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 O que há de novo?24-31 março 24

Benditas leituras!

A partir desta Semana Santa e sempre nos feriados prolongados e nas férias, seção nova no site... Na 1a edição: # A crítica ao identitarismo # Quem é Aldo Rebelo e como é que ele faz uma coisa dessas, apoiar Nunes para prefeito!!? # Quem censura, a direita, a esquerda ou o mercado? # Como as imagens de Clarice Lispector e de Paulo Coelho estão associadas às suas obras? # Chat Baker e Miles Davis: muito pó e muito jazz # Coisa linda: os Tristes Trópicos de Lévi-Strauss # Inteligência Artificial precisa estar sob controle? Tem gente que acha que sim... (saiba mais)

Marielle: o fio do novelo

Feitas as prisões, falta muito a esclarecer sobre a motivação do crime e os envolvidos. Qual a possível relação entre os mandantes e o clã Bolsonaro? Será possível começar a mapear a presença das milícias na política do Rio e do Brasil?

Sonia Fleury, Outras Palavras

Os últimos lances na investigação que já dura 6 anos, desde o assassinato de Marielle e Anderson, foram celebrados como a aproximação do seu fim, com o esclarecimento dos mandantes e da motivação do crime bárbaro, a partir da convocação de um coletiva pelo Ministro Lewandowski para anunciar que a delação premiada do assassino confesso Ronnie Lessa havia sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal (continue a leitura)

Mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro

Para a família, as esperanças foram renovadas como expressou a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco; para a viúva, vereadora Mônica Benício, a coletiva convocada pelo Ministro causou frustração e dor, enquanto o Governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, reagiu dizendo que até agora tudo que se sabe são fofocas. Aliás, sua postura tem variado ao longo do tempo entre a necessidade de manter uma aparente neutralidade, como em 2021 quando declarou que cobrava uma solução mas não garantia um desfecho da investigação, até a postura atual, cujo cinismo ao afirmar que tudo não passa de fofoca, o retira, definitivamente da sua busca de neutralidade, Em ambos os casos, apresenta posturas não condizentes com a autoridade máxima do Estado onde o crime foi executado e investigado, até recentemente, pela polícia civil do seu governo.

Neste 6 anos de investigação, foram detidos o ex-policial e traficante de armas Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz, réus confessos de terem participado diretamente do assassinato, e o bombeiro Maxwell Simões também envolvido, todos vinculados ao Escritório do Crime e à milícia, e, mais recentemente, o dono do ferro-velho que desmanchou o carro usado no crime. Nenhum deles, até o momento foi julgado e condenado. O processo de investigação na polícia civil, no entanto, é digno de uma investigação sobre o percurso rocambolesco, com a participação e posterior afastamento de uma promotora bolsonarista, a substituição por quatro vezes do delegado responsável pela investigação, a tentativa de delação premiada envolvendo homicídios e ligação com políticos da viúva do chefe do Escritório do Crime, o ex-PM Adriano Nóbrega, executado na Bahia – agraciado com a medalha Tiradentes por Flavio Bolsonaro e considerado um herói por Jair Bolsonaro – o pedido de afastamento da promotoras Simoni Sibilio e Leticia Emile do MPRJ, sob alegação de riscos e interferências externas no processo, a partir do vazamento de informações sigilosas pelo Delegado Mauricio Demétrio – posteriormente preso e condenado a 9 anos, acusado de comandar uma quadrilha – vazamento autorizado pelo secretário da Polícia Civil Alan Turnowski, posteriormente preso por ligação com o jogo do bicho.

Em outubro de 2023 o inquérito foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, para o STF, após surgirem suspeitas do envolvimento no crime de um membro do clã Brazão, com imunidade. O nome de Domingos Brazão, ex-deputado estadual por cinco mandatos consecutivos e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, foi mencionado como mandante do crime. Trata-se do líder de um poderoso grupo político da zona oeste do Rio, berço das milícias, que tem uma vasta folha corrida, com acusações de assassinato, improbidade administrativa, fraude, envolvimento na máfia dos combustíveis, com as milicias e na compra de votos.

Após a homologação da delação premiada de Ronnie Lessa, seus advogados de defesa abandonaram o caso, em clara manifestação de contrariedade com o rumo que as investigações tomaram. Também chama atenção o acesso da imprensa a informações confidenciais da delação, divulgadas pelo jornal O Globo, nas quais além da informação sobre os mandantes do crime, envolvendo também Chiquinho Brasão, deputado federal, Ronnie Lessa teria afirmado que a motivação do crime se deveu ao fato de a vereadora ter entrado em rota de colisão com os interesses da milícia em relação à expansão de terrenos sob seu domínio na zona oeste. O investigado afirma ter tido pelo menos quatro encontros com os mandantes depois do crime, preocupado com a enorme repercussão do assassinato de Marielle, ao que teria sido tranquilizado por eles pois “a investigação não ia dar em nada”.

Mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro (acesse aqui)


Em azul, as comunidades do Rio de Janeiro comandadas pelas milícias, hoje majoritárias. Em vermelho, as que estão sob o controle da facção Comando Vermelho. Em verde, as administradas pela facção Terceiro Comando Puro. Em amarelho, as regidas pela facção Amigos dos Amigos.

O que chama atenção é a certeza de impunidade dos mandantes, que parecem seguros que não ia dar em nada a investigação da morte de uma mulher preta favelada, mesmo sendo a quinta vereadora mais votada e tendo se tornado a expressão de uma nova forma de fazer política – a mandata, que deixou muitas sementes -, chegando junto das populações de favelas, das mulheres negras, dos movimentos LGBTQIA+, dentre outros, encantando com sua coragem jovens de toda a cidade, que viam na sua atuação uma esperança de mudança política. Mais além da sua atuação junto ao deputado Marcelo Freixo na CPI das Milícias ou dos interesses das milícias em sua expansão territorial, o assassinato de Marielle ceifou sua potência política e a esperança de que seria possível uma nova política no Rio de Janeiro. Sua morte, no entanto, tornou-a um símbolo internacional das lutas identitárias e urbanas.

Os avanços na investigação, com a denúncia dos nomes dos mandantes e da motivação do crime, sinalizam para alguns, para em breve, o possível término da investigação, enquanto, para muitos, ainda restam inúmeras questões a serem esclarecidas, sendo o assassinado a ponta do fio do novelo que deveria desvendar, entre outras, as seguintes perguntas:

– O que aconteceu com o porteiro do condomínio onde Bolsonaro e Ronnie Lessa eram vizinhos, depois que ele declarou que o presidente autorizou a entrada de Élcio Queiroz no dia do crime?

– Existe relação da morte de Adriano Nóbrega, considerada queima de arquivos, com o assassinato de Marielle e Anderson, já que Adriano e Ronnie Lessa atuaram juntos em vários crimes, segundo depoimento de Orlando Curicica sobre o Escritório do Crime?

– Quais as relações do Escritório do Crime e das milícias com a polícias, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário?

– Será que o assassinato de Marielle e Anderson poderá ser o fio do novelo que poderia desvendar, como fez o mapa do domínio das milicias e tráfico nos território do Rio de Janeiro, um novo mapa deste domínio na política?

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* Texto produzido para o site Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Acesse aqui a publicação original em Outras Palavras

A fuga frustrada de um bandido

Manifesto que circula entre militares festeja golpe de 64 e estimula conspiração contra a democracia
Cleber Lourenço, Pública (expandir)

Ao menos 20 grupos de WhatsApp e Telegram que reúnem militares da ativa e da reserva têm se alvoroçado com a proximidade do aniversário do golpe militar, no próximo dia 31 de março. Em mensagens obtidas pela Agência Pública, há um tom de expectativa com o que será dito no Clube Militar do Rio de Janeiro, que anunciou a realização de um almoço com tom comemorativo dos 60 anos do golpe que levou à instauração da ditadura em 1964.

Nesses grupos, de que participam associados do Clube Militar, cabos, soldados, sargentos, coronéis da ativa e militares da reserva, também circula uma série de mensagens e que se considera, por exemplo, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos “um verdadeiro herói” por ter se colocado à disposição para os planos golpistas de Jair Bolsonaro. Nomeado pelo ex-presidente, Garnier assumiu o comando da Marinha em 9 de abril de 2021, servindo até o fim do mandato.

Circulam também mensagens com reproduções de um jornal da época em que uma matéria intitulada “A fabulosa demonstração e repulsa ao comunismo” vai acompanhada da mensagem: “O Brasil de 3 de abril de 1964. A repulsa permanece”.

Mas há também pessimismo em relação ao papel dos atuais generais diante do aniversário do golpe militar, no próximo dia 31 de março. 

Um texto intitulado “Ordem da noite”, assinado em nome do coronel da reserva José Gobbo Ferreira, 83 anos, tem circulado nesses grupos com frequência.

O manifesto possui trechos que acenam à quebra de hierarquia ao fazer críticas aos comandantes atuais, os quais considera “sem valores tradicionais e sem patriotismo”. O texto, recheado de desinformação, chama o golpe militar de “contrarevolução”. “A contrarevolução de 1964 foi tão importante para a história de nosso País que é fora de questão deixar seu aniversário passar em branco”, diz um trecho. 

O título, “Ordem da noite”, faz uma crítica à ordem do governo federal para que não sejam emitidas “ordens do dia” exaltando o golpe militar. “Como membro da geração que participou dela, na inexistência de uma Ordem do Dia, envio algumas palavras àqueles meus irmãos de armas do Exército de Caxias e as chamo “Ordem da Noite””, diz um trecho. 

Em outra parte, o autor menciona indiretamente o atual comandante do Exército, o general Tomás Paiva, que já era comandante da força em março de 2023, alegando que os militares caminham em direção à adoção de doutrinas à esquerda. “Esse nome não somente evita excitar os pruridos do senhor cmt [comandante] do EB [Exército Brasileiro] como se aplica perfeitamente aos tempos trevosos que a Força vem vivendo hoje em sua transição rumo ao bolivarianismo”.

O texto vai além: “as pessoas que hoje comandam o EB não são donas da Força”. De maneira subjetiva, o texto diz que os comandantes do Exército não teriam um verdadeiro comando da tropa, o que poderia ser interpretado como um convite à quebra de hierarquia na caserna, segundo comentário de fontes militares consultadas pela reportagem.

Procurado, Gobbo confirmou a autoria do texto à Pública. “Esse texto foi publicado no ano passado, no dia 31/03/2023. Não tenho nada a comentar sobre ele. Ele é claro e explícito”, respondeu. Outras versões do manifesto também foram publicadas sem data e autoria.

Gobbo era um tenente da 4a Companhia de Manutenção Leve em 1964 quando participou ativamente do golpe nas fileiras do general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Divisão de Infantaria, sediada em Juiz de Fora (MG), que na noite de 31 de março mandou suas tropas marcharem em direção ao Rio, precipitando o golpe que vinha sendo articulado por generais, empresários e governadores de oposição ao governo Jango.

Gobbo foi da turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) de 1962 e chegou a ser cotado para assumir o Ministério da Educação em 2020 durante o governo Bolsonaro. Ele é autor do livro Dez anos de PT e a desconstrução do Brasil, que é uma espécie de ensaio anti-PT com críticas às políticas públicas como as cotas raciais e o programa Mais Médicos.

As mensagens de comemoração do golpe nos grupos privados de militares no WhatsApp e Telegram contrastam com a postura do governo Lula, que vetou um evento sobre o tema planejado pelo Ministério dos Direitos Humanos. Lula disse ainda numa entrevista que “não vai ficar remoendo” o passado. 

Como revelado pela Pública, Lula ainda não recebeu em seu mandato os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Ao mesmo tempo, não há previsão para que a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos volte a ser restabelecida em seu governo.


Link para acesso à matéria original da Pública

Com abstenção dos EUA, ONU aprova cessar fogo incondicional em Gaza

Nova proposta deixa de vincular a suspensão das agressões de Israel à libertação de reféns pelo Hamas (leia mais no Opera Mundi)

50 anos da revolução dos cravos

Um processo de dissolução do aparelho de Estado, resultado de uma mobilização sem paralelos na Europa de pós-guerra

Lincoln Secco e Osvaldo Coggiola, A Terra é redonda (expandir)

Há cinquenta anos, em Portugal, a Revolução dos Cravos abalou Europa e o mundo. Em abril de 1974, essa revolução iniciou um processo de dissolução do aparelho de Estado, resultado de uma mobilização operária e popular sem paralelos na Europa de pós-guerra. No final do ano, o Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, informou às autoridades das principais potências europeias da intenção dos Estados Unidos de invadir Portugal, para evitar o surgimento de uma “nova Cuba” em plena Europa.

A intervenção extrema do presidente francês, Valéry Giscard D’Estaing, evitou esse extremo, contra a promessa de conter a revolução através de uma reconstrução das Forças Armadas portuguesas. A guerra revolucionária no Vietnã foi o acontecimento central dessa época; ela acendia nos EUA o pânico de uma expansão mundial do comunismo. Kissinger chegou a expor uma “teoria da vacina”, que deveria ser aplicada em Portugal para imunizar Europa contra o comunismo.

O regime português, instalado em 1926 sob a liderança de António de Oliveira Salazar e chefiado meio século depois por Marcelo Caetano, dera fim aos dezesseis anos da Primeira República Portuguesa. Era uma ditadura corporativista-fascista com um papel central da polícia política, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), responsável pela repressão da oposição ao regime do “Estado Novo”, forma lusitana peculiar de corporativismo, instalado na década que testemunhou mundialmente a ascensão de movimentos fascistas, quando, em Portugal, “o tempo dos conflitos e da luta de classes terminaria em favor do ‘interesse nacional’, o único a dar coesão a todos”.

No caso português esta via se deu, não através da criação de milícias e brigadas como nos exemplos fascistas, mas através do Estado. Primeiro por intermédio das Forças Armadas, responsáveis pelo derrube da ‘república anárquica’. “Depois pela via do aparelho repressivo do próprio Estado na ação vigilante de sua polícia política”.[i] A atividade da PIDE abrangia até os locais mais íntimos dos portugueses, as querelas familiares, mas intervinha com especial força nos conflitos trabalhistas. 200 mil pessoas, 3% da população do país, trabalharam de um ou outro modo para a PIDE, que possuía um arquivo com três milhões de fichas, número equivalente a quase metade da população portuguesa. Portugal era, portanto, um Estado policial. A PIDE tinha 2.286 agentes em 1974, mas ela remunerava entre 10 e 12 mil pessoas, informantes incluídos. O chefe de Estado concedeu audiência diariamente ao chefe da PIDE a partir de 1962.

Em inícios de 1974, em fevereiro, porém, o regime mostrava publicamente suas fissuras, com a publicação de Portugal e o futuro, de António de Spínola, pela Editora Arcádia. O autor, militar e ex-governador da Guiné-Bissau advogava, após treze anos de “Guerra do Ultramar”, uma solução política e não militar como saída para o conflito colonial. O regime respondeu com a demissão dos generais António de Spínola e Francisco da Costa Gomes dos cargos que ocupavam no Estado Maior General das Forças Armadas. Marcelo Caetano pediu sua demissão ao Presidente da República, que não a aceitou.

Apenas dois meses depois, com o início da Revolução dos Cravos após uma ação militar a 25 de abril, que abriu passo a uma enorme mobilização popular, obrigando o governo a renunciar, a PIDE foi extinta e vários dos seus principais dirigentes foram presos. Mais de 1.500 detenções de membros e informadores da PIDE/DGS ocorreram entre abril e outubro de 1975. No final de 1976, iniciaram-se os julgamentos deles em Tribunal Militar, tendo os juízes usado de extrema benevolência com os antigos membros da PIDE.

O início dessa sequência foi uma literal implosão do Estado, que abriu passo para o início de uma revolução social. Em abril de 1974, desse modo, iniciou-se um processo de desmantelamento do Estado corporativo devido à crise no Exército, com seus jovens oficiais constituindo o MFA (Movimento das Forças Armadas), contra a hierarquia castrense. A motivação do grupo, inicialmente chamado de “Movimento dos Capitães”, era a oposição ao regime policial e à guerra colonial portuguesa. Essas guerras foram as de escala mais ampla da história da África.

Os militares portugueses enfrentavam problemas operacionais graves: eram três teatros de operações (quatro com Cabo Verde). Na Guiné: planícies encravadas no Senegal e em Guiné Conacri. Em Cabo Verde: montanhas. Em Angola e Moçambique, movimentos guerrilheiros de libertação nacional com apoio popular. O neocolonialismo entrou em choque com as insurgências guerrilheiras. Portugal não podia abandonar o domínio colonial direto em troca da manutenção da dominação econômica, era um país economicamente dependente, mas com fontes de acumulação colonial.[ii]

No entanto, foi a derrota militar à vista que fez com que as Forças Armadas abandonassem seu compromisso colonialista, voltando-se contra o regime. Para os militares não se tratava, inicialmente, de fazer uma revolução, mas sim de um golpe militar para salvar a sua “dignidade” contra um regime que os expunha a uma derrota desonrosa e à vergonha de se responsabilizar pelo fim do império colonial. A 16 de março de 1974, saíram das Caldas da Rainha oficiais com o objetivo de derrubar a ditadura: o “Levantamento das Caldas”, no entanto, fracassou.

Contudo, mostrou aos oficiais do MFA que a sua única opção era um golpe de Estado, começando os preparativos para a tomada do poder. A 25 de abril, a ditadura de Caetano foi derrubada em menos de 24 horas, quase sem derramamento de sangue. Os presos políticos foram libertados das prisões de Caxias e Peniche; a PIDE, já renomeada por Caetano como Direção-Geral de Segurança (DGS), foi destruída, assim como a censura. Lançaram-se ataques à sede do jornal A Época, o jornal oficial do regime. Os símbolos do regime foram destruídos pela população em uma semana, dando um forte apoio popular ao MFA. As Forças Armadas, antigas agentes da repressão, protagonistas de uma guerra colonial e defensoras do regime, pareciam situar-se ao lado do povo explorado, inclusive na perspectiva de levar Portugal ao socialismo.

As ações populares decisivas visaram o controle dos meios de comunicação e a deposição do governo. A população saiu às ruas e mudou a dinâmica do golpe militar, levando-o além de suas pretensões iniciais. Suas ações (soltura de presos políticos, ocupação de creches, empresas, depuração nas universidades) só tiveram o apoio do MFA porque a sanção popular era exatamente o que restituía, na prática, a perdida dignidade militar. Entretanto, a retomada da justificativa das Forças Armadas se fazia com a quebra da hierarquia militar e a desobediência diante da alta oficialidade.

Este foi o problema crucial da Revolução: feita em nome da dignidade militar, ela contrapôs sua legitimação popular à legitimação estatal. Uma vez que o aparelho de Estado estava temporariamente desorganizado, só a população bastava aos oficiais do MFA. Todavia, isto criava no movimento uma contradição entre a legitimidade de seus atos e a hierarquia das Forças Armadas.

O 25 de abril trouxe uma vaga de ideias e ações que se destinavam a ir muito além daquilo que podia (ou queria) a Junta de Salvação Nacional que assumiu o poder em nome do Movimento das Forças Armadas. De vegetarianos a maoístas, de homossexuais a ecologistas, de feministas a trotskistas, todos puderam (ou acreditaram poder) praticar suas esperanças. O MRPP, maoísta, imitava os Dazibaos, cartazes enormes chineses, com grandes jornais murais.

Os próprios muros de Lisboa se encheram de grandes pinturas, como se os militantes estivessem em plena Revolução Cultural chinesa. As fotografias desses murais revelam que eram feitos por vários grupos políticos. As editoras começaram a lançar livros proibidos ou que haviam sido recolhidos, as traduções prontas, mas censuradas, e uma vaga de títulos da extrema esquerda, de Mao a Guevara e Marx, ensaios de sociologia, política, guerra do ultramar, fazendo o movimento de vendas subir, repentinamente, 60%.

Inúmeras organizações de base surgiram na sociedade civil. A maioria delas no entorno do processo revolucionário. Ronald Chilcote anotou 580.[iii] Pelo menos treze eram órgãos políticos compostos por membros das Forças Armadas, desde associações de ex-combatentes do ultramar até parentes de militares ou de soldados ou oficiais na ativa ou passados à reserva. Órgãos oficiais, como o próprio Movimento das Forças Armadas, o Comando Operacional do Continente, e outros, eram, de fato, instituições políticas das Forças Armadas. O Regimento de Artilharia 1, por exemplo, ficou conhecido como “regimento vermelho” pelo suporte que dava às ações de Otelo Saraiva de Carvalho.[iv]

Várias ações afirmaram a autonomia das bases sociais da revolução: o movimento popular que já no próprio 25 de abril ocupou casas, creches e presídios políticos; o movimento organizado de trabalhadores rurais e urbanos que muitas vezes superou os limites impostos por suas representações sindicais e associativas; o próprio MFA, cujos soldados e oficiais de baixa patente colocaram em risco a unidade do Exército como garantidor da ordem. O movimento popular não foi a correia de transmissão de nenhum partido.

Charles Downs demonstrou que a orientação política das comissões de moradores, por exemplo, teve uma ação política radical ou reformista em função de sua participação em mobilizações em torno de problemas básicos que resultavam em conflito com o governo e não por uma orientação prévia de organizações de extrema esquerda.[v]

As greves superaram as expectativas do Partido Comunista, totalizando 734 entre o 25 de abril e a tentativa de golpe de 28 de setembro. Nos estaleiros navais de Lisnave, onde trabalhavam 8.500 pessoas na planta principal (e quase 13 mil nas empresas anexas), as vitórias das primeiras greves foram espetaculares. As greves parciais em Lisnave tinham começado em fevereiro de 1974. Logo depois de abril, os trabalhadores obtiveram 7.200 escudos de salário mínimo, e 5.000 para o pessoal das cantinas, que ganhava 2.500 escudos (um aumento de 100%). Os aprendizes passaram a receber 6.800 escudos por mês, 7.200 depois de seis meses. Nenhum reajuste salarial acima de 15 mil escudos, e reintegração de todos os demitidos por razões políticas ou grevistas. Uma vitória total.

A luta operária era também política: a 7 de fevereiro de 1975 as comissões operárias de Lisboa convocaram uma manifestação d rua contra as manobras navais da OTAN ao largo das costas portuguesas. A manifestação foi proibida, mas os soldados que a deviam vigiá-la saudaram-na com o punho em alto. A 15 de maio, uma reunião do MFA declarou que a manifestação de fevereiro tinha sido apoiada pelo movimento. Mas o Conselho da Revolução, depois de uma reunião fechada de seis dias, emitiu uma declaração afirmando que a “ditadura do proletariado” e as “milícias operárias” “não coincidem com o socialismo pluralista de Portugal”. As lutas nas empresas e o surgimento dos conselhos de fábrica levaram socialistas e comunistas e o próprio MFA a tentar controlar o movimento sindical. O golpe do MFA tinha sido preventivo. O Capitão Maia, um de seus executores, declarou: “Tínhamos a sensação de nos dirigir para um abismo que concluiria numa guerra civil, na qual o povo se armaria”…[vi]

Os objetivos fundamentais do MFA se resumiam nos chamados três “D”: Descolonização, Desenvolvimento e Democracia. A descolonização era a principal reivindicação dos militares. Tratava-se de acabar com o império e resgatar a legitimidade das Forças Armadas. Para tanto, elas precisavam mudar de função: deixar de ser o esteio do império e se tornar a base da passagem do colonialismo em África para algum novo papel político “europeu”. Os objetivos nacionais entraram em conflito com os “imperiais”, já que a principal instituição nacional precisava manter sua integridade corporativa sem perder a guerra. A guerra já estava estrategicamente perdida. Por isso, o MFA propunha algum tipo de desenvolvimento econômico (e social) que fosse o sucedâneo da economia que se tornara elo de transmissão entre as colônias e os países centrais (Europa e EUA).

Ainda que aquela economia fosse cada vez mais de interesse de apenas um punhado de colonialistas que lucravam diretamente como donos de terras e investimentos na África ou como “transportadores” ou concessores de exploração das riquezas africanas, a maioria da nação não encontrava salvaguarda naquela estrutura. O desenvolvimento das escassas forças produtivas de um capitalismo semiperiférico tendia a encontrar na Europa (e não em África) suas possibilidades de expansão subalterna.

Aos países centrais e às próprias colônias (cujo comércio exterior prescindia cada vez mais de Portugal como mercado de destino) parecia muito mais lícito retirar o véu colonialista que encobria a real exploração da África Portuguesa pelo capital oligopolista internacional de modo a deixar duas saídas claras: a revolução social anticolonial ou a adaptação nos marcos de um “capitalismo dependente e associado”.

A democracia era o corolário inevitável do fim do império. Ela era o antípoda da ditadura fascista. Como a superestrutura política era o entrave a outra forma de expansão das relações de produção modernas ou capitalistas (fosse ela dependente da Europa ou de transição socialista), a democracia era o aríete que derrubaria o império colonial como um todo. Mas qual democracia? Em torno do seu significado se moveram as peças do jogo de xadrez no processo revolucionário. Uma “democracia popular” sob liderança do PCP; uma democracia de conselhos; a convivência de formas diretas e indiretas de atuação; uma democracia representativa liberal (com maior ou menor conteúdo social): estas eram as principais opções (ainda que não as únicas).

Os três “D” impuseram o quadro estratégico da atuação revolucionária. Dentro dele é que as forças político-militares poderiam estabelecer suas manobras táticas. Mas o quadro estratégico não impõe só limites, abre também possibilidades.  A Revolução é a aceleração do tempo histórico num espaço que se torna de súbito transparente. As opções parecem levadas ao limite e isto nos permite ver todas as contradições sociais. É por isso que os processos revolucionários ampliam a consciência política de milhões de pessoas do dia para a noite (ou o inverso, no caso do dia 25 de abril: literalmente da noite para o dia…).

Não só o pluralismo organizacional, mas também o das ideias (especialmente aquelas de extrema esquerda) adentrou os quartéis. Assim, chamava-se o Regimento de Disciplina Militar de “fascista”. Generalizou-se o uso de restaurante único para oficiais e praças. Indistintamente. Esse fato pitoresco também revelou um espírito que não podia subsistir sem agredir àquela mentalidade que garantia a disciplina militar. Era a ideologia de “um exército democrático”. Com esse título o jornal do Movimento das Forças Armadas pretendeu institucionalizar uma nova compreensão da hierarquia.

Era a institucionalização do próprio MFA, que se definia como a “vanguarda política das Forças Armadas”, e que agora contava com suas assembleias de delegados de unidade (ADU). Órgãos de conselho e de apoio do comando. O comandante era, por sua natureza de superioridade hierárquica, o chefe da ADU. Assistido também pelos delegados da AMFA – Assembleia do Movimento das Forças Armadas. Mas quem comandava?

“Importa salientar que a ADU de modo algum põe em causa a autoridade e a responsabilidade de decisão do comando”. Entretanto, “os comandantes, por seu turno, deverão ser os primeiros militantes do MFA, tendo sempre presente que se não pretende restaurar uma instituição militar ultrapassada, mas sim criar uma nova, no sentido de se caminhar para um exército competente, democrático e revolucionário, posto ao serviço do povo e capaz de corresponder à sociedade socialista que se quer construir” (Diretiva para a estruturação democrática do MFA nas unidades e estabelecimentos militares).

Essa ambiguidade persistente entre o corporativismo e a liderança política, entre a democracia interna e a disciplina, entre a tradição e a revolução aparecia nas expressões, nas palavras, nas criativas combinações: “disciplina consciente e hierarquia dinâmica”, “disciplina consentida”, “persuasão anterior à ordem”, “vontade e disciplina revolucionárias”.

O que se discutia era a “total integração das Forças Armadas no espírito do MFA”, que se daria pelo “esclarecimento e politização das Forças Armadas”. Ao mesmo tempo, este documento falava, paradoxalmente, de “elevado nível de disciplina, coesão e eficácia”. Definir o MFA na estrutura das Forças Armadas era só mais uma das tarefas impossíveis da Revolução. Isso só seria possível, pensava-se à época, quando o MFA se pudesse diluir no conjunto das Forças Armadas e houvesse uma coincidência de posições políticas. Ou seja, “a médio prazo”!  Um intelectual, ideólogo do chamado “grupo dos nove”, o Major melo Antunes, questionava essa ambiguidade da qual ele próprio era vítima e agente: “A atual situação de anarquia militar foi, em certa medida, fruto dos nossos erros, ou, mais precisamente, das nossas ilusões; nós acreditámos que se podia instalar no Exército uma estrutura política democrática”.

Os militares revolucionários se alimentavam de uma poesia tirada do passado, pregando alguma ordem, alguma hierarquia e alguma disciplina; para não romper com o que as Forças Armadas eram e não poderiam deixar de ser, eles procuraram ansiosamente modelos, como o do Peru de Velasco Alvarado. Liam-se matérias sobre o golpe militar no Peru e seu governo militar, nacionalista e popular. No catálogo da editora Prelo, encontrava-se o livro Peru: dois mil dias de revolução. Paradigmas de revoluções feitas por militares. E também modelos negativos, como Chile: uma revolução militar trágica.

Para o MFA, os militares chilenos cometiam crimes contra o seu próprio povo. Contrapunham-se aos militares peruanos, que fizeram “uma revolução militar original”. Outro modelo foi a revolução na Argélia. É certo que esses modelos refletiam mais o espírito da Quinta Divisão, onde se abrigavam os oficiais mais próximos do coronel Vasco Gonçalves. Mas também Cuba foi discutida. A visita a Cuba de Otelo Saraiva de Carvalho, fotografado num passeio de carro militar com Fidel Castro, provocou celeuma. Movimento, o boletim informativo das Forças Armadas, publicou uma manchete: “O MFA em Cuba”. Em maio de 1974 surgiram em várias empresas industriais de Lisboa os Comitês de Defesa da Revolução (à semelhança de seus congêneres cubanos), vinculados ao Partido Comunista Português.

Houve seis governos durante a “Revolução dos Cravos”: o I, II, III e IV tiveram participação do PS (socialistas), PCP (comunistas), PPD (popular-democratas) e militares, o V foi sobretudo apoiado por militares próximos do PCP e o VI tinha todos os partidos, mas era dominado politicamente pelo PS e militares aliados. Na primeira fase revolucionária testemunhou três tentativas de golpe de Estado, as primeiras a 10 de julho de 1974 e 28 de setembro do mesmo ano. O III governo provisório, iniciado em outubro de 1974, foi marcado pela ascensão das lutas populares. A última tentativa golpista dessa série, a 11 de março de 1975, também fracassou.

As três tentativas golpistas, portanto, fracassaram. A partir do frustrado golpe de março, a revolução se aprofundou: em comícios do PCP, seus militantes reclamavam, gritando enquanto seus dirigentes discursavam, “fora PPD”, ou seja, a ruptura com a política de “união nacional”, que era a de seu partido desde o início da revolução. A revolução se politizava e começava a mostrar um rosto menos ameno, depois do período simbolizado pelos cravos nos fuzis dos soldados.

A 25 de abril de 1975, primeiro aniversário da revolução, tiveram lugar as eleições para a Assembleia Constituinte, com 92% de comparecimento do eleitorado. O PCP e o PS, principais partidos da esquerda, obtiveram, conjuntamente (mas se apresentando em separado) 51% dos votos totais. O CDS, que propunha o retorno ao velho regime corporativo, obteve só 7,65%. As eleições traduziam, ainda que de modo indireto e certamente deformado, as relações de força no país. O MFA sentiu seu impacto.

A reestruturação da correlação de forças no MFA em setembro de 1975 levou à criação de um grupo proveniente de uma aliança entre o Partido Socialista, o “Grupo dos Nove” e a direita, um segundo grupo proveniente da esquerda militar, muito favorável às teorias terceiro-mundistas, que proclamava o objetivo de “chegar ao socialismo”. Um terceiro grupo era constituído por militares favoráveis ao PCP (Partido Comunista Português) e a sua política de reconstrução do MFA, assim como a uma coligação PS-PCP-MFA.

Assim, o impasse provocado pelas disputas civis levou o MFA à divisão em três setores principais. Aquele orientado pelo poder popular era ligado ao COPCON (Comando Operacional do Continente) e chefiado por Otelo Saraiva de Carvalho, cuja popularidade cresceu devido à difusão de seu papel no comando das operações militares do 25 de abril; o segundo era afeto ao aparato de governo chefiado pelo carismático Coronel Vasco Gonçalves, único oficial superior comprometido com o Movimento dos Capitães antes da tomada do poder; o terceiro estava próximo aos socialistas e a uma visão moderada do processo revolucionário, era aliado ao major Melo Antunes, um dos autores do programa do MFA.

Em 1975, as divisões no seio do MFA se acentuaram com a publicação, em agosto, da Autocritica Revolucionária do COPCON, onde se fazia a defesa do poder popular. As ruas se encheram de manifestantes. As comissões de trabalhadores iniciaram experiências auto gestionárias em algumas empresas e várias greves foram convocadas, novas ocupações de casas em Lisboa, a exigência da reforma agrária. No fim de 1975 era 25% da superfície arável de Portugal a gerida por unidades cooperativas de produção. A 13 de janeiro de 1975 aprovou-se a lei da unicidade sindical, propugnada pelo PCP, que reconhecia na Intersindical, dominada pelos comunistas, a única central de trabalhadores legítima – o MFA buscava no PCP (que entre junho e setembro havia dobrado de tamanho e contava cem mil filiados) o instrumento de manutenção da ordem no efervescente “mundo do trabalho”, propício a reivindicações salariais reprimidas.

A participação salarial na renda nacional saltou de 34,2% no ano imediatamente anterior à revolução para 68,7% ao seu final.[vii] Os partidos políticos buscaram organizar, dirigir ou controlar as iniciativas autônomas da classe trabalhadora: “Havia várias formas de ter uma força dentro deste processo, que se reflete nos conselhos criados em Lisboa (a Assembleia Popular/Comuna de Lisboa) e Setúbal (Comité de Luta) que articulam CTs e comissões de moradores e depois comissões de soldados. A mais importante será a coordenadora da CIL – Cintura Industrial de Lisboa. Mas também outras mais diretamente afetas aos partidos, caso dos Comités de Defesa da Revolução (CDRs), afetos ao PCP; dos Conselhos Revolucionários de Trabalhadores, Soldados e Marinheiros (afetos ao PRP-BR). E ainda o I Congresso Nacional das Comissões de Trabalhadores (dirigido pelo MRPP, mas com a presença também do PRT)”.[viii]

Eram agremiações de distintas concepções: o Movimento de Reorganização do Partido do Proletariado era maoísta; o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, trotskista. O Partido Comunista Português foi mais ostensivo na defesa da estabilidade política da nova ordem e atuou para refrear o radicalismo de base em defesa da “batalha da produção”.

Em 7 e 8 de novembro de 1975 houve o encontro das Comissões de Trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa, onde a questão do controle operário e da coordenação nacional das comissões de trabalhadores focaram as atenções. O IV Governo (dominado pelo PCP), e o Conselho da Revolução, depois de assumir o controle da banca, pondo sob proteção estatal um setor passível de controle operário, adotou a estratégia de «batalha da produção».

Empossado como primeiro-ministro do V Governo Provisório, Vasco Gonçalves foi alvo de crescente contestação. Dois dias depois, Otelo Saraiva de Carvalho lhe proibiu visitar as unidades militares integradas no COPCON e pediu ao general que “descanse, repouse, serene, medite e leia”. O país incendiou-se com a luta política e a escalada de violência contra sedes do PCP e de partidos de extrema-esquerda, sobretudo no Norte e centro do país. Até a crise de 25 de novembro de 1975 houve um combate entre a política de cada um dos três grupos político-militares.

No mesmo período, “entre setembro e novembro de 1975, houve paulatina construção de formas embrionárias de coordenação de controle operário a nível nacional: desenvolvimento exponencial da força das comissões de trabalhadores e da preponderância das reivindicações políticas, contra o Estado, dentro das empresas: construção do socialismo, abolição das relações mercantis, abolição da sociedade de classes, recusa do apelo à reconstrução nacional, controlo dos lucros. Esta situação deu acrescido impulso à criação de formas embrionárias de coordenação das comissões de trabalhadores, que em Lisboa, onde quase tudo se decidia pelo alto nível de concentração industrial, chegou a concretizar-se com força e com grandes polêmicas internas”.[ix]

A 25 de novembro ocorreu o confronto militar entre a esquerda e demais setores das Forças Armadas. Os “coronéis” chefiados pelo Tenente Coronel Ramalho Eanes, vitoriosos, não só as depuraram de seus elementos de esquerda radical, como travaram a carreira de todos os membros do MFA, mesmo os moderados, e se assenhorearam definitivamente do comando. O 25 de novembro começou por uma ação de paraquedistas. A dúvida se Otelo Saraiva de Carvalho ou oficiais do COPCON deram a ordem para isto é mero detalhe.

Sabe-se que direita militar e os moderados do MFA estavam preparados para uma tomada do controle militar do país, e que tinham um Plano Operacional para fazê-lo. Este plano envolvia o apoio organizado do Partido Socialista e de potências estrangeiras (Inglaterra e Estados Unidos). Pode-se argumentar que a esquerda também se preparava. E apareceram posteriormente acusações de que o PCP teria amanhecido naquele dia com a saudade da Revolução perdida e que teria mobilizado militantes armados, só à noite recolhidos. Teria sido um recuo do partido em troca da manutenção de sua legalidade. É difícil imaginar tamanho amadorismo do CC do PCP. Ainda assim, mesmo que o PCP estivesse preparando um golpe e que Otelo fosse o seu chefe militar, não havia nenhuma unidade da esquerda desde a queda do V Governo. Golpe pressupõe unidade de comando.

A ideia de que o 25 de novembro foi uma ação militar contra os radicais e os moderados simultaneamente permanece válida. O ataque oficialmente se dirigiu à extrema esquerda e teve o apoio dos moderados. Mas estes perceberam no próprio dia 25 de novembro que aquela ação militar os ultrapassava. Tanto o novo chefe da Região Militar de Lisboa, Vasco Lourenço, quanto o Presidente Costa Gomes viram-se contrariados, e assistiram passivamente à passagem do comando militar e político da situação ao conservador Ramalho Eanes.

Uma anedota pinta este oficial de corpo inteiro: no desfile do 1° de maio de 1977 em Lisboa, posterior à sua posse, ele assistiu à celebração no palco oficial. Uma mulher próxima lhe perguntou porquê ele permanecia tão sério, não sorria, ao qual Eanes respondeu: “Porque não sou obrigado a isso pela nova Constituição, senhora” … No seu discurso na Assembleia da República, Eanes prestou homenagem a toda a trajetória do Exército e a polícia, advertindo: “Todos os dias assistimos a conflitos [sociais] que, em rigor, devem ser qualificados de sabotagem. É urgente regulamentar o direito de greve”.[x] O VI governo, posterior ao 25 de novembro, foi uma espécie de “governo de unidade nacional”, com maioria de ministros do MFA no gabinete. Se o 25 de abril de 1974 iniciara o desmantelamento do Estado, o 25 de novembro de 1975 e o VI governo iniciaram o desmantelamento da revolução, embora com um bom percurso pela frente.

Os coronéis não puderam eliminar o MFA da história das Forças Armadas, embora o eliminassem de sua estrutura. O dia 25 de abril tornou-se o dia da liberdade; os militares foram mandados de volta aos quartéis; o MFA e o COPCON foram extintos; e a Revolução tornou-se uma “evolução” dirigida pela recuperada burguesia. Mas não sem contestações populares. Para Vasco Gonçalves, o dia 25 de novembro coroou longo processo de mudança da correlação de forças militar e assumiu os contornos de uma provocação e de um golpe contrarrevolucionário.[xi]

Foi o Partido Socialista, chefiado por Mário Soares, que jogou um papel chave para a reconstituição do Estado, beneficiando notadamente de subsídios provenientes da socialdemocracia alemã, e se consolidando como a principal força eleitoral depois do fracasso do golpe-insurreição de novembro de 1975. Nas eleições para Assembleia da República de 25 de abril de 1976, o PSP obteve 35% dos votos, seguido por 24% para o PPD, 15,9% para o CDS e 14,6% para o PCP. Os partidos de extrema-esquerda (MRPP, PCP-ML, PDC e PRT), somados, mal ultrapassaram 1,5% do caudal eleitoral. Para muitos, a revolução tinha concluído.

Em finais de 1976, um dos autores deste texto (o mais velho, claro) participava, em Paris, de uma ampla reunião internacional trotskista (chegou, apesar de muito jovem, a presidir uma de suas sessões),[xii] na qual Portugal era um ponto central da pauta de discussões. O título do informe, realizado por um militante português, era significativo: “Balanço da Revolução Portuguesa”…

Foi a revolução de abril de 1974 uma Revolução de Fevereiro não seguida por uma Revolução de Outubro? O campo de batalha das interpretações continua aberto. A Revolução dos Cravos foi possível no quadro geral da descolonização africana; do confronto indireto entre URSS e EUA; do recuo dos EUA diante da ascensão das lutas de classes desde os anos 1960 (mas especialmente pela sua derrota à vista no Vietnã). Mas foi limitada pelas estruturas seculares da economia portuguesa, pela sua distribuição demográfica, arranjo agrário, limites ideológicos de suas elites políticas e, sobretudo, pelo fato de ser dirigida por um Exército incapaz de se transmutar num órgão decididamente revolucionário.

O MFA operou um golpe militar ao qual se seguiu uma insurreição urbana num país ainda de grande influência rural e católica. Sua evolução ideológica rápida se deu em conjunto com a da população urbana (ou parte expressiva dela). Neste sentido, ele não foi uma vanguarda. Ao mesmo tempo os partidos políticos não tinham a legitimidade das armas e do dia 25 de abril para substituírem o MFA.[xiii]

O MFA, como parte integrante das Forças Armadas, só podia transformar-se no dirigente de um processo radical, revolucionário, se atravessasse o Rubicão e aniquilasse o restante dessas Forças. Sendo uma fração minoritária, ele teria que usar a violência (ou a ameaça dela) contra pessoas ligadas a membros do MFA por laços de camaradagem forjados nas escolas/academias militares ou na guerra colonial; romper com sua própria formação estritamente militar; armar civis e arriscar-se a ser submergido numa luta civil-militar e a perder o controle do aparelho de Estado.

Na ausência de um partido revolucionário, o MFA teria que cumprir um papel para o qual a sua rápida criação (no tempo curto) talvez lhe permitisse, mas a sua lenta formação (no tempo longo das Forças Armadas nacionais) lhe impossibilitava. Quanto ao proletariado, os assalariados urbanos e os camponeses, eles foram capazes de iniciativas organizativas inéditas – especialmente na radicalização do “verão quente” até ao desfecho de novembro de 1975 –[xiv] sem paralelos na Europa de pós-guerra, mas sem poder superar a ausência de uma orientação política unificada e de uma direção política capaz de levá-la adiante.

Os organismos sociais de um poder revolucionário se esboçaram e chegaram a se desenvolver, sem conseguir se apresentar como uma alternativa política para o país, o que teria promovido o esfacelamento dos corpos armados do Estado. A principal revolução europeia do segundo pós-guerra se esgotou nas suas primeiras fases, sem chegar até suas últimas potenciais consequências. Depois de três anos, chegada a revolução a um impasse político, a Europa da OTAN e da Guerra Fria começou a respirar aliviada. Mas o susto tinha sido enorme, chegando a atravessar o Atlântico e se expandir no mundo.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (Boitempo). [https://amzn.to/3tkGFRo]

Notas


[i] Francisco Carlos Palomanes Martinho. O pensamento autoritário no Estado Novo português: algumas Interpretações. Locus. Revista de História, Juiz de Fora, vol. 13, nº 2, 2007.

[ii] Perry Anderson. Le Portugal et la fin de l´Ultra-Colonialisme. Paris, François Maspéro, 1963.

[iii] Ronald Chilcote. The Portuguese Revolution of 25 April 1974. Annotated bibliography on the antecedents and aftermath. Coimbra, Universidade – Centro de Documentação 25 de Abril, 1987.

[iv] Paulo Moura. Otelo: o Revolucionário. Lisboa, Dom Quixote, 2012.

[v] Charles Downs. Revolution at Grassroots. Community organizations in the Portuguese Revolution. Nova York, State University of New York, 1989.

[vi] Apud 25 Avril. La dictature fasciste s’effondre à Lisbonne, problèmes de la révoluton portuguaise. Paris, SELIO, 1974.

[vii] Lincoln Secco. A Revolução dos Cravos. Economias, espaços e tomadas de consciência. São Paulo, Ateliê, 2024.

[viii] Raquel Varela, António Simões do Paço e Joana Alcântara. O controlo operário na Revolução Portuguesa 1974-1975. Marx e o Marxismo, vol. 2, nº 2, São Paulo, janeiro-julho 2014.

[ix] Raquel Varela, António Simões do Paço e Joana Alcântara. Op. cit.

[x] Sérgio Reis. Portugal: le moment de la situation. La Vérité nº. 581, Paris, abril 1978.

[xi] Vasco Gonçalves. Um General na Revolução. Entrevista a Maria Manuela Cruzeiro. Lisboa, Editorial Notícias, 2002.

[xii] Era o Comitê de Organização pela Reconstrução da Quarta Internacional (CORQI), que tinha recrutado para suas fileiras os deputados socialistas Carmelinda Pereira e Ayres Rodrigues. O Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional também estava presente.

[xiii] Maria I. Rezola. 25 de Abril. Mitos de uma revolução. Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007.

[xiv] Miguel Ángel Pérez Suárez. Abaixo a Exploração Capitalista! Comissões de trabalhadores e luta operária na revolução portuguesa (1974 -1975). São Paulo, Lutas Anticapital, 2023.

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Nassif: Aparece a penúltima peça do caso Marielle; falta a última
A prisão de Rivaldo Barbosa, indicado para a chefia da Polícia Civil pelo general Braga Neto – interventor do Rio de Janeiro na operação de Garantia de Lei e Ordem (GLO) – é a penúltima peça que faltava para montar o quebra-cabeças da morte de Marielle Franco. A última peça é a família Bolsonaro (continue a leitura)

Montagem mostra Chiquinho e Domingos Brazão ao lado de Jair e Flávio Bolsonaro. Mas é uma montagem, ainda que verossímil 

Famílias Bolsonaro e Frazão têm muito em comum

Intercept Brasil antecipou que Ronnie Lessa apontou Domingos Brazão como mandante da morte de Marielle Franco, na agora homologada delação. Famílias Brazão e Bolsonaro possuem trajetórias semelhantes.

João Filho, Intercept (expandir)

NESTA SEMANA FOI HOMOLOGADA no STF a delação premiada do miliciano Ronnie Lessa, apontado como  assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes. Como havia adiantado o Intercept Brasil em janeiro, a delação aponta como mandante do crime Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.

Nesta semana, Guilherme Amado, do site Metrópoles, trouxe a informação que Ronnie Lessa também teria mencionado o nome do deputado federak Chiquinho Brazão, irmão de Domingos, na delação.

No depoimento à Polícia Federal, Ronnie Lessa, apontado como matador de aluguel do Escritório do Crime, contou detalhes das reuniões feitas com os irmãos Brazão para o planejamento do assassinato da vereadora. 

Quando Chiquinho era vereador, foi presidente da Comissão de Assuntos Urbanos e legislou em causa própria ao permitir a regularização e parcelamento do solo em áreas dominadas pela milícia. Os irmãos Brazão pretendiam regularizar um condomínio inteiro na região de Jacarepaguá sem respeitar o critério de área de interesse social. O objetivo era conseguir o título de propriedade para especulação imobiliária. Marielle, por outro lado, defendia a ocupação de terrenos por pessoas de baixa renda e reivindicava que o processo fosse acompanhado por órgãos da Defensoria Pública do Rio. 

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Apesar do burburinho nas ruas e redes sociais, não há qualquer indício que ligue diretamente a família Bolsonaro ao assassinato de Marielle. Qualquer insinuação nesse sentido seria uma leviandade. 

Mas nunca é demais reforçar a natureza da formação política da família Bolsonaro, os caminhos que a fizeram alcançar a Presidência da República e suas conexões obscuras com o crime organizado. As ligações políticas, financeiras e pessoais dos Bolsonaros com Lessa e os integrantes da família Brazão são fortes e indiscutíveis. 

Apontar a proximidade do Bolsonaro com os mandantes e o executor do homicídio da vereadora não é uma ilação, mas a mera constatação dos fatos. Vejamos. Ronnie Lessa era um dos matadores de aluguel do Escritório do Crime, grupo liderado por Adriano da Nóbrega, assassinado em fevereiro de 2020 . 

Ambos passaram pelo curso de formação  do Bope ao mesmo tempo em que atuavam paralelamente como seguranças de famílias de bicheiros do Rio de Janeiro. Apesar  de disputarem entre si o título de melhor matador profissional do Rio de Janeiro, Lessa e Nóbrega com frequência se uniam para eliminar alvos em comum. A relação dos ex-policiais com com a família Bolsonaro vem desde essa época. 

Como se sabe, Flávio Bolsonaro empregou em seu gabinete a mãe e a esposa de Adriano. Quando ele foi assassinado, o então presidente Jair Bolsonaro o chamou de “herói”

Ronnie Lessa morava no mesmo condomínio do ex-presidente e os filhos dos dois chegaram a namorar. Em 2009, ele perdeu uma perna durante um atentado a bomba enquanto trabalhava como segurança do bicheiro Rogério de Andrade. 

As famílias Bolsonaro e Brazão se elegeram para vários cargos, atuam na zona oeste do Rio e mantêm ligações umbilicais com a milícia.[//pullquote]

Sabe qual político intercedeu na  Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação do Rio de Janeiro para que o atendimento do criminoso fosse priorizado?  Ele mesmo, o então deputado Jair Bolsonaro. 

Apesar de tudo isso, Lessa nega conhecê-lo pessoalmente. Acho difícil que isso seja verdade, mas mesmo que seja, é impossível negar o fato de que os dois fazem parte do mesmo entrelaçamento que une as milícias à política.

A proximidade e as semelhanças dos Bolsonaros com a família Brazão são ainda mais claras. São famílias de políticos que se elegem para vários cargos ao mesmo tempo, atuam tradicionalmente na zona oeste do Rio de Janeiro e mantêm ligações umbilicais com a milícia da região. 

Flávio Bolsonaro e Chiquinho Brazão chegaram a subir juntos num carro de som em uma carreata eleitoral para apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro, em 2022. Além de fazerem campanhas políticas juntos, Flávio e Chiquinho mantiveram negócios imobiliários associados com milícias na zona oeste do Rio de Janeiro. 

Ambos compartilham do interesse pela especulação imobiliária irregular na região. Como apontou o Intercept em 2020, documentos do Ministério Público do Rio de Janeiro revelaram que Flávio Bolsonaro usou dinheiro da rachadinha feita em seu gabinete para financiar a construção ilegal de prédios pela milícia. 

Queiroz, então chefe de gabinete de Flávio Bolsonaro e amigão de Lessa e de Nóbrega, confiscava 40% dos salários dos funcionários do gabinete e repassava para o Escritório do Crime. Segundo o inquérito, o lucro com a venda dos prédios seria dividido com Flávio Bolsonaro. Foi justamente essa investigação do MP que motivou o ex-presidente Jair Bolsonaro a pressionar o ex-ministro Sergio Moro pela troca do comando da Polícia Federal no Rio e em Brasília. 

Lembremos que o que motivou o assassinato de Marielle foram justamente os negócios imobiliários irregulares nessa mesma região do Rio de Janeiro. A vereadora representava uma pedra no sapato daqueles que lucravam alto com a especulação imobiliária ilegal. 

Mesmo não havendo qualquer indício do envolvimento de Flávio Bolsonaro com o crime, é fato que ele seria um dos beneficiários. Afinal de contas, assim como os irmãos Brazão, ele lucraria com a venda de prédios construídos com a verba pública que saiu de dentro do seu gabinete. Lembremos também que a Abin de Bolsonaro monitorou ilegalmente os passos da promotora do caso Marielle. O que teria motivado isso?

O assassinato de Marielle caminha para ser solucionado completamente. O país precisa conhecer a fundo os detalhes, os personagens e as circunstâncias que levaram uma associação entre políticos e milicianos a assassinar uma vereadora de esquerda que lutava pelos direitos dos mais pobres. 

É fundamental que se puxe o fio completo da trama, porque ela ajuda a explicar o Brasil de hoje e a ascensão dos reacionários associados ao crime organizado ao poder.

Nikolas Ferreira, Presidente da Comissão de Educação na Câmara dos Deputados, réu por transfobia, tem o apoio do que há de pior no parlamento

De onde vem o perigo: Educação é o principal foco da ofensiva conservadora na Câmara

Parlamentares católicos e evangélicos apresentaram 322 proposições com essa temática em 2023 

Danilo Queiroz e Mariama Correa, Pública (expandir)

A educação é o tema mais recorrente dos projetos de lei apresentados por políticos considerados católicos ou evangélicos, na Câmara dos Deputados. No ano passado, 322 proposições tiveram esse foco, segundo monitoramento do legislativo feito pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), ao qual a Agência Pública teve acesso.

Ao todo, o ISER mapeou 1,9 mil PLs assinados por políticos católicos ou evangélicos. As propostas foram classificadas em dez temas mais recorrentes, entre eles crimes e segurança pública; direitos da mulher; direitos humanos; família e ameaças ao estado democrático de direito. Os parlamentares de direita são autores da maior parte das propostas relacionadas à educação, 167 ao todo, e a segurança nas escolas é o subtema principal. 

A maior parte dos projetos de lei estabelece mais vigilância nas escolas públicas e privadas, com instalação de câmeras, segurança privada e detector de metais – uma reação aos ataques violentos em escolas, no ano passado. O PL 2207/2023, do deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB), vai além. Ele quer autorizar o “uso de arma de fogo para professores e demais agentes da Educação nas escolas”. O projeto está na Comissão de Educação.

Propostas que focam em gênero e sexualidade também são recorrentes. O teor delas quase sempre visa “proibir o ensino de questões de gênero”, a “educação sexual” e “proibir a instalação de banheiros de gênero nas escolas”. Ao menos cinco projetos, os PLs 198, 450, 466, 467 e 601 tentam alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para proibir linguagem neutra nas escolas. 

POR QUE ISSO IMPORTA?

Os debates sobre o novo Plano Nacional de Educação estão acirrados no Congresso Nacional, onde a proposta será votada. A educação tem sido disputada por frentes conservadoras, que apresentaram uma enxurrada de projetos de lei na Câmara dos Deputados e mobilizam uma rede articulada de grupos de WhatsApp

Lívia Reis, pesquisadora à frente do monitoramento do legislativo do ISER, diz que temas relacionados à educação se tornaram um eixo fundamental da atuação de grupos conservadores desde a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2010. “Quando o PNE, naquela época, tentou colocar educação sexual nas escolas, surgiu uma ofensiva conservadora em reação, com a criação do Escola sem Partido, que nunca deixou de existir, mas se transformou em outras pautas, como o combate à uma suposta ‘ideologia de gênero’, por exemplo”. O Escola sem Partido é um movimento político conservador de extrema direita, que influencia a tramitação de PLs para combater uma suposta “doutrinação ideológica e política” da esquerda nas salas de aula. 

Com o debate em torno do novo PNE 2024-2034, as discussões sobre educação se acirraram no Congresso Nacional. Atualmente, a ofensiva para fazer avançar uma agenda conservadora na educação tem o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) como uma das figuras centrais. Eleito presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, o parlamentar bolsonarista só apresentou uma proposta legislativa na área da educação, no ano passado. Ele é coautor do PL 186/2023, que susta um decreto de revogação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares. Quando era vereador em Belo Horizonte (MG), Nikolas conseguiu aprovar uma lei que proíbe linguagem neutra nas escolas.


Conae 2024 discutiu o Plano Nacional de Educação 2024-2034

Nikolas Ferreira e a ofensiva conservadora contra o novo PNE

No comando da Comissão de Educação, o deputado federal Nikolas Ferreira já pautou uma investigação contra manifestação artística na Universidade Federal do Rio Grande (UFRGS), um debate sobre “fascismo de esquerda” em faculdades e se comprometeu a regulamentar o ensino domiciliar (homeschooling), que se tornou uma agenda conservadora. Atualmente, o PL do homeschooling está no Senado. 

Nikolas tem demonstrado que vai fazer resistência ao texto do novo PNE, aprovado na Conferência Nacional de Educação (Conae), em janeiro. Ele quer submeter o plano ao colegiado da Câmara antes que o PL seja levado ao plenário. Também tem ajudado a mobilizar audiências públicas nos estados para discutir as propostas aprovadas na Conae, com mais de dois mil representantes da sociedade civil.

A campanha para promover uma agenda conservadora na educação tem o deputado Nikolas Ferreira (ao centro) como um dos principais articuladores

Um vídeo em que ele convida a população a participar de um debate sobre o novo PNE na Assembleia Legislativa de Rondônia circulou massivamente em grupos de WhatsApp da chamada “Força Tarefa Conae”. Ele está ao lado do deputado federal Thiago Flores (MDB-RO) e orienta que assembleias legislativas de outros estados também promovam o debate. 

Na última quinta-feira (21), esses mesmos grupos foram abastecidos com uma cartilha sobre o novo PNE, que será enviado ao Congresso Nacional. O material afirma que, se o plano for aprovado, crianças serão, entre outras coisas, “estimulados à iniciação precoce da sexualidade”. “É essa Agenda ideológica para exatamente tirar dos pais esse protagonismo, para que eles dominem a mente das crianças para servir ao ‘sistema do governo’”, comentou o participante de um dos ao menos 49 grupos da Força Tarefa Conae mapeados pela reportagem. 

Os grupos do WhatsApp se mobilizaram um pouco antes da Conae, em dezembro do ano passado, como uma articulação conservadora para barrar o que chamam de “ideologização da educação”. Mesmo depois que a conferência foi encerrada, com a aprovação do texto base do PNE 2024-2034, eles permaneceram ativos. 

Alguns dos grupos da Força Tarefa Conae chegam a reunir mais de 150 pessoas de vários estados brasileiros. Entre janeiro e março deste ano, a Pública acompanhou as mensagens em dez desses grupos. Quase sempre elas trazem um tom alarmista com relação a temas como educação sexual e de gênero. 

Mas a atuação da Força Tarefa Conae não se restringe ao ambiente online. Administradores das comunidades no WhatsApp também ajudam a mobilizar audiências públicas nos estados e se articulam com parlamentares do Congresso Nacional. 

Entre os administradores dos grupos de WhatsApp da Força Tarefa Conae estão Luciane Pereira, uma administradora de escola no Rio de Janeiro, a Oásis Brasil, uma loja de roupas e artigos nacionalistas e o professor, advogado, jornalista e pastor João Alberto da Cunha. Ele foi candidato a deputado federal da Paraíba, pelo PRTB, nas últimas eleições, mas não se elegeu. É um dos mais ativos na divulgação das consultas públicas. 

João Alberto tem mais de 150 mil seguidores no Instagram, onde defende “uma educação pautada por valores conservadores, assegurados pela família e pela fé”. Ele convocou audiências na Câmara Municipal de João Pessoa, para discutir o PNE. Também em Brasília, Anápolis (GO) e Curitiba. Na capital do Paraná, a audiência pública foi proposta por nove vereadores, entre eles a Sargento Tânia Guerreiro (PSL), que defende, assim como o governador do Paraná, Ratinho Júnior, a retirada do livro O avesso da pele dos colégios públicos estaduais do estado. Neste mês, o livro, que debate racismo, foi censurado por secretarias de Educação do Mato Grosso do Sul e do Paraná. 

À Pública, o professor e administrador dos grupos da Força Tarefa Conae disse que não criou os grupos, mas, como administrador, participa de reuniões quase todos os dias para definir os temas que serão foco dos debates. Ele é um articulador ativo da agenda conservadora no Congresso Nacional. Na última semana, esteve em Brasília conversando com 14 deputados federais e suas assessorias sobre o novo PNE. João Alberto disse que tem “articulação direta com a bancada evangélica” na Câmara dos Deputados e que “está ajudando a bancada a elaborar PLs sobre educação”. “A proposta, disse, é uma lei que “revogue vários artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, mas ele não detalhou os pontos específicos das proposições.  

“A gente se espelha muito no que a esquerda fez nos últimos anos, ocupando espaço nos debates, nas comunidades de base. Estive na Conae, fui hostilizado, chamado de fascista. Falaram de inclusão de disciplinas LGBT, eu como professor não sei como isso entraria. Conservadores defendem o que eles entendem que é correto”, disse. 

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) também participou do debate sobre o PNE em Curitiba. A presidente da associação, Edna Zilli, disse que o “documento redigido durante a Conae é repleto de menções às questões de gênero” e que impede “a manifestação da liberdade religiosa, sobretudo cristã, nas escolas”. 

Na última quinta-feira (21), a Anajure publicou um parecer sobre o documento final da Conae para elaboração do novo PNE. A Anajure destaca trechos que considera problemáticos, entre eles alguns que citam “golpe de 2016”, “freio ao avanço de processos e tentativas de descriminalização da educação domiciliar (homeschooling)” e “intervenções do movimento Escola Sem Partido”.

No posicionamento, a entidade ressalta preocupação com as diretrizes apresentadas “especialmente no que se refere aos apontamentos contrários à liberdade religiosa das escolas confessionais e à tentativa de adoção e institucionalização de teorias críticas e pós-estruturalistas de gênero no sistema educacional brasileiro”. A entidade “convoca os representantes do Congresso Nacional à mobilização” e “revisão dos trechos problemáticos destacados na manifestação”. 

Outros debates mobilizados com atuação da Força Tarefa Conae e políticos conservadores já aconteceram no Distrito Federal, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em Ribeirão Preto (SP), a ofensiva conservadora conseguiu a aprovação de um Plano Municipal de Educação alternativo ao que está previsto no novo PNE. A maior diferença entre ambos é que o plano municipal para a cidade retira qualquer termo que preveja “superar o preconceito sobre sexualidade e identidade de gênero”. 

A mobilização para aprovar o plano municipal em Ribeirão Preto contou com apoio de figuras políticas como Camilo Calandreli, assessor da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) e pré-candidato à prefeitura de Ribeirão Preto pelo PL. “A tática do bolsonarismo e da extrema direita é justamente essa: trazer à tona assuntos que nos pareciam já superados. Por isso, as articulações na Câmara por meio de um apelo moralista. O debate que importa fica enxuto e a gente não discute assuntos tão necessários, como o analfabetismo, a gravidez na adolescência e as discriminações de gênero e raça nas escolas”, diz a vereadora Duda Hidalgo (PT), um dos quatro votos contrários ao novo plano municipal de Ribeirão Preto. 

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# Link para matéria original da Pública

As mentiras de Israel

Pensatas para o fim de semana, 2a edição

Pois então...

O segundo número da nova fase da GIZ, a revista do Sindicato dos Professores (SinproSp), acaba de sair. A capa diz tudo sobre as "más intenções" da publicação, da mesma forma que outras matérias desta edição: nada de aliviar com os responsáveis que deixaram o Brasil ficar no estado em que se encontra... entre eles a camarilha civil-militar-tecnocrata que quer fazer do nosso país uma pastagem de interesses privados. Agora sim: todas e todos vão poder acessar e ler a GIZ... no recolhimento do fim de semana talvez, mas certamente com as pulsões fortes que professoras e professores vivem em decorrência da dignidade do seu trabalho e com o compromisso que têm com a verdade e com a Democracia. Ditadura nunca mais!

# O STF diante do golpe de verdade

Julgamentos dos líderes do golpe dirão quem somos como nação

Demetrio Magnoli (Folha)

# As confissões do DOI-CODI

Agentes do órgão criado pelos militares em 1969 para combater a grupos de esquerda contam

como eles agiram até 1991

(Estadão)

Pensatas para o fim de semana 22-24/03-24 

Está no ar uma armação para desqualificar a delação do estafeta Mauro Cid... 

# Como lidar com os "religiosos" que apoiaram o golpe militar?
Líderes religiosos ficaram ao lado de Bolsonaro por golpismo e intolerância (Carta Capital)

# Lava Jato, 10 anos: Os corruptos eram eles

A operação comandada por Sérgio Moro destruiu empresas, perseguiu inimigos políticos e curvou-se aos interesses dos EUA (Carta Capital)

# Imprensa foi conivente com os desmandos da Lava Jato...

... e só mudou de posição quando os fatos se impuseram ao seu anti-jornalismo
(é o que dá para entender a matéria da Folha)

# Violência policial: no Brasil, todo ano é 1964; todo dia é primeiro de abril
Morte de inocentes patrocinadas pelo estado não se encerraram com a redemocratização do país (Intercept)

# Mais de 30 mil palestinos mortos em Gaza
Minibiografias dão nome e história a uma fração das milhares de vítimas do conflito Israel-Hamas, que dura quase 6 meses

(Folha)

 Mulheres brasileiras são menos conservadoras que os homens, mas só as da geração Z são majoritariamente progressistas...

(Carta Capital

Denise de Assis denuncia nota militar ("com cheiro de naftalina, bolor e ranço") que enaltece o golpe de 64. Claro, a nota não é assinada e é repleta de mentiras

(247)

# O feminismo em Pobres Criaturas
No mês da celebração das lutas feministas, um filme certamente para se ver, mas menos para se divertir e mais para se indignar

(Nathalie Reis Itaboraí, A Terra é redonda)

Quase dez anos após a morte do escritor, chega ao público seu livro póstumo Em agosto nos vemos. Quando vivo, o Nobel de Literatura sentenciou: ‘Este livro não presta. Precisa ser destruído’...

(Opera Mundi)

Livro de Oswald de Andrade desafiou os conservadores e influenciou a produção artística até desembocar no Tropicalismo

(Edison Veiga, BBC, via Folha)

O que há de novo?21-3-24

Cada um com sua cota de culpa pelos crimes contra o povo palestino

Caiado e Tarcísio, fétidos, ao lado do genocida Netanyahu

Governadores de SP e Goiás, em visita a Israel, compactuam com os crimes contra os palestinos e... festejam (leia em Carta Capital)

# Tarcísio cancela edital e põe em risco oficinas culturais

Ação da Secretaria estadual da Cultura pode acabar com espaços culturais de São Paulo

(RBA)

Eleições SP 2024 

# Presidente do PSDB chama Nunes de 'Ricardo Nunes Bolsonaro' e nega apoio

José Anibal afirma que partido é defensor da democracia 

(Folha)

Chegando o 2o número da GIZ, revista do SinproSp

# 1964, a Educação e a Ciência # A hora-tecnológica # Darcy Ribeiro # O cine-documentário nas aulas

Como a radicalização do antipetismo de classe média tornou possível o bolsonarismo e sua trama golpista
Pedro Fávaro Jr (Unicamp)

CConhecer essas histórias não é remoer o passado, como disse Lula. O desconhecimento dos fatos ou o voluntário arquivamento da história tem causado danos à democracia brasileira

Edson Teles (Boitempo)

Ministério dos Direitos Humanos tinha slogan 'sem memória não há futuro'

Mariana Holanda e Matheus Vargas (Folha)

Solução do crime desvenda também esquema das milícias cariocas com ramificação em núcleo do poder da extrema direita

Em delação premiada, Ronnie Lessa revelou o nome de quem o contratou

# Delação foi homologada pelo STF e anunciada ontem pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowsky (leia aqui a matéria do G1 e o ouça podcast de Natuza Nery sobre os bastidores da investigação)

A ameaça da criminalização

Mais que no pé, um tiro na cara


PEC antidrogas do Senado é retrocesso atroz e alimenta múltiplas violências

# Leia o artigo de Julita Lemgruber e Sidarta Ribeiro, na Folha 

# Soluções bonapartistas

Burguesia dos EUA está vive um bipartidarismo disfuncional

(A Terra  é redonda)

# Eliminar o Hamas

Israel e o  objetivo impossível: quanto maior o genocídio, mais difícil a vitória militar

(IHU)

# O que o filme 'Oppenheimer' não disse

As consequências das explosões no Japão em 1945

(IHU)

# Universal apoia Maduro na Venezuela

Em troca, Maduro oferece isenções e privilégios fiscais 

(Intercept)

As pesquisas de opinião e a economia

Alguns fatores explicam a queda de popularidade do governo Lula apontada pelas últimas pesquisas de opinião. Paulo Nogueira Batista elucida os aspectos econômicos que podem estar minguando o capital político do governo (assista)

Tristes trópicos  (Levy-Strauss)

A ofensa - parte 2

Insulto, xingamento, injúria, agravo, ultraje ou afronta: Bolsonaro é indiciado pela PF e pode ser preso a qualquer momento (leia)

# Clique aqui para acessar o clipping do site (em construção)

# Os momentos de tensão nos preparativos do golpe: "O depoente [Baptista Júnior] entendeu que haveria uma ordem que impediria a posse do novo governo eleito; que, diante disso, o depoente disse ao ministro da Defesa que não admitiria sequer receber esse documento; que a Força Aérea não admitiria tal hipótese [golpe de Estado]", diz trecho da transcrição do depoimento (leia mais na Folha)

# 8 de janeiro teria sido nossa Noite dos Cristais: O objetivo de Bolsonaro e seus generais era o de uma ditadura formalizada pelas interpretações de Ives Gandra da Silva Martins (Luis Nassif, GGN)

Golpe militar de 1964 continua insepulto

Entrevista com Dênis de Moraes, IHU (expandir)

No mês que marca o 60º aniversário do golpe cívico-militar que derrubou o presidente João Goulart e deu início a uma ditadura de 21 anos no Brasil, Dênis Roberto Villas Boas de Moraes apresenta a quinta edição de seu livro A esquerda e o golpe de 1964, pela editora Civilização Brasileira, do Grupo Record.

A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 15-03-2024.

O autor já traçou importantes biografias, como as de Henfil (O rebelde do traço), Graciliano Ramos (O velho Graça) e de Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha, cúmplice da paixão). A nova edição de A esquerda e o golpe de 1964, considerado um clássico, chega como “quase um novo livro”, nas palavras de Moraes.

O escritor, jornalista e professor associado aposentado do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), nesta entrevista ao Extra Classe, vai além de falar sobre sua obra para estabelecer ligações entre passado e presente.

Ele traça um breve paralelo entre a derrota da esquerda em 1964 e a derrota da extrema direita personificada em Jair Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022 e na tentativa de golpe que culminou com a depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.

São contextos históricos e políticos distintos, reflete o autor, que vê em 1964 um golpismo militar e civil que “jamais se apoiou em ações improvisadas”.

Dênis de Moraes é Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, França) e pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina).


Eis a entrevista.

Completando 35 anos do lançamento do seu livro, qual é a sua expectativa com esta nova edição?

Eu diria que é quase um novo livro, pois se trata de uma edição revista e substancialmente ampliada. Mantive os focos temáticos, os eixos de análise e o estilo narrativo da edição original, porém modifiquei capítulos, reelaborei várias passagens e, principalmente, introduzi conteúdos inéditos e novos depoimentos de personalidades relevantes do período pré-1964, como os de Frei Betto, do ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio, dos jornalistas Jânio de Freitas e Milton Temer (à época, primeiro-tenente e ajudante de ordens do ministro legalista da Marinha) e da historiadora Marly Vianna. Também atualizei as pesquisas em arquivos públicos e privados, entre os quais o do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), hoje sob a guarda do Arquivo Nacional; o acervo online com informes confidenciais da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), liberados à consulta nos últimos anos, e os relatórios da Comissão Nacional da Verdade. Com tais acréscimos, procurei reavaliar questões significativas do período e incorporar outras visões críticas sobre os acontecimentos que culminaram no golpe de Estado.

Daria para se dizer que o golpe de 1964 ainda demanda muita informação e questões a serem esclarecidas?

Sem dúvida, o conhecimento sobre o golpe ainda precisa ser ampliado, não apenas para que as novas gerações tenham a exata noção do que ele representou em termos de retrocessos para o país, como também para pôr fim às mentiras e falsificações remanescentes da chamada “história oficial”, elaborada pelo golpismo com o objetivo de impugnar o ciclo de transformações em curso até 1964. Sessenta anos depois, certas ressonâncias deletérias da ditadura militar ainda podem ser identificadas em práticas autoritárias, medidas antissociais e ameaças à ordem democrática.

Em 1964, convém insistir, o golpismo militar e civil jamais se apoiou em ações improvisadas ou voluntaristas; ao contrário, as operações de guerra ideológica, política e cultural foram pensadas e postas em prática dentro de uma lógica de descrédito e desestabilização do governo Goulart - Dênis de Moraes

Você está falando de quê, mais especificamente?

Do que vivenciamos nos sombrios anos do bolsonarismo. Daí a necessidade de restabelecermos a verdade histórica sobre aquele tempo de liberdades democráticas, de intensa participação popular, de renovação da cultura e das artes e de mobilizações voltadas a uma efetiva democratização da vida social, econômica e política. E mais: reavaliar o governo Goulart e a própria conduta do presidente. Mesmo não sendo de esquerda e, muitas vezes, refém de suas próprias hesitações, Jango vinha atendendo, embora parcialmente, a demandas das forças progressistas, como, por exemplo, o reajuste de 100% do salário mínimo, o decreto de desapropriação de terras federais para a reforma agrária e a regulamentação da remessa de lucros das multinacionais para o exterior – medidas por ele sancionadas entre janeiro e março de 1964. Por outro lado, Jango se foi sem deixar suficientemente claro se pretendia ou não encontrar uma saída extralegal para continuar no poder, e por que desistiu logo de resistir ao golpe.

O que você poderia nos falar sobre os aspectos do golpe, além das óbvias ligações com o período da Guerra Fria?

O processo que levou à derrubada de João Goulart resultou de uma trama política-ideológica-militar-empresarial-midiática, que obedeceu a um planejamento estratégico bem definido, inspirados nos ditames da Guerra Fria e do anticomunismo. O propósito era debilitar e, afinal, depor um governo democrático e popular – que não contava com uma base parlamentar coesa -, com a finalidade de reorientar o modelo de desenvolvimento de acordo com os interesses do grande capital nacional e internacional e do imperialismo americano. Explorou-se ao máximo o quadro geral de crise econômica e de radicalização política. A escalada da conspiração se desenrolou através de táticas de manipulação e persuasão junto à opinião pública sobre os riscos de uma suposta “esquerdização” do governo e de “proletarização da sociedade”. A meta era conquistar a adesão, sobretudo, das classes médias e de setores conservadores, além da penetração junto a uma parcela considerável da alta oficialidade militar, com perfil elitista, anticomunista e americanófilo.

Se a extrema direita na Europa usa o discurso contra imigrantes, na América Latina usa o fantasma do comunismo. No discurso dos nossos extremistas, há uma associação direta entre ser progressista e o “fantasma do comunismo”. Qual é a sua análise sobre isso?

Sem exceção, o anticomunismo é o elo entre todos os intentos golpistas e os golpes de Estado, aqui e na América Latina. A exacerbação do anticomunismo tem a ver com o receio das classes dominantes quanto a possíveis efeitos de transformações políticas e culturais na produção de crenças, mentalidades e juízos que incidem na conformação do imaginário social, tradicionalmente sob seu raio de influência. Trata-se de convencer a opinião pública a respeito de ameaças hipoteticamente representadas pelo comunismo nos âmbitos da moral, da religião, da família e da pátria. A pregação golpista em 1964 buscava apavorar as classes médias com a ideia-força da “República sindicalista” que Jango estaria a um passo de implantar. O chamado “perigo vermelho” extrapola a força real dos comunistas e é usado como antídoto ideológico à ascensão social das classes populares, com o indesejável questionamento das hierarquias vigentes. A estratégia discursiva anticomunista consiste em infundir medo e insegurança em relação a mudanças que possam afetar as conveniências do conservadorismo e a sua hegemonia político-cultural. Tais mistificações e engodos servem para persuadir setores sociais a aceitarem intervenções autoritárias.

Este discurso anticomunista entrou no caldo que culminou com a depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Se, em 1964, os militares foram às ruas para derrubar um governo que tinha altos índices de aprovação e, depois, tratou de dar pinceladas de clamor popular, na intentona para invalidar a eleição de Lula, tivemos o contrário. Apoiadores de Bolsonaro foram estimulados a clamar por “intervenção militar” nas portas dos quartéis. O que dizer disso?

São contextos históricos e políticos distintos, ainda que possamos invocar determinadas intenções golpistas no meio militar, com métodos e alcances específicos. Em 1964, convém insistir, o golpismo militar e civil jamais se apoiou em ações improvisadas ou voluntaristas; ao contrário, as operações de guerra ideológica, política e cultural foram pensadas e postas em prática dentro de uma lógica de descrédito e desestabilização do governo Goulart. Por sua vez, erros políticos foram cometidos pelas forças progressistas, como as rebeliões da baixa oficialidade e dos praças, principalmente as dos sargentos em 1963 e dos marinheiros em 1964, apoiados por quase toda a esquerda da época. Se as reivindicações eram, indiscutivelmente, legítimas, as mobilizações a céu aberto e a anistia dos marinheiros amotinados quebraram o princípio basilar da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas. Esses erros deram os pretextos que faltavam à alta oficialidade golpista para depor Jango.

No livro, você fala da importância de entender as causas da derrota da esquerda brasileira em 1964. Na sua opinião, as jornadas de junho de 2013 que buscaram tensionar o governo de Dilma Rousseff para maiores avanços não acabaram sendo instrumentalizadas pela direita, que, por sua vez, derrubaram a presidente e prepararam o país para a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018?

As jornadas de junho de 2013 comportaram ações políticas e reivindicações difusas, que mesclavam apelos golpistas com insatisfações em relação ao governo de Dilma Rousseff. Numa visão retrospectiva, as manifestações acabaram sendo instrumentalizadas pelo conservadorismo e serviram de caldo de cultura para a posterior organização da extrema direita e áreas conexas, notadamente nas redes sociais. No convulsionado quadro de 2013, talvez a esquerda, em seu conjunto, não tenha percebido a importância de se contrapor, mais resolutamente, em defesa da democracia e do respeito à legalidade. Ressalvando as diferentes circunstâncias políticas, é factível estabelecer uma analogia entre o sucedido em 2013 com a falta de clareza de segmentos ponderáveis da esquerda em 1964 quanto à necessidade de se resguardar o estado democrático de direito, acima de seus projetos políticos e das ambições imediatas. Só os incautos ou ingênuos não notaram a escalada da conspiração golpista a partir do segundo semestre de 1963. E mesmo quem notou nem sempre soube articular iniciativas para tentar detê-la.

Se você fala que em 1964 houve uma derrota da esquerda, que nos legou 21 anos de ditadura, a derrota de Bolsonaro para Lula em 2022, seguida do fracasso da tentativa de golpe de 8 de janeiro, poderia ser encarada como uma derrota de quem apostou tudo em uma virada de mesa dos militares ou, como diria a canção de Caetano Veloso, imortalizada por Gal Costa, “é preciso estar atento e forte”?

O verso da canção de Caetano Veloso, bem lembrado, me parece essencial, tanto nos nossos dias quanto na moldura de 60 anos atrás. Do ponto de vista das forças progressistas e de esquerda, cabe ressaltar a exigência crucial de “estar atento e forte” em relação a inimigos poderosos na arena política e ideológica. Em 1964, as esquerdas, divididas, não souberam avaliar adequadamente a correlação de forças real na sociedade brasileira, nem construir a unidade exigida na diversidade, muito menos traçar planos de voo sólidos para enfrentar a batalha das ideias pela hegemonia política e cultural. Em várias situações, o campo nacional-popular direcionava mais as suas energias para as cobranças a Jango pelo fim da conciliação com a burguesia, bem como se enredava em disputas internas, descuidando-se dos embates com a direita golpista, em franca ascensão. As esquerdas não tinham a força que imaginavam ter, nem estavam devidamente atentas aos movimentos sinuosos dos adversários. Já a direita e a extrema direita percorreram itinerários coerentes com seus propósitos: traçaram objetivos comuns, seduziram segmentos da sociedade civil com campanhas insidiosas e elegeram o golpe de Estado como solução final. Na atualidade, penso que “estar atento e forte” passa por combinar conscientização com ação.

O que significa?

Significa, em primeiro lugar, ter consciência de que a extrema direita e a direita mais reacionária seguem muito ativas na “guerra cultural” nas redes sociais, movendo combates sistemáticos à esquerda; intensificam a preparação para as eleições de 2024 e 2026, e detêm, conforme recentes pesquisas, um percentual expressivo nas intenções de votos.

Em segundo lugar, entendo que as forças progressistas e de esquerda não poderão prosseguir por muito mais tempo na relativa paralisia em que se encontram, praticamente entrincheiradas em torno do governo Lula, como se fosse o pior dos pecados explicitar o senso crítico em relação a determinadas decisões governamentais. Para se fortalecer, terão que voltar às ruas e desenvolver a sua vocação de luta, dentro e fora das redes, com vistas à organização popular e às mobilizações em defesa da democracia e das reivindicações mais urgentes dos trabalhadores e da cidadania em geral.


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(Folha)

A ofensa - parte 1

Lugar de Bolsonaro está definido, mas não é a cadeia, onde inevitavelmente ele vai acabar confinado, e sim na História, pelo extraordinário e colossal demérito de sua vilania. A tentativa de golpe do ex-capitão é uma ofensa 

# Clique aqui para acessar o clipping do site

# O  texto que  decretaria o golpe:  "Declaro Estado de Sítio".  Um amontado de imbecilidades, um arrazoado de frases feitas e lugares comuns do discurso fascista. Um imaginário  povoado de  descontrole, indignidade e de alienação sobre a realidade brasileira.  Mas é um texto que deixa entrever as assinaturas dos que o conceberam, inclusive juristas que  pontificam nas páginas de alguns jornais com as justificativas de sempre para manter o país como pastagem dos interesses privados (vale a pena ler a íntegra do documento na coluna de Jamil Chade, no Uol).

# Golpe discutido com Bolsonaro se embasou em tese de Ives Gandra: Comandante do Exército em 2022, o general Freire Gomes afirmou em depoimento à Polícia Federal que as reuniões com o então presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus ministros sobre a possibilidade de desrespeitar o resultado das eleições se embasaram em interpretações do jurista Ives Gandra Martins sobre a Constituição (leia aqui a matéria da Folha).

# A política do bolsonarismo: Para Juarez Guimarães, em texto publicado em A Terra é redonda, é preciso compreender o fenômeno para derrotá-lo. E a pergunta que não quer calar: "Por que o bolsonarismo apesar de perder as eleições nacionais, ter a sua liderança condenada por inelegibilidade e estar acuado por um largo processo judicial bem fundamentado em provas materiais, consegue manter a sua força política como demonstrou o ato do dia 25 de fevereiro na avenida Paulista?" (leia o artigo inteiro).

# Os episódios e os ratos que infestaram a RepúblicaO que os depoimentos à PF revelam sobre a participação de Bolsonaro e a reação das Forças Armadas em trama golpista. Ministro do STF derrubou o sigilo dos depoimentos colhidos no inquérito que apura a suposta tentativa de golpe de Estado para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder (leia a matéria do G1).

# Desfechos: "Estamos maduros para responsabilizar Bolsonaro criminalmente".  Advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, afirma que não há dúvidas sobre a participação e coordenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à tentativa de golpe de estado em seu governo.  E Kakay não está sozinho: Maierovitch pensa a mesma coisa (Carta Capital e Uol).

# A reação de Bolsonaro:  O ex-presidente Jair Bolsonaro classificou como ‘narrativa idiota’ as acusações de que ele teria tramado um golpe de Estado após ser derrotado nas urnas pelo presidente Lula. As acusações aparecem em diferentes depoimentos colhidos pela Polícia Federal  (leia em Carta Capital).

# Revelações: O que disseram os ex-comandantes  da FAB e do Exército sobre Bolsonaro.  Matéria da Folha mostra que o ex-capitão está comprometido até o pescoço com golpe e pode pegar até 23 anos de prisão pelos crimes que cometeu (leia aqui).

# A sequência nervosa do golpe fracassado: Um relatório sobre supostas fraudes (nunca provadas) nas urnas eletrônicas que teriam prejudicado Jair Bolsonaro selou o divórcio entre o general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Junior, comandantes do Exército e da Aeronáutica, e o almirante Garnier, comandante da Marinha, nos últimos meses de 2022. A situação marcou o início do afastamento dos chefes militares em relação aos apoiadores do golpe, segundo depoimentos prestados à Polícia Federal (leia aqui).

Esse Brasil do Estadão é o nosso? 

pensatas para o fim de semana 15-17-03-24

É impressão minha ou a velha mídia abriu uma nova temporada da "caça ao Lula", o divertimento preferido do neofascismo? 

# Marielle acabou! 

Na Câmara, Bolsonaristas fazem festa para os criminosos (Forum)

# A PEC do atraso avança no Senado

Mas é inconstitucional e pode parar no STF (Carta Capital)

# O Messiânico

ou Deltan Dallagnol, o canalha absoluto (Reportagem imperdívei da piauí)

# Imigrações:  brutalidade e hipocrisia

Imigrantes interessam ao capital (Outras Palavras

# Michelle Bolsonaro, cidadã paulistana, pode?

Nunes cede Teatro Municipal para cerimônia, mas PSOL questiona decisão
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Eleições SP 2024

# Justiça nega pedido de Nunes para retirada de propaganda de Boulos

Prefeito não aceita dianteira do adversário
(Folha)

# Juca Kfouri entrevista Daniela Arbex 

Jornalista lança livro sobre o incêndio no CT do Flamengo que matou 5 jovens (TVT)

Quem será a personalidade com a identificação mantida em sigilo?

A revelação que pode mudar a história da política brasileira

Marielle: investigação chega ao suposto mandante do crime. Nome é mantido em sigilo pelo STF por se tratar de personalidade com foro privilegiado


Foro privilegiado é o termo que designa o fato de que algumas autoridades são julgadas diretamente pelo STF. São elas: presidente, vice-presidente, ministros de Estado, senadores, deputados federais, integrantes dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e embaixadores.

Márcio Falcão, Vladimir Neto, TV Globo (expandir)

Relator no STF será o ministro Alexandre de Moraes, definido por sorteio. Investigadores não revelaram nome da pessoa com foro citada.


As investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista Anderson Gomes, mortos a tiros há 6 anos, chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF).


A TV Globo apurou que o caso foi enviado ao STF pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) após ser identificado o suposto envolvimento de pessoa com foro privilegiado no Supremo.


Foro privilegiado é o termo que designa o fato de que algumas autoridades são julgadas diretamente pelo STF. São elas: presidente, vice-presidente, ministros de Estado, senadores, deputados federais, integrantes dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e embaixadores.


A apuração corre em sigilo e não há detalhes de quem seria a pessoa com foro citada nas investigações. O relator do caso no STF é o ministro Alexandre de Moraes. Ele foi sorteado entre os cinco ministros da 1ª Turma.

Fontes da Polícia Federal afirmam que a corporação continua concentrada na investigação sobre o mandante do assassinato.



Como estão as investigações

Seis anos depois, estão presos: Ronie Lessa, Élcio de Queiroz, Maxwell Simões Corrêa e Edilson Barbosa dos Santos.

Ronie Lessa e Élcio são acusados de terem executado o crime. Segundo as investigações, Maxwell participou do plano do assassinato e monitorou a rotina da vereadora, além de ter ajudado Ronnie e Élcio no desmanche do carro usado no crime e do sumiço das cápsulas da munição.

Edilson é dono do ferro-velho onde o carro usado no crime foi desmontado.


Assista aos vídeos da matéria da Globo


# Por sorteio, Moraes será o relator no STF

# Seis anos sem Marielle e Anderson

Delícias da acumulação de um capitalismo espoliador e atrasado

Desoneração da folha de pagamentos: quem ganha com isso?

Lauro Mattei, A Terra é redonda (expandir)

No início de 2024 o assunto da desoneração da folha de pagamento das empresas de 17 setores de atividades econômicas[i] que, segundo eles são os que mais geram emprego no país, voltou ao centro do debate político nacional. Este é um sistema tributário que estava em vigor desde 2012, cuja vigência acabou em 31 de dezembro de 2023.

Ao longo desse período passou por diversas alterações, chegando ao ponto de ter sido alterado no primeiro ano do segundo governo de Dilma Rousseff para 59 setores. Mas em 2018 o governo de Michel Temer reduziu para os atuais 17 setores, estipulando que tal política terminaria ao final de 2020. Desde então tal benefício vinha sendo concedido anualmente, sendo que ao final de 2022 o mesmo foi ampliado até dezembro de 2023.

De um modo geral, essa desoneração da folha determinava a extinção da contribuição previdenciária patronal, a extinção da contribuição da CIDE (Contribuição de Intervenções no Domínio Econômico) e a extinção da contribuição para o Sistema S.

Tal medida reduzia a contribuição previdenciária das empresas desses setores econômicos de 20% para uma alíquota que variava de 1% a 4,5% (no segundo período do programa) sobre a receita bruta de cada empresa. Somente nos primeiros quatro anos do programa (2012-2015) essa renúncia tributária atingiu a cifra de R$ 25 bilhões, com impactos diretos sobre o sistema de financiamento da Previdência Social. Dados relativos apenas ao ano de 2023 revelaram que a queda na arrecadação do Governo Federal foi da ordem de R$ 9,2 bilhões.

Antecipando-se ao fim da política de desoneração da folha previsto para ocorrer em 31 de dezembro de 2023, lideranças dos setores empresariais beneficiados retomaram seus lobbies junto aos deputados e senadores ainda em meados de 2023. A partir daí o Senador Efraim Filho (União Brasil-PB) apresentou em julho de 2023 o Projeto de Lei (PL 334/23) propondo a prorrogação das isenções em vigor naquela data até 31.12.2027. E a partir de 01.08.23, com uma celeridade nunca vista, o referido projeto passou a tramitar por todas as comissões do Congresso Nacional sempre em regime de urgência. Com isso foi possível que o mesmo fosse aprovado ainda em agosto de 2023.

Enviado para sanção presidencial, o mesmo foi vetado integralmente pelo Presidente Lula em 23.11.2023. Segundo a Presidência da República, o governo considerou o projeto inconstitucional porque ele não apresentava os impactos financeiros da renúncia fiscal (desoneração da folha das empresas contempladas). Para o Ministro da Fazenda, a renúncia implicaria em um montante aproximado de R$ 9,4 bilhões no período definido pela nova lei (31.12.2027), o que comprometeria o equilíbrio das contas públicas, meta perseguida pela atual gestão econômica.

Com isso, o assunto retornou ao Congresso Nacional para serem analisados os vetos presidenciais. Em reuniões realizadas no dia 14.12.2023, tanto no Senado da República quanto na Câmara dos Deputados, foram derrubados todos os vetos do Presidente por ampla maioria nas duas casas parlamentares. A partir daí o assunto virou a Lei Ordinária no. 14.784, publicada no Diário Oficial da União em 28.12.2023.

A reação do governo foi imediata. Em 29.12.2023 foi lançada uma Medida Provisória (MP 1202/23) com o objetivo de reduzir a perda de receita e, com isso, atingir a meta de déficit zero das contas públicas. Para tanto, a MP alterava as regras de desoneração que tinham sido aprovadas pelo Congresso, com destaque para: (a) a MP 1202 propôs que a partir de abril de 2024 vigorasse uma alíquota menor somente para um salário mínimo por trabalhador. Registre-se que, embora a MP entre imediatamente em vigor após ser editada, algumas mudanças propostas só passariam a valer a partir de 90 dias após a publicação da mesma; (b) a revisão do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE) criado em 2021 para socorrer esse setor com desoneração total de impostos durante a pandemia, sendo que tal programa deveria durar apenas dois anos. Todavia, em meados de 2023 o Congresso Nacional prorrogou essa política até o final de 2025.

Diante das repercussões políticas negativas por parte de segmentos do Congresso Nacional, o governo editou uma nova medida (MP 1208/24) em 28.02.2024 revogando a reoneração dos 17 setores prevista pela MP 1202/23. Com isso, esses setores voltaram a ser desonerados conforme foi aprovado pela Lei 14.784/23. Essa decisão de retroceder do governo derivou de acordos celebrados com lideranças políticas do Congresso Nacional, as quais impuseram suas forças ao governo, tornando-o quase que refém dos interesses desses segmentos majoritariamente identificados com as bases políticas conservadoras que atualmente dominam o Congresso Nacional.

Finalmente, em 28.02.24 o Presidente Lula encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei (PL 493/24) com o objetivo de se definir uma reoneração gradual da folha de pagamento dos 17 setores contemplados pela Lei 14.784/23.

Ao longo desse período, cabe lembrar que o lobby desses setores articulado no Congresso Nacional tentou passar para o conjunto da sociedade a ideia de que o fim da desoneração da folha de pagamento reduziria fortemente o crescimento econômico desses setores com implicações negativas sobre o nível de emprego, ao mesmo tempo em que estimularia a informalidade nas relações de trabalho e diminuiria a competitividade econômica do país. Para tanto, apresentaram dados precários sobre os efeitos benéficos desse processo sobre a arrecadação federal no período 2012-2019, sem mostrar, todavia, quais foram os impactos dessa política sobre o mercado de trabalho e o nível dos salários ao longo de toda sua vigência.

De um modelo geral, as entidades representativas dos setores econômicos beneficiados por essa política tributária construíram uma narrativa que vem sendo fartamente divulgada pelos meios de comunicação[ii] sem qualquer questionamento. Nesse debate, aliás, qualquer voz discordante da narrativa predominante dificilmente tem espaço para questionar e colocar seus argumentos. O discurso lobbista se assenta, basicamente, na temática do emprego. Neste caso, convencionou-se afirmar que os setores beneficiados são os maiores geradores de emprego no país e que, caso a desoneração fosse extinta, poderiam ser reduzidos milhares de empregos até 2026; que haverá aumento do custo laboral e com isso cortes de profissionais qualificados; que a produção desses setores entrará em estagnação; e que os níveis de atividades desses setores poderão regredir ao patamar de 2012.

Além disso, alguns estudos sobre setores específicos mostram dados pontuais que tentam comprovar que a contribuição desses setores aumentou, porém sempre sem mencionar qualquer informação relativa ao mercado de trabalho, em especial aos empregos gerados. Portanto, segundo esses argumentos empresariais, bastava reduzir os tributos que os empregos surgiriam automaticamente. Na prática, todavia, o que se viu foi uma explosão do desemprego a partir de 2014 até 2016, conforme está fartamente documentado na literatura especializada sobre mercado de trabalho no Brasil.

Para se contrapor a esse lobby dominante, há uma vasta literatura especializada sobre o assunto, destacando-se Takada et all (2015), Dallava (2014), Do Carmo (2012), Baumgartner (2017), Garcia, Sachsida e Carvalho (2018), Freitas e Paes (2018), dentre outros. Todos esses estudos contêm pontos convergentes entre si que podem ser sistematizados da forma que segue: (a) a desoneração não gerou impactos positivos nem no grau de formalização do mercado de trabalho e nem na realocação entre setores de atividades econômicas; (b) não houve efeitos expressivos da política pública de desoneração sobre o conjunto do emprego formal no país; (c) não houve efeitos positivos da política de desoneração, tanto para emprego como para salários, nos setores desonerados em função do produto; (d) ao se avaliar o efeito de longo prazo da desoneração da folha se constatou que os níveis de crescimento do emprego ficaram muito aquém do esperado, ao mesmo tempo em que a arrecadação previdenciária sofreu quedas sequenciais; (e) apenas em dois setores (call Center e tecnologia da informação) dos 17 beneficiados foram observados efeitos positivos.[iii]

Dentre as principais conclusões desses estudos se pode destacar: (i) a falta de um critério uniforme para inclusão dos beneficiários, levando a inclusão quase que aleatória de setores sem qualquer estudo prévio; (ii) o modelo de desoneração implantado se restringiu a poucos contribuintes, representando uma violação da equidade, uma vez que o custo desse benefício para o sistema público teve que ser suportado pelo conjunto da sociedade; (iii) a política adotada tornou o sistema tributário ainda mais regressivo porque se trata de um tributo indireto e que incide sobre o consumo, penalizando bem mais as camadas de renda inferior da sociedade; (iv) o sistema de financiamento da Previdência Social sofreu desequilíbrios porque a renúncia tributária impactou de forma negativa o resultado fiscal da União.

Durante as discussões no Congresso Nacional sobre a prorrogação das desonerações até 2027, surgiu um importante estudo de autoria do pesquisador do IPEA Marcos Hecksher (2023). Utilizando dados da PNAD Contínua entre 2012 a 2022 o autor mostrou que a População Economicamente Ativa (PEA) do país cresceu de 89,6 milhões (2012) para 98,0 milhões (2022), significando uma variação positiva da ordem de 9,4%. Além disso, indicou que sete setores (nenhum deles vinculados à política de desoneração da folha) eram responsáveis pela geração de 52,4% do total de ocupados, fato que nega o principal argumento dos defensores da desoneração da folha.

Quanto aos 17 setores que foram desonerados, o autor verificou as seguintes situações: (a) nenhum deles figurou entre os setores responsáveis por 52,4% dos ocupados; (b) o conjunto dos setores desonerados reduziu a participação no total de ocupados do país de 20,1% (2012) para 18,9% (2022); (c) dentre os ocupados nos setores desonerados apenas 54,9% contribuíam para a previdência, contra 63,7% na média dos trabalhadores do país; (d) os empregados com carteira de trabalho assinada caíram de 22,4% (2012) para 19,7% (2022); (e) os ocupados contribuintes da previdência caíram de 17,9% (2012) para 16,2% (2022); (f) empresas privadas de outros setores aumentaram em 6,3% os empregos com carteira (1,7 milhões); (g) empresas privadas desoneradas reduziram em 13% os empregos com carteira (-960 mil trabalhadores).

Visando contribuir com esse debate, elaborei o quadro abaixo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Quanto ao primeiro período (2011-2014), observa-se que em termos absolutos ocorreu uma expansão de 174.942 postos de trabalho, sendo que oito setores desonerados reduziram seus níveis de emprego, enquanto outros nove ampliaram. Mesmo assim, o percentual de participação dos setores desonerados no total do país caiu de 16,5% (2011) para 15,8% (2014).

No caso dos setores que expandiram o emprego, ocorreu uma concentração de aproximadamente 90% em quatro deles: transportes rodoviários de cargas, call center, TI e transportes rodoviários coletivos. Já no caso dos 8 setores que excluíram vagas não houve grandes dispersões, com concentração nos setores de calçados, construção civil, couro e fabricação de veículos e carrocerias.

No período 2014-2021 notou-se uma redução de 873.943 postos de trabalho em relação ao montante existente em 2014. Com isso, o percentual de participação desses setores no emprego do país se reduziu para 14,3%, dando continuidade ao que foi observado no período anterior. Em termos setoriais, verifica-se que 12 setores sofreram redução, enquanto outros cinco aumentaram seus níveis de emprego. No caso dos setores que reduziram seus níveis de emprego, destacam-se Confecção e vestuário (-128.733), Construção civil (-203.932), Construção e obras de infraestrutura (-219.031) e Transportes rodoviários coletivos (-215.935).

Embora em patamares baixos, também merece destaque as reduções ocorridas nos setores de couro, fabricação de veículos e carrocerias, jornalismo e radiodifusão e têxtil. Já no caso dos setores que expandiram os níveis de emprego, destacam-se os setores de TI (190.784) e de Transportes de cargas (129.401). Na verdade, esses dois setores responderam por 93% da expansão do emprego no período 2014-2021. Já os setores de call center, proteína animal e transportes metroviários de passageiros apresentaram pequenas oscilações positivas que podem ser consideradas inexpressivas diante dos dois primeiros.

Finalmente, é importante analisar o período completo de vigência da política de desoneração da folha (2012-2021), à luz dos dados disponibilizados pela RAIS (2021 é último ano com dados disponíveis). Inicialmente, é importante destacar que o percentual de participação desses 17 setores no conjunto do emprego gerado no país caiu de 16,5% (2011) para 14,3% (2021). Em termos absolutos, verifica-se que ao longo da série temporal considerada ocorreu uma redução de 699.022 postos de trabalho, sendo que apenas seis dos 17 setores desonerados elevaram seus níveis de emprego em 2021, comparativamente ao ano de 2011.

Na sequência destacamos a quantidade de postos de trabalho reduzidos nos onze setores: calçados (-68.153), confecções e vestuário (-170.431), construção civil (-403.118), construção e obras de infraestrutura (-250.037), couro (-86.989), fabricação de veículos e carrocerias (-101.096), jornalismo e radiodifusão (-17.445), máquinas e equipamentos (-19.039), têxtil (-35.642), projeto de circuitos intergados (-11.369) e transportes rodoviários coletivos (-161.892). Isso significou uma redução de 1.325.211 postos de trabalho. Desse total, cinco setores (confecções e vestuário, construção civil, construção e obras de infraestrutura, fabricação de veículos e carrocerias transportes rodoviários coletivos) foram responsáveis por 82% de todas as reduções de postos de trabalho no período considerado.

Do ponto de vista dos setores que expandiram os postos de trabalho, verifica-se o seguinte cenário: transportes rodoviários de cargas (+260.405), TI (+253.470), call center (+107.463), proteína animal (+24.088), transportes metroviários de passageiros (+6.399) e TIC (+1.364). Isso significa que os três primeiros setores foram responsáveis por 95% da expansão dos postos de trabalho.

Em síntese, pode-se resumir esse movimento no mercado de trabalho desses dezessete setores da forma que segue: em apenas três setores (transportes rodoviários de cargas, TI e call center) houve expansão expressiva de postos de trabalho, enquanto que em outros cinco setores (construção civil, construção e obras de infraestrutura, confecções e vestuário, transportes rodoviários coletivos e fabricação de veículos a carrocerias) ocorreu uma retração expressiva do volume de emprego em 2021 comparativamente ao nível existente em 2011. No restante dos setores desonerados ocorreu redução de postos de trabalho, fato que fez a participação dos desonerados no emprego total do país cair de 16,5% para 14,3%, o que implicou em uma redução de aproximadamente 700 mil postos de trabalho.

Por fim, deve-se mencionar que os empregos gerados apresentaram uma concentração expressiva em apenas três setores desonerados (cal center, TI e transportes rodoviários de cargas). Portanto, pode-se afirmar que a política de desoneração – no que tange ao mercado de trabalho – não promoveu a expansão da formalidade e nem estimulou a realocação da mão de obra entre os diversos setores de atividades econômicas.

Link para o acesso ao texto original de A Terra é redonda

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

Notas

[i] Confecção e vestuário, calçados, construção civil, call center, comunicação, construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e carrocerias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da informação, tecnologia da informação e comunicação, projeto de circuitos integrados, transporte metro-ferroviário de passageiros, transporte rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.

[ii] Vide manchete do Portal R7, Brasília (19.11.2023): “estudo mostra que segmentos desonerados empregam mais e pagam melhor”.

[iii] Provavelmente essa expansão tenha mais a ver com os novos parâmetros estruturais da economia brasileira do que propriamente em função da política de desoneração.

União Europeia aprova legislação pioneira sobre Inteligência Artificial

Antes que os estragos na nossa sociabilidade se tornem irreversíveis, UE cria barreira jurídica para evitar que a colonização das mentes se espalhe nos espaços do cotidiano, entre eles a escola 

Bloomberg, Estrasburgo, via O Globo (expandir)

Lei determina que a IA não poderá ser usada para coletar imagens faciais para bancos de dados, nem para interpretar emoções em escolas ou locais de trabalho


O Parlamento da União Europeia aprovou, nesta quarta-feira, as mais abrangentes barreiras de proteção no mundo em relação ao rápido desenvolvimento da inteligência artificial(IA).

A Lei de Inteligência Artificial europeia poderá, na ausência de qualquer legislação por parte dos Estados Unidos, definir o tom de como a IA será regulada no mundo ocidental. As empresas, no entanto, avaliam que a lei é abrangente demais, enquanto os os órgãos de controle dizem que não é o suficiente.

"A Europa agora está estabelecendo um padrão global para uma IA confiável", disse o comissário do Mercado Interno da UE, Thierry Breton, em comunicado.

A nova lei tem como objetivo abordar as preocupações sobre preconceito, privacidade e outros riscos da tecnologia em rápida evolução. O texto não cita especificamente a remuneração do conteúdo usada pelas plataformas de IA, mas determina que essas ferramentas respeitem as leis europeias de direitos autorais.

A legislação proíbe o uso de IA para detectar emoções em locais de trabalho e escolas, além de limitar como ela pode ser usada em situações sensíveis como análise de currículos para uma vaga de emprego.

O eurodeputado italiano Brando Benifei, co-relator do projeto de lei, comemorou a aprovação em uma entrevista coletiva:

— Hoje é um dia histórico em nosso longo caminho para a regulamentação da IA.

Outro co-relator, o o romeno Dragos Tudorache, avalia que o texto permite encontrar o equilíbrio "entre o interesse em inovar e o interesse em proteger." Ele ressalta que a Lei de IA "é apenas o começo", já que a inteligência artificial continua a evoluir rapidamente:

— Devemos estar muito atentos à evolução dessa tecnologia no futuro, de forma a responder aos novos desafios que podem surgir.

O jogo dos seis erros da inteligência artificial

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Os erros da IA

A legislação entrará em vigor após a assinatura dos Estados-membros, o que geralmente é uma formalidade, e 20 dias depois de publicada no Diário Oficial da UE.

Veja os principais pontos da legislação:

Thierry Breton: ''A Europa é agora um padrão global em IA confiável'' — Foto: Angel Garcia/Bloomberg

A Lei de Inteligência Artificial também traz as primeiras restrições às ferramentas de IA generativa (capaz de criar conteúdo de texto, imagem e vídeo), que chamaram a atenção do mundo no ano passado com a popularidade do ChatGPT.

Mas, no fim do ano passado, na reta final das discussões, os governos de França e Alemanha se opuseram a algumas medidas mais restritivas à IA generativa, argumentando que as regras prejudicariam startups europeias, como a francesa Mistral AI e a alemã Aleph Alpha.

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Grupos da sociedade civil, como o Corporate Europe Observatory (CEO), levantaram preocupações sobre a influência que as big techs e as empresas europeias tiveram na elaboração do texto final.

"Essa influência unilateral fez com que a 'IA de uso geral' ficasse amplamente isenta das regras e só precisasse cumprir algumas obrigações de transparência", afirmaram os grupos em comunicado, incluindo o CEO e o LobbyControl, referindo-se aos sistemas de IA capazes de realizar uma gama maior de tarefas.

Um anúncio recente de que a Mistral AI havia feito uma parceria com a Microsoft gerou preocupações entre parlamentares. Kai Zenner, um assistente parlamentar fundamental na redação da lei e agora conselheiro das Nações Unidas sobre a política de IA, escreveu que a mudança foi estrategicamente inteligente e "talvez até necessária" para a startup francesa, mas disse que "o legislador da UE foi novamente enganado."

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As empresas americanas e europeias também levantaram preocupações de que a lei limitará a competitividade do bloco.

"Com um setor de tecnologia digital limitado e investimentos relativamente baixos em comparação com gigantes do setor como os Estados Unidos e a China, as ambições da UE de soberania tecnológica e liderança em IA enfrentam obstáculos consideráveis", escreveu Raluca Csernatoni, pesquisador do think tank Carnegie Europe.

Durante o debate de terça-feira, os parlamentares reconheceram que ainda há muito trabalho pela frente. A UE está em processo de criação de seu Escritório de IA, um órgão independente dentro da Comissão Europeia.

Na prática, o escritório será o principal responsável pela aplicação da lei, com a capacidade de solicitar informações de empresas que desenvolvem IA generativa e possivelmente proibir um sistema de operar no bloco.

*Com agências internacionais

Drogas: o risco do retrocesso


A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado votou na quarta-feira (15/3) uma proposta de emenda que pode colocar na Constituição que tanto a posse (possuir uma quantidade) quanto o porte (carregar consigo) de drogas, mesmo para consumo próprio, seriam crime no Brasil.

Isso já é previsto na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que está em vigor, mas pode ser alterado por um julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal (STF).

A decisão da Corte poderá levar à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.

Leandro Parazeres e Letícia Mori, BBC, via Outras Palavras (leia mais)

O avanço da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre drogas no Senado é vista por políticos, advogados e analistas ouvidos pela BBC News Brasil como um “contra-ataque” no Congresso para tentar barrar a liberação do porte de maconha pelo STF – embora especialistas indiquem que a aprovação da emenda no legislativo pode não encerrar o debate no Supremo (leia mais abaixo).

A votação na CCJ é o primeiro passo para que a medida possa ser aprovada no plenário antes de o STF finalizar o julgamento sobre o porte de maconha.

Iniciado há nove anos e paralisado por pedidos de vista, quando um ministro pede mais tempo para analisar um tema, o caso foi retomado na Corte na semana passada.

Isso colocou o STF novamente em rota de colisão com uma parte poderosa do Congresso Nacional: a bancada conservadora do Parlamento liderada, em grande parte, pela Frente Parlamentar Evangélica.

Há até o momento cinco votos favor e três contra para que algum grau de descriminalização seja implementado, faltando apenas um voto para a formação de maioria.

O julgamento, porém, foi interrompido por um terceiro pedido de vistas, feito desta vez pelo ministro Dias Toffoli, com o voto de três ministros ainda pendente. Toffoli tem um prazo de até três meses para devolver o caso ao plenário.

A interrupção não parece ter arrefecido os ânimos no Congresso, onde parlamentares da bancada evangélica, com o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se mobilizam para aprovar a PEC.

Presidente do STF, Luis Roberto Barroso, conversou com líderes evangélicos no Congresso Nacional antes do início do julgamento. Bancada religiosa planeja uma PEC prevendo a criminalização da porte e da posse de drogas independentemente da quantidade

Tema exige costura política delicada

Na avaliação do cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), esse contra-ataque da bancada conservadora no Congresso já era esperado.

Segundo ele, a disputa faria parte de um processo que vem sendo descrito pela ciência política como “politização da Justiça” ou “judicialização da política”.

Nessa dinâmica, ele explica, a crítica é de que o Judiciário estaria utilizando seus poderes para legislar no lugar do Parlamento.

“Há algum tempo, há uma discussão intensa sobre se o STF vem ou não invadindo a competência do Poder Legislativo”, diz Couto.

“Em temas menos polêmicos, talvez a reação à atuação no Congresso fosse outra. Como este assunto é considerado um tabu na sociedade brasileira e muito instrumentalizado politicamente, era de se supor que houvesse uma reação como essa.”

As tensões entre o STF e o Congresso também foram responsáveis por uma série de pedidos de impeachment de ministros do STF, projetos de lei e PECs com o objetivo de limitar os poderes do Supremo, especialmente em relação ao alcance de investigações contra parlamentares e ao poder de decisões individuais.

Segundo Couto, reações como essa já haviam ocorrido em outros episódios, como no caso do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Em setembro de 2023, o STF rejeitou a tese de que demarcações de terras indígenas só poderiam ser feitas em áreas ocupadas por povos originários em outubro de 1988.

Como reação, a bancada ruralista acelerou a votação de um projeto de lei que previa o estabelecimento do marco temporal, contrariando o STF.

Parte do projeto foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas o veto foi posteriormente derrubado pelo Congresso, em uma demonstração de força dos ruralistas.

Couto avalia que a reação do Congresso em torno do julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha já era prevista pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF e a quem cabe a prerrogativa de definir as pautas que serão votadas em plenário.

Na semana passada, o ministro se reuniu com integrantes da bancada evangélica no Congresso Nacional antes de o julgamento ser retomado.

Para Couto, o encontro teve o objetivo de evitar um movimento semelhante ao que ocorreu no caso do marco temporal.

O cientista político avalia que o fato de Barroso ter recorrido aos parlamentares mostra que o tema é tão sensível que demandou uma espécie de “articulação política” com o Congresso.

“Quando um ministro vai aos parlamentares dialogar sobre um julgamento, isso pode, por um lado, fomentar as críticas de que o Supremo não é técnico, mas político”, diz Couto.

“Por outro lado, não admitir isso seria tapar o sol com a peneira. Há um caráter intrinsecamente político nas decisões do Supremo. Essa é a realidade, e Barroso lidou com ela.”

‘STF não pode liberar drogas com canetada’

Deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, diz que seus colegas pretendem avançar com votação de PEC sobre drogas no Congresso após STF pautar julgamento sobre o tema

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Barroso disse aos parlamentares que o julgamento não se dedicaria a liberar o uso de drogas no Brasil, mas a estabelecer limites a partir dos quais deveria ser feita a distinção entre usuário e traficante de drogas.

“Se um garoto branco, rico e da zona sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado”, disse o ministro segundo o jornal.

“No entanto, se a mesma quantidade é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso. Isso que temos que combater.”

O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é membro da bancada evangélica e contra a descriminalização, diz que o argumento de Barroso não convenceu.

“O ministro disse aos parlamentares que o Supremo não iria deliberar sobre a descriminalização, mas, na prática, é isso que está em jogo, sim”, diz Cavalcante à BBC News Brasil.

“Se estabelecermos uma quantidade permitida para o porte, o que o tráfico fará é usar mais gente transportando esse limite para não ter problemas com a justiça. Isso é óbvio.”

Para o deputado, o STF não deveria interferir neste assunto.

“O STF não pode liberar as drogas com uma canetada. Este é um assunto que cabe ao Parlamento decidir”, afirma o deputado.

“Nós fomos eleitos para representar a população e deliberar sobre esse tipo de tema. Por isso que vamos manter o ânimo para votar a PEC.”

Na semana passada, o movimento de reação iniciado por parte da bancada evangélica no Senado ganhou a adesão de um importante aliado: Rodrigo Pacheco.

Foi ele quem apresentou a proposta que agora vem sendo chamada de “PEC das Drogas”, em 2023, e foi ele quem deu o “sinal verde” para que a proposta fosse levada a votação na CCJ do Senado.

Esta, porém, não é a primeira vez que Pacheco se alia à bancada conservadora do Senado em torno de uma proposta relativa à segurança pública. No início do ano, o senador deu apoio a um projeto de lei que acabou com a saída de presos em datas comemorativas e feriados, as chamadas “saidinhas”.

O projeto ganhou apoio do senador após o caso de um policial de Minas Gerais ter sido morto por um homem que havia sido liberado da prisão durante uma dessas “saidinhas”.

O deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que é a favor da descriminalização das drogas, diz reconhecer a força política da bancada evangélica no Congresso e reclama do apoio de Pacheco à chamada “PEC das drogas.

“Eles têm uma força numérica inegável. Não sei se são capazes de aprovar uma PEC sobre o assunto, mas têm uma capacidade de ação que não podemos ignorar. O que nos causa surpresa é a atuação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que sempre se posicionou de forma muito sóbria em todos os debates relevantes”, diz o parlamentar.

“O debate está aí e precisa ser feito. Não podemos mais continuar com a mesma política que leva ao encarceramento de jovens em todo o Brasil. Precisamos debater o assunto sem hipocrisia.”

Na semana passada, Pacheco justificou seu apoio à tramitação da PEC.

“O que nos motivou como reação principal foi que uma declaração de inconstitucionalidade (sobre o porte para consumo de drogas) que vai significar, sim, na prática e juridicamente, a descriminalização da conduta era algo que nós não podíamos concordar porque cabe ao Parlamento ou não decidir se algo deve ser crime ou não”, disse o senador.

Em meio a esse fogo cruzado, o governo federal vem tentando não se posicionar diretamente sobre o julgamento.

O Palácio do Planalto disse em nota à BBC News Brasil que “a Presidência da República não comenta julgamentos do STF nos quais não é parte do processo”.

A reportagem também tentou contactar lideranças do governo no Congresso, mas as ligações não foram atendidas.

Internamente, o tema é considerado sensível, entre outros motivos, por conta da ampla contrariedade do eleitorado evangélico à medida.

Este é um dos segmentos que mais apresenta resistência em relação ao governo, segundo pesquisas de opinião.

Segundo levantamento da empresa de pesquisas Quaest, 62% do eleitorado evangélico desaprova o presidente Lula. O percentual é acima da média geral de desaprovação que foi de 46%.

A pesquisa divulgada na semana passada tem uma margem de erro de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos.

O tabu das drogas no Brasil

A descriminalização das drogas é um assunto que, historicamente, gera debates acalorados entre defensores e opositores à proposta no Brasil.

A dimensão dessa polêmica pode ser medida pelo tempo que o STF está levando para julgar o caso sobre o tema.

O julgamento retomado na semana passada foi iniciado em 2015. A demora se deu, em parte, por dois pedidos de vistas feitos pelos ministros Teori Zavascki, já falecido, em agosto daquele ano, e André Mendonça, em agosto do ano passado.

Antes da regra criada pela ex-ministra Rosa Weber, os pedidos de vista não tinham prazo e os ministros podiam parar um julgamento para analisar o caso durante anos. Agora, devem devolver um caso em até 90 dias.

O Supremo julga a constitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) que cria a figura do usuário de drogas em uma diferenciação em relação ao traficante. Este último ficaria sujeito a penas mais severas.

A lei, no entanto, não estabeleceu critérios objetivos sobre a diferença entre usuário e traficante.

Defensores da descriminalização do porte para uso de drogas afirmam que a falta de critérios prejudica, especialmente, jovens negros que moram em comunidades pobres que seriam presos e processados como traficantes apesar de portarem pequenas quantidades de drogas.

O caso que motivou o julgamento, por exemplo, se refere a um homem que foi flagrado com três gramas de maconha enquanto estava preso.

Opositores à medida afirmam que a descriminalização do porte poderia levar ao aumento do consumo de drogas e à ampliação do uso de jovens pobres no tráfico de drogas.

Em 2015, quando teve início o julgamento, os ministros e ministras avaliaram a possibilidade de descriminalizar o porte de qualquer tipo de droga.

Mas, à medida em que os votos foram sendo proferidos, a tendência foi de restringir ao porte de maconha, porque foi a droga do caso específico em julgamento.

No campo político, o tema divide os campos chamados progressistas, mais associados à esquerda, e conservadores, mais associados à direita.

Durante a campanha eleitoral de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro (PL), apoiado por uma ampla base evangélica, criticava o então candidato Lula e seus aliados por serem supostamente favoráveis à descriminalização das drogas.

O programa de governo de Lula apresentado por sua coligação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não previa, no entanto, propostas para descriminalização das drogas.

O texto mencionava, no entanto, que “o país precisa de uma nova política sobre drogas,” focada na redução de riscos, prevenção e assistência ao usuário de entorpecentes.

No governo, o tema vem dividindo opiniões. Em novembro de 2022, o então indicado para ministro da Justiça e atual ministro do STF, Flávio Dino, disse à BBC News Brasil que o governo não tinha projetos para a descriminalização das drogas.

Em março de 2023, no entanto, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, disse à BBC News Brasil ser favorável à medida como forma de diminuir a superlotação dos presídios brasileiros.

Uma pesquisa divulgada em setembro de 2023 pelo Datafolha aponta que 72% das pessoas entrevistadas seriam contra o uso recreativo de maconha.

Aprovação de PEC pode não encerrar debate no STF

Apesar de a bancada evangélica apostar na PEC como uma espécie de garantia contra o julgamento do STF, especialistas em Direito avaliam que a situação é mais complexa do que parece.

Mesmo que o Congresso aprove a PEC antes da decisão do Supremo no caso, o julgamento não seria interrompido e não necessariamente a PEC teria efeitos “automáticos”.

“A emenda constitucional pode ser impugnada pela via das ações diretas de inconstitucionalidade, como o Supremo já fez no passado”, afirma Henrique Sobreira Barbugiani Attuch, do escritório Wilton Gomes Advogados.

A avaliação é que mesmo emendas à Constituição podem ser consideradas inconstitucionais caso se conclua que elas interferem nas chamadas “cláusulas pétreas” da Carta, que se referem temas que não são passíveis de mudança.

“O Direito não aceita tudo. Há princípios que nem emendas podem mudar na Constituição”, diz Belisário dos Santos Junior, especialista em Direito Público e ex-secretário de Justiça de São Paulo.

“Então, se aprovada, essa PEC não garante o fim da discussão.”

Caso a PEC seja aprovada e não seja questionada, o que é considerado por analistas ouvidos pela reportagem como algo improvável diante do atual cenário político, aí sim o resultado da decisão do Supremo sobre o artigo 28 da Lei de Drogas teria que levar em consideração o que estabelece a emenda.

Wallace Corbo, professor de Direito da FGV, explica que existe também a possibilidade de o Supremo decidir que a criminalização do uso não viola a Constituição, mas que, mesmo assim, existe a necessidade de se estabelecer uma quantidade para diferenciar usuário e traficante.

Até o momento, quatro dos cinco ministros que votaram pela descriminalização do porte defenderam determinar que um porte acima de 60 gramas caracterizaria tráfico.

Já os ministros Cristiano Zanin e Kássio Nunes, que votaram contra descriminalizar o porte, defenderam que a quantidade máxima para uso próprio deveria ser 25 gramas. Também contrário, André Mendonça falou em 10 gramas.

A questão da quantidade para diferenciar traficantes de usuários é considerada um dos temas centrais do julgamento.

O ministro Alexandre de Moraes afirmou que esse ponto é importante porque estabelece um critério objetivo e evita injustiças e distorções.

Corbo afirma que, se o Congresso criar uma lei alterando a quantidade determinada pelo Supremo, a tendência seria a Corte acatar a escolha.

“Esse seria o cenário com menor risco de judicialização, menor chance de voltar ao Supremo”, disse Corbo.

Toffoli, inclusive, chegou a dizer que determinar essa quantidade não seria uma tarefa do STF, e Mendonça defendeu que a Corte encaminhasse a questão toda – tanto sobre a quantidade para diferenciar usuário e traficante quanto sobre a criminalização da posse – para o Congresso votar em até 180 dias.

“Esse tipo de decisão tem sido cada vez mais comum no Supremo e no Judiciário como um todo”, afirma Corbo.

Isso seria, na visão de Corbo, um “meio-termo” em que o Supremo se sobreporia ao Legislativo, mas também não deixa a critério do Congresso decidir quando bem entender.

“Fixa-se um prazo para essa decisão do Congresso e, se esse prazo não for cumprido, podem advir consequências, como, por exemplo, valer a decisão do Supremo quanto ao que entende como mais adequado.”

Diante de mais um momento de tensão entre o Congresso e o STF, especialistas avaliam que o pedido de vistas de Toffoli pode ser interpretado como uma alternativa ao embate direto entre os dois Poderes.

Isso porque a interrupção do julgamento daria tempo ao Parlamento para discutir o assunto.

“Como o Congresso Nacional está em pé de guerra com o STF neste caso, dar tempo ao Legislativo para decidir sobre o tema é uma forma de lidar com ele de forma mais cuidadosa”, diz Couto.

Tanto Corbo quanto Santos Junior afirmam que existem motivos jurídicos plausíveis para um pedido de vista, mesmo no caso de um julgamento que tramita há bastante tempo.

“O pedido de vista serve tanto para o aprofundamento sobre a matéria quanto para revisão das posições já colocadas (e houve de fato novas posições recentes que poderiam justificar o pedido)”, afirma Corbo.

No entanto, diz ele, o pedido também tem sido usado como forma de interferir na agenda do STF.

“Como hoje em dia há prazo definido para devolver os autos após o pedido, essa última possibilidade fica um pouco mais restrita, mas não deixa de ser possível, e aí pode sim haver um componente político no pedido.”

Como o modelo da internet móvel do Brasil favorece a desinformação


Flávia Lefèvre, Paloma Rocillo e Polinho Mota, Le Monde (expandir)

Desde 2016, o Brasil vive sob a sombra de campanhas de desinformação política que influenciam como os eleitores escolhem suas pautas e candidatos. Quantos de nós chegaram a sair de grupos de aplicativos de mensagem online porque não aguentavam mais um tio que todo dia enviava fake news sobre uma suposta distribuição de mamadeiras ou prêmios Nobel que nunca foram concedidos?

Muitas pesquisas têm apontado que grupos online são canais de intensos fluxos de consumo e distribuição de informação política. O que ainda não está sendo debatido da forma que deveria é a relação direta entre essa circulação de desinformação e o modelo de oferta de acesso à internet praticado no Brasil. Se estamos falando de um problema relacionado à comunicação, precisamos pensar quais são as estruturas que viabilizam tal comunicação. Dados da TIC Domicílios[1], produzida pelo CETIC.br, apontam que seis a cada dez usuários de internet no Brasil acessaram a rede exclusivamente pelo telefone celular (62%). Entre aqueles com telefone celular, 64% haviam contratado um plano pré-pago e 34% um plano pós-pago. Ou seja, uma estrutura central para a comunicação da população brasileira atualmente é a internet móvel.

É também desde 2016 que as operadoras telefônicas oferecem o atual modelo de franquia de dados móveis, que inclusive tem preços proporcionais mais caros do que pacotes de conexão fixa como a fibra óptica. O modelo funciona da seguinte maneira:

Compreendida a estrutura, vamos ao seu problema. A estrutura desse modelo baseado em franquia parte de um pressuposto de escassez, no qual os acordos comerciais passam a ser um bote de salvação para quando a franquia terminar. Assim, os acordos comerciais com apenas algumas plataformas transformam a internet – que é livre e gigantesca – em um microcosmo de duas ou três empresas, com predomínio principalmente de aplicações da META (Facebook, Instagram e WhatsApp), que são umas das principais plataformas que concentram campanhas de desinformação, como tem acontecido nas últimas eleições e durante a pandemia de COVID-19.

Assim, quem está refém dos pacotes de dados móveis que restringem o acesso à internet ao uso de apenas alguns aplicativos não vai conseguir verificar se as informações que lhes são direcionadas pelos sistemas algorítmicos das plataformas são verdadeiras ou não, tampouco acessar um portal de notícias e buscar o tema relacionado. Presos dentro de um sistema de informação e sendo bombardeados por mensagens revestidas com roupagem de jornalismo, por exemplo, altamente financiadas, os brasileiros vivem num cenário em que uma mentira pode ganhar status de verdade.

O combate à desinformação é possível e diversas estratégias podem ser utilizadas para isso, como a checagem de informações e de outras fontes estimuladas pela ONU na Campanha Pauses; ou ainda, no investimento em educação midiática. Entretanto, o combate à desinformação pode morrer na praia se o ecossistema de comunicação, cujo controle sobre o fluxo de informações está nas mãos das Big Techs, não possibilita os meios de aplicação das estratégias necessárias, como o acesso ilimitado à internet que viabilize a pluralidade de fontes.

LEGISLAÇÕES VIGENTES APONTAM ILEGALIDADE NO MODELO ATUAL DE FRANQUIA DE DADOS MÓVEIS

Além de ser uma demanda para o enfrentamento à desinformação, a necessidade de mudança do modelo de franquia para acesso à internet também é uma medida para que a legislação brasileira já existente seja respeitada. Nossa legislação estabelece que o acesso à internet é um serviço essencial, universal e ainda um direito humano reconhecido pela Organização das Nações Unidas desde 2011. Esta definição está expressa nos artigos 7º, IV e 9º, § 3º do Marco Civil da Internet e no artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor.  Além disso, a própria Constituição Federal estabelece que a ordem econômica deve estar voltada para a redução das desigualdades e para o respeito aos direitos do consumidor, atribuindo ao Estado o poder de regular e fiscalizar empresas públicas e privadas, em seus artigos 170 e 174.

Atualmente, acessar a internet é vital e imprescindível para o exercício da cidadania. À medida que a tecnologia evolui, o acesso restrito escancara e amplia as desigualdades sociais. É frequente que atores e atrizes em cargos políticos mobilizem os dados de acesso à internet no Brasil para mostrarem como a conectividade no país já avançou muito. Quando olhamos para alguns dados da TIC Domicílios, podemos ter essa mesma percepção, afinal, 81% dos brasileiros são usuários de Internet, segundo a pesquisa. Mas uma análise mais dedicada aos indicadores do CETIC.br mostram que esse acesso ainda é muito precário, classista e elitizado. A apropriação tecnológica ainda é uma realidade distante no Brasil, onde desses milhões de usuários, apenas 26% dos indivíduos postaram na internet textos, imagens, fotos, vídeos ou músicas que criaram.

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Essa forma de disponibilizar acesso sem cobrança adicional por meio de um aplicativo é chamada de zero rating e seu impacto é tão prejudicial que já foi proibido na Europa. O zero rating é um arranjo comercial que privilegia determinados aplicativos em detrimento de outros, ferindo um princípio central da internet, a neutralidade da rede, segundo o qual todo o tráfego na internet deve ser tratado de forma igualitária e sem discrirminação por conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicação.

Um ponto importante é que o princípio da neutralidade da rede não é algo que acadêmicos valorizam exclusivamente a nível teórico. É um princípio que, segundo a legislação brasileira, deve ser observado como regra. Qualquer prática de violação a esse princípio deve ser uma exceção. As situações excepcionais devem ser acompanhadas pela Anatel, conforme artigo 5º do Decreto 8.7716/15, que regulamenta o Marco Civil da Internet. Entretanto, vivenciamos mais uma situação de ilegalidade: a quebra da neutralidade tem sido a regra, e a Anatel não tem acompanhado as situações de excepcionalidade.

GRUPOS SOCIALMENTE VULNERÁVEIS SÃO OS MAIS PREJUDICADOS PELO ACESSO RESTRITO À INTERNET

Talvez, você leitor, nunca tenha sofrido por depender de um serviço tão precário e com efeitos tão perversos, porém, cerca de 80% dos usuários das classes C, D e E acessam a internet exclusivamente pela rede móvel e por meio dos planos pré-pagos. As franquias, segundo as pesquisas do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), se esgotam no 21º dia no mês e, a partir daí, o acesso é bloqueado, permitindo apenas o tráfego dos pacotes de dados de poucas empresas, como as aplicações da Meta, TikTok e Google. Estamos falando da maioria da população brasileira que hoje está refém dessa prática ilegal, com consequências determinantes para o enfraquecimento de nossas instituições democráticas.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) mostrou como comunidades como quilombos, assentamentos, favelas, migrantes e indígenas em contextos urbanos sentem os impactos negativos da conexão móvel no seu dia a dia. “Boa parte dos meus irmãos usa celular de conta, pré-pago. Daí é difícil porque a gente manda uma mensagem séria e chega três dias depois. ‘Ah, hoje tem crédito’ e entra todas as mensagens que estão atrasadas”, relata Eni Carajá, indígena Carajá que vive em contexto urbano. A liderança acrescenta que, em geral, os aplicativos de mensagem são a única forma de comunicação nos territórios que têm infraestrutura de internet e oferta de serviços mais precária.

Depender de apenas uma forma de estar conectado pode representar uma vulnerabilidade para o ecossistema de informação nacional. Pessoas com menor poder aquisitivo muitas vezes dependem de estarem em um ambiente com conexão fixa e wi-fi para realizarem suas atividades, como relatou Maria Victória Gonzalez.

“Às vezes, eu coloco 15 reais, quando eu tenho que ir para faculdade ou para algum lugar. Às vezes não dá para o mês inteiro, depende. Esses planos de 50 reais não dá. A gente trabalha aqui com Wi-fi e quando vai sair a gente carrega”, conta a integrante do Coletivo Cio da Terra, formado por mulheres migrantes na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Ainda estamos longe de termos um Brasil realmente conectado, principalmente quando analisamos de forma regional. Os dados da TIC domicílios relativos a 2023 revelam que as regiões Norte e Nordeste possuem os piores índices de conectividade. No cenário nacional, 62% dos domicílios que estão conectados possuem conexão via fibra óptica, enquanto 16% dos domicílios conectados são via rede móvel. Na região Norte e Nordeste, a proporção de domicílios conectados com rede fixa é de  58% e 57%, respectivamente, abaixo da proporção nacional (figura 1).

Na região Norte, que historicamente possui menores investimentos em infraestrutura de rede fixa, o índice de domicílios conectados por conexão móvel é 27% maior que a porcentagem nacional. Isso revela que as populações desses territórios podem não ter outra opção de conexão a não ser a móvel, o que favorece sua exposição à desinformação e a todo o cenário de baixa conectividade.

Fonte: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20230825143720/tic_domicilios_2022_livro_eletronico.pdf

CAMPANHA #LIBERAMINHANET ARTICULA PAUTA JUNTO A ÓRGÃOS PÚBLICOS E SOCIEDADE CIVIL

A temática do direito ao acesso à internet é uma entre as diversas pautas defendidas pela Coalizão Direitos na Rede (CDR), que articula mais de 50 organizações da sociedade civil em prol dos direitos digitais. Em 2023 a CDR lançou a Campanha #LiberaMinhaNet, uma iniciativa para explicar o contexto da franquia de dados, suas incongruências e soluções possíveis.

A mobilização junto à sociedade civil e à imprensa caminha em paralelo à articulação em Brasília. A coalizão encaminhou um pedido administrativo ao Ministério da Justiça e à Secretaria Nacional do Consumidor em janeiro de 2023, no qual solicitava a revisão da prática do modelo de franquia de dados em curso no Brasil. Até agora os órgãos não se pronunciaram diante de um problema que ganha maiores proporções com a chegada do ano de eleições municipais. A inação do Governo surpreende o campo ativista, visto que a candidatura eleita foi impactada de forma significativa por campanhas de desinformação eleitorais e ainda sofreu uma tentativa de golpe logo no início do mandato. Vale acrescentar que, durante a campanha eleitoral, o próprio presidente Lula afirmou que uma de suas  prioridades de governo seria a melhoria da conectividade no país, tendo feito menção expressa ao fim da limitação de acesso móvel.

Com o Brasil na presidência do G20 e a proximidade das eleições municipais, revisitar o modelo baseado em franquia associada a bloqueio do acesso à internet e tarifa zero para aplicações da Meta – nas quais a desinformação trafega de forma massiva – nunca foi tão relevante. Primeiro porque, em 2014, o Brasil ocupava posição pioneira no campo da Governança da Internet, desenvolvendo debates e regulações próprias, efetivas e contextualizadas às nossas necessidades, como é o caso do Comitê Gestor da Internet no Brasil – o CGI.br e o Marco Civil da Internet. Nos anos subsequentes, nossa notoriedade no campo foi atravessada por outros elementos. Contudo, temos a oportunidade de aproveitar o foco internacional no país em razão do G20 para fortalecer nossos compromissos com o combate à desinformação e com a ampliação da conectividade significativa, voltando à posição de vanguarda e referência global no tema.

Em segundo lugar, as eleições municipais são, historicamente, um teste para as eleições gerais. Assim, o volume gigantesco de propaganda eleitoral que irá circular no pleito deste ano impossibilita que apenas a Justiça Eleitoral seja um agente de combate à desinformação. Os próprios usuários precisam ter condições para avaliar os conteúdos e atuar como agentes de enfrentamento a uma prática tão danosa para a democracia. Entretanto, diante do acesso tão restrito à internet, a atuação cidadã do usuário fica prejudicada.

Alternativas realistas para melhorar o acesso à internet no Brasil são possíveis e já estão sendo pautadas pela sociedade civil. O primeiro passo é exigir que o Poder Executivo, em diálogo com as empresas e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), elabore e implemente políticas públicas voltadas para a universalização das infraestruturas de redes que dão suporte à internet, garantindo que recursos públicos, como é o caso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, sejam utilizados para contemplar efetivamente as áreas remotas e as periferias dos grandes centros urbanos.

Outra medida importante é que as autoridades competentes reconheçam e façam valer o princípio da continuidade na prestação do serviço e a neutralidade da rede como direitos fundamentais para a redução do abismo digital que marca a realidade brasileira. Ademais, é necessário estabelecer medidas que garantam a neutralidade da rede e que assegurem que o acesso à internet seja tratado como um serviço essencial e universal, não sujeito a interrupções arbitrárias.Diante deste grave quadro de fosso digital e desinformação massiva, adequar os modelos de exploração comercial do serviço de acesso à internet no Brasil à legislação brasileira é uma necessidade urgente para garantir que todos os brasileiros possam desfrutar dos benefícios da conectividade digital, democratizando os processos informacionais.

Flávia Lefèvre é membro do Conselho Consultivo do Instituto NUPEF. Paloma Rocillo é diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Polinho Mota é coordenador de dados do data_labe

[1]Survey on the use of information and communication technologies in Brazilian households : ICT Households 2022 / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. — 1. ed. — São Paulo : Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2023


Mazzucato: a chance de mudar as redes sociais

Mariana Mazzucato e Ilan Strauss, Outras Palavras (expandir)

Por Mariana Mazzucato e Ilan Strauss, no La Diária | Tradução: Rôney Rodrigues

A implantação de algoritmos para maximizar o engajamento do usuário é a forma como as grandes empresas de tecnologia maximizam o valor para os acionistas, e os lucros de curto prazo geralmente têm precedência sobre os objetivos de negócios de longo prazo. Agora que a inteligência artificial está preparada para impulsionar a economia das plataformas, são urgentemente necessárias novas regras e estruturas de governança para salvaguardar o público.

Num novo processo judicial nos Estados Unidos contra a Meta, 41 estados e o Distrito de Colúmbia sustentam que duas das redes sociais da empresa (Instagram e Facebook) não são apenas viciantes, mas também prejudiciais ao bem-estar dos menores. A Meta é acusada de implementar um “esquema para explorar jovens usuários com fins lucrativos”, o que inclui mostrar-lhes conteúdo prejudicial que os mantém grudados em suas telas. De acordo com uma pesquisa recente, os jovens estadunidenses de 17 anos passam 5,8 horas por dia nas redes sociais. Como tudo isso veio à tona? A resposta, em uma palavra, é “engajamento”.

A utilização de algoritmos concebidos para maximizar o “engajamento” dos usuários é a forma das Big Tech maximizarem o valor para os acionistas, cujo resultado são lucros a curto prazo muitas vezes superiores aos objetivos empresariais de longo prazo (isso sem falar da saúde coletiva). Como explica o cientista de dados Greg Linden, algoritmos baseados em “más métricas” promovem “maus incentivos” e abrem caminho aos “maus atores”.

O Facebook começou como um serviço básico para conectar amigos e conhecidos na internet, mas com o tempo seu design evoluiu da satisfação das necessidades e preferências dos usuários para mantê-los dentro da plataforma e longe de outras pessoas. Para atingir esse objetivo, a empresa desconsiderou repetidamente as preferências explícitas dos consumidores em relação ao tipo de conteúdo que desejam visualizar, à privacidade e ao compartilhamento de seus dados.

A primazia dos lucros imediatos passa por induzir os usuários a clicar, mesmo que o resultado global desta estratégia seja dar prioridade a materiais sensacionais e de baixa qualidade, em vez de dar a devida recompensa a um universo mais vasto de criadores de conteúdos, usuários e anunciantes. Chamamos estes lucros de “rendas algorítmicas de atenção”, porque são gerados através da posse passiva (como a dos proprietários de terras) em vez de atividade produtiva destinada a satisfazer as necessidades dos consumidores.

Identificar o comportamento rentista na economia atual requer a compreensão de como as plataformas dominantes exploram o controle algorítmico que têm sobre os usuários. Um algoritmo que degrada a qualidade dos conteúdos que promove está abusando da confiança dos usuários e da posição dominante reforçada pelo efeito de rede. É assim que o Facebook, o Twitter e o Instagram podem seguir seu caminho e continuar enchendo suas páginas com anúncios e viciantes conteúdos “sugeridos”. Como explica o especialista em tecnologia Cory Doctorow de forma um tanto colorida, “a merdificação (enshittificação) das plataformas vem do canhão de um algoritmo” (que por sua vez pode depender de práticas ilegais de coleta e compartilhamento de dados).

O processo contra o Meta tem a ver, em última análise, com suas práticas algorítmicas, cuidadosamente projetadas para maximizar o “engajamento” dos usuários: mantê-los na plataforma por mais tempo e suscitar mais comentários, “curtidas” e republicações. Muitas vezes acontece que uma boa maneira de conseguir isso é exibir conteúdo prejudicial e que beira o ilegal, e transformar o tempo gasto na plataforma em uma atividade compulsiva, por meio de recursos como “rolagem infinita” e o envio incessante de notificações e alertas (técnicas que em muitos casos também são utilizadas com grande eficácia na indústria dos jogos de azar).

À medida que os avanços na inteligência artificial (IA) começam a potencializar as recomendações algorítmicas e a torná-las ainda mais viciantes, são urgentemente necessárias novas estruturas de governança orientadas para o “bem comum” (em vez de uma ideia estreita de “valor para os acionistas”) e alianças simbióticas entre empresas, governos e sociedade civil. Felizmente, está ao alcance das autoridades reformar estes mercados para os colocar ao serviço do bem comum.

Em primeiro lugar, em vez de se basearem exclusivamente na legislação antitruste e de defesa da concorrência, as autoridades devem adotar ferramentas tecnológicas que evitem que as plataformas encarcerem usuários e desenvolvedores. Uma forma de evitar a criação espaços fechados anticoncorrenciais é exigir a portabilidade e a interoperabilidade dos dados entre os serviços digitais, para que os usuários possam facilmente passar de uma plataforma para outra se aquela em que se encontram não corresponder às suas necessidades e preferências.

Em segundo lugar, é essencial uma reforma da governança corporativa, uma vez que o que levou as plataformas à exploração algorítmica dos usuários foi o princípio da maximização do valor para o acionista. Dados os custos sociais bem conhecidos deste modelo de negócio (a busca do maior número possível de cliques conduz muitas vezes à multiplicação de fraudes, desinformação e materiais que incentivam a polarização política), a reforma da governança exige uma reforma dos algoritmos.

Um primeiro passo para a criação de um modelo de base mais saudável é exigir que as plataformas divulguem (no seu relatório anual 10K [que fornece aos investidores uma análise abrangente da empresa] que devem apresentar à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) as métricas que os seus algoritmos visam otimizar, bem como o modo que isso monetiza os usuários. Num mundo onde os executivos da tecnologia vão a Davos todos os anos para falar sobre o “propósito” social das suas empresas, uma divulgação oficial de dados irá pressioná-los a cumprir o que dizem e ajudar os decisores políticos, reguladores e investidores a distinguir entre lucros merecidos e rendas indevidas.

Terceiro, os usuários precisam ter mais influência sobre como os algoritmos priorizam as informações que lhes são mostradas. Caso contrário, o desrespeito pelas preferências dos usuários continuará a causar danos, pois os algoritmos criam ciclos de retroalimentação nos quais induzem os usuários a clicar em determinados conteúdos e depois inferem erroneamente que essas são as suas preferências.

Em quarto lugar, a metodologia padrão da indústria de “teste A/B” deve dar lugar a avaliações de impacto mais abrangentes a longo prazo. O mau uso da ciência de dados leva ao imediatismo algorítmico. Por exemplo, uma teste A/B pode mostrar que o aumento do número de anúncios em exibição terá um efeito positivo a curto prazo sobre os lucros, sem causar uma deterioração óbvia na retenção de usuários; mas isto ignora o impacto na aquisição de novos usuários, para não mencionar quase todos os outros efeitos potencialmente prejudiciais a longo prazo.

A ciência de dados bem utilizada mostra que otimizar os sistemas de recomendação para não buscar recompensas imediatas (por exemplo, visando, em vez disso, a satisfação do cliente e a aquisição e retenção de usuários futuros) é a melhor maneira que as empresas têm para reforçar o crescimento e a lucratividade no longo prazo (supondo que eles possam parar de concentrar toda a sua atenção no próximo relatório de lucros trimestrais). Em 2020, uma equipe da Meta determinou que, em um horizonte de tempo mais longo (um ano), a redução do número de notificações intrusivas melhoraria a utilização do aplicativo e a satisfação dos usuários. Uma grande diferença foi encontrada entre os efeitos de longo prazo e os efeitos de curto prazo.

Em quinto lugar, a IA pública deve ser posta em ação para avaliar a qualidade dos resultados dos algoritmos, particularmente na área da publicidade. Face aos danos consideráveis causados pela flexibilização dos critérios de aceitação de anúncios por parte das plataformas, a autoridade britânica responsável pelo controle publicitário começará a utilizar ferramentas de IA para analisar anúncios e identificar aqueles que fazem “afirmações duvidosas”. Outros países deveriam seguir o exemplo. Igualmente importante, a avaliação da IA deve ser um componente regular da disposição das plataformas para permitir auditoria externa dos resultados dos algoritmos.

Criar um ambiente digital que recompense a criação de valor a partir da inovação e puna a extração de valor rentista (particularmente nos maiores mercados digitais) é o desafio econômico fundamental dos nossos tempos. Para preservar a saúde dos usuários das corporações de tecnologia e da totalidade de seu ecossistema, é necessário evitar que os algoritmos fiquem subordinados ao desejo dos acionistas de lucros imediatos. Se os diretores empresariais realmente acreditam no princípio do valor para as partes interessadas, devem aceitar que é necessária uma mudança radical na forma como o valor é criado, com base nos cinco princípios detalhados acima.

O julgamento iminente contra a Meta não pode desfazer os erros do passado. Mas à medida que nos preparamos para a próxima geração de produtos de IA, temos que instituir mecanismos para uma supervisão adequada dos algoritmos. A utilização de algoritmos baseados em IA influenciará não só o que consumimos, mas também a forma como produzimos e criamos; não apenas o que escolhemos, mas também o que pensamos. Não há espaço para erros aqui.

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