveriam apressar-se em adotá-la de forma acrítica. Mesmo quando supera o economicismo, A grande transformação revela-se, numa análise mais atenta, uma obra profundamente falha. Centrado exclusivamente nos males que emanam de mercados desenraizados, o livro ignora os males originados em outras partes, na “sociedade” envolvente. Por ocultar formas de injustiça não baseadas no mercado, também tende a encobrir formas de proteção social que são ao mesmo tempo veículos de dominação. Centrado esmagadoramente nas lutas contra as depredações baseadas no mercado, o livro negligencia as lutas contra as injustiças encravadas na “sociedade” e codificadas nas proteções sociais.

Portanto, as teóricas feministas não deveriam abraçar o referencial de Polanyi na forma em que aparece em A grande transformação. O que é necessário, na verdade, é uma revisão desse quadro. O objetivo deveria ser uma nova concepção, quase polanyiana, da crise capitalista que não só evitasse o economicismo reducionista mas também evitasse romantizar a “sociedade”.

Esse é meu objetivo no presente capítulo. Procurando desenvolver uma crítica que compreenda tanto a “sociedade” como a “economia”, proponho alargar a problemática de Polanyi para que abranja um terceiro projeto histórico de luta social que atravessa seu conflito central entre mercantilização e proteção social. Esse terceiro projeto, que chamarei de “emancipação”, visa superar formas de sujeição enraizadas na “sociedade”. Centrais para ambas as iterações da grande transformação, aquela analisada por Polanyi e aquela que vivemos agora, as lutas pela emancipação constituem o terço faltante que medeia todos os conflitos entre a mercantilização e a proteção social. O efeito da introdução desse terço faltante será o de transformar o duplo movimento num triplo movimento, que abranja a mercantilização, a proteção social e a emancipação.

O triplo movimento formará o núcleo de uma nova perspectiva, quase polanyiana, que possa esclarecer o que está em jogo para as feministas na atual crise capitalista. Depois de elaborar essa nova perspectiva nas seções 1 a 4 deste capítulo, irei utilizá-la nas seções 5 a 7 para analisar a ambivalência da política feminista.

1. Conceitos-chave de Polanyi: mercados desenraizados, proteção social e o duplo movimento

Começo por recordar a distinção de Polanyi entre mercados enraizados e desenraizados. Fundamental para A grande transformação, tal distinção carrega fortes conotações avaliativas, que precisam ser sujeitas ao escrutínio feminista.

Notoriamente, Polanyi distinguiu duas relações diferentes nas quais os mercados podem se defrontar com a sociedade. Por um lado, os mercados podem estar “enraizados”, enredados em instituições não econômicas e sujeitos a normas não econômicas, como o “preço justo” e o “salário justo”. Por outro lado, os mercados podem estar “desenraizados”, libertos de controles extraeconômicos e governados de forma imanente, pela oferta e pela procura. A primeira possibilidade, afirma Polanyi, representa a norma histórica; ao longo da maior parte da história, em civilizações de resto díspares e em locais amplamente separados, os mercados estiveram sujeitos a controles não econômicos, que limitavam o que podia ser comprado e vendido, por quem e em que termos. A segunda possibilidade é historicamente anômala; uma invenção britânica do século XIX, o “mercado autorregulado” era uma ideia totalmente nova, cuja implantação, afirma Polanyi, ameaça o próprio tecido da sociedade humana.

Para Polanyi, os mercados nunca poderão, de fato, ser totalmente desenraizados da sociedade em geral. A tentativa de torná-los assim deve falhar inexoravelmente. Primeiro, porque os mercados só podem funcionar adequadamente num contexto não econômico de entendimentos culturais e relações solidárias; tentativas de desenraizá-los destroem esse pano de fundo. Depois, porque a tentativa de estabelecer “mercados autorregulados” revela-se destrutiva do tecido da sociedade, provocando exigências generalizadas por sua regulação social. Longe de reforçar a cooperação social, portanto, o projeto de desenraizar os mercados desencadeia inevitavelmente crises sociais.

É nesses termos que A grande transformação narra uma crise capitalista que se estendeu desde a Revolução Industrial até a Segunda Guerra Mundial. Além disso, para Polanyi, a crise abrangia não só os esforços dos interesses comerciais para desenraizar os mercados mas também os contraesforços combinados dos proprietários rurais, dos trabalhadores urbanos e de outras camadas para defender a “sociedade” contra a “economia”. Por fim, para Polanyi, foi a luta cada vez mais intensa entre esses dois campos, o dos defensores do mercado e o dos protecionistas, que conferiu à crise a forma particular de um “duplo movimento”. Se o primeiro lado desse movimento nos levou de uma fase mercantilista, na qual os mercados estavam social e politicamente enraizados, para uma fase de laissez-faire, na qual eles se tornaram (relativamente) desenraizados, o segundo lado deveria levar-nos, esperava Polanyi, a uma nova fase, na qual os mercados seriam reenraizados em Estados democráticos de bem-estar social. O efeito seria o de devolver a economia a seu devido lugar na sociedade.

Em geral, então, a distinção entre mercados enraizados e desenraizados é essencial a todos os conceitos centrais de Polanyi, incluindo sociedade, proteção, crise e duplo movimento. Igualmente importante, a distinção é fortemente avaliativa. Os mercados enraizados são associados à proteção social, vistos como abrigo contra os elementos agressivos. Os mercados desenraizados são associados à exposição, a ser abandonado a nadar nu nas “águas geladas do cálculo egoísta”. Essas inflexões – os mercados enraizados são bons, os mercados desenraizados são maus – são transpostas para o duplo movimento. O primeiro movimento, de exposição, significa perigo; o segundo, um movimento protetor, conota porto seguro.

O que as feministas deveriam fazer com essas ideias? À primeira vista, a distinção entre mercados enraizados e desenraizados tem muito a oferecer à teorização feminista. Por um lado, aponta para além do economicismo, para uma compreensão abrangente da crise capitalista como um processo histórico multifacetado, tanto social, político e ecológico como econômico. Por outro lado, aponta para além do funcionalismo, compreendendo a crise não como um “colapso do sistema” objetivo, mas como um processo intersubjetivo que inclui as respostas dos atores sociais às mudanças percebidas em suas situações e entre si. Além disso, a distinção de Polanyi torna possível uma crítica da crise que não rejeita os mercados em si, mas apenas a variedade perigosa e desenraizada. Consequentemente, o conceito de um mercado enraizado oferece a perspectiva de uma alternativa progressista tanto ao desenraizamento desenfreado promovido pelos neoliberais como à supressão total dos mercados, tradicionalmente favorecida pelos comunistas.

No entanto, o subtexto avaliativo das categorias de Polanyi é problemático. Por um lado, sua descrição dos mercados enraizados e das proteções sociais é quase um mundo cor-de-rosa. Por ter romantizado a “sociedade”, oculta o fato de que as comunidades nas quais os mercados estiveram historicamente enraizados também têm sido o locus da dominação. Em contrapartida, o relato de Polanyi sobre o desenraizamento é muito sombrio. Por ter idealizado a sociedade, oculta o fato de que, quaisquer que sejam seus outros efeitos, os processos que desenraizaram os mercados de proteções opressivas contêm um momento emancipatório.

Portanto, as teóricas feministas atuais devem rever esse referencial. Evitando tanto a condenação generalizada do desenraizamento como a aprovação generalizada do (re)enraizamento, devemos expor ambos os lados do duplo movimento ao escrutínio crítico. Expondo os déficits normativos da “sociedade”, bem como os da “economia”, devemos validar as lutas contra a dominação onde quer que ela mantenha suas raízes.

Para esse fim, proponho recorrer a um recurso não utilizado por Polanyi, a saber, as ideias dos movimentos feministas. Ao desmascarar assimetrias de poder por ele mantidas ocultas, esses movimentos expuseram a face predatória dos mercados enraizados que ele tendia a idealizar. Protestando contra proteções que também eram opressões, fizeram emergir reivindicações de emancipação. Ao explorar suas ideias e aproveitar os benefícios do olhar retrospectivo, proponho repensar o duplo movimento em relação às lutas feministas pela emancipação.

2. Emancipação: o “terceiro” que falta

Falar de emancipação é introduzir uma categoria que não aparece em A grande transformação. Mas a ideia, e mesmo a palavra, tiveram um papel importante ao longo do período narrado por Polanyi. Basta mencionar as lutas da época para abolir a escravatura, libertar as mulheres e livrar os povos não europeus da sujeição colonial – todas travadas em nome da “emancipação”. É decerto estranho que tais lutas estejam ausentes de um trabalho que pretende traçar a ascensão e queda do que chama de “civilização do século XIX”. Mas o que pretendo não é simplesmente assinalar uma omissão. Trata-se, antes, de notar que as lutas pela emancipação desafiaram diretamente formas opressivas de proteção social, embora não tenham condenado totalmente nem celebrado simplesmente a mercantilização. Se tivessem sido incluídos, esses movimentos teriam desestabilizado o esquema narrativo dualista de A grande transformação. O efeito disso teria sido a explosão do duplo movimento.

Para perceber o porquê, consideremos que a emancipação difere significativamente da principal categoria positiva de Polanyi, a proteção social. Se a proteção se opõe à exposição, a emancipação se opõe à dominação. Enquanto a proteção visa proteger a “sociedade” dos efeitos desintegradores dos mercados não regulamentados, a emancipação visa expor as relações de dominação onde quer que estas lancem raízes, tanto na sociedade como na economia. Enquanto o objetivo da proteção é o de submeter as trocas mercantis a normas não econômicas, o da emancipação consiste em submeter tanto as trocas mercantis como as normas não mercantis ao escrutínio crítico. Finalmente, se os valores mais elevados da proteção são a segurança, a estabilidade e a solidariedade sociais, a prioridade da emancipação é a não dominação.

Seria errado, contudo, concluir que a emancipação está sempre aliada à mercantilização. Se a emancipação se opõe à dominação, a mercantilização opõe-se à regulação extraeconômica da produção e da troca, quer essa regulação se destine a proteger quer se destine a libertar. Enquanto a mercantilização defende a suposta autonomia da economia, entendida formalmente como uma esfera demarcada de ação instrumental, a emancipação atravessa as fronteiras que demarcam as esferas, procurando erradicar de todas as “esferas” a dominação. Enquanto o objetivo da mercantilização é o de libertar das normas morais e éticas a compra e a venda, o da emancipação é examinar todos os tipos de normas do ponto de vista da justiça. Finalmente, se a mercantilização reivindica a eficiência, a escolha individual e a liberdade negativa da não interferência como seus valores mais elevados, a prioridade da emancipação, como disse, é a não dominação.

Disso decorre que as lutas pela emancipação não se enquadram perfeitamente em nenhum dos lados do duplo movimento de Polanyi. É verdade que tais lutas parecem por vezes convergir com a mercantilização – por exemplo, quando condenam como opressivas as mesmas proteções sociais que os defensores do livre mercado procuram erradicar. Em outras ocasiões, porém, convergem com projetos protecionistas – por exemplo, quando denunciam os efeitos opressivos da mercantilização. Em outras ocasiões ainda, as lutas pela emancipação divergem de ambos os lados do duplo movimento – por exemplo, quando não visam nem desmantelar nem defender as proteções existentes, e sim transformar o modo de proteção. Assim, as convergências, quando existem, são conjunturais e contingentes. Sem se alinhar consistentemente nem com a proteção nem com a mercantilização, as lutas pela emancipação representam uma terceira força que perturba o esquema dualista de Polanyi. Dar a tais lutas o devido valor exige que revejamos seu referencial teórico – transformando seu duplo movimento num movimento triplo [5].

3. Emancipação das proteções hierárquicas

Para perceber o porquê, consideremos as reivindicações feministas pela emancipação. Essas reivindicações explodem o duplo movimento ao revelar uma forma específica pela qual as proteções sociais podem ser opressivas: a saber, em virtude de hierarquias de status entrincheiradas. Tais proteções negam a parte daqueles que estão incluídos em princípio como membros da sociedade as precondições sociais para a plena participação na interação social. O exemplo clássico é a hierarquia de gênero, que atribui às mulheres um status inferior, muitas vezes semelhante ao de uma criança do sexo masculino, e assim as impede de participar plenamente, em pé de igualdade com os homens, na interação social. Mas também seria possível citar hierarquias de casta, incluindo aquelas baseadas em ideologias racialistas. Em todos esses casos, as proteções sociais funcionam em benefício daqueles que estão no topo da hierarquia de status, proporcionando benefícios menores (se houver) aos que estão na base. O que eles protegem, portanto, é menos a sociedade em si que a hierarquia social. Não é de admirar, então, que movimentos feministas, antirracistas e anticastas se tenham mobilizado contra tais hierarquias, rejeitando as proteções que elas pretendem oferecer. Ao insistir na adesão plena à sociedade, procuraram desmantelar acordos que lhes negam os pré-requisitos sociais da paridade de participação.

A crítica feminista da proteção hierárquica atravessa todas as etapas da história de Polanyi, embora nunca seja mencionada por ele. Durante a era mercantilista, feministas como Mary Wollstonecraft criticaram os arranjos sociais tradicionais que enraizavam os mercados. Condenando as hierarquias de gênero enraizadas na família, na religião, na lei e nos costumes sociais, exigiram pré-requisitos fundamentais de paridade de participação, tais como uma personalidade jurídica independente, liberdade religiosa, educação, o direito de recusar sexo, os direitos de custódia das crianças e os direitos de falar em público e votar. Durante o período do laissez-faire, as feministas exigiram acesso igualitário ao mercado. Ao expor a instrumentalização que este fez das normas sexistas, opuseram-se a proteções que lhes negavam o direito de possuir propriedade, assinar contratos, controlar salários, exercer profissões, trabalhar as mesmas horas e receber o mesmo salário que os homens, todos esses pré-requisitos para a plena participação na vida social. Durante a era do pós-Segunda Guerra, as feministas da “segunda onda” visaram o “patriarcado público” instituído pelos Estados de bem-estar social. Condenando as proteções sociais fundadas no “salário familiar”, exigiam remuneração igual para trabalho de valor comparável, paridade entre prestação de cuidados e remuneração por trabalho em termos de direitos sociais, e o fim da divisão do trabalho por gênero, tanto do remunerado como do não remunerado.

Em cada uma dessas épocas, as feministas vocalizaram reivindicações de emancipação, voltadas à superação da dominação. Em alguns momentos, visaram estruturas comunitárias tradicionais que enraizavam mercados; em outros, apontaram seu fogo contra as forças que desenraizavam os mercados; em outros ainda, seus principais inimigos eram aqueles que estavam reenraizando os mercados de forma opressiva. Assim, as reivindicações feministas não se alinharam de forma consistente com nenhum dos polos do duplo movimento de Polanyi. Ao contrário, suas lutas pela emancipação constituíram um terceiro lado do movimento social, que atravessava os outros dois. O que Polanyi chamou de duplo movimento foi na verdade um triplo movimento.

4. Conceitualizando o triplo movimento

Mas o que significa exatamente falar de um “triplo movimento”? Essa figura concebe a crise capitalista como um conflito tripartite entre forças de mercantilização, proteção social e emancipação. Ela entende cada um desses três termos como conceitualmente irredutíveis, normativamente ambivalentes e inextricavelmente emaranhados aos outros dois. Já vimos que, contrariamente ao que Polanyi diz, a proteção social é muitas vezes ambivalente, proporcionando alívio dos efeitos desintegradores da mercantilização ao mesmo tempo que consolida a dominação. Mas, como veremos, o mesmo se aplica aos outros dois termos. O desenraizamento dos mercados realmente tem os efeitos negativos que Polanyi destacou, mas também pode gerar efeitos positivos quando as proteções que desintegra forem opressivas. Tampouco a emancipação está imune à ambivalência, pois produz não só libertação mas também tensões no tecido das solidariedades existentes; ao mesmo tempo que desmantela a dominação, a emancipação também pode dissolver a base ética solidária da proteção social, de modo a abrir caminho à mercantilização.

Vistos dessa forma, cada termo tem um télos próprio e um potencial de ambivalência que se desenvolve em sua interação com os outros dois termos. Nenhum dos três pode ser adequadamente compreendido isoladamente dos outros. Tampouco o campo social pode ser adequadamente compreendido concentrando-se em apenas dois termos. Só quando todos os três são considerados em conjunto é que começamos a ter uma visão adequada da gramática da luta social na crise capitalista.

Eis, então, a premissa central do triplo movimento: a relação entre dois lados quaisquer do conflito tripartite deve ser mediada pelo terceiro. Assim, como acabo de argumentar, o conflito entre mercantilização e proteção social deve ser mediado pela emancipação. Da mesma forma, porém, como argumentarei a seguir, os conflitos entre proteção e emancipação devem ser mediados pela mercantilização. Em ambos os casos, a díade deve ser mediada pelo terceiro. Negligenciar o terceiro é distorcer a lógica da crise capitalista e do movimento social.

5. A mesa virada: a ambivalência da emancipação na nova grande transformação

Até aqui, tenho utilizado o movimento triplo para explorar a ambivalência da proteção social. Agora, porém, quero virar a mesa e usar o movimento triplo para explorar as ambivalências da emancipação. Assim, tendo acabado de sublinhar a necessidade de ver os conflitos entre a mercantilização e a proteção social como mediados pela emancipação – uma mediação que Polanyi negligenciou –, quero agora sublinhar a necessidade de ver os conflitos entre a proteção e a emancipação como mediados pela mercantilização, uma mediação que, a meu ver, tem sido negligenciada por importantes correntes do movimento feminista.

Aqui, portanto, mudo o foco para a “grande transformação” do nosso tempo. Para compreendê-la, devemos começar com o “liberalismo enraizado” que se estabeleceu no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Sustentado pelo quadro regulatório internacional conhecido como Bretton Woods, o liberalismo enraizado abrangeu os Estados de bem-estar social keynesianos do Primeiro Mundo e os Estados desenvolvimentistas do Terceiro. Desde a década de 1980, no entanto, esses acordos estão sob a pressão do neoliberalismo, que promoveu o novo desenraizamento dos mercados, provocando assim a mais grave crise capitalista desde a Grande Depressão.

Analisemos então a crise atual a partir da imagem do triplo movimento, tal como Polanyi utilizou o duplo movimento para compreender a crise anterior. Para nós, tal como para ele, o objetivo é tornar mais claras as perspectivas de uma nova onda de reenraizamento democrático, estabilizada por um regime global de regulação político-econômica. Para nós, contudo, a proteção social deve ser repensada à luz da emancipação. Assim, nossa tarefa é a de imaginar mecanismos para o reenraizamento de mercados que sirvam simultaneamente para superar a dominação.

Começo por observar que, em nosso tempo, cada lado do triplo movimento tem expoentes zelosos. A mercantilização é fervorosamente defendida pelos neoliberais. A proteção social angaria apoio sob várias formas, algumas agradáveis, outras desagradáveis – desde sociais-democratas e sindicalistas organizados em nível nacional até movimentos populistas anti-imigrantes, desde movimentos religiosos neotradicionais até ativistas antiglobalização, desde ambientalistas até os povos indígenas. A emancipação desperta paixões entre vários sucessores dos novos movimentos sociais, incluindo multiculturalistas, feministas internacionais, pessoas do movimento de liberação de gays e lésbicas, democratas cosmopolitas, ativistas dos direitos humanos e proponentes da justiça global. São as relações complexas entre esses três tipos de projetos que imprimem a forma de um triplo movimento à atual crise da sociedade capitalista.

Consideremos agora o papel dos projetos emancipatórios nessa constelação. Ao menos desde a década de 1960, tais movimentos têm desafiado aspectos opressivos da proteção social no liberalismo enraizado. Anteriormente, os integrantes da Nova Esquerda expuseram o caráter opressivo dos regimes de bem-estar social burocraticamente organizados, que enfraquecem seus aparentes beneficiários. Da mesma forma, os anti-imperialistas desmascararam o caráter opressivo das proteções sociais do Primeiro Mundo, que foram financiadas por meio de trocas desiguais que recaíram nas costas dos povos ex-coloniais. Mais recentemente, os multiculturalistas revelaram o caráter opressivo das proteções sociais baseadas em autoentendimentos de maiorias religiosas ou etnoculturais, que penalizam membros de grupos minoritários. Finalmente, e com maior importância para meus propósitos aqui, as feministas da segunda onda expuseram o caráter opressivo das proteções sociais baseadas nas hierarquias de gênero.

Em cada caso, o movimento revelou um tipo de dominação e fez uma reivindicação correspondente de emancipação. Contudo, também em cada caso, as reivindicações de emancipação do movimento eram ambivalentes – podiam alinhar-se, em princípio, quer com a mercantilização quer com a proteção social. No primeiro caso, sempre que a emancipação se alinhasse com a mercantilização, serviria para erodir não apenas a dimensão opressiva mas a proteção social como um todo. No segundo caso, sempre que a emancipação se alinhasse com a proteção social, serviria não para desgastar, mas para transformar o modo de proteção.

Afirmo que esse argumento é válido para todos os movimentos emancipatórios que acabei de mencionar. Aqui, no entanto, concentro-me na crítica do feminismo da segunda onda a uma dimensão opressiva da proteção social no liberalismo enraizado. Defendo que, muitas vezes, esse movimento viu-se encalacrado numa luta entre dois lados. Centrado na oposição às proteções opressivas, nem sempre esteve suficientemente consciente do terceiro lado do triplo movimento, qual seja, os esforços para ampliar e autonomizar os mercados. Ao negligenciar a ascensão do neoliberalismo, muitas feministas da segunda onda compreenderam mal sua própria situação e avaliaram mal as prováveis consequências de suas ações. O resultado de seu fracasso em mediar o conflito entre a emancipação e a proteção social com relação à mercantilização ainda hoje molda o curso da crise capitalista no século XXI.

6. Ambivalências feministas

Lembremos que o feminismo da segunda onda teve em sua mira o caráter hierárquico de gênero das proteções sociais do Estado de bem-estar social do pós-guerra. Nos Estados Unidos, isso significou expor o subtexto de gênero de um sistema dividido entre assistência estigmatizada aos pobres para mulheres e crianças, por um lado, e seguridade social respeitável para aqueles considerados “trabalhadores”, por outro. Na Europa, significou revelar uma hierarquia androcêntrica semelhante na divisão entre as pensões das mães e os direitos sociais ligados ao trabalho assalariado. Em ambos os casos, as feministas discerniram vestígios de um esquema mais antigo, herdado de antes da guerra, conhecido como “salário familiar”. Esse esquema imaginava o cidadão ideal-típico como um provedor e um homem de família, cujo salário era o principal, se não o único, sustento econômico de sua família, enquanto o salário da esposa, se houvesse, era suplementar. Profundamente ligado ao gênero, esse ideal de “salário familiar” forneceu uma parte central da substância ética na qual os Estados de bem-estar social do pós-guerra se basearam para reenraizar os mercados. Ao normalizar a dependência das mulheres, o sistema de proteção social resultante comprometeu as possibilidades das mulheres de participar plenamente, em pé de igualdade com os homens, na vida social. Ao institucionalizar compreensões androcêntricas da família e do trabalho, naturalizou a hierarquia de gênero e retirou-a da disputa política. Igualmente importante é que, ao valorizar o trabalho assalariado, o modo de proteção do liberalismo enraizado obscureceu a importância social do trabalho de cuidado não remunerado.

Foi essa a crítica feminista ao liberalismo enraizado. Política e intelectualmente poderosa, tratava-se, no entanto, de uma crítica ambivalente, capaz de conduzir a qualquer uma dentre duas direções. Em uma delas, a crítica feminista ao salário familiar teria como objetivo garantir o pleno acesso das mulheres ao emprego e aos direitos associados ao emprego, em pé de igualdade com os homens. Nesse caso, tenderia a valorizar o trabalho assalariado e o ideal androcêntrico de independência individual, levando à efetiva desvalorização do trabalho de cuidado não remunerado, da interdependência e da solidariedade. Ao tomar como alvo o éthos de gênero tradicional que ainda servia para enraizar os mercados, tal tipo de feminismo poderia acabar favorecendo o desenraizamento deles. De modo intencional ou não, poderia ter como efeito o alinhamento da luta contra a hierarquia de gênero com a mercantilização.

Em princípio, porém, a crítica feminista da proteção opressiva poderia desenvolver-se de outra maneira. Articulada de forma diferente, a luta feminista pela emancipação poderia alinhar-se com o outro polo do triplo movimento, o polo da proteção social. Nesse segundo cenário, o impulso da crítica feminista seria no sentido de rejeitar as valorações androcêntricas, especialmente a sobrevalorização do trabalho assalariado e a subvalorização do trabalho de cuidado não remunerado. Ao classificar o trabalho de cuidado como uma questão de importância pública, o impulso do movimento seria no sentido de repensar os arranjos sociais de uma forma que permitisse a todos – homens ou mulheres – realizar ambos os conjuntos de atividades, sem as tensões que hoje se abatem sobre todos esses esforços. Rejeitando, também, a oposição codificada pelo gênero entre dependência e independência, um feminismo pró-protecionista serviria para quebrar a ligação espúria entre a hierarquia social e a dependência, ligação esta que é uma característica universal da condição humana. Ao valorizar a solidariedade e a interdependência, a crítica trabalharia não para dissolver, mas para transformar as proteções sociais.

Na verdade, a segunda onda do feminismo abarcava ambas as orientações. Na maior parte, as chamadas feministas liberais e radicais gravitaram na direção da mercantilização, enquanto as feministas socialistas e as feministas não brancas eram mais propensas a alinhar-se com as forças favoráveis à proteção social. No primeiro caso, o alinhamento nem sempre foi intencional. Nem todas as feministas liberais e radicais pretendiam conscientemente substituir o salário familiar por uma família com dois assalariados. Porém, ao deixarem de situar sua luta pela emancipação no contexto do triplo movimento, poderiam acabar incitando involuntariamente as forças que procuram desenraizar e desregulamentar os mercados. No outro caso, ao contrário, o alinhamento foi relativamente consciente. As feministas cujas preocupações se encaixavam com as forças protecionistas tendiam a uma compreensão intuitiva da lógica do triplo movimento. Em geral tinham consciência de que sua luta pela emancipação se cruzava com outra luta, entre a proteção e a desregulamentação. Posicionando-se num jogo tripartite, procuraram evitar a cumplicidade com as forças da mercantilização, ao mesmo tempo que se opuseram vigorosamente às proteções opressivas.

Pode-se dizer que a ambivalência feminista foi resolvida nos últimos anos em favor da mercantilização. Insuficientemente sintonizadas com a ascensão do fundamentalismo de livre mercado, as feministas mais influentes acabaram por fornecer a justificativa para um novo modo de acumulação de capital, fortemente dependente do trabalho assalariado das mulheres. À medida que as mulheres ingressam nos mercados de trabalho em todo o mundo, o ideal do salário familiar perde terreno para a norma mais recente e moderna da família com dois assalariados. Certamente, a realidade subjacente ao novo ideal é catastrófica para muitos: níveis salariais deprimidos, menor segurança no emprego, padrões de vida declinantes, aumento acentuado no número de horas trabalhadas por unidade domiciliar em troca de salários e exacerbação da dupla jornada – agora muitas vezes uma jornada tripla ou quádrupla. Mas o neoliberalismo encobre suas depredações com um véu encantador e carismático: fazendo referência à crítica feminista do salário familiar, promete a libertação por meio do trabalho assalariado a serviço do capital. Claramente, as ideias feministas impregnam a experiência dos quadros femininos das classes médias profissionais, em sua determinação em chegar ao topo. No entanto, da mesma forma, conferem um significado mais elevado e um sentido moral às lutas diárias de milhões de mulheres trabalhadoras temporárias, de meio período, em serviços com baixos salários, domésticas, profissionais do sexo, migrantes, trabalhadoras de ZPE e mutuárias de microcrédito, que procuram não apenas rendimento e segurança mas também dignidade, autoaperfeiçoamento e libertação da autoridade tradicional. Em ambos os casos, o sonho da emancipação das mulheres está atrelado ao motor da acumulação de capital. Assim, a crítica do feminismo ao salário familiar assumiu uma valência mercantilizante. Antes capaz de se alinhar com a proteção social, hoje serve cada vez mais para intensificar a valorização do trabalho assalariado pelo neoliberalismo.

7. Por uma nova aliança da emancipação com a proteção social

O que devemos concluir desse relato? Certamente não que o feminismo da segunda onda tenha pura e simplesmente fracassado. Nem que seja o culpado pelo triunfo do neoliberalismo. Obviamente não que as lutas por emancipação sejam inerentemente problemáticas, sempre fadadas a serem recuperadas para projetos de mercantilização. Concluo, isso sim, que nós, que pretendemos emancipar as mulheres da hierarquia de gênero, precisamos nos tornar mais conscientes de que operamos num terreno que também é povoado por forças mercantilizantes. Acima de tudo, precisamos ter em conta a ambivalência inerente à emancipação, sua capacidade de seguir uma de duas direções – aliar-se às forças da mercantilização ou às que promovem a proteção social. Somente se avaliarmos essa ambivalência e anteciparmos seus potenciais efeitos não intencionais é que poderemos empreender uma reflexão política coletiva sobre a melhor forma de a resolvermos.

Deixe-me retornar às questões mais amplas que inspiraram este capítulo. Refletindo sobre a grande transformação que vivemos agora, efetivamente reescrevi o projeto de Polanyi. Ao teorizar o duplo movimento, ele retratou os conflitos de seu tempo como uma batalha histórica pela alma do mercado: será que a natureza, o trabalho e o dinheiro serão despojados de todo significado ético, fatiados, cortados em cubos e negociados como um item qualquer, e que se danem as consequências? Ou estarão os mercados, nessas bases fundamentais da sociedade humana, sujeitos a uma regulamentação política informada ética e moralmente? No século XXI, essa batalha continua tão premente como sempre. Mas o triplo movimento a lança sob uma luz mais nítida, atravessada por duas outras grandes batalhas de importância histórica. Uma delas é uma batalha pela alma da proteção social. Serão os arranjos que reenraizaram os mercados na era pós-neoliberal opressivos ou emancipatórios, hierárquicos ou igualitários – e, poderíamos acrescentar, mal enquadrados ou bem enquadrados, hostis às diferenças ou favoráveis às diferenças, burocráticos ou participativos? Essa batalha também é tão urgente como sempre. Mas é atravessada por mais uma batalha histórica – nesse caso, pela alma da emancipação. Servirão as lutas emancipatórias do século XXI para promover o desenraizamento e a desregulamentação dos mercados? Ou servirão para ampliar e democratizar as proteções sociais e torná-las mais justas?

Essas questões sugerem um projeto para aquelas de nós que continuam comprometidas com a emancipação. Poderíamos decidir romper nossa ligação perigosa com a mercantilização e forjar uma nova aliança de princípios com a proteção social. Ao realinhar os polos do triplo movimento, poderíamos integrar nosso interesse de longa data pela não dominação com interesses legítimos pela solidariedade e pela segurança social, sem negligenciar a importância da liberdade negativa. Abraçando uma compreensão mais ampla da justiça social, um tal projeto serviria, enfim, para honrar as ideias de Polanyi e solucionar seus pontos cegos.

# Imagem do helicóptero da Havan é fake. Márcio  Padrão (Uol)

# Mentira em massa como política. Tales Ab'Sáber (A Terra é redonda)

# A internet e a armadilha do consenso

Libertar a rede do modelo de gestão das big techs (Outras Palavras)

# Ciência burra, idiotas políticos e selvagens morais

Crônica de Ladislau Dawbor (Outras Palavras)

Em Gaza, a sinfonia da morte

Rafah é o último refúgio e as bombas são a morte que chove do céu. Centenas de milhares fogem – tentativa patética para Israel. Não há mais código moral: o genocídio é sua redenção. A humanidade, indiferente, não vê sua própria ruína. Chris Hedges, Outras Palavras

Corram, exigem os israelenses, corram para salvar suas vidas. Fujam de Rafah como fugiram da Cidade de Gaza, como fugiram de Jabalia, como fugiram de Deir al-Balah, como fugiram de Beit Hanoun, como fugiram de Bani Suheila, como fugiram de Khan Yunis. Fujam ou nós os mataremos. Lançaremos bombas de 2 mil libras em seus acampamentos. Vamos pulverizá-los com balas de nossos drones equipados com metralhadoras. Vamos bombardeá-los com projéteis de artilharia e tanques. Nós os abateremos com atiradores de elite. Vamos dizimar suas tendas, seus campos de refugiados, suas cidades e vilas, suas casas, suas escolas, seus hospitais e suas estações de purificação de água. Faremos chover morte do céu (continue a leitura)

Corram por suas vidas. De novo e de novo e de novo. Empacotem os poucos pertences patéticos que lhes restam. Cobertores. Algumas panelas. Algumas roupas. Não nos importamos se vocês estão exaustos, se estão com fome, se estão apavorados, se estão doentes, se são velhos ou jovens. Corram. Corram. Corram. E quando vocês correrem aterrorizados para uma parte de Gaza, nós os faremos dar meia-volta e correr para outra. Presos em um labirinto de morte. Para frente e para trás. Para cima e para baixo. De um lado para o outro. Seis. Sete. Oito vezes. Nós brincamos com vocês como ratos em uma armadilha. Depois, nós os deportamos para que nunca mais possam voltar. Ou matamos vocês.

Deixe o mundo denunciar o nosso genocídio. O que nos importa? Os bilhões em ajuda militar fluem sem controle do nosso aliado americano. Os caças. Os projéteis de artilharia. Os tanques. As bombas. Um suprimento infinito. Matamos crianças aos milhares. Matamos mulheres e idosos aos milhares. Os doentes e feridos, sem remédios e hospitais, morrem. Envenenamos a água. Cortamos a comida. Nós fazemos vocês morrerem de fome. Nós criamos esse inferno. Nós somos os mestres. Lei. Obrigação. Um código de conduta. Eles não existem para nós.

Mas primeiro brincamos com vocês. Nós humilhamos vocês. Nós aterrorizamos vocês. Nós nos deleitamos com seu medo. Nós nos divertimos com suas tentativas patéticas de sobreviver. Vocês não são humanos. Vocês são criaturas. Não são humanos. Alimentamos a nossa libido dominandi o nosso desejo de dominação. Veja nossas postagens nas redes sociais. Elas se tornaram virais. Uma mostra soldados sorrindo em uma casa palestina com os proprietários amarrados e vendados ao fundo. Nós saqueamos. Tapetes. Cosméticos. Motos. Joia. Relógios. Dinheiro. Ouro. Antiguidades. Nós rimos de sua miséria. Nós comemoramos sua morte. Celebramos a nossa religião, a nossa nação, a nossa identidade, a nossa superioridade, negando e apagando a sua. 

A depravação é moral. Atrocidade é heroísmo. Genocídio é redenção.

Jean Améry, que esteve na resistência belga durante a Segunda Guerra Mundial e foi capturado e torturado pela Gestapo em 1943, define o sadismo “como a negação radical do outro, a negação simultânea do princípio social e do princípio da realidade. No mundo do sádico, a tortura, a destruição e a morte são triunfantes: e tal mundo claramente não guarda esperança de sobrevivência. Pelo contrário, ele deseja transcender o mundo, alcançar a soberania total negando os outros seres humanos – o que ele vê como representando um tipo particular de ‘inferno’”.

Em Tel Aviv, Jerusalém, Haifa, Netanya, Ramat Gan, Petah Tikva, quem somos nós? Lavadores de louça e mecânicos. Trabalhadores de fábricas, coletores de impostos e motoristas de táxi. Coletores de lixo e funcionários de escritório. Mas em Gaza somos semideuses. Podemos matar um palestino que não fique apenas de cueca, caia de joelhos e implore por misericórdia com as mãos amarradas nas costas. Podemos fazer isso com crianças de 12 anos e homens de 70 anos.

Não há restrições legais. Não há código moral. Há apenas a emoção inebriante de exigir formas cada vez maiores de submissão e formas cada vez mais abjetas de humilhação.

Podemos nos sentir insignificantes em Israel, mas