História, Cultura, Comunicação

O que há de novo?18-3-24

Muniz Sodré: As massas acordaram para a experiência política, mas sob formas perversas, captadas pela extrema direita

(Folha)

Comércio, serviços, emprego, mercado de capitais e receita do governo vão melhor do que o previsto

(Folha)

Relação salários/PIB em 23 foi a maior desde o Plano Real O nome disso é 'transferência de renda'

(Folha)

Candidato tem baixa rejeição... sinal de que está incomodando pouco

(A Terra é redonda)

Atritos entre Erundina e Marta serão superados na campanha

(Folha)

Pensamento vivo I

# Amador Fernández-Savater: Politizar o mal-estar

É preciso resgatar Marx e Freud

(Outras Palavras)

Pensamento vivo 2

# Por que ler Marcuse no século XXI

Três apostas de Marcuse: a erótica, a estética e a revolução

(Outras Palavras)

Pensamento vivo 3

# Machado de Assis e a falha de Frankfurt

Adorno e Horkheimer ignoraram o mundo colonizado

(Outras Mídias)

Pensamento vivo 4

# O contato com a Literatura sobressalta

A juventude não precisa ser protegida das obras censuradas

(Folha)

A ofensa

Lugar de Bolsonaro está definido, mas não é a cadeia, onde inevitavelmente ele vai acabar confinado, e sim na História, pelo extraordinário e colossal demérito de sua vilania. A tentativa de golpe do ex-capitão é uma ofensa 

# Clique aqui para acessar o clipping do site

# O  texto que  decretaria o golpe:  "Declaro Estado de Sítio".  Um amontado de imbecilidades, um arrazoado de frases feitas e lugares comuns do discurso fascista. Um imaginário  povoado de  descontrole, indignidade e de alienação sobre a realidade brasileira.  Mas é um texto que deixa entrever as assinaturas dos que o conceberam, inclusive juristas que  pontificam nas páginas de alguns jornais com as justificativas de sempre para manter o país como pastagem dos interesses privados (vale a pena ler a íntegra do documento na coluna de Jamil Chade, no Uol).

# Golpe discutido com Bolsonaro se embasou em tese de Ives Gandra: Comandante do Exército em 2022, o general Freire Gomes afirmou em depoimento à Polícia Federal que as reuniões com o então presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus ministros sobre a possibilidade de desrespeitar o resultado das eleições se embasaram em interpretações do jurista Ives Gandra Martins sobre a Constituição (leia aqui a matéria da Folha).

# A política do bolsonarismo: Para Juarez Guimarães, em texto publicado em A Terra é redonda, é preciso compreender o fenômeno para derrotá-lo. E a pergunta que não quer calar: "Por que o bolsonarismo apesar de perder as eleições nacionais, ter a sua liderança condenada por inelegibilidade e estar acuado por um largo processo judicial bem fundamentado em provas materiais, consegue manter a sua força política como demonstrou o ato do dia 25 de fevereiro na avenida Paulista?" (leia o artigo inteiro).

# Os episódios e os ratos que infestaram a RepúblicaO que os depoimentos à PF revelam sobre a participação de Bolsonaro e a reação das Forças Armadas em trama golpista. Ministro do STF derrubou o sigilo dos depoimentos colhidos no inquérito que apura a suposta tentativa de golpe de Estado para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder (leia a matéria do G1).

# Desfechos: "Estamos maduros para responsabilizar Bolsonaro criminalmente".  Advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, afirma que não há dúvidas sobre a participação e coordenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) à tentativa de golpe de estado em seu governo.  E Kakay não está sozinho: Maierovitch pensa a mesma coisa (Carta Capital e Uol).

# A reação de Bolsonaro:  O ex-presidente Jair Bolsonaro classificou como ‘narrativa idiota’ as acusações de que ele teria tramado um golpe de Estado após ser derrotado nas urnas pelo presidente Lula. As acusações aparecem em diferentes depoimentos colhidos pela Polícia Federal  (leia em Carta Capital).

# Revelações: O que disseram os ex-comandantes  da FAB e do Exército sobre Bolsonaro.  Matéria da Folha mostra que o ex-capitão está comprometido até o pescoço com golpe e pode pegar até 23 anos de prisão pelos crimes que cometeu (leia aqui).

# A sequência nervosa do golpe fracassado: Um relatório sobre supostas fraudes (nunca provadas) nas urnas eletrônicas que teriam prejudicado Jair Bolsonaro selou o divórcio entre o general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Junior, comandantes do Exército e da Aeronáutica, e o almirante Garnier, comandante da Marinha, nos últimos meses de 2022. A situação marcou o início do afastamento dos chefes militares em relação aos apoiadores do golpe, segundo depoimentos prestados à Polícia Federal (leia aqui).

Esse Brasil do Estadão é o nosso? 

pensatas para o fim de semana 15-17-03-24

É impressão minha ou a velha mídia abriu uma nova temporada da "caça ao Lula", o divertimento preferido do neofascismo? 

# Marielle acabou! 

Na Câmara, Bolsonaristas fazem festa para os criminosos (Forum)

# A PEC do atraso avança no Senado

Mas é inconstitucional e pode parar no STF (Carta Capital)

# O Messiânico

ou Deltan Dallagnol, o canalha absoluto (Reportagem imperdívei da piauí)

# Imigrações:  brutalidade e hipocrisia

Imigrantes interessam ao capital (Outras Palavras

# Michelle Bolsonaro, cidadã paulistana, pode?

Nunes cede Teatro Municipal para cerimônia, mas PSOL questiona decisão
(Folha)

# Justiça nega pedido de Nunes para retirada de propaganda de Boulos

Prefeito não aceita dianteira do adversário
(Folha)

# Juca Kfouri entrevista Daniela Arbex 

Jornalista lança livro sobre o incêndio no CT do Flamengo que matou 5 jovens (TVT)

Quem será a personalidade com a identificação mantida em sigilo?

A revelação que pode mudar a história da política brasileira

Marielle: investigação chega ao suposto mandante do crime. Nome é mantido em sigilo pelo STF por se tratar de personalidade com foro privilegiado


Foro privilegiado é o termo que designa o fato de que algumas autoridades são julgadas diretamente pelo STF. São elas: presidente, vice-presidente, ministros de Estado, senadores, deputados federais, integrantes dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e embaixadores.

Márcio Falcão, Vladimir Neto, TV Globo (expandir)

Relator no STF será o ministro Alexandre de Moraes, definido por sorteio. Investigadores não revelaram nome da pessoa com foro citada.


As investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista Anderson Gomes, mortos a tiros há 6 anos, chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF).


A TV Globo apurou que o caso foi enviado ao STF pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) após ser identificado o suposto envolvimento de pessoa com foro privilegiado no Supremo.


Foro privilegiado é o termo que designa o fato de que algumas autoridades são julgadas diretamente pelo STF. São elas: presidente, vice-presidente, ministros de Estado, senadores, deputados federais, integrantes dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e embaixadores.


A apuração corre em sigilo e não há detalhes de quem seria a pessoa com foro citada nas investigações. O relator do caso no STF é o ministro Alexandre de Moraes. Ele foi sorteado entre os cinco ministros da 1ª Turma.

Fontes da Polícia Federal afirmam que a corporação continua concentrada na investigação sobre o mandante do assassinato.



Como estão as investigações

Seis anos depois, estão presos: Ronie Lessa, Élcio de Queiroz, Maxwell Simões Corrêa e Edilson Barbosa dos Santos.

Ronie Lessa e Élcio são acusados de terem executado o crime. Segundo as investigações, Maxwell participou do plano do assassinato e monitorou a rotina da vereadora, além de ter ajudado Ronnie e Élcio no desmanche do carro usado no crime e do sumiço das cápsulas da munição.

Edilson é dono do ferro-velho onde o carro usado no crime foi desmontado.


Assista aos vídeos da matéria da Globo


# Por sorteio, Moraes será o relator no STF

# Seis anos sem Marielle e Anderson

Delícias da acumulação de um capitalismo espoliador e atrasado

Desoneração da folha de pagamentos: quem ganha com isso?

Lauro Mattei, A Terra é redonda (expandir)

No início de 2024 o assunto da desoneração da folha de pagamento das empresas de 17 setores de atividades econômicas[i] que, segundo eles são os que mais geram emprego no país, voltou ao centro do debate político nacional. Este é um sistema tributário que estava em vigor desde 2012, cuja vigência acabou em 31 de dezembro de 2023.

Ao longo desse período passou por diversas alterações, chegando ao ponto de ter sido alterado no primeiro ano do segundo governo de Dilma Rousseff para 59 setores. Mas em 2018 o governo de Michel Temer reduziu para os atuais 17 setores, estipulando que tal política terminaria ao final de 2020. Desde então tal benefício vinha sendo concedido anualmente, sendo que ao final de 2022 o mesmo foi ampliado até dezembro de 2023.

De um modo geral, essa desoneração da folha determinava a extinção da contribuição previdenciária patronal, a extinção da contribuição da CIDE (Contribuição de Intervenções no Domínio Econômico) e a extinção da contribuição para o Sistema S.

Tal medida reduzia a contribuição previdenciária das empresas desses setores econômicos de 20% para uma alíquota que variava de 1% a 4,5% (no segundo período do programa) sobre a receita bruta de cada empresa. Somente nos primeiros quatro anos do programa (2012-2015) essa renúncia tributária atingiu a cifra de R$ 25 bilhões, com impactos diretos sobre o sistema de financiamento da Previdência Social. Dados relativos apenas ao ano de 2023 revelaram que a queda na arrecadação do Governo Federal foi da ordem de R$ 9,2 bilhões.

Antecipando-se ao fim da política de desoneração da folha previsto para ocorrer em 31 de dezembro de 2023, lideranças dos setores empresariais beneficiados retomaram seus lobbies junto aos deputados e senadores ainda em meados de 2023. A partir daí o Senador Efraim Filho (União Brasil-PB) apresentou em julho de 2023 o Projeto de Lei (PL 334/23) propondo a prorrogação das isenções em vigor naquela data até 31.12.2027. E a partir de 01.08.23, com uma celeridade nunca vista, o referido projeto passou a tramitar por todas as comissões do Congresso Nacional sempre em regime de urgência. Com isso foi possível que o mesmo fosse aprovado ainda em agosto de 2023.

Enviado para sanção presidencial, o mesmo foi vetado integralmente pelo Presidente Lula em 23.11.2023. Segundo a Presidência da República, o governo considerou o projeto inconstitucional porque ele não apresentava os impactos financeiros da renúncia fiscal (desoneração da folha das empresas contempladas). Para o Ministro da Fazenda, a renúncia implicaria em um montante aproximado de R$ 9,4 bilhões no período definido pela nova lei (31.12.2027), o que comprometeria o equilíbrio das contas públicas, meta perseguida pela atual gestão econômica.

Com isso, o assunto retornou ao Congresso Nacional para serem analisados os vetos presidenciais. Em reuniões realizadas no dia 14.12.2023, tanto no Senado da República quanto na Câmara dos Deputados, foram derrubados todos os vetos do Presidente por ampla maioria nas duas casas parlamentares. A partir daí o assunto virou a Lei Ordinária no. 14.784, publicada no Diário Oficial da União em 28.12.2023.

A reação do governo foi imediata. Em 29.12.2023 foi lançada uma Medida Provisória (MP 1202/23) com o objetivo de reduzir a perda de receita e, com isso, atingir a meta de déficit zero das contas públicas. Para tanto, a MP alterava as regras de desoneração que tinham sido aprovadas pelo Congresso, com destaque para: (a) a MP 1202 propôs que a partir de abril de 2024 vigorasse uma alíquota menor somente para um salário mínimo por trabalhador. Registre-se que, embora a MP entre imediatamente em vigor após ser editada, algumas mudanças propostas só passariam a valer a partir de 90 dias após a publicação da mesma; (b) a revisão do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE) criado em 2021 para socorrer esse setor com desoneração total de impostos durante a pandemia, sendo que tal programa deveria durar apenas dois anos. Todavia, em meados de 2023 o Congresso Nacional prorrogou essa política até o final de 2025.

Diante das repercussões políticas negativas por parte de segmentos do Congresso Nacional, o governo editou uma nova medida (MP 1208/24) em 28.02.2024 revogando a reoneração dos 17 setores prevista pela MP 1202/23. Com isso, esses setores voltaram a ser desonerados conforme foi aprovado pela Lei 14.784/23. Essa decisão de retroceder do governo derivou de acordos celebrados com lideranças políticas do Congresso Nacional, as quais impuseram suas forças ao governo, tornando-o quase que refém dos interesses desses segmentos majoritariamente identificados com as bases políticas conservadoras que atualmente dominam o Congresso Nacional.

Finalmente, em 28.02.24 o Presidente Lula encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei (PL 493/24) com o objetivo de se definir uma reoneração gradual da folha de pagamento dos 17 setores contemplados pela Lei 14.784/23.

Ao longo desse período, cabe lembrar que o lobby desses setores articulado no Congresso Nacional tentou passar para o conjunto da sociedade a ideia de que o fim da desoneração da folha de pagamento reduziria fortemente o crescimento econômico desses setores com implicações negativas sobre o nível de emprego, ao mesmo tempo em que estimularia a informalidade nas relações de trabalho e diminuiria a competitividade econômica do país. Para tanto, apresentaram dados precários sobre os efeitos benéficos desse processo sobre a arrecadação federal no período 2012-2019, sem mostrar, todavia, quais foram os impactos dessa política sobre o mercado de trabalho e o nível dos salários ao longo de toda sua vigência.

De um modelo geral, as entidades representativas dos setores econômicos beneficiados por essa política tributária construíram uma narrativa que vem sendo fartamente divulgada pelos meios de comunicação[ii] sem qualquer questionamento. Nesse debate, aliás, qualquer voz discordante da narrativa predominante dificilmente tem espaço para questionar e colocar seus argumentos. O discurso lobbista se assenta, basicamente, na temática do emprego. Neste caso, convencionou-se afirmar que os setores beneficiados são os maiores geradores de emprego no país e que, caso a desoneração fosse extinta, poderiam ser reduzidos milhares de empregos até 2026; que haverá aumento do custo laboral e com isso cortes de profissionais qualificados; que a produção desses setores entrará em estagnação; e que os níveis de atividades desses setores poderão regredir ao patamar de 2012.

Além disso, alguns estudos sobre setores específicos mostram dados pontuais que tentam comprovar que a contribuição desses setores aumentou, porém sempre sem mencionar qualquer informação relativa ao mercado de trabalho, em especial aos empregos gerados. Portanto, segundo esses argumentos empresariais, bastava reduzir os tributos que os empregos surgiriam automaticamente. Na prática, todavia, o que se viu foi uma explosão do desemprego a partir de 2014 até 2016, conforme está fartamente documentado na literatura especializada sobre mercado de trabalho no Brasil.

Para se contrapor a esse lobby dominante, há uma vasta literatura especializada sobre o assunto, destacando-se Takada et all (2015), Dallava (2014), Do Carmo (2012), Baumgartner (2017), Garcia, Sachsida e Carvalho (2018), Freitas e Paes (2018), dentre outros. Todos esses estudos contêm pontos convergentes entre si que podem ser sistematizados da forma que segue: (a) a desoneração não gerou impactos positivos nem no grau de formalização do mercado de trabalho e nem na realocação entre setores de atividades econômicas; (b) não houve efeitos expressivos da política pública de desoneração sobre o conjunto do emprego formal no país; (c) não houve efeitos positivos da política de desoneração, tanto para emprego como para salários, nos setores desonerados em função do produto; (d) ao se avaliar o efeito de longo prazo da desoneração da folha se constatou que os níveis de crescimento do emprego ficaram muito aquém do esperado, ao mesmo tempo em que a arrecadação previdenciária sofreu quedas sequenciais; (e) apenas em dois setores (call Center e tecnologia da informação) dos 17 beneficiados foram observados efeitos positivos.[iii]

Dentre as principais conclusões desses estudos se pode destacar: (i) a falta de um critério uniforme para inclusão dos beneficiários, levando a inclusão quase que aleatória de setores sem qualquer estudo prévio; (ii) o modelo de desoneração implantado se restringiu a poucos contribuintes, representando uma violação da equidade, uma vez que o custo desse benefício para o sistema público teve que ser suportado pelo conjunto da sociedade; (iii) a política adotada tornou o sistema tributário ainda mais regressivo porque se trata de um tributo indireto e que incide sobre o consumo, penalizando bem mais as camadas de renda inferior da sociedade; (iv) o sistema de financiamento da Previdência Social sofreu desequilíbrios porque a renúncia tributária impactou de forma negativa o resultado fiscal da União.

Durante as discussões no Congresso Nacional sobre a prorrogação das desonerações até 2027, surgiu um importante estudo de autoria do pesquisador do IPEA Marcos Hecksher (2023). Utilizando dados da PNAD Contínua entre 2012 a 2022 o autor mostrou que a População Economicamente Ativa (PEA) do país cresceu de 89,6 milhões (2012) para 98,0 milhões (2022), significando uma variação positiva da ordem de 9,4%. Além disso, indicou que sete setores (nenhum deles vinculados à política de desoneração da folha) eram responsáveis pela geração de 52,4% do total de ocupados, fato que nega o principal argumento dos defensores da desoneração da folha.

Quanto aos 17 setores que foram desonerados, o autor verificou as seguintes situações: (a) nenhum deles figurou entre os setores responsáveis por 52,4% dos ocupados; (b) o conjunto dos setores desonerados reduziu a participação no total de ocupados do país de 20,1% (2012) para 18,9% (2022); (c) dentre os ocupados nos setores desonerados apenas 54,9% contribuíam para a previdência, contra 63,7% na média dos trabalhadores do país; (d) os empregados com carteira de trabalho assinada caíram de 22,4% (2012) para 19,7% (2022); (e) os ocupados contribuintes da previdência caíram de 17,9% (2012) para 16,2% (2022); (f) empresas privadas de outros setores aumentaram em 6,3% os empregos com carteira (1,7 milhões); (g) empresas privadas desoneradas reduziram em 13% os empregos com carteira (-960 mil trabalhadores).

Visando contribuir com esse debate, elaborei o quadro abaixo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Quanto ao primeiro período (2011-2014), observa-se que em termos absolutos ocorreu uma expansão de 174.942 postos de trabalho, sendo que oito setores desonerados reduziram seus níveis de emprego, enquanto outros nove ampliaram. Mesmo assim, o percentual de participação dos setores desonerados no total do país caiu de 16,5% (2011) para 15,8% (2014).

No caso dos setores que expandiram o emprego, ocorreu uma concentração de aproximadamente 90% em quatro deles: transportes rodoviários de cargas, call center, TI e transportes rodoviários coletivos. Já no caso dos 8 setores que excluíram vagas não houve grandes dispersões, com concentração nos setores de calçados, construção civil, couro e fabricação de veículos e carrocerias.

No período 2014-2021 notou-se uma redução de 873.943 postos de trabalho em relação ao montante existente em 2014. Com isso, o percentual de participação desses setores no emprego do país se reduziu para 14,3%, dando continuidade ao que foi observado no período anterior. Em termos setoriais, verifica-se que 12 setores sofreram redução, enquanto outros cinco aumentaram seus níveis de emprego. No caso dos setores que reduziram seus níveis de emprego, destacam-se Confecção e vestuário (-128.733), Construção civil (-203.932), Construção e obras de infraestrutura (-219.031) e Transportes rodoviários coletivos (-215.935).

Embora em patamares baixos, também merece destaque as reduções ocorridas nos setores de couro, fabricação de veículos e carrocerias, jornalismo e radiodifusão e têxtil. Já no caso dos setores que expandiram os níveis de emprego, destacam-se os setores de TI (190.784) e de Transportes de cargas (129.401). Na verdade, esses dois setores responderam por 93% da expansão do emprego no período 2014-2021. Já os setores de call center, proteína animal e transportes metroviários de passageiros apresentaram pequenas oscilações positivas que podem ser consideradas inexpressivas diante dos dois primeiros.

Finalmente, é importante analisar o período completo de vigência da política de desoneração da folha (2012-2021), à luz dos dados disponibilizados pela RAIS (2021 é último ano com dados disponíveis). Inicialmente, é importante destacar que o percentual de participação desses 17 setores no conjunto do emprego gerado no país caiu de 16,5% (2011) para 14,3% (2021). Em termos absolutos, verifica-se que ao longo da série temporal considerada ocorreu uma redução de 699.022 postos de trabalho, sendo que apenas seis dos 17 setores desonerados elevaram seus níveis de emprego em 2021, comparativamente ao ano de 2011.

Na sequência destacamos a quantidade de postos de trabalho reduzidos nos onze setores: calçados (-68.153), confecções e vestuário (-170.431), construção civil (-403.118), construção e obras de infraestrutura (-250.037), couro (-86.989), fabricação de veículos e carrocerias (-101.096), jornalismo e radiodifusão (-17.445), máquinas e equipamentos (-19.039), têxtil (-35.642), projeto de circuitos intergados (-11.369) e transportes rodoviários coletivos (-161.892). Isso significou uma redução de 1.325.211 postos de trabalho. Desse total, cinco setores (confecções e vestuário, construção civil, construção e obras de infraestrutura, fabricação de veículos e carrocerias transportes rodoviários coletivos) foram responsáveis por 82% de todas as reduções de postos de trabalho no período considerado.

Do ponto de vista dos setores que expandiram os postos de trabalho, verifica-se o seguinte cenário: transportes rodoviários de cargas (+260.405), TI (+253.470), call center (+107.463), proteína animal (+24.088), transportes metroviários de passageiros (+6.399) e TIC (+1.364). Isso significa que os três primeiros setores foram responsáveis por 95% da expansão dos postos de trabalho.

Em síntese, pode-se resumir esse movimento no mercado de trabalho desses dezessete setores da forma que segue: em apenas três setores (transportes rodoviários de cargas, TI e call center) houve expansão expressiva de postos de trabalho, enquanto que em outros cinco setores (construção civil, construção e obras de infraestrutura, confecções e vestuário, transportes rodoviários coletivos e fabricação de veículos a carrocerias) ocorreu uma retração expressiva do volume de emprego em 2021 comparativamente ao nível existente em 2011. No restante dos setores desonerados ocorreu redução de postos de trabalho, fato que fez a participação dos desonerados no emprego total do país cair de 16,5% para 14,3%, o que implicou em uma redução de aproximadamente 700 mil postos de trabalho.

Por fim, deve-se mencionar que os empregos gerados apresentaram uma concentração expressiva em apenas três setores desonerados (cal center, TI e transportes rodoviários de cargas). Portanto, pode-se afirmar que a política de desoneração – no que tange ao mercado de trabalho – não promoveu a expansão da formalidade e nem estimulou a realocação da mão de obra entre os diversos setores de atividades econômicas.

Link para o acesso ao texto original de A Terra é redonda

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.

Notas

[i] Confecção e vestuário, calçados, construção civil, call center, comunicação, construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e carrocerias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da informação, tecnologia da informação e comunicação, projeto de circuitos integrados, transporte metro-ferroviário de passageiros, transporte rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.

[ii] Vide manchete do Portal R7, Brasília (19.11.2023): “estudo mostra que segmentos desonerados empregam mais e pagam melhor”.

[iii] Provavelmente essa expansão tenha mais a ver com os novos parâmetros estruturais da economia brasileira do que propriamente em função da política de desoneração.

União Europeia aprova legislação pioneira sobre Inteligência Artificial

Antes que os estragos na nossa sociabilidade se tornem irreversíveis, UE cria barreira jurídica para evitar que a colonização das mentes se espalhe nos espaços do cotidiano, entre eles a escola 

Bloomberg, Estrasburgo, via O Globo (expandir)

Lei determina que a IA não poderá ser usada para coletar imagens faciais para bancos de dados, nem para interpretar emoções em escolas ou locais de trabalho


O Parlamento da União Europeia aprovou, nesta quarta-feira, as mais abrangentes barreiras de proteção no mundo em relação ao rápido desenvolvimento da inteligência artificial(IA).

A Lei de Inteligência Artificial europeia poderá, na ausência de qualquer legislação por parte dos Estados Unidos, definir o tom de como a IA será regulada no mundo ocidental. As empresas, no entanto, avaliam que a lei é abrangente demais, enquanto os os órgãos de controle dizem que não é o suficiente.

"A Europa agora está estabelecendo um padrão global para uma IA confiável", disse o comissário do Mercado Interno da UE, Thierry Breton, em comunicado.

A nova lei tem como objetivo abordar as preocupações sobre preconceito, privacidade e outros riscos da tecnologia em rápida evolução. O texto não cita especificamente a remuneração do conteúdo usada pelas plataformas de IA, mas determina que essas ferramentas respeitem as leis europeias de direitos autorais.

A legislação proíbe o uso de IA para detectar emoções em locais de trabalho e escolas, além de limitar como ela pode ser usada em situações sensíveis como análise de currículos para uma vaga de emprego.

O eurodeputado italiano Brando Benifei, co-relator do projeto de lei, comemorou a aprovação em uma entrevista coletiva:

— Hoje é um dia histórico em nosso longo caminho para a regulamentação da IA.

Outro co-relator, o o romeno Dragos Tudorache, avalia que o texto permite encontrar o equilíbrio "entre o interesse em inovar e o interesse em proteger." Ele ressalta que a Lei de IA "é apenas o começo", já que a inteligência artificial continua a evoluir rapidamente:

— Devemos estar muito atentos à evolução dessa tecnologia no futuro, de forma a responder aos novos desafios que podem surgir.

O jogo dos seis erros da inteligência artificial

12 fotos

Os erros da IA

A legislação entrará em vigor após a assinatura dos Estados-membros, o que geralmente é uma formalidade, e 20 dias depois de publicada no Diário Oficial da UE.

Veja os principais pontos da legislação:

Thierry Breton: ''A Europa é agora um padrão global em IA confiável'' — Foto: Angel Garcia/Bloomberg

A Lei de Inteligência Artificial também traz as primeiras restrições às ferramentas de IA generativa (capaz de criar conteúdo de texto, imagem e vídeo), que chamaram a atenção do mundo no ano passado com a popularidade do ChatGPT.

Mas, no fim do ano passado, na reta final das discussões, os governos de França e Alemanha se opuseram a algumas medidas mais restritivas à IA generativa, argumentando que as regras prejudicariam startups europeias, como a francesa Mistral AI e a alemã Aleph Alpha.

'É preciso atitude política para superar o atraso tecnológico', diz ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação

IA vai acelerar o trabalho e não substituir pessoas, diz executivo que comanda o ChatGPT

Grupos da sociedade civil, como o Corporate Europe Observatory (CEO), levantaram preocupações sobre a influência que as big techs e as empresas europeias tiveram na elaboração do texto final.

"Essa influência unilateral fez com que a 'IA de uso geral' ficasse amplamente isenta das regras e só precisasse cumprir algumas obrigações de transparência", afirmaram os grupos em comunicado, incluindo o CEO e o LobbyControl, referindo-se aos sistemas de IA capazes de realizar uma gama maior de tarefas.

Um anúncio recente de que a Mistral AI havia feito uma parceria com a Microsoft gerou preocupações entre parlamentares. Kai Zenner, um assistente parlamentar fundamental na redação da lei e agora conselheiro das Nações Unidas sobre a política de IA, escreveu que a mudança foi estrategicamente inteligente e "talvez até necessária" para a startup francesa, mas disse que "o legislador da UE foi novamente enganado."

Propriedade intelectual: Engenheiro de sistemas chinês é preso nos EUA, acusado de roubar segredos de inteligência artificial do Google

As empresas americanas e europeias também levantaram preocupações de que a lei limitará a competitividade do bloco.

"Com um setor de tecnologia digital limitado e investimentos relativamente baixos em comparação com gigantes do setor como os Estados Unidos e a China, as ambições da UE de soberania tecnológica e liderança em IA enfrentam obstáculos consideráveis", escreveu Raluca Csernatoni, pesquisador do think tank Carnegie Europe.

Durante o debate de terça-feira, os parlamentares reconheceram que ainda há muito trabalho pela frente. A UE está em processo de criação de seu Escritório de IA, um órgão independente dentro da Comissão Europeia.

Na prática, o escritório será o principal responsável pela aplicação da lei, com a capacidade de solicitar informações de empresas que desenvolvem IA generativa e possivelmente proibir um sistema de operar no bloco.

*Com agências internacionais

Drogas: o risco do retrocesso


A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado votou na quarta-feira (15/3) uma proposta de emenda que pode colocar na Constituição que tanto a posse (possuir uma quantidade) quanto o porte (carregar consigo) de drogas, mesmo para consumo próprio, seriam crime no Brasil.

Isso já é previsto na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que está em vigor, mas pode ser alterado por um julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal (STF).

A decisão da Corte poderá levar à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.

Leandro Parazeres e Letícia Mori, BBC, via Outras Palavras (leia mais)

O avanço da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre drogas no Senado é vista por políticos, advogados e analistas ouvidos pela BBC News Brasil como um “contra-ataque” no Congresso para tentar barrar a liberação do porte de maconha pelo STF – embora especialistas indiquem que a aprovação da emenda no legislativo pode não encerrar o debate no Supremo (leia mais abaixo).

A votação na CCJ é o primeiro passo para que a medida possa ser aprovada no plenário antes de o STF finalizar o julgamento sobre o porte de maconha.

Iniciado há nove anos e paralisado por pedidos de vista, quando um ministro pede mais tempo para analisar um tema, o caso foi retomado na Corte na semana passada.

Isso colocou o STF novamente em rota de colisão com uma parte poderosa do Congresso Nacional: a bancada conservadora do Parlamento liderada, em grande parte, pela Frente Parlamentar Evangélica.

Há até o momento cinco votos favor e três contra para que algum grau de descriminalização seja implementado, faltando apenas um voto para a formação de maioria.

O julgamento, porém, foi interrompido por um terceiro pedido de vistas, feito desta vez pelo ministro Dias Toffoli, com o voto de três ministros ainda pendente. Toffoli tem um prazo de até três meses para devolver o caso ao plenário.

A interrupção não parece ter arrefecido os ânimos no Congresso, onde parlamentares da bancada evangélica, com o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), se mobilizam para aprovar a PEC.

Presidente do STF, Luis Roberto Barroso, conversou com líderes evangélicos no Congresso Nacional antes do início do julgamento. Bancada religiosa planeja uma PEC prevendo a criminalização da porte e da posse de drogas independentemente da quantidade

Tema exige costura política delicada

Na avaliação do cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), esse contra-ataque da bancada conservadora no Congresso já era esperado.

Segundo ele, a disputa faria parte de um processo que vem sendo descrito pela ciência política como “politização da Justiça” ou “judicialização da política”.

Nessa dinâmica, ele explica, a crítica é de que o Judiciário estaria utilizando seus poderes para legislar no lugar do Parlamento.

“Há algum tempo, há uma discussão intensa sobre se o STF vem ou não invadindo a competência do Poder Legislativo”, diz Couto.

“Em temas menos polêmicos, talvez a reação à atuação no Congresso fosse outra. Como este assunto é considerado um tabu na sociedade brasileira e muito instrumentalizado politicamente, era de se supor que houvesse uma reação como essa.”

As tensões entre o STF e o Congresso também foram responsáveis por uma série de pedidos de impeachment de ministros do STF, projetos de lei e PECs com o objetivo de limitar os poderes do Supremo, especialmente em relação ao alcance de investigações contra parlamentares e ao poder de decisões individuais.

Segundo Couto, reações como essa já haviam ocorrido em outros episódios, como no caso do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Em setembro de 2023, o STF rejeitou a tese de que demarcações de terras indígenas só poderiam ser feitas em áreas ocupadas por povos originários em outubro de 1988.

Como reação, a bancada ruralista acelerou a votação de um projeto de lei que previa o estabelecimento do marco temporal, contrariando o STF.

Parte do projeto foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas o veto foi posteriormente derrubado pelo Congresso, em uma demonstração de força dos ruralistas.

Couto avalia que a reação do Congresso em torno do julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha já era prevista pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF e a quem cabe a prerrogativa de definir as pautas que serão votadas em plenário.

Na semana passada, o ministro se reuniu com integrantes da bancada evangélica no Congresso Nacional antes de o julgamento ser retomado.

Para Couto, o encontro teve o objetivo de evitar um movimento semelhante ao que ocorreu no caso do marco temporal.

O cientista político avalia que o fato de Barroso ter recorrido aos parlamentares mostra que o tema é tão sensível que demandou uma espécie de “articulação política” com o Congresso.

“Quando um ministro vai aos parlamentares dialogar sobre um julgamento, isso pode, por um lado, fomentar as críticas de que o Supremo não é técnico, mas político”, diz Couto.

“Por outro lado, não admitir isso seria tapar o sol com a peneira. Há um caráter intrinsecamente político nas decisões do Supremo. Essa é a realidade, e Barroso lidou com ela.”

‘STF não pode liberar drogas com canetada’

Deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, diz que seus colegas pretendem avançar com votação de PEC sobre drogas no Congresso após STF pautar julgamento sobre o tema

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Barroso disse aos parlamentares que o julgamento não se dedicaria a liberar o uso de drogas no Brasil, mas a estabelecer limites a partir dos quais deveria ser feita a distinção entre usuário e traficante de drogas.

“Se um garoto branco, rico e da zona sul do Rio é pego com 25 gramas de maconha, ele é classificado como usuário e é liberado”, disse o ministro segundo o jornal.

“No entanto, se a mesma quantidade é encontrada com um garoto preto, pobre e da periferia, ele é classificado como traficante e é preso. Isso que temos que combater.”

O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é membro da bancada evangélica e contra a descriminalização, diz que o argumento de Barroso não convenceu.

“O ministro disse aos parlamentares que o Supremo não iria deliberar sobre a descriminalização, mas, na prática, é isso que está em jogo, sim”, diz Cavalcante à BBC News Brasil.

“Se estabelecermos uma quantidade permitida para o porte, o que o tráfico fará é usar mais gente transportando esse limite para não ter problemas com a justiça. Isso é óbvio.”

Para o deputado, o STF não deveria interferir neste assunto.

“O STF não pode liberar as drogas com uma canetada. Este é um assunto que cabe ao Parlamento decidir”, afirma o deputado.

“Nós fomos eleitos para representar a população e deliberar sobre esse tipo de tema. Por isso que vamos manter o ânimo para votar a PEC.”

Na semana passada, o movimento de reação iniciado por parte da bancada evangélica no Senado ganhou a adesão de um importante aliado: Rodrigo Pacheco.

Foi ele quem apresentou a proposta que agora vem sendo chamada de “PEC das Drogas”, em 2023, e foi ele quem deu o “sinal verde” para que a proposta fosse levada a votação na CCJ do Senado.

Esta, porém, não é a primeira vez que Pacheco se alia à bancada conservadora do Senado em torno de uma proposta relativa à segurança pública. No início do ano, o senador deu apoio a um projeto de lei que acabou com a saída de presos em datas comemorativas e feriados, as chamadas “saidinhas”.

O projeto ganhou apoio do senador após o caso de um policial de Minas Gerais ter sido morto por um homem que havia sido liberado da prisão durante uma dessas “saidinhas”.

O deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que é a favor da descriminalização das drogas, diz reconhecer a força política da bancada evangélica no Congresso e reclama do apoio de Pacheco à chamada “PEC das drogas.

“Eles têm uma força numérica inegável. Não sei se são capazes de aprovar uma PEC sobre o assunto, mas têm uma capacidade de ação que não podemos ignorar. O que nos causa surpresa é a atuação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que sempre se posicionou de forma muito sóbria em todos os debates relevantes”, diz o parlamentar.

“O debate está aí e precisa ser feito. Não podemos mais continuar com a mesma política que leva ao encarceramento de jovens em todo o Brasil. Precisamos debater o assunto sem hipocrisia.”

Na semana passada, Pacheco justificou seu apoio à tramitação da PEC.

“O que nos motivou como reação principal foi que uma declaração de inconstitucionalidade (sobre o porte para consumo de drogas) que vai significar, sim, na prática e juridicamente, a descriminalização da conduta era algo que nós não podíamos concordar porque cabe ao Parlamento ou não decidir se algo deve ser crime ou não”, disse o senador.

Em meio a esse fogo cruzado, o governo federal vem tentando não se posicionar diretamente sobre o julgamento.

O Palácio do Planalto disse em nota à BBC News Brasil que “a Presidência da República não comenta julgamentos do STF nos quais não é parte do processo”.

A reportagem também tentou contactar lideranças do governo no Congresso, mas as ligações não foram atendidas.

Internamente, o tema é considerado sensível, entre outros motivos, por conta da ampla contrariedade do eleitorado evangélico à medida.

Este é um dos segmentos que mais apresenta resistência em relação ao governo, segundo pesquisas de opinião.

Segundo levantamento da empresa de pesquisas Quaest, 62% do eleitorado evangélico desaprova o presidente Lula. O percentual é acima da média geral de desaprovação que foi de 46%.

A pesquisa divulgada na semana passada tem uma margem de erro de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos.

O tabu das drogas no Brasil

A descriminalização das drogas é um assunto que, historicamente, gera debates acalorados entre defensores e opositores à proposta no Brasil.

A dimensão dessa polêmica pode ser medida pelo tempo que o STF está levando para julgar o caso sobre o tema.

O julgamento retomado na semana passada foi iniciado em 2015. A demora se deu, em parte, por dois pedidos de vistas feitos pelos ministros Teori Zavascki, já falecido, em agosto daquele ano, e André Mendonça, em agosto do ano passado.

Antes da regra criada pela ex-ministra Rosa Weber, os pedidos de vista não tinham prazo e os ministros podiam parar um julgamento para analisar o caso durante anos. Agora, devem devolver um caso em até 90 dias.

O Supremo julga a constitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) que cria a figura do usuário de drogas em uma diferenciação em relação ao traficante. Este último ficaria sujeito a penas mais severas.

A lei, no entanto, não estabeleceu critérios objetivos sobre a diferença entre usuário e traficante.

Defensores da descriminalização do porte para uso de drogas afirmam que a falta de critérios prejudica, especialmente, jovens negros que moram em comunidades pobres que seriam presos e processados como traficantes apesar de portarem pequenas quantidades de drogas.

O caso que motivou o julgamento, por exemplo, se refere a um homem que foi flagrado com três gramas de maconha enquanto estava preso.

Opositores à medida afirmam que a descriminalização do porte poderia levar ao aumento do consumo de drogas e à ampliação do uso de jovens pobres no tráfico de drogas.

Em 2015, quando teve início o julgamento, os ministros e ministras avaliaram a possibilidade de descriminalizar o porte de qualquer tipo de droga.

Mas, à medida em que os votos foram sendo proferidos, a tendência foi de restringir ao porte de maconha, porque foi a droga do caso específico em julgamento.

No campo político, o tema divide os campos chamados progressistas, mais associados à esquerda, e conservadores, mais associados à direita.

Durante a campanha eleitoral de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro (PL), apoiado por uma ampla base evangélica, criticava o então candidato Lula e seus aliados por serem supostamente favoráveis à descriminalização das drogas.

O programa de governo de Lula apresentado por sua coligação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não previa, no entanto, propostas para descriminalização das drogas.

O texto mencionava, no entanto, que “o país precisa de uma nova política sobre drogas,” focada na redução de riscos, prevenção e assistência ao usuário de entorpecentes.

No governo, o tema vem dividindo opiniões. Em novembro de 2022, o então indicado para ministro da Justiça e atual ministro do STF, Flávio Dino, disse à BBC News Brasil que o governo não tinha projetos para a descriminalização das drogas.

Em março de 2023, no entanto, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, disse à BBC News Brasil ser favorável à medida como forma de diminuir a superlotação dos presídios brasileiros.

Uma pesquisa divulgada em setembro de 2023 pelo Datafolha aponta que 72% das pessoas entrevistadas seriam contra o uso recreativo de maconha.

Aprovação de PEC pode não encerrar debate no STF

Apesar de a bancada evangélica apostar na PEC como uma espécie de garantia contra o julgamento do STF, especialistas em Direito avaliam que a situação é mais complexa do que parece.

Mesmo que o Congresso aprove a PEC antes da decisão do Supremo no caso, o julgamento não seria interrompido e não necessariamente a PEC teria efeitos “automáticos”.

“A emenda constitucional pode ser impugnada pela via das ações diretas de inconstitucionalidade, como o Supremo já fez no passado”, afirma Henrique Sobreira Barbugiani Attuch, do escritório Wilton Gomes Advogados.

A avaliação é que mesmo emendas à Constituição podem ser consideradas inconstitucionais caso se conclua que elas interferem nas chamadas “cláusulas pétreas” da Carta, que se referem temas que não são passíveis de mudança.

“O Direito não aceita tudo. Há princípios que nem emendas podem mudar na Constituição”, diz Belisário dos Santos Junior, especialista em Direito Público e ex-secretário de Justiça de São Paulo.

“Então, se aprovada, essa PEC não garante o fim da discussão.”

Caso a PEC seja aprovada e não seja questionada, o que é considerado por analistas ouvidos pela reportagem como algo improvável diante do atual cenário político, aí sim o resultado da decisão do Supremo sobre o artigo 28 da Lei de Drogas teria que levar em consideração o que estabelece a emenda.

Wallace Corbo, professor de Direito da FGV, explica que existe também a possibilidade de o Supremo decidir que a criminalização do uso não viola a Constituição, mas que, mesmo assim, existe a necessidade de se estabelecer uma quantidade para diferenciar usuário e traficante.

Até o momento, quatro dos cinco ministros que votaram pela descriminalização do porte defenderam determinar que um porte acima de 60 gramas caracterizaria tráfico.

Já os ministros Cristiano Zanin e Kássio Nunes, que votaram contra descriminalizar o porte, defenderam que a quantidade máxima para uso próprio deveria ser 25 gramas. Também contrário, André Mendonça falou em 10 gramas.

A questão da quantidade para diferenciar traficantes de usuários é considerada um dos temas centrais do julgamento.

O ministro Alexandre de Moraes afirmou que esse ponto é importante porque estabelece um critério objetivo e evita injustiças e distorções.

Corbo afirma que, se o Congresso criar uma lei alterando a quantidade determinada pelo Supremo, a tendência seria a Corte acatar a escolha.

“Esse seria o cenário com menor risco de judicialização, menor chance de voltar ao Supremo”, disse Corbo.

Toffoli, inclusive, chegou a dizer que determinar essa quantidade não seria uma tarefa do STF, e Mendonça defendeu que a Corte encaminhasse a questão toda – tanto sobre a quantidade para diferenciar usuário e traficante quanto sobre a criminalização da posse – para o Congresso votar em até 180 dias.

“Esse tipo de decisão tem sido cada vez mais comum no Supremo e no Judiciário como um todo”, afirma Corbo.

Isso seria, na visão de Corbo, um “meio-termo” em que o Supremo se sobreporia ao Legislativo, mas também não deixa a critério do Congresso decidir quando bem entender.

“Fixa-se um prazo para essa decisão do Congresso e, se esse prazo não for cumprido, podem advir consequências, como, por exemplo, valer a decisão do Supremo quanto ao que entende como mais adequado.”

Diante de mais um momento de tensão entre o Congresso e o STF, especialistas avaliam que o pedido de vistas de Toffoli pode ser interpretado como uma alternativa ao embate direto entre os dois Poderes.

Isso porque a interrupção do julgamento daria tempo ao Parlamento para discutir o assunto.

“Como o Congresso Nacional está em pé de guerra com o STF neste caso, dar tempo ao Legislativo para decidir sobre o tema é uma forma de lidar com ele de forma mais cuidadosa”, diz Couto.

Tanto Corbo quanto Santos Junior afirmam que existem motivos jurídicos plausíveis para um pedido de vista, mesmo no caso de um julgamento que tramita há bastante tempo.

“O pedido de vista serve tanto para o aprofundamento sobre a matéria quanto para revisão das posições já colocadas (e houve de fato novas posições recentes que poderiam justificar o pedido)”, afirma Corbo.

No entanto, diz ele, o pedido também tem sido usado como forma de interferir na agenda do STF.

“Como hoje em dia há prazo definido para devolver os autos após o pedido, essa última possibilidade fica um pouco mais restrita, mas não deixa de ser possível, e aí pode sim haver um componente político no pedido.”

Como o modelo da internet móvel do Brasil favorece a desinformação


Flávia Lefèvre, Paloma Rocillo e Polinho Mota, Le Monde (expandir)

Desde 2016, o Brasil vive sob a sombra de campanhas de desinformação política que influenciam como os eleitores escolhem suas pautas e candidatos. Quantos de nós chegaram a sair de grupos de aplicativos de mensagem online porque não aguentavam mais um tio que todo dia enviava fake news sobre uma suposta distribuição de mamadeiras ou prêmios Nobel que nunca foram concedidos?

Muitas pesquisas têm apontado que grupos online são canais de intensos fluxos de consumo e distribuição de informação política. O que ainda não está sendo debatido da forma que deveria é a relação direta entre essa circulação de desinformação e o modelo de oferta de acesso à internet praticado no Brasil. Se estamos falando de um problema relacionado à comunicação, precisamos pensar quais são as estruturas que viabilizam tal comunicação. Dados da TIC Domicílios[1], produzida pelo CETIC.br, apontam que seis a cada dez usuários de internet no Brasil acessaram a rede exclusivamente pelo telefone celular (62%). Entre aqueles com telefone celular, 64% haviam contratado um plano pré-pago e 34% um plano pós-pago. Ou seja, uma estrutura central para a comunicação da população brasileira atualmente é a internet móvel.

É também desde 2016 que as operadoras telefônicas oferecem o atual modelo de franquia de dados móveis, que inclusive tem preços proporcionais mais caros do que pacotes de conexão fixa como a fibra óptica. O modelo funciona da seguinte maneira:

Compreendida a estrutura, vamos ao seu problema. A estrutura desse modelo baseado em franquia parte de um pressuposto de escassez, no qual os acordos comerciais passam a ser um bote de salvação para quando a franquia terminar. Assim, os acordos comerciais com apenas algumas plataformas transformam a internet – que é livre e gigantesca – em um microcosmo de duas ou três empresas, com predomínio principalmente de aplicações da META (Facebook, Instagram e WhatsApp), que são umas das principais plataformas que concentram campanhas de desinformação, como tem acontecido nas últimas eleições e durante a pandemia de COVID-19.

Assim, quem está refém dos pacotes de dados móveis que restringem o acesso à internet ao uso de apenas alguns aplicativos não vai conseguir verificar se as informações que lhes são direcionadas pelos sistemas algorítmicos das plataformas são verdadeiras ou não, tampouco acessar um portal de notícias e buscar o tema relacionado. Presos dentro de um sistema de informação e sendo bombardeados por mensagens revestidas com roupagem de jornalismo, por exemplo, altamente financiadas, os brasileiros vivem num cenário em que uma mentira pode ganhar status de verdade.

O combate à desinformação é possível e diversas estratégias podem ser utilizadas para isso, como a checagem de informações e de outras fontes estimuladas pela ONU na Campanha Pauses; ou ainda, no investimento em educação midiática. Entretanto, o combate à desinformação pode morrer na praia se o ecossistema de comunicação, cujo controle sobre o fluxo de informações está nas mãos das Big Techs, não possibilita os meios de aplicação das estratégias necessárias, como o acesso ilimitado à internet que viabilize a pluralidade de fontes.

LEGISLAÇÕES VIGENTES APONTAM ILEGALIDADE NO MODELO ATUAL DE FRANQUIA DE DADOS MÓVEIS

Além de ser uma demanda para o enfrentamento à desinformação, a necessidade de mudança do modelo de franquia para acesso à internet também é uma medida para que a legislação brasileira já existente seja respeitada. Nossa legislação estabelece que o acesso à internet é um serviço essencial, universal e ainda um direito humano reconhecido pela Organização das Nações Unidas desde 2011. Esta definição está expressa nos artigos 7º, IV e 9º, § 3º do Marco Civil da Internet e no artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor.  Além disso, a própria Constituição Federal estabelece que a ordem econômica deve estar voltada para a redução das desigualdades e para o respeito aos direitos do consumidor, atribuindo ao Estado o poder de regular e fiscalizar empresas públicas e privadas, em seus artigos 170 e 174.

Atualmente, acessar a internet é vital e imprescindível para o exercício da cidadania. À medida que a tecnologia evolui, o acesso restrito escancara e amplia as desigualdades sociais. É frequente que atores e atrizes em cargos políticos mobilizem os dados de acesso à internet no Brasil para mostrarem como a conectividade no país já avançou muito. Quando olhamos para alguns dados da TIC Domicílios, podemos ter essa mesma percepção, afinal, 81% dos brasileiros são usuários de Internet, segundo a pesquisa. Mas uma análise mais dedicada aos indicadores do CETIC.br mostram que esse acesso ainda é muito precário, classista e elitizado. A apropriação tecnológica ainda é uma realidade distante no Brasil, onde desses milhões de usuários, apenas 26% dos indivíduos postaram na internet textos, imagens, fotos, vídeos ou músicas que criaram.

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Acesso à internet ainda é entrave ao direito à comunicação

Essa forma de disponibilizar acesso sem cobrança adicional por meio de um aplicativo é chamada de zero rating e seu impacto é tão prejudicial que já foi proibido na Europa. O zero rating é um arranjo comercial que privilegia determinados aplicativos em detrimento de outros, ferindo um princípio central da internet, a neutralidade da rede, segundo o qual todo o tráfego na internet deve ser tratado de forma igualitária e sem discrirminação por conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicação.

Um ponto importante é que o princípio da neutralidade da rede não é algo que acadêmicos valorizam exclusivamente a nível teórico. É um princípio que, segundo a legislação brasileira, deve ser observado como regra. Qualquer prática de violação a esse princípio deve ser uma exceção. As situações excepcionais devem ser acompanhadas pela Anatel, conforme artigo 5º do Decreto 8.7716/15, que regulamenta o Marco Civil da Internet. Entretanto, vivenciamos mais uma situação de ilegalidade: a quebra da neutralidade tem sido a regra, e a Anatel não tem acompanhado as situações de excepcionalidade.

GRUPOS SOCIALMENTE VULNERÁVEIS SÃO OS MAIS PREJUDICADOS PELO ACESSO RESTRITO À INTERNET

Talvez, você leitor, nunca tenha sofrido por depender de um serviço tão precário e com efeitos tão perversos, porém, cerca de 80% dos usuários das classes C, D e E acessam a internet exclusivamente pela rede móvel e por meio dos planos pré-pagos. As franquias, segundo as pesquisas do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), se esgotam no 21º dia no mês e, a partir daí, o acesso é bloqueado, permitindo apenas o tráfego dos pacotes de dados de poucas empresas, como as aplicações da Meta, TikTok e Google. Estamos falando da maioria da população brasileira que hoje está refém dessa prática ilegal, com consequências determinantes para o enfraquecimento de nossas instituições democráticas.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) mostrou como comunidades como quilombos, assentamentos, favelas, migrantes e indígenas em contextos urbanos sentem os impactos negativos da conexão móvel no seu dia a dia. “Boa parte dos meus irmãos usa celular de conta, pré-pago. Daí é difícil porque a gente manda uma mensagem séria e chega três dias depois. ‘Ah, hoje tem crédito’ e entra todas as mensagens que estão atrasadas”, relata Eni Carajá, indígena Carajá que vive em contexto urbano. A liderança acrescenta que, em geral, os aplicativos de mensagem são a única forma de comunicação nos territórios que têm infraestrutura de internet e oferta de serviços mais precária.

Depender de apenas uma forma de estar conectado pode representar uma vulnerabilidade para o ecossistema de informação nacional. Pessoas com menor poder aquisitivo muitas vezes dependem de estarem em um ambiente com conexão fixa e wi-fi para realizarem suas atividades, como relatou Maria Victória Gonzalez.

“Às vezes, eu coloco 15 reais, quando eu tenho que ir para faculdade ou para algum lugar. Às vezes não dá para o mês inteiro, depende. Esses planos de 50 reais não dá. A gente trabalha aqui com Wi-fi e quando vai sair a gente carrega”, conta a integrante do Coletivo Cio da Terra, formado por mulheres migrantes na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Ainda estamos longe de termos um Brasil realmente conectado, principalmente quando analisamos de forma regional. Os dados da TIC domicílios relativos a 2023 revelam que as regiões Norte e Nordeste possuem os piores índices de conectividade. No cenário nacional, 62% dos domicílios que estão conectados possuem conexão via fibra óptica, enquanto 16% dos domicílios conectados são via rede móvel. Na região Norte e Nordeste, a proporção de domicílios conectados com rede fixa é de  58% e 57%, respectivamente, abaixo da proporção nacional (figura 1).

Na região Norte, que historicamente possui menores investimentos em infraestrutura de rede fixa, o índice de domicílios conectados por conexão móvel é 27% maior que a porcentagem nacional. Isso revela que as populações desses territórios podem não ter outra opção de conexão a não ser a móvel, o que favorece sua exposição à desinformação e a todo o cenário de baixa conectividade.

Fonte: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20230825143720/tic_domicilios_2022_livro_eletronico.pdf

CAMPANHA #LIBERAMINHANET ARTICULA PAUTA JUNTO A ÓRGÃOS PÚBLICOS E SOCIEDADE CIVIL

A temática do direito ao acesso à internet é uma entre as diversas pautas defendidas pela Coalizão Direitos na Rede (CDR), que articula mais de 50 organizações da sociedade civil em prol dos direitos digitais. Em 2023 a CDR lançou a Campanha #LiberaMinhaNet, uma iniciativa para explicar o contexto da franquia de dados, suas incongruências e soluções possíveis.

A mobilização junto à sociedade civil e à imprensa caminha em paralelo à articulação em Brasília. A coalizão encaminhou um pedido administrativo ao Ministério da Justiça e à Secretaria Nacional do Consumidor em janeiro de 2023, no qual solicitava a revisão da prática do modelo de franquia de dados em curso no Brasil. Até agora os órgãos não se pronunciaram diante de um problema que ganha maiores proporções com a chegada do ano de eleições municipais. A inação do Governo surpreende o campo ativista, visto que a candidatura eleita foi impactada de forma significativa por campanhas de desinformação eleitorais e ainda sofreu uma tentativa de golpe logo no início do mandato. Vale acrescentar que, durante a campanha eleitoral, o próprio presidente Lula afirmou que uma de suas  prioridades de governo seria a melhoria da conectividade no país, tendo feito menção expressa ao fim da limitação de acesso móvel.

Com o Brasil na presidência do G20 e a proximidade das eleições municipais, revisitar o modelo baseado em franquia associada a bloqueio do acesso à internet e tarifa zero para aplicações da Meta – nas quais a desinformação trafega de forma massiva – nunca foi tão relevante. Primeiro porque, em 2014, o Brasil ocupava posição pioneira no campo da Governança da Internet, desenvolvendo debates e regulações próprias, efetivas e contextualizadas às nossas necessidades, como é o caso do Comitê Gestor da Internet no Brasil – o CGI.br e o Marco Civil da Internet. Nos anos subsequentes, nossa notoriedade no campo foi atravessada por outros elementos. Contudo, temos a oportunidade de aproveitar o foco internacional no país em razão do G20 para fortalecer nossos compromissos com o combate à desinformação e com a ampliação da conectividade significativa, voltando à posição de vanguarda e referência global no tema.

Em segundo lugar, as eleições municipais são, historicamente, um teste para as eleições gerais. Assim, o volume gigantesco de propaganda eleitoral que irá circular no pleito deste ano impossibilita que apenas a Justiça Eleitoral seja um agente de combate à desinformação. Os próprios usuários precisam ter condições para avaliar os conteúdos e atuar como agentes de enfrentamento a uma prática tão danosa para a democracia. Entretanto, diante do acesso tão restrito à internet, a atuação cidadã do usuário fica prejudicada.

Alternativas realistas para melhorar o acesso à internet no Brasil são possíveis e já estão sendo pautadas pela sociedade civil. O primeiro passo é exigir que o Poder Executivo, em diálogo com as empresas e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), elabore e implemente políticas públicas voltadas para a universalização das infraestruturas de redes que dão suporte à internet, garantindo que recursos públicos, como é o caso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, sejam utilizados para contemplar efetivamente as áreas remotas e as periferias dos grandes centros urbanos.

Outra medida importante é que as autoridades competentes reconheçam e façam valer o princípio da continuidade na prestação do serviço e a neutralidade da rede como direitos fundamentais para a redução do abismo digital que marca a realidade brasileira. Ademais, é necessário estabelecer medidas que garantam a neutralidade da rede e que assegurem que o acesso à internet seja tratado como um serviço essencial e universal, não sujeito a interrupções arbitrárias.Diante deste grave quadro de fosso digital e desinformação massiva, adequar os modelos de exploração comercial do serviço de acesso à internet no Brasil à legislação brasileira é uma necessidade urgente para garantir que todos os brasileiros possam desfrutar dos benefícios da conectividade digital, democratizando os processos informacionais.

Flávia Lefèvre é membro do Conselho Consultivo do Instituto NUPEF. Paloma Rocillo é diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Polinho Mota é coordenador de dados do data_labe

[1]Survey on the use of information and communication technologies in Brazilian households : ICT Households 2022 / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. — 1. ed. — São Paulo : Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2023


Mazzucato: a chance de mudar as redes sociais

Mariana Mazzucato e Ilan Strauss, Outras Palavras (expandir)

Por Mariana Mazzucato e Ilan Strauss, no La Diária | Tradução: Rôney Rodrigues

A implantação de algoritmos para maximizar o engajamento do usuário é a forma como as grandes empresas de tecnologia maximizam o valor para os acionistas, e os lucros de curto prazo geralmente têm precedência sobre os objetivos de negócios de longo prazo. Agora que a inteligência artificial está preparada para impulsionar a economia das plataformas, são urgentemente necessárias novas regras e estruturas de governança para salvaguardar o público.

Num novo processo judicial nos Estados Unidos contra a Meta, 41 estados e o Distrito de Colúmbia sustentam que duas das redes sociais da empresa (Instagram e Facebook) não são apenas viciantes, mas também prejudiciais ao bem-estar dos menores. A Meta é acusada de implementar um “esquema para explorar jovens usuários com fins lucrativos”, o que inclui mostrar-lhes conteúdo prejudicial que os mantém grudados em suas telas. De acordo com uma pesquisa recente, os jovens estadunidenses de 17 anos passam 5,8 horas por dia nas redes sociais. Como tudo isso veio à tona? A resposta, em uma palavra, é “engajamento”.

A utilização de algoritmos concebidos para maximizar o “engajamento” dos usuários é a forma das Big Tech maximizarem o valor para os acionistas, cujo resultado são lucros a curto prazo muitas vezes superiores aos objetivos empresariais de longo prazo (isso sem falar da saúde coletiva). Como explica o cientista de dados Greg Linden, algoritmos baseados em “más métricas” promovem “maus incentivos” e abrem caminho aos “maus atores”.

O Facebook começou como um serviço básico para conectar amigos e conhecidos na internet, mas com o tempo seu design evoluiu da satisfação das necessidades e preferências dos usuários para mantê-los dentro da plataforma e longe de outras pessoas. Para atingir esse objetivo, a empresa desconsiderou repetidamente as preferências explícitas dos consumidores em relação ao tipo de conteúdo que desejam visualizar, à privacidade e ao compartilhamento de seus dados.

A primazia dos lucros imediatos passa por induzir os usuários a clicar, mesmo que o resultado global desta estratégia seja dar prioridade a materiais sensacionais e de baixa qualidade, em vez de dar a devida recompensa a um universo mais vasto de criadores de conteúdos, usuários e anunciantes. Chamamos estes lucros de “rendas algorítmicas de atenção”, porque são gerados através da posse passiva (como a dos proprietários de terras) em vez de atividade produtiva destinada a satisfazer as necessidades dos consumidores.

Identificar o comportamento rentista na economia atual requer a compreensão de como as plataformas dominantes exploram o controle algorítmico que têm sobre os usuários. Um algoritmo que degrada a qualidade dos conteúdos que promove está abusando da confiança dos usuários e da posição dominante reforçada pelo efeito de rede. É assim que o Facebook, o Twitter e o Instagram podem seguir seu caminho e continuar enchendo suas páginas com anúncios e viciantes conteúdos “sugeridos”. Como explica o especialista em tecnologia Cory Doctorow de forma um tanto colorida, “a merdificação (enshittificação) das plataformas vem do canhão de um algoritmo” (que por sua vez pode depender de práticas ilegais de coleta e compartilhamento de dados).

O processo contra o Meta tem a ver, em última análise, com suas práticas algorítmicas, cuidadosamente projetadas para maximizar o “engajamento” dos usuários: mantê-los na plataforma por mais tempo e suscitar mais comentários, “curtidas” e republicações. Muitas vezes acontece que uma boa maneira de conseguir isso é exibir conteúdo prejudicial e que beira o ilegal, e transformar o tempo gasto na plataforma em uma atividade compulsiva, por meio de recursos como “rolagem infinita” e o envio incessante de notificações e alertas (técnicas que em muitos casos também são utilizadas com grande eficácia na indústria dos jogos de azar).

À medida que os avanços na inteligência artificial (IA) começam a potencializar as recomendações algorítmicas e a torná-las ainda mais viciantes, são urgentemente necessárias novas estruturas de governança orientadas para o “bem comum” (em vez de uma ideia estreita de “valor para os acionistas”) e alianças simbióticas entre empresas, governos e sociedade civil. Felizmente, está ao alcance das autoridades reformar estes mercados para os colocar ao serviço do bem comum.

Em primeiro lugar, em vez de se basearem exclusivamente na legislação antitruste e de defesa da concorrência, as autoridades devem adotar ferramentas tecnológicas que evitem que as plataformas encarcerem usuários e desenvolvedores. Uma forma de evitar a criação espaços fechados anticoncorrenciais é exigir a portabilidade e a interoperabilidade dos dados entre os serviços digitais, para que os usuários possam facilmente passar de uma plataforma para outra se aquela em que se encontram não corresponder às suas necessidades e preferências.

Em segundo lugar, é essencial uma reforma da governança corporativa, uma vez que o que levou as plataformas à exploração algorítmica dos usuários foi o princípio da maximização do valor para o acionista. Dados os custos sociais bem conhecidos deste modelo de negócio (a busca do maior número possível de cliques conduz muitas vezes à multiplicação de fraudes, desinformação e materiais que incentivam a polarização política), a reforma da governança exige uma reforma dos algoritmos.

Um primeiro passo para a criação de um modelo de base mais saudável é exigir que as plataformas divulguem (no seu relatório anual 10K [que fornece aos investidores uma análise abrangente da empresa] que devem apresentar à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) as métricas que os seus algoritmos visam otimizar, bem como o modo que isso monetiza os usuários. Num mundo onde os executivos da tecnologia vão a Davos todos os anos para falar sobre o “propósito” social das suas empresas, uma divulgação oficial de dados irá pressioná-los a cumprir o que dizem e ajudar os decisores políticos, reguladores e investidores a distinguir entre lucros merecidos e rendas indevidas.

Terceiro, os usuários precisam ter mais influência sobre como os algoritmos priorizam as informações que lhes são mostradas. Caso contrário, o desrespeito pelas preferências dos usuários continuará a causar danos, pois os algoritmos criam ciclos de retroalimentação nos quais induzem os usuários a clicar em determinados conteúdos e depois inferem erroneamente que essas são as suas preferências.

Em quarto lugar, a metodologia padrão da indústria de “teste A/B” deve dar lugar a avaliações de impacto mais abrangentes a longo prazo. O mau uso da ciência de dados leva ao imediatismo algorítmico. Por exemplo, uma teste A/B pode mostrar que o aumento do número de anúncios em exibição terá um efeito positivo a curto prazo sobre os lucros, sem causar uma deterioração óbvia na retenção de usuários; mas isto ignora o impacto na aquisição de novos usuários, para não mencionar quase todos os outros efeitos potencialmente prejudiciais a longo prazo.

A ciência de dados bem utilizada mostra que otimizar os sistemas de recomendação para não buscar recompensas imediatas (por exemplo, visando, em vez disso, a satisfação do cliente e a aquisição e retenção de usuários futuros) é a melhor maneira que as empresas têm para reforçar o crescimento e a lucratividade no longo prazo (supondo que eles possam parar de concentrar toda a sua atenção no próximo relatório de lucros trimestrais). Em 2020, uma equipe da Meta determinou que, em um horizonte de tempo mais longo (um ano), a redução do número de notificações intrusivas melhoraria a utilização do aplicativo e a satisfação dos usuários. Uma grande diferença foi encontrada entre os efeitos de longo prazo e os efeitos de curto prazo.

Em quinto lugar, a IA pública deve ser posta em ação para avaliar a qualidade dos resultados dos algoritmos, particularmente na área da publicidade. Face aos danos consideráveis causados pela flexibilização dos critérios de aceitação de anúncios por parte das plataformas, a autoridade britânica responsável pelo controle publicitário começará a utilizar ferramentas de IA para analisar anúncios e identificar aqueles que fazem “afirmações duvidosas”. Outros países deveriam seguir o exemplo. Igualmente importante, a avaliação da IA deve ser um componente regular da disposição das plataformas para permitir auditoria externa dos resultados dos algoritmos.

Criar um ambiente digital que recompense a criação de valor a partir da inovação e puna a extração de valor rentista (particularmente nos maiores mercados digitais) é o desafio econômico fundamental dos nossos tempos. Para preservar a saúde dos usuários das corporações de tecnologia e da totalidade de seu ecossistema, é necessário evitar que os algoritmos fiquem subordinados ao desejo dos acionistas de lucros imediatos. Se os diretores empresariais realmente acreditam no princípio do valor para as partes interessadas, devem aceitar que é necessária uma mudança radical na forma como o valor é criado, com base nos cinco princípios detalhados acima.

O julgamento iminente contra a Meta não pode desfazer os erros do passado. Mas à medida que nos preparamos para a próxima geração de produtos de IA, temos que instituir mecanismos para uma supervisão adequada dos algoritmos. A utilização de algoritmos baseados em IA influenciará não só o que consumimos, mas também a forma como produzimos e criamos; não apenas o que escolhemos, mas também o que pensamos. Não há espaço para erros aqui.

Capitalismo em tempo de cólera

Os adversários de posições discordantes do neoliberalismo, que querem pôr a economia a serviço da cidadania, se transformam em inimigos mortais, cucarachas – em uma metamorfose sem metáfora

Luis Marques, A Terra é redonda (expandir)

A evolução do capitalismo, de início, atravessou três momentos: o manufatureiro, o de livre concorrência e o monopólico. O último caracteriza-se pela interdependência dos monopólios e o Estado, no século XX. Uma prova reside nos laços orgânicos das fábricas bélicas com as potências mundiais. O capitalismo monopolista distingue-se pela fusão do capital bancário e industrial, que formou as oligarquias financeiras. Os trustes e os bancos estão na origem das megacorporações, em um mercado ainda desorganizado. Entre 1950 e 1960, surge a reviravolta do “capitalismo em crise” ao “capitalismo de organização” que historiadores da sociedade e da cultura ocidentais designam “Estado regulador”, pari passu com a expansão imperialista.

Assim, pelo hábito, a figura do Estado regulador foi naturalizada na subjetividade dos povos. À direita, explica por que os governantes negam os plebiscitos sobre a sanha privatista de empresas estratégicas à sociabilidade comum: água, luz, gás, etc. À esquerda, explica por que os anarquistas tiveram especial dificuldade em se disseminar no pós-guerra.

Inflexão neoliberal

A radicalidade do livre mercado irradia-se nos hemisférios Norte e Sul, nos anos 1980, chancelada pelo Consenso de Washington. Estampa a esmagadora hegemonia ideológica do neoliberalismo – o quarto momento. Aumentam as críticas ao princípio da regulamentação e do planejamento central, por estimular a “cultura da dependência” (ao Leviatã). A alegação ecoa a liberdade individual para atacar o Estado de bem-estar social. A versão egoica da liberdade oculta a aporofobia contra pobres e o eugenismo classista, traduzidos no corte de investimentos públicos para incrementar a “cultura do empreendimento”. Conforme Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e as famílias”. Nessa concepção, a vida social é um local de passagem ao revés de um lugar de compartilhamento. Tchau à democratização decisional.

A regulação não evapora no ar; é transferida à esfera privada. Não obstante, mesmo as privatizações não diminuem a importância do Estado, em tese, por dois motivos: (a) cobram a imediata criação de agências controladoras e; (b) o aparelho estatal é quem legaliza a hiperexploração. A “nova razão do mundo” busca reconfigurar a subjetividade para litigar as pautas reguladoras, e não para celebrá-las. Mas continua o dilema capitalista posterior à ferroviarização, à motorização e à computadorização. Como expandir um sistema escorado no apartheid socioeconômico? Como o abandono de milhões de pessoas fixa um limite sistêmico para a necropolítica? “A responsabilidade social das empresas é o lucro”, diz Milton Friedman, para bloquear a discussão (sic).

As democracias em pane priorizam a representação política, no sentido de que os cidadãos não participam diretamente do governo da polis; escolhem representantes para delegar o poder de decidir sobre os rumos da gestão. As aspirações populares são sequestradas, com a financeirização do Estado. As finanças no neoliberalismo provocam a brutal desindustrialização. A Inteligência artificial substitui profissionais com curso superior em setores de atividade, e retira tradicionais postos de trabalho da classe média que mergulha no desemprego.

O liberalismo se apartava do neoliberalismo, à época que partidos eram capazes de institucionalizar e resolver os conflitos sociais, com respeito às “regras do jogo” bobbianas. Com a desautorização do diálogo, pelo ódio, houve um curto-circuito no horizonte de concertação. Os movimentos sociais dobram a aposta na participação ativa para politizar suas ações. São empurrados ao maximalismo nacional e internacional. O extremismo de direita impõe o olhar sobre a totalidade. Articulações parlamentares de gabinete cedem à “política da inimizade”, fechada em bolhas. A democracia in abstracto era compatível com o capitalismo; in concreto não é hoje.

As grandes causas

Se os dicionários são os termômetros culturais de cada época, qual o de Oxford que em 2016 fez da “pós-verdade” (“post-truth”) um símbolo de nosso tempo, vale a pena recorrer ao Dicionário de ciência política e das instituições políticas, organizado por Guy Hermet, Bertrand Badie, Pierre Birnbaum e Philippe Braud, para uma avaliação da guinada brusca que afetou o entendimento da política, passada uma geração do lançamento do livro. A edição imprimida em Lisboa, em 2014, repete a 7° impressão de 2008 do original em francês. A capa é eurocêntrica, traz uma emblemática reprodução do plenário do Parlamento Europeu, em Bruxelas. Está subentendido, desde logo, que o cerne do conceito de política remete aos arranjos interpartidários.

O verbete “Politização” (páginas 239-40) classifica com o epíteto de “visão idealista” (equivocada, descolada da realidade) a “concepção da política como combate por ‘grandes causas’, impregnadas por motivações éticas: o progresso social em nome da solidariedade, o sacrifício de interesses particulares em nome do patriotismo, a emancipação dos trabalhadores em nome da justiça e da razão”. A seguir, pondera. “A politização demasiado intensa é perigosa nas democracias pluralistas, porque é suscetível de varrer o espírito de negociação e a preocupação de compromisso pragmático entre forças sociais”. O verbete recende o “fim da história” especulado por Francis Fukuyama, com a formalização do término da ex-URSS. Noutras palavras, a política deveria se ater unicamente ao corporativismo parlamentar e abdicar de paixões revolucionárias.

Na normalidade seria até compreensível a objeção do dicionarista. Diante da encruzilhada histórica entre o fascismo e a democracia, a narrativa é um anacronismo dada a ameaça da extrema direita. Espanta o verbete não ter sido adaptado à Era do pós-liberalismo, onde os adversários de posições discordantes se transformam em inimigos mortais, cucarachas, em uma metamorfose sem metáfora. Cabe à democracia imunizar-se do cólera para avançar em um processo civilizatório, e para pôr a economia a serviço de 99% da cidadania. O discurso sobre as grandes causas – hecatombe climática, desigualdades, guerras, racismo, sexismo, invasão da privacidade por algoritmos, precarização do trabalho – articula as mentes e corações. A luta antifascista é a outra face da luta antineoliberal e da luta para suplantar o conservadorismo teocrático, na atualidade.

No Brasil, parcela das ditas “elites” endossa o golpe de 8 de janeiro. No fundo têm-se, de um lado, a defesa das finanças e do laissez faire – o livre mercado; e de outro, o apoio à regulamentação – o planejamento de Estado. A polêmica sobre o lucro líquido da Petrobras é elucidativa. Entreguistas querem distribuir a receita extraordinária de R$ 80 bilhões na forma de dividendos aos acionistas, além do previsto: praxe lesa-pátria dos desgovernos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Com a Rede Globo à frente, os mesmos se opuseram ao Programa de Reindustrialização Sustentável do governo federal (2023). Quem percebe o papel da petrolífera no direcionamento da economia brasileira, postula o excedente para fortalecer a empresa – a indústria naval, a transição energética.

Eis a síntese do confronto de projetos. Na Globo News, o ressentimento rugiu: “Conversa dos anos oitenta. Intervencionista. Nome e sobrenome, Luiz Inácio Lula da Silva”. Meios de comunicação de massas são parte, em vez de árbitros da disputa, isto é, militantes do rentismo. Norberto Bobbio já no fin-du-siècle acusa a mídia corporativa de obstáculo à democracia, com o argumento sofisticado: pasteurizam o pensamento individual e destroem a base da República. O ideal da patrulha neoliberal é a governabilidade com servidão voluntária a interesses financistas.

Por associação de ideias, lembra-nos a fala do saudoso José Paulo Bisol nos idos de 1994, no Largo Zumbi dos Palmares, em Porto Alegre, sobre a luta de classes e a importância urgente de construir a resiliência coletiva para tornar o povo, sujeito da história: “A gente se sente pequeno para lutar, mas quando a gente segura e ergue a mão de Lula fica forte. Coletivamente descobre que pode vencer a opressão e os opressores. Então caminhamos para o futuro, juntos”.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Central do Brasil, 13 de março: 60 anos depois, país mantém a luta em defesa da democracia e pela emancipação social de seu povo

Na encruzilhada de 64, entre o desenvolvimento soberano e socialista e a sujeição aos interesses do capital, o golpe das elites civis e dos militares obrigou o Brasil a ir pelo caminho errado. Pagamos até hoje por esse crime...

Para o professor Juremir Machado da Silva, ainda não nos livramos dos espectros do Golpe Civil-Militar que nos ronda sob o bolsonarismo, uma aposta quase bem-sucedida na tentativa de ruptura institucional após as eleições de 2022 (leia no IHU e assista às imagens do comício).


Leia ainda: # Comício da Central, Marcha da Democracia, Caminhada do Silêncio: sociedasde debate os 60 anos do golpe (RBA) # Ato pela Democracia será no Largo São Francisco (Folha) # Depois de corroer a estrutura das Forças Armadas, bolsonarismo atinge as bases da PM paulista (Jornal da USP) # Brasil freia desmonte da democracia e vira referência internacional (Uol) # A possibilidade de rupturas institucionais ainda é uma ameaça para o Brasil (IHU).

# Em pouco mais de 1 mês, já são 43 mortes na Baixada

Na foto, Derrite - o Secretário da Segurança de Tarcísio (Uol)

# Ensino obscurantista 

Editorial da Folha sobre as escolas cívico-militares de Tarcísio (Folha)

A popularidade de Lula

Para o governo dar certo – e impedir o retorno da extrema direita em 2026 – é preciso mais disposição para o enfrentamento. Isso começa por mudar a comunicação do governo

Luis Felipe Miguel, A Terra é redonda (expandir)


Os indicadores econômicos que usualmente têm maior impacto político não estão ruins – crescimento modesto, mas não irrelevante do PIB, aumento da renda do trabalho, redução da taxa de desemprego. Ainda assim, pesquisas dizem que popularidade de Lula está diminuindo. Por quê?

Não que a pesquisa da Quaest, que fez tanto burburinho, mereça grande atenção.

Pesquisas de opinião partem de pressupostos questionáveis, que mal vale a pena repisar – em especial, o triplo carpado epistemológico que faz com que a resposta a um questionário, imposto a partir de preocupações que não são necessariamente as da pessoa, seja aceita como uma “opinião” que define comportamentos.

A pergunta da Quaest sobre Hitler é um belíssimo exemplo do que estou falando.

Além disso, as pesquisas de opinião compartilham com suas gêmeas, as pesquisas de intenção de voto, os problemas metodológicos que têm feito elas errarem tanto nos últimos tempos. Pesquisas de opinião, porém, não enfrentam o tira-teima que as eleições representam para as pesquisas de intenção de voto, logo podem errar à vontade que continuarão a ser aceitas como verdade.

Ainda assim, os números casam com o que qualquer observador da realidade brasileira é capaz de ver. O governo Lula não está empolgando e a base bolsonarista não entra em retração.

A esquerda no governo ficou em grande medida restrita a acenos identitários e à ocupação de cargos mais simbólicos do que com efetivo poder. O fracasso da operação para proteger o povo yanomami é um emblema dessa situação.

Lendo a imprensa, há quem fale que problemas não resolvidos, como o da segurança pública, impactam mais o estado de espírito da população do que a economia. Outra vertente gosta de se colocar na condição de dar conselhos ao presidente.

Como exemplo, fico com a coluna do notório Elio Gaspari, na Folha S. Paulo neste domingo. Em resumo, ele disse que Lula está sendo mal avaliado por dois motivos. Um é ter criticado Israel. O outro seria ter “esquecido” da frente ampla.

É a conversa de sempre: o problema, por incrível que pareça, é o governo estar muito à esquerda. Se dependesse do Elio Gaspari e de muitos de seus colegas, Lula delegaria todas as decisões para, sei lá, o Michel Temer.

Eu diria que é exatamente o contrário. O que falta é a capacidade de se afirmar claramente como de esquerda.

Pressionado por uma extrema direita ainda capaz de mobilização, por um Congresso cada vez mais ganancioso e agressivo e por aliados da “frente ampla” que querem políticas de corte conservador, Lula não consegue pôr na rua políticas que tenham a marca do governo e claramente reverberem na vida das maiorias.

Na economia, o “equilíbrio fiscal” continua como alfa e ômega de todas as decisões. Volta e meia, Lula ensaia uma rebeldia, mas logo passa. Parece jogo de cena.

Os ministérios parecem condenados a funcionar como máquinas de transferência de verbas para políticos do Centrão. As políticas efetivas ficam com as sobras.

A Educação parece disposta a implementar a visão empresarial corporificada no famigerado Novo Ensino Médio. A Saúde é louvada pelo fim do negacionismo, mas ainda não se viu progresso, por exemplo, na retomada da cobertura vacinal.

A esquerda no governo ficou em grande medida restrita a acenos identitários e à ocupação de cargos mais simbólicos do que com efetivo poder. O fracasso da operação para proteger o povo yanomami é um emblema dessa situação.

Paulo Teixeira, no Desenvolvimento Agrário, alimentou expectativas ao assumir, mas nada se avançou na reforma agrária. Luiz Marinho, no Trabalho, está sendo obrigado a recuar na questão crucial da regulação das relações laborais nos aplicativos.

Banqueiros, generais, parlamentares, pastores – diante de cada um desses grupos, o governo parece ter só uma palavra de ordem: recuar.

É mais fácil arrochar o funcionalismo público, cortar verbas da educação e da ciência, seguir o figurino de sempre.

Para o governo dar certo – e impedir o retorno da extrema direita em 2026 – é preciso mais disposição para o enfrentamento. Isso começa por mudar a comunicação do governo, fazendo um esforço pedagógico de mostrar quais são os interesses em conflito e de que lado cada um está.

Mas quando a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, declara com satisfação que o governo não disputa valores – ela que, para a imprensa, é uma voz “radical” do petismo – é porque estamos mesmo lascados.

__________

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2]

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.

Outros artigos de

fechando o verão12-03-24

Seara

"Estamos aquém do que prometemos", diz Lula sobre queda de popularidade

Lula afirmou que não há motivo para receber "100% de popularidade". "Eu tenho certeza absoluta que não tem nenhuma razão do povo brasileiro me dar 100% de popularidade porque ainda nós estamos muito aquém daquilo que prometemos". O presidente ressaltou que ainda está começando o segundo ano de mandato. "Nós preparamos a terra, aramos a terra, adubamos a terra e colocamos a semente. Cobrimos a semente. Agora, este é o ano em que a gente vai começar a colher aquilo que nós plantamos" (Uol, expandir)

Lula ainda classificou as pesquisas como "fotografia do momento". "A gente tem de entendê-la como uma fotografia em função do momento em que você está vivendo e você utiliza a pesquisa não para ser contra ou para ficar feliz ou muito triste por causa da pesquisa. Você utiliza a pesquisa como instrumento de ação e de mudança da tua estratégia de governo".

Durante a entrevista, o presidente também comentou sobre a Petrobras. Ele disse que é preciso pensar além dos acionistas da estatal. "Tem que pensar o investimento e em 200 milhões de brasileiros que são donos ou sócios dessa empresa. O que não é correto é a Petrobras, que tinha que distribuir R$ 45 bilhões de dividendos, querer distribuir R$ 80 bilhões".

Pesquisa Ipec

A avaliação do governo Lula (PT) caiu para 33%, o pior índice registrado pela pesquisa Ipec desde março do ano passado. O levantamento foi divulgado na última sexta-feira (8) pelo instituto.

O governo Lula tem 33% de ótimo e bom. Em dezembro do ano passado, esse índice era de 38%.

Os que classificam a administração como regular também são 33%, enquanto a pesquisa mostra 32% para ruim ou péssimo… 

Portugal: porque a direita venceu?

Cai mais um governo democrático. Face a um Ocidente cada vez mais desigual, governo do PS acomodou-se e assistiu ao avanço da desigualdade e das desilusões e abriu espaço para o neofascismo. Resultado é novo alerta ao Brasil de Lula (leia em Outras Palavras)

Dormiu bem, general?

Irritometria militar em off é o pico do servilismo jornalístico

Conrado Hübner Mendes, Folha 

No currículo oculto da formação em jornalismo existe uma disciplina chamada "Servilismo ao poder político e econômico". Ensina a prestar serviços privados a quem manda, e a se afastar da produção de qualquer informação útil ao interesse público ou bem comum. Dentro dessa disciplina, há um tópico ao qual o jornalismo brasileiro se dedica com muito gosto e engenho: a irritometria militar (continue a leitura).

"Forças Armadas se irritam com revelações da PF sobre participação de militares na tentativa de golpe"; "A irritação da cúpula militar com a investigação da PF sobre o golpe"; "Cresce a irritação das Forças Armadas com atuação da Polícia Federal".

"Militares se irritam com prisão de Cid"; "Entenda o motivo da irritação das Forças Armadas com o caso das joias de Jair Bolsonaro"; "Nova crise provocada por Olavo de Carvalho escancara irritação de militares".

"A irritação das Forças Armadas com o decano do Supremo" (o decano era Celso de Mello, que ousou avisar a militares que, se não fossem depor, seriam levados, como qualquer cidadão, "debaixo de vara"); "A irritação dos militares com Alexandre de Moraes" (o ministro representaria uma "senha da indignação" entre militares).

É um jornalismo orgulhoso do privilégio dessa fonte tão especial, o general. Por isso não se reconhece como jornalismo de fofoca. Na tipologia das fofocas, existe a fofoca BBB (relato de fatos curiosos sobre atores que só se tornam conhecidos em razão da fofoca); e existe a fofoca sobre a vida privada de autoridades ou celebridades (onde a notoriedade dos atores precede a fofoca).

Na irritometria militar, a fofoca é plantada pelas próprias autoridades. Em geral, um aviso anônimo em off; com frequência, simulando posição refletida e deliberada de uma coletividade, uma instituição, não a opinião de um ou dois indivíduos.

Se a irritabilidade fosse apenas uma categoria de fofoca política, não teria maiores efeitos. Mas, nesse jornalismo, ela se alçou a uma categoria de análise política. Um bom irritometrista se presta a cumprir, portanto, outras funções: mandar mensagens, ameaças, ofertas de barganha.

Ninguém se torna irritometrista por pura preguiça, carência, falta de assunto ou vocação servil. Não é serviço gratuito. Há contrapartidas desejadas. Pode ser promessa de influência, prestígio de exclusividade, entrada em festas, lista de contatos, cliques. Pode ser exigência do jornal ou do editor. Pode ser uma condição para manter o emprego.

Melhor que jornalismo declaratório de opiniões é o jornalismo declaratório do estado de espírito. Melhor que jornalismo declaratório do estado de espírito é o do estado de espírito em off. E melhor que o indivíduo irritado em off é a instituição irritada em off.

Para que as Forças Armadas se irritem, basta qualquer enunciação pública dos crimes que cometeram no passado e no presente. Basta qualquer demonstração de sua associação a uma família de delinquência política serial que assumiu a Presidência e desenhou plano de golpe junto com eles. Basta o aparente risco de sanção, pois sanção, de fato, nunca sofreram. No máximo, a sanção premial: ameaçam o governo e ganham benefícios orçamentários, remuneratórios e previdenciários (também para as filhas).

A obsessão mórbida com a irritação de militares tem uma ousadia epistêmica. O irritometrista se julga capaz não só de identificar a irritação, mas de medi-la. É capaz de perceber quando a irritação se mantém estável, quando cresceu ou regrediu. Uma ousadia preguiçosa, pois sequer se preocupa em reportar outro estado de espírito. Queríamos também saber quando militares estão felizes, quando se regozijam. Se na tortura ou na sinecura.

Tem também uma dimensão moral. Não é qualquer cidadão ou instituição que goza do luxo desse cuidado jornalístico. Importante saber com qual estado de espírito o jornalismo se preocupa, e qual ignora.

Quando Lula afirmou não querer "remoer o passado", por que os irritometristas não foram lá perguntar o que sentiam os familiares de vítimas da brutalidade militar? Seu irritômetro só quer saber de vestir farda?

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

Brasil Paralelo quer unir a direita conservadora à liberal e lança documentário sobre comunismo

Pôxa vida, que coisa atrasada!!! A matéria saiu no moribundo Estadão (leia aqui) e deve ter sido muito difícil para o jornalista Marcelo Godoy descobrir o que havia de interessante na cobertura do evento que reuniu o que há de pior no pensamento da "direita conservadora e liberal".  Mas tudo bem, o profissional cumpre a pauta que seus editores pedem e ordenam. Neste caso, no entanto, o discurso que 'amarrou' o encontro é uma coisa tão velha, tão rota, tão enferrujada, que só mesmo adeptos de Olavo de Carvalho podem imaginar que o que discutiram tem alguma coisa a ver com o mundo em que estamos vivendo. E o que é pior: o brinde História do Comunismo chega ser criminoso pelo amontoado de lugares comuns, frases feitas, preconceitos e ignorância histórica que o alimentam. 

Eis aí um registro das dificuldades que o Brasil enfrenta para escapar da determinação imbecil de seu conservadorismo, que de conservadorismo não tem nada... Minha sugestão: vamos divulgar fortemente tudo o que esse Brasil Paralelo fizer, entuchar todos as brasileiras e brasileiros com suas besteiras... eles são o seu próprio antídoto...

pensatas para o fim de semana 8-3-24

Renda do trabalho dos brasileiros tem a maior alta desde o plano real

Estudos permitem deduzir que redução dos juros, aumento da carga fiscal, ampliação dos investimentos públicos na infraestrutura e nos serviços sociais são o único caminho para tirar o Brasil da estagnação econômica e eliminar a pobreza crônica em que vivem milhões de pessoas (expandir a postagem)

Fernando Canzian, Folha

A renda do trabalho dos brasileiros em 2023 teve o maior salto desde o Plano Real, quando a queda abrupta da inflação, a partir da metade de 1994 e em 1995, promoveu forte aumento do poder de compra no país.

Enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 2,9% em 2023, houve aumento real, acima da inflação, de 11,7% na massa de rendimentos do trabalho. É quase o dobro do cômputo de 2022 (6,6%) e o melhor resultado desde 1995 (12,9%), segundo cálculos de Marcos Hecksher, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Outros dados, de Marcelo Neri, diretor da FGV Social, mostram que a renda real domiciliar per capita saltou 12,5% no ano passado. A conta considera a renda das famílias dividida pelo total de membros. Ambos resultados têm como base a PnadC (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE).

Nos 12 meses que antecederam o lançamento do Plano Real, em 1º de julho de 1994, a inflação chegou a 4.922% — e fecharia aquele ano em 916%. Em 1995, despencaria a 22%, turbinando o poder de compra dos trabalhadores. Desta vez, a ajuda da inflação na renda foi marginal: ela caiu de 5,79% em 2022 para 4,62% no ano passado.

A partir do segundo semestre de 2022 e ao longo de 2023, no entanto, o Brasil vivenciou uma explosão do gasto público, aparentemente com efeitos multiplicadores na economia.

A grande dúvida é se a renda maior ao fim de 2023 seguirá crescendo, ou mesmo se conseguirá manter-se no novo patamar — pois boa parte dela dependeu de dinheiro estatal, de mais déficit e do aumento da dívida pública.

Inicialmente, deu-se a derrama de incentivos, benefícios e corte de impostos promovidos por Jair Bolsonaro (PL) na segunda metade de 2022 em sua tentativa de se reeleger. Depois, veio a PEC da Transição, de R$ 145 bilhões, para que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pudesse gastar mais em 2023.

Lula também retomou a política de aumento para o salário mínimo acima da inflação (com ganhos para 26 milhões de aposentados no piso do INSS), concedeu reajuste ao funcionalismo público federal e retornou programas, como o Minha Casa, Minha Vida.

Embalados pelo gasto público, os anos de 2022 e 2023 fecharam com alta do PIB acima da média dos anos pré-pandemia, em 3% e 2,9%, respectivamente. No período, a taxa de desemprego caiu de 9,6% para 7,8%.

Mas, entre as principais medidas adotadas tanto por Bolsonaro quanto Lula, antes e depois da troca de governo, manteve-se o benefício de R$ 600 para milhões de famílias por meio do Auxílio Brasil (no segundo semestre de 2022) e o Bolsa Família (a partir de janeiro de 2023), quando foram acrescidos mais R$ 150 por criança de 0 a 6 anos para as famílias beneficiárias.

Em relação a antes da pandemia — e após o triênio 2020-2022 atípico para a renda—, o Brasil triplicou o que despende com o Bolsa Família, passando de 0,4% do PIB para 1,5%. O programa prevê neste ano quase R$ 170 bilhões para 21 milhões de famílias. Juntas, elas reúnem mais de um quarto da população.

Para comparar, os incentivos fiscais do governo federal a empresas devem somar R$ 524 bilhões em 2024, ou 4,5% do PIB.

Estudos mostram que programas como o Bolsa Família têm grande potência multiplicadora na renda e no emprego. Trabalho organizado por Neri e outros autores mostrou que o Bolsa Família é, disparado, o programa que melhor atinge quem mais precisa.

Numa escala em que todos os programas chegassem realmente aos mais pobres, o alvo seria -1. O Bolsa Família chega a -0,64. O BCP (Benefício de Prestação Continuada), o mais "pró-pobre" dentre todas as transferências federais vinculadas ao salário mínimo, -0,07 —muito longe da eficácia do Bolsa Família.

Outro trabalho, de Naercio Menezes Filho, do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, sustenta que, para cada R$ 1 a mais per capita oferecido em um programa como o Bolsa Família, o PIB per capita do município onde o dinheiro é gasto cresce R$ 4.

Para Neri, uma das principais explicações para o salto da renda em 2023 pode estar no efeito do Bolsa Família.

"Se fizermos um negócio focado nos pobres, guardando recursos fiscais para o que é mais ‘pró-pobre’ possível, o efeito multiplicador é enorme. Vamos combater a pobreza e a desigualdade; e haverá um bônus macroeconômico considerável em termos não só de renda, mas de emprego", afirma.

O economista lembra que o direcionamento de 1,5% do PIB para o Bolsa Família deve ser recorrente, ou seja, sem previsão de interrupção nos próximos anos —a não ser que haja uma crise fiscal de grandes proporções. "Isso tende a impulsionar a economia. Não foi um reajuste temporário", diz.

Para Hecksher, do Ipea, os gastos públicos adicionais a partir do segundo semestre de 2022 explicam muito do aumento da renda em 2023. "Já havia o efeito carregamento [de 2022 para 2023] da ‘turbinada’ do Auxílio Brasil no final do governo Bolsonaro. Por cima disso, foram colocadas mais coisas, tanto no Bolsa Família como em outros programas", diz.

Pelas suas contas, o aumento real (acima da inflação) do salário mínimo em 2023 foi o maior desde 2012, atingindo 4,1% na média do ano. "Aí você tem efeitos diretos no mercado de trabalho e indiretos via Previdência. Em todas as aposentadorias e pensões, que são a segunda maior fonte de renda das famílias na Pnad Contínua, atrás do trabalho, cuja renda cresceu fortemente em 2023."

Em termos de ganhos de renda em 2023, a maior variação real positiva deu-se entre os trabalhadores do setor privado sem carteira (14,9%). São normalmente aqueles que pertencem às famílias mais pobres e que as atendem com seu trabalho —e o Bolsa Família, de um modo geral, tem considerável penetração nos dois grupos.

Entre os trabalhadores formais do setor privado, no entanto, o ganho nos rendimentos foi de apenas 2,9%. Mas, em recuperações econômicas, é esperado que o aumento do emprego e da renda comece a ganhar tração primeiro no setor informal.

Há, no entanto, dois grandes riscos no horizonte da recuperação do trabalho e da renda. O primeiro é o fiscal. O novo arcabouço do governo Lula tem como meta zerar o déficit da União neste ano, mas muitos economistas não acreditam que isso seja possível sem um corte de despesas.

Uma preocupação recorrente é que, como o PIB de 2023 mostrou uma economia parada na segunda metade do ano — após o forte impulso fiscal do segundo semestre de 2022 e dos gastos maiores no começo do ano passado—, existe o risco de o governo Lula tentar voltar a pisar no acelerador do gasto, com impacto no déficit e na dívida pública.

Ao contrario de políticas "pró-pobres" como as defendidas por Neri, o governo também vem anunciando ou renovando outros gastos e incentivos a empresas e setores, até por pressão do Congresso Nacional —o que pode minar a capacidade futura de sustentar políticas "pró-pobres".

O segundo risco é a inflação. Em 2023, a taxa de investimentos na economia foi de apenas 16,5%, insuficiente para aumentar a oferta de bens e serviços de forma sustentável.

Com a renda crescendo, pressões inflacionárias podem voltar, colocando em xeque os cortes da taxa básica de juro (a Selic) pelo Banco Central. São os juros menores que podem estimular investimentos produtivos para aumentar a oferta de bens e serviços.

Segundo André Braz, coordenador dos índices de preços do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), a inflação no setor de serviços (dois terços da economia) é o "grande desafio para 2024".

Braz projeta o IPCA fechando perto de 4% neste ano, mas alerta para o risco fiscal. "Temos aí um problema. A prioridade deveria ser atacar isso, diminuindo o risco-país [a percepção que investidores internacionais têm do Brasil] e estabilizar a taxa de câmbio", afirma.

Caso contrário, se o dólar subir, ele será um poderoso canal inflacionário pela via das importações — podendo interromper a queda dos juros e o aumento dos rendimentos do trabalho no Brasil.

# Link para a matéria da Folha

O número mágico do governador é 111

Não se iludam: se o MP não interromper a trajetória de Tarcísio na área da Segurança Pública, o Brasil vai ficar perto do Haiti em matéria de letalidade policial. Destemperado e indiferente às ponderações sobre sua responsabilidade pública no cumprimento da lei - o que o torna cúmplice de crimes eventualmente cometidos à revelia das práticas civilizadas do Estado, quaisquer que sejam os delitos cometidos pelas vítimas das execuções -, o governador pensa que pode narrar a História à revelia da verdade e como bem entende. Está enganado...

# 'Tô nem aí' de Tarcísio é o 'e daí?' de Bolsonaro # Entidades denunciam Tarcísio na ONU por violência nas ações policiais (RBA)

As pulsões do governador: excitação, violência, morte e... gozo

Tarcísio quer ensinar na escola o que ele entende por civismo

Ao discursar no ato da Avenida Paulista em que Bolsonaro propôs anistia para os golpistas, Tarcísio de Freitas uniu-se a uma boçalidade. Ao enviar para o legislativo estadual projeto de lei que cria o programa de escolas cívico-militares, o governador de São Paulo bate continência para uma temeridade...

Josias de Souza, Uol (expandir)

# Leia também:  "Não tenho como concordar com essas escolas", diz deputada Andréa Werner (GGN)

Tarcísio disse que deseja implantar pelo menos 100 escolas com viés militar. Avalia que esse tipo de estabelecimento agrega ao ensino "civismo, brasilidade e disciplina". O governador senta praça no bolsonarismo fingindo não notar que esse tipo de pedagogia deu na intentona do 8 de janeiro.

Pela proposta de Tarcísio, policiais militares da reserva que atuarem nas novas escolas receberão adicional de R$ 6.034 —cifra 13% mais alta do que o piso dos professores. Há duas semanas, ao lançar programa de incentivo à alfabetização, Tarcísio disse: "Professor não tem o melhor salário, mas tem muito amor." Um líder sindical não construiria cenário tão propício para uma greve.

As escolas cívico-militares serão tocadas por duas secretarias: a de Educação e a de Segurança Pública. Manda na Educação Renato Feder. Sua iniciativa mais relevante foi desistir da ideia de tirar São Paulo do programa de livros didáticos do MEC. Dá as cartas na Segurança o capitão Guilherme Derrite, ideólogo da estratégia da matança implementada pela PM na Baixada Santista.

Tarcísio ecoa no Palácio dos Bandeirantes os mesmos ruídos que Bolsonaro produzia no Planalto. Demora a perceber que o tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro. O oco resultou na derrota do mito em 2022.

Leia também: # Ensino obscurantista (Folha)

Homenagem do Sindicato das Professoras e dos Professores de São Paulo

Dia Internacional das Mulheres

Sandra Caballero, diretora do SinproSP: O 8 de março e a luta das mulheres brasileiras, por (expandir)


# Leia ainda: Judith Butler: "Quem tem medo do gênero?" (Outras Palavras)

Ninguém, minimamente consciente, nega que o Brasil é um país extremamente machista. E as raízes desse machismo estão na nossa história colonial.

A maioria dos colonos portugueses que aqui chegaram eram do sexo masculino. Com poucas mulheres brancas à disposição, se relacionavam com indígenas e africanas que, na condição de escravizadas, não tinham escolha, nem autonomia sobre os próprios corpos. Sendo assim, a miscigenação brasileira é fruto da violência sexual. Não por acaso, estamos entre os países mais perigosos para uma mulher viver, e as maiores vítimas continuam sendo as mulheres negras. O Brasil, atualmente, ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH)

As mulheres brancas chegavam ao Brasil já com o casamento arranjado, muitas se casavam por procuração, outras eram oriundas de orfanatos e, ao atingir a maioridade, eram enviadas ao Brasil para se casarem com um desconhecido. O papel dessas mulheres era o de esposa e mãe; se tinham um status superior às mestiças, indígenas e africanas, também eram vítimas de uma estrutura machista. Sobre as meninas órfãs, vale a pena ler o romance de Ana Miranda, Desmundo, que virou filme em 2002.

É claro que, ao longo da história, mulheres romperam o cerco e tiveram participação ativa. O caso de nossa independência é simbólico, a imperatriz Leopoldina, a filha de fazendeiro, Maria Quitéria, a madre Joana Angélica e a liberta Maria Felipa, tiveram um papel destacado.

No século XIX, surgem os primeiros grupos de defesa dos direitos das brasileiras, graças à chegada de imigrantes que trouxeram consigo as ideias anarquistas e comunistas; assim, as operárias introduziram suas pautas de reivindicações no bojo da organização da luta operária, na incipiente indústria local. Mas é preciso lembrar que o machismo está presente também na classe trabalhadora. Vários operários concordavam com o fato de mulheres receberem salários menores que os homens. E, ainda hoje, a luta por creches é tratada como questão feminina.

No início do século XX, há uma divisão do movimento feminista, surgindo uma corrente mais conservadora, chamada de feminismo “bem-comportado”, formada por mulheres das camadas médias, que buscavam direitos políticos, sem questionar a sociedade capitalista e suas estruturas de exploração. De outro lado, um feminismo mais radical, que buscava inspiração nas ideias revolucionárias de esquerda e fazia uma crítica ao sistema. 

Os diferentes feminismos são perceptíveis ainda hoje, com as denominações de liberal, identitário ou revolucionário, entre outras. Trata-se de um reflexo das diferentes demandas de uma sociedade extremamente injusta como a nossa. Essa situação provoca algumas incoerências, como a de mulheres de elite ou camadas médias que reivindicam igualdade de direitos, mas exploram a mão-de-obra de empregadas domésticas ou de trabalhadores em suas empresas.

Fazendo um pequeno histórico das conquistas das mulheres brasileiras, em 1827, as meninas ganham a permissão de frequentar escolas. Aqui, vale lembrar que são meninas de elite, afinal a escola pública só irá ganhar corpo a partir de 1930, com a subida de Getúlio Vargas ao poder. Segundo o censo de 1872, 69% da população era de analfabetos.

Em 1832, a autora Nísia Floresta publica o livro “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens”, considerado um marco do feminismo brasileiro, que contesta a superioridade masculina e defende as mulheres como seres inteligentes e capazes de uma vida autônoma.

Pode parecer algo absurdo, mas temos que lembrar que as mulheres, nesse período, eram consideradas incapazes e totalmente submissas aos homens, que usavam da dependência financeira como uma forma de controle. Afinal, a mulher não tinha direito à herança e só poderia trabalhar com autorização do pai, marido ou responsável.

Em 1879, as mulheres obtêm o direito de frequentar a universidade, mas, se hoje somos 51% nos cursos de graduação e 56%, na pós-graduação, esse foi um caminho lento, a permissão da lei não mudou o machismo estrutural e as barreiras invisíveis ainda tinham que ser derrubadas. Hoje, o nosso desafio é acabar com o senso comum de que existem profissões femininas e masculinas. Por exemplo, nos cursos de TI, as mulheres são apenas 16%; já nos de Pedagogia, a presença feminina chega a 90%.

Em 1920, nasceu o primeiro partido de mulheres, o Partido Republicano Feminino, que representava o movimento sufragista que se espalhava pelo mundo. O direito ao voto, em todo o Brasil, viria em 1932, antes de países como França, Suíça e Japão. No entanto, em 2024, a participação de mulheres na Câmara de Deputados é de 17,7%, e apenas 16% no Senado.

Em 1962, foi criado o Estatuto da Mulher Casada, que deu às mulheres o direito à herança e a pleitear a guarda dos filhos em caso de separação, além disso, não era mais necessário a autorização masculina para obter um emprego.

Nos anos 60, a pílula anticoncepcional chega ao Brasil, o que vai impactar a vida sexual das mulheres. Lembrando que, nessa década, a grande bandeira do movimento feminista era a liberdade sexual e o direito à reprodução consciente. A mulher começa a ter o controle sobre o seu corpo e sua sexualidade.

Em 1974, mais um passo em direção à autonomia financeira: a mulher ganha o direito de portar um cartão de crédito. É sempre bom lembrar o quanto o poder econômico é usado para manter uma relação de controle sobre as mulheres, não existe liberdade possível sem a possibilidade de sobreviver sem a tutela masculina.

Em 1941, o presidente Vargas, em cujo governo as mulheres adquiriam o direito ao voto, havia proibido a prática de uma série de esportes, entre eles o futebol. É dele a frase, “Pé de mulher não foi feito pra se meter em chuteiras!”. A lei só é revogada em 1979. Mas, as mulheres sempre desafiaram esse decreto absurdo, praticavam vários esportes e ocupavam os campos de várzea em todo o país. Hoje, temos a Marta, a melhor jogadora de todos os tempos.

Finalmente, a Constituição de 1988 passa a reconhecer a igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas sabemos que entre o que diz a lei e a realidade, há um abismo.

Entre tantas outras questões, talvez a mais urgente seja o enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil. Não ficarei citando dados, eles são de domínio público, e podemos falar, sem medo de errar, em uma epidemia. Atento a isso, o SinproSP lançou, e disponibiliza para toda a sociedade, a cartilha “Violência Contra a Mulher – Conhecer para Combater”.

Algumas leis tentam enfrentar esse quadro trágico, mas acima de tudo, temos que mudar as estruturas de uma sociedade que se fundou no machismo, racismo, homofobia e classismo, em que a garantia do poder branco e masculino se deu com o amplo uso da violência, muitas vezes institucional.

Para lembrar algumas vitórias: em 2006 é sancionada a Lei Maria da Penha; em 2015, a Lei do Feminicídio; e em 2018, a importunação sexual feminina passou a ser crime.

Talvez, o ponto mais importante desse artigo é o de mostrar que as conquistas foram frutos da luta e sacrifício de muitas mulheres, nenhuma lei ou mudança comportamental ocorre por concessão masculina, mas da articulação feminina na defesa de seus interesses. Por isso, é preciso fortalecer esse processo, que está vinculado à luta contra o racismo, contra a homofobia, contra o trabalho precário; em última instância, contra o capitalismo.

Os homens também precisam se juntar a esse movimento, não como protagonistas, mas entendendo que uma sociedade mais justa e igualitária é uma construção coletiva, da qual todos se beneficiam.

Para saber sobre a história do 8 de março
https://sinprosp.org.br/noticias/5069
Para acessar a Cartilha Violência Contra a Mulher
https://www.sinprosp.org.br/upl/arq/cartilha%20viole%CC%82ncia%20contra%20mulher_SINPROSP.pdf
Fontes:
https://nossacausa.com/conquistas-do-feminismo-no-brasil/
https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2023/07/02/infografico-mostra-evolucao-do-brasil-desde-o-primeiro-censo-em-1872.ghtml
https://comunica.ufu.br/noticias/2024/02/mulheres-sao-maioria-na-universidade-mas-minoria-em-gestao-e-docencia-superior
https://sagresonline.com.br/no-brasil-mulheres-representam-apenas-165-dos-estudantes-em-cursos-de-ti/#
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/03/presenca-de-mulheres-no-congresso-brasileiro-e-inferior-a-media-mundial.htm#:.

Leia ainda: # Judith Butler: "Quem tem medo do gênero?" (Outras Palavras)

Educação será a arena prioritária na guerra cultural bolsonarista

Daniel Cara acredita que o pânico moral é um dos instrumentos da extrema direita no Brasil e no mundo (247)

A escolha do PL de indicar Nikolas Ferreira para a presidência da Comissão de Educação fortalece e reitera uma estratégia já conhecida: a área será arena prioritária da guerra cultural bolsonarista em um ano eleitoral.

Isso já ocorre no Brasil desde 2014, mas ocorre também nos EUA (com o trumpismo), desde 2021. O principal instrumento de ambos é o pânico moral de extrema direita. Por isso, a Educação deve ser sempre prioridade na agenda política: ela é o espaço privilegiado para o debate sobre o projeto e os valores da sociedade.

Barbárie - manual do usuário para o século XXI

O capitalismo se embriaga em intervalos regulares com enormes doses de barbárie

José Raimundo Trindade, A Terra é redonda (expandir)

1.

O irrequieto historiador marxista Eric Hobsbawm nos alertou ainda no início dos anos 1990 que o capitalismo se embriagava em intervalos regulares com enormes doses de barbárie. Conforme essa desordem sistêmica mais envelhece, mais as formas grotescas e duras de desumanidade se tornam parte do humor existencial do capital, sendo naturalizado as diversas formas de violência, truculência e tortura.[i]

Eric Hobsbawm escreve o “Manual do Usuário” da barbárie refletindo nosso velho desconhecido século XX, um tempo fragmentado e de várias formas de morticínios e crueldades, mas também de temperanças e reconstruções. As barbáries se projetam, isso é verdade, ao longo da história dessa espécie cavernosa, mas em grande medida cordial. A humanidade se embaralha entre o taciturno “Minotauro” e o inconfundível apaixonado “Quixote”, sendo a barbárie um eterno personagem presente na linha do tempo dessa espécie.

A barbárie pode ser tratada em diferentes episódios, sendo que a história reflete, segundo nosso historiador, sete episódios chaves de barbarismo no insolúvel século XX. Ainda no início dos XX tivemos os acordes repetitivos das matracas da I Guerra Mundial, algo marcado pelo cheiro podre das “trincheiras” e pelo uso das bombas de “fósforo branco” sobre populações civis. Ali começava uma forma de guerra que se repetirá em graus crescentes, até o morticínio indescritível das bombas nucleares em Hiroshima e Nagazaki em 1945.

Mas ainda nos anos iniciais viveríamos dois episódios canhestros: o uso das forças econômicas do capital enquanto energia tanática para desfazer povos e sociedades, como diria Keynes, um arauto inquestionável do poder do capital, segundo o qual o tratado de Versalhes produzirá a Alemanha genocida de uma década posterior.[ii] A segunda forma será a crença na ciência da guerra como única solução para os conflitos humanos, assim a “Liga das Nações” nasce morta no início dos anos 1920.

Os episódios posteriores conhecidos são de universal conhecimento: a violenta II Guerra e seus mais de sessenta milhões de mortos; o holocausto judeu e os massacres europeus. Diga-se a Europa constitui o centro da Barbárie histórica, longe de qualquer orgulho os europeus e seus subprodutos de poder cultural e, agora centros do poder imperial econômico (EUA, Canadá, Austrália, Israel), são os maiores produtores da mais refinada barbárie.

O poder imperial estadunidense mostra suas garras de barbárie em vários momentos: se inaugura nas bombas atômicas, nas bombas de napalm no Vietnam, na crueza da tortura ensinada as ditaduras latino-americanas e, por fim, seu traço mais moderno o uso dos bloqueios econômicos e da lógica fiscal esmagando, como um torniquete de um torturador, as sociedades e os orçamentos estatais das sociedades subjugadas, sejam latino-americanas, africanas ou asiáticas e, no último período dos XX e já nos XXI, as sociedades europeias subdesenvolvidas.

Os episódios de barbárie já no novo século são tão variados que parecem uma continuação do período anterior. Neste aspecto específico não há um novo século existencial e, sim, uma continuidade complexa, em grande medida enredada em crescentes incertezas, diga-se, para se utilizar palavras do próprio Eric Hobsbawm (2012) que, ao se encerrar o livro Breve século XX: “(…) os cidadãos do fin-de-siécle só sabiam ao certo que acabara uma era da história [porém] faltava ao mundo (…) qualquer sistema ou estrutura internacional”, algo que somente se aprofundou nas três décadas do atual século de incertezas, mas as novas faces da barbárie somente se expuseram conforme se aprofundou a crise do capitalismo e de sua forma de regime rentista, o neoliberalismo.

2.

O que seria central para ver o rancor bárbaro dos últimos anos: infalível a perda de poder imperial e a chacina do povo iraquiano. Tivemos mais de um milhão de iraquianos mortos e outros milhões subjugados ao discurso libertário estadunidense. O império então se organizou nos últimos anos em torno de tentativas de resolver limites comerciais e produtivos. Isso, parecia, uma solução do terrorismo de poder, especialmente estadunidense.

A última fórmula barbárica nos veio de uma realidade histórica herdada da “era da catástrofe”: a Palestina! A barbárie assume alguns contornos novos neste episódio de inauguração da irracionalidade no século XXI.[iii] Faz alguns meses que o massacre israelense ocorre na Palestina, temos um novo Holocausto, sendo que o massacre de um povo, morte dia a dia de crianças e fetos constrói esse enésimo episódio da barbárie. O manual da barbárie parece ser uma aprendizagem contínua de violência e desumanização. São quatro novos componentes de barbárie que se acrescem as formas já descritas e expostas por Eric Hobsbawm, vamos vê-las neste último teatro de morte completa que acompanhamos dia a dia.

(i) A barbárie em tempo real. As tecnologias de transmissão de informações on-line permitiram a humanidade assistir, pela primeira vez, a desumanização de uma população e a justificação da violência cometida contra crianças, adolescentes e mulheres. Quando de “Buchenwald” ou “Auschwitz” parcela considerável da humanidade somente tomou conhecimento da cólera genocida anos após, pela obviedade dos limites comunicacionais. Muito diferente hoje se observa, a matança e a crueldade que se observa em Gaza é secamente assistido por bilhões e parcela considerável dos europeus e estadunidenses fazem gestos de que não são eles que estão por trás de Israel e, no caso brasileiro, assistimos escandalizados os velhos veículos de comunicação, Rede Globo em especial, se rejubilar com os interesses sionistas. A barbárie se torna um “meme” a ganhar “likes”!

(ii) A espoliação acordada. Ao longo da história as diversas modalidades de genocídio perpetrado tiveram de algum modo uma lógica econômica por detrás. Assim, desde o massacre dos indígenas brasileiros, estadunidenses, passando pelos horrores da escravidão africana, o massacre no Congo e os exemplos históricos se multiplicariam, em todos os casos temos a lógica da “acumulação por espoliação”, uma forma de acumulação primitiva se observando. O que se tem de novo no caso palestino é que isso se dá com o acordo das organizações internacionais.

A ONU (Organização das Nações Unidas) feriu de morte já no nascedouro qualquer lógica do direito internacional, estabelecendo a permissividade da espoliação do povo palestino, isso como uma forma de redenção do genocídio judeu cometido pelos europeus (alemães). Curiosamente agora os alemães lavam as mãos como Poncio Pilatos e dizem que nada tem a ver com o massacre perpetrado pelos novos “açougueiros de Gaza”.

(iii) A institucionalização internacional do Estado terrorista. O estabelecimento de uma barbárie organizada pelo Estado não é um fenômeno novo, sendo que ao longo do século XX e em episódios já no século XXI diversos poderes estatais organizaram a violência contra povos e grupos sociais diversos. No caso brasileiro as referências são diversas, desde Canudos, passando pelos massacres as populações negras e indígenas, chegando até as atuais carnificinas do Jacarezinho e da baixada santista[iv]. No caso presente do genocídio de Gaza, temos um poder estatal apoiado internacionalmente para massacrar uma população totalmente desarmada e com mínima capacidade de reação.

O terrorismo de Israel se dá de três formas inovadoras de carnificina: (a) o uso da força militar desproporcional e destruição das gerações futuras, na forma do assassínio de crianças e mulheres[v]; (b) o uso da fome como mecanismo de eliminação da população, inclusive a profundando a ideia de desumanização do povo palestino[vi] e; (c) o apagamento da violência através da eliminação de organizações de direitos humanos, de jornalistas e as instituições de atendimento médico.

(iv) A barbárie justificada pela barbárie passada. Temos aqui uma novidade grotesca, em que a justificativa da violência e do barbarismo se dá com o recurso retórico da proteção de uma população que sofreu genocídio em um período histórico anterior, episódio da “Era da catástrofe”. Assim, o abuso da lógica de “antissemitismo” se tornou um fator justificador na imprensa sob controle dos interesses sionistas a encobrir a destruição de uma população no atual ciclo histórico via sensibilização da violência ocorrida no ciclo histórico anterior.

Podemos ao encerrar esse nosso “Manual da Barbárie 2.1” retornando ao texto original de Eric Hobsbawm que nos lembra que barbárie é “um subproduto da vida em determinado contexto social e histórico, algo que vem com o território” sendo que esteve em “crescimento na maior parte do século XX, e não há nenhum indício que esse crescimento esteja no fim”. O genocídio Palestino parece nos mostrar que os capítulos de barbárie do século XXI não serão menores do que os vividos na “Era dos extremos”.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referências

 Eric Hobsbawm. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Eric Hobsbawm. “Barbárie: Manual do usuário”. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

J. M. Keynes. As consequências econômicas da paz. Brasília: editora Universidade de Brasília, 2002.

Notas


[i] Eric Hobsbawm. “Barbárie: Manual do usuário”. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

[ii] J. M. Keynes. As consequências econômicas da paz. Brasília: editora Universidade de Brasília, 2002.

[iii] Hobsbawm (2012) observa que a “civilização recuou entre o Tratado de Versalhes e a queda da bomba sobre Hiroshima”, sendo que a irracionalidade do nazismo constitui um novo patamar de “avanço da barbárie no Ocidente”. O referido autor divide o “Breve Século XX” ou “Era dos Extremos” em três períodos não necessariamente lineares: “A Era da catástrofe”, de onde decorre o atual morticínio palestino; “A Era de ouro”, um interregno breve de estabilidade capitalista, mas sempre integrado ao sentido maior da “Guerra Fria” e, por fim, “O Desmoronamento”, uma era de crise que, por assim podemos afirmar, pariu a atual era de incertezas.

[iv] Conferir artigo publicado no site A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/de-canudos-a-jacarezinho/

[v] Mais de 25 mil crianças e mulheres foram mortas em Gaza (https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/mais-de-25-mil-mulheres-e-criancas-morreram-em-gaza-desde-outubro-diz-chefe-do-pentagono/), o que ilustra o quanto o “progresso” da barbárie se relaciona, neste caso, ao extermínio de gerações futuras e ao modelo de acumulação por espoliação, como mostramos em texto publicado no site A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/a-crise-do-imperativo-imperialista/.

[vi] Francisco Ladeira nos lembra em texto recente publicado no no site A Terra é Redonda (https://aterraeredonda.com.br/massacre-da-farinha/) que “o Jornal Nacional e o portal G1 – utilizaram os eufemismos “tumulto” e “confusão” para noticiar o massacre promovido por Israel, que vitimou cerca de cem palestinos que aguardavam pela entrega de ajuda humanitária em Gaza”. O quadro descrito do já apelidado “massacre da farinha” compõe o exemplo mais tenebroso da escalada da barbárie no genocídio palestino.

Outros artigos de José Raimundo Trindade


O projeto das elites para o Brasil: modernidade sim,  direitos não

A lógica é a mesma da Revolução Industrial do século XVIII: os custos do crescimento econômico e  da inovação técnica e operacional que eles provocam têm que ser pagos pelo trabalho - a verdadeira fonte da acumulação capitalista. É o argumento das elites para se contrapor à regulação da atividade supostamente empreendedora dos profissionais precarizados dos aplicativos. E é também o mesmo argumento enrustido no nivelamento positivista das raças, que lhes nega o acesso à educação - mesmo que sua condição social, esta sim, determine o contrário. Se alguém quer entender como esse malabarismo ideológico consegue se desenvolver, sugiro a leitura dos dois editoriais da Folha de S.Paulo transcritos nesta postagem (expandir


Leia também # Folha ignora evidências favoráveis às cotas raciais (Natália Carneiro, Folha)

O primeiro editorial: Regulação é risco par serviço de aplicativo


O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem desde seu início o afã de regular o trabalho de transporte por aplicativos, no que infelizmente se mostra movido por uma visão sindicalista do século passado e pelo ímpeto polarizador dos anos recentes da política nacional.

Manifestações sobre o tema foram contaminadas por hostilidade despropositada contra as empresas do setor. No ano passado, o ministro Luiz Marinho, do Trabalho, disse que a Uber poderia ser substituída pelos Correios, se deixasse o país. Nesta semana, Lula prometeu "encher tanto o saco que o IFood vai ter de negociar".

O mandatário cometeu a diatribe durante cerimônia de lançamento do projeto de lei complementar enfim apresentado sobre o tema, resultado de discussões que transcorreram nos últimos meses sem chegar a um consenso —tanto que a atividade dos entregadores ficou fora do texto, limitado ao transporte de passageiros.

A negociação teve o mérito de tirar da mesa algumas das ideias mais problemáticas, em especial a contratação de motoristas pela CLT. Pela proposta, os profissionais serão reconhecidos como autônomos. Fixam-se também contribuição ao INSS, remuneração mínima e limitação da jornada.

Está-se diante de um serviço inovador, proporcionado por vertiginosos avanços da tecnologia e cujo sucesso depende da flexibilidade para contratações, horários e tarifas. A regulação, portanto, é desafiadora em todo o mundo.

No Brasil, o IBGE calculou haver 1,5 milhão de pessoas trabalhando por meio de aplicativos e plataformas digitais ao final de 2022, o correspondente a 1,7% da população ocupada no setor privado. Desse grupo, pouco mais da metade (52,2%) transportava passageiros, 39,5% eram entregadores e 13,2% prestavam outros serviços.

Apenas 35,7% deles contribuíam para a Previdência Social, o que de fato é motivo de preocupação. A mazela da informalidade, no entanto, é muito mais ampla no mercado de trabalho brasileiro.

No cálculo político, o contingente dos motoristas é frequentemente listado como uma das bases do bolsonarismo, o que tende a aguçar as resistências ao projeto governista no Congresso.

O debate precisa avançar com mais estudos e avaliações técnicas, sem açodamento nem bandeiras ideológicas. O processo de modernização da legislação trabalhista deve prosseguir de modo a proporcionar a formalização em condições realistas.

O segundo editorial: Cotas sociais não raciais


Dois estudantes que se declararam pardos para concorrer a uma vaga na USP e passaram no processo seletivo tiveram suas matrículas negadas. A comissão de avaliação racial da universidade considerou que eles não apresentavam características fenotípicas compatíveis com a classificação.

A questão das matrículas foi parar na Justiça, e a polêmica se instalou. O reitor da USP, Carlos Carlotti Junior, promete "corrigir e aprimorar" o processo de seleção pelo sistema de cotas raciais.

É bem-vindo o empenho da USP para evitar injustiças, mas é fato que elas se repetirão —neste ano, a universidade recebeu 204 recursos de candidatos que tiveram a matrícula negada pela banca avaliadora.

O problema é que não há critérios objetivos e coerentes para diferenciar pardos de brancos, ou outras categorias baseadas em fenótipos só vagamente definidos.

Não é por outra razão que o IBGE e a própria legislação de cotas operam com o conceito de autodeclaração (cada um é o que diz ser).

Entretanto quando o STF, ao atender uma demanda do movimento negro, admitiu também a heteroidentificação, abriram-se as portas para o imbróglio.

Assim, a autodeclaração se tornou passível de revisão por comissões, cujos juízos não passam de somatória de impressões pessoais.

Tais comitês até podem funcionar como desestímulo àqueles que se declaram pardos só para usufruir das vantagens das cotas, mas não evitam injustiças.

Esse parece ser o caso dos candidatos da USP, que os julgou apenas por fotos e vídeo. Ambos estudaram em escola pública e vêm de famílias miscigenadas.

Da forma como o sistema está desenhado, essa é uma aporia irremediável. Quaisquer decisões tomadas por bancas estarão envoltas pelo manto da subjetividade.

A precariedade das categorias é uma das razões pelas quais esta Folha defende que o sistema de cotas nas universidades, que combina critérios sociais com raciais, funcione apenas pelos sociais, que são objetivos e mensuráveis.

A renda familiar tem expressão em números, não em ideias discutíveis sobre o que constitui raça. Em termos demográficos, favorecer os mais pobres já significa contemplar negros e pardos, dado que as privações econômicas são o mais saliente e o mais perverso dos efeitos do racismo.

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Leituras da 4a feira

Ricardo Nunes, com essa aparência concentrada ao lado dos padrinhos que fazem dele o que bem entendem, 'virou' prefeito graças às articulações políticas de Bruno Covas. Hoje, disponível para locação, sonha em permanecer no cargo, mas as denúncias que o envolvem podem levar à cassação de sua candidatura. Tomara!

# Cartas marcadas na Prefeitura. Podcast com José Roberto de Toledo (Uol)

Mar de lama na prefeitura de SP: Nunes gasta dinheiro com empresas 'fantasmas'

Duas empreiteiras familiares — a DB Construções e a Tirante Construções —, que têm como sede um imóvel vazio na zona norte de São Paulo, assinaram contratos emergenciais de R$ 92,5 milhões com a Prefeitura de São Paulo para executar obras emergenciais entre 2021 e 2023. As construtoras foram constituídas por membros das mesmas famílias, a Dutra Rodrigues e a Duque Buono. Juntas, têm capital social somado de R$ 3,5 milhões. Não há registro de contratos vultosos entre o município e as duas empreiteiras anteriores a 2021

Pedro Canário, Thiago Herdy e Rafael Neves, Uol (expandir

Reportagem publicada pelo UOL na segunda-feira (4) identificou indícios de combinação entre empresas convidadas para 223 dos 307 contratações, pela gestão Ricardo Nunes (MDB), para obras emergenciais entre 2021 e 2023. Os valores com indícios de combinação somam R$ 4,3 bilhões, ou 87% do total contratado emergencialmente para obras no período. A Prefeitura nega irregularidades e diz que o UOL faz "ilações".

A DB e a Tirante estão registradas no mesmo endereço, na Vila Fachini, zona norte de São Paulo. A reportagem do UOL visitou o local, uma área residencial, e não encontrou uma empresa no endereço: encontrou um espaço desocupado, fechado por um portão de ferro, mas com as portas e janelas internas abertas.

O interfone havia sido arrancado da parede, e ninguém atendeu aos chamados na porta.

Histórico

A DB Construções é a mais antiga das duas. Foi aberta em março de 1999 por Roberto Octavio Dutra Rodrigues Neto e por João Marcos Duque Buono, com capital social de R$ 40 mil. Em agosto, aumentou o capital para R$ 100 mil.

Em 2006, a DB registrou R$ 1 milhão de capital social. Em 2011, chegou aos R$ 2,5 milhões de capital que têm até hoje no cadastro da Receita Federal.

Em 2006, houve outra grande mudança: João Marcos Duque Buono deixou a sociedade e vendeu suas quotas para a irmã Luciana.

Já a Tirante foi aberta em 2012 por Iracema Barros Ferraz Dutra Rodrigues, mãe de Roberto Rodrigues Neto, e por Ivanise Duque Buono, mãe de Luciana e João Marcos Duque Buono.

A empresa já nasceu com o capital que tem hoje: R$ 1 milhão. Mas em janeiro de 2013, as sócias outorgaram procurações gerenciais a Luciana e a Roberto Octavio Dutra Rodrigues Filho, pai de Roberto Rodrigues Neto.

Quatro anos depois, as sócias passaram uma quota cada uma a Luciana e a Roberto Neto, Os dois se tornaram, então, sócios da Tirante e da DB ao mesmo tempo, transformando as empresas num grupo econômico.

O UOL tentou contato com os sócios da empresa, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Houve tentativas de contatos por telefone e por escrito, e até visitas a imóveis registrados pelos sócios como residências, mas sem sucesso… 

No caso de Roberto Rodrigues Neto, a casa registrada como residência está fechada e a construção de um prédio residencial no terreno - a cargo de uma empreiteira dele - já foi anunciada. Depois dos insucessos em obter contato por telefone e presencialmente, a reportagem conseguiu contato com a irmã de Roberto Rodrigues Neto através de um taxista que costuma atender a família e enviou perguntas ao executivo. Não houve retorno.

Roberto Rodrigues Filho era dono da empreiteira PEC - Planejamento, Engenharia e Construções. A companhia foi aberta no início dos anos 1990 e encerrada em 1998, em meio a uma disputa judicial com a prefeitura de Suzano, município na região metropolitana de São Paulo.

Em 1998, o município ajuizou uma ação por danos materiais contra a companhia por causa da construção de duas praças. Segundo a petição inicial, que foi consultada pelo UOL, a PEC fez as duas obras em 1994 e em 1995, mas, menos de dois anos depois, as praças já estavam deterioradas.

O pedido era para que a empresa restituísse a prefeitura em R$ 120 mil e pagasse mais 10% de danos morais. Em maio de 2007, a Justiça de São Paulo condenou a construtora a reembolsar Suzano em R$ 158,5 mil, mais os 10% de danos morais.

Só que a decisão nunca foi executada. Como a PEC foi encerrada em 1998, os oficiais de Justiça não conseguiram intimar ninguém nos endereços registrados da companhia e nunca encontrou os sócios - estiveram na sede sede da DB Construções, onde foram informados que Roberto Rodrigues Filho era pai de Roberto Rodrigues Neto, mas que o filho não sabia onde o oficial poderia encontrar o pai.

Em 2011, o caso trocou de juiz e o novo magistrado determinou a desconsideração da personalidade jurídica da PEC - os sócios, e não mais a empresa, passariam a responder com seu patrimônio pessoal pela dívida.

"A executada [PEC] não foi localizada em seu endereço, quando das diversas tentativas de citação para a execução", escreveu o juiz Daniel Fabretti, em despacho de julho de 2011.

"Não foram também localizados bens móveis da empresa, que, ao que tudo indica, sequer possui uma sede de fato. Assim, verifica-se que a executada simplesmente fechou o estabelecimento e levou embora todos os bens."

Sem que os devedores tivessem sido ao menos citados, o caso foi arquivado em junho de 2023 sem que a dívida fosse executada. Desde a desconsideração da personalidade jurídica até o último arquivamento (que tem prazo de um ano), foram cinco tentativas de execução, todas sem sucesso.

Autonomia do Banco Central

Todo poder ao financismo?

Faria Lima planeja nova investida para capturar o Banco Central: uma PEC que o desvincula totalmente do Executivo. Cúpula da autarquia, influenciada pelo rentismo, teria controle de um orçamento trilionário. Governo ainda hesita diante desse risco

Paulo Kliass, Outras Palavras (expandir)

Não existem muitas dúvidas de que a economia e a sociedade brasileiras sempre foram consideradas como o paraíso para o sistema financeiro. Seja para os operadores do oligopólio privado da banca que atuam aqui dentro do país, seja para as empresas e para os conglomerados do universo financeiro global. O fato é que são poucas as nações no mundo que oferecem a essa camada de hiper-privilegiados um tratamento assim tão generoso e benevolente. A esfera da política monetária é um dos espaços de maior predileção desse povo. Ali sempre estiveram acostumados a nadar de braçadas, sem nenhum tipo de pudor por se apropriar de forma escandalosa e inescrupulosa dos recursos do conjunto da sociedade.

A criação do Banco Central ocorreu exatamente nove meses após o golpe militar de 1964. No dia 31 de dezembro daquele ano, foi aprovada a Lei nº 4.595, que estabelecia as regras e as definições do sistema monetário, creditício e financeiro. A nova legislação criava novas figuras jurídicas e institucionais bem importantes, a exemplo do Conselho Monetário Nacional e o Banco Central (BC). A sincronicidade histórica é que o texto, à época, vinha assinado pelo então ministro do Planejamento do governo dos generais golpistas, o economista Roberto Campos. Pois agora, quase seis décadas mais tarde, seu neto é o atual presidente do BC e o pupilo pretende implementar uma reforma ainda mais profunda do que aquela que seu avô realizou.

A inovação proporcionada pela proposta do avô de Roberto Campos Neto criou o BC como autarquia federal, subordinada ao Ministério da Fazenda. Seus diretores seriam escolhidos dentre os integrantes do Conselho Monetário Nacional (CMN), todos eles nomeados pelo presidente da República. O novo órgão substituiria a antiga Superintendência da Moeda e do Crédito (a “poderosa” Sumoc, vinculada ao Banco do Brasil), órgão federal que cumpria até então com as funções de gestão das contas públicas (que viria a ser posteriormente o Tesouro Nacional) e também com a missão de autoridade monetária.

Histórico do BC: autonomia relativa

Em 1988, como coroamento do processo de superação da ditadura militar e do entulho autoritário, a Constituição Federal determinou que o presidente e os diretores do BC deveriam ser sabatinados e aprovados pelo Senado Federal, em etapa prévia à nomeação dos mesmos pelo presidente da República para tais funções. Porém, o dispositivo mantinha a noção republicana de que a legitimidade para a condução da política monetária deveria ser resguardada junto ao Chefe do Executivo, escolhido pela população para o seu mandato à frente do governo federal.

Apesar de toda essa evolução jurídico-institucional, o fato concreto é que o BC esteve quase o tempo todo de sua existência atendendo aos interesses da banca privada. Em alguns momentos, o presidente era um banqueiro de fato. Em outros, sua direção era composta de representantes da nata do financismo ou por profissionais absolutamente comprometidos com a defesa dos interesses do sistema financeiro. Um dos casos mais emblemáticos foi a gestão de Henrique Meirelles à frente do órgão. Ex-presidente internacional do Bank of Boston, um dos maiores credores da dívida externa brasileira, ele havia sido eleito deputado federal pelo PSDB em 2002. Pois o banqueiro recém-aposentado abriu mão do mandato legislativo para ser presidente do BC nomeado por Lula. Para tanto, exigiu uma importante mudança no ordenamento institucional e Lula preparou uma Medida Provisória para atender a tal demanda. O receio de Meirelles era ser preso, como havia ocorrido com alguns dirigentes do BC no passado. Assim, o cargo passou a ser equiparado ao de ministro de Estado, para ter direito ao foro privilegiado na Justiça. Mas isso criou um monstrengo jurídico, pois tratava-se de um ministro de Estado subordinado a outro ministro, no caso o da Fazenda.

Bolsonaro, Guedes e Campos Neto: quase independência

Durante o mandato de Bolsonaro e Paulo Guedes, o financismo logrou um outro “avanço” no processo de conferir uma quase independência do BC. O governo da época apoiou e o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar nº 179/2021. Pela medida, os dirigentes da instituição passariam a contar com um mandato fixo de quatro anos, em condições de quase inamovibilidade. Assim, as regras da democracia representativa e os princípios do republicanismo foram para o espaço. Na verdade, era uma preparação do sistema financeiro para um eventual retorno de Lula ao governo. Pela nova lei, os nove integrantes da diretoria indicados por Bolsonaro não puderam ser substituídos por Lula. Apesar da legitimidade política e eleitoral conferida pelas urnas, um componente fundamental da política econômica continuou em mãos de bolsonaristas, ortodoxos e neoliberais vinculado à banca privada.

Os dispositivos da quase independência reduziram bastante a capacidade de Lula definir a política monetária. O novo presidente da República só terá conseguido indicar a maioria dos membros do banco no final de dezembro próximo, quando termina o mandato de Roberto Campos Neto. Uma loucura! A direção do BC pratica uma verdadeira chantagem contra as promessas do novo governo quanto à retomada da trilha do desenvolvimento e do apoio ao setor real da economia. A Selic muito elevada e as taxas reais de juros nas alturas seguem inviabilizando o empreendimento gerador de produção, renda e de emprego. O Brasil permanece como o paraíso do parasitismo financista.

PEC 65 e a independência plena

No entanto, ainda assim, o oligopólio da banca privada não se dá por satisfeito. Sempre quer mais, e mais, e mais. Agora, prepararam uma alteração na Constituição. Foi elaborada a PEC 65/2023, que tem por objetivo estabelecer no texto constitucional a efetiva independência do BC. O texto foi elaborado por encomenda do financismo, mas foi protocolado oficialmente por 42 integrantes do Senado Federal. Ou seja, mais de 50% dos 81 parlamentares da câmara alta se apresentaram como participantes de uma chamada “autoria coletiva”. O trabalho de lobby foi muito bem feito e a lista contém nomes que vão desde a extrema direita (Flávio Bolsonaro, Damares Alves, Marcos Pontes, Hamilton Mourão e Sérgio Moro, por exemplo) até outros ligados ao MDB e até o PSB.

A matéria acrescenta novos parágrafos ao art. 164 da Constituição, que trata da ordem monetária. A intenção é converter o BC em um espaço do Estado que seja de fato independente do Executivo e fora do controle do Legislativo e do Judiciário. Uma jabuticaba de usufruto exclusivo do capital financeiro.

(…) “Art. 164. ……………………………………………………………………….

§ 4º O Banco Central é instituição de natureza especial com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira, organizada sob a forma de empresa pública e dotada de poder de polícia, incluindo poderes de regulação, supervisão e resolução, na forma da lei.

§ 5º A vedação do inciso VI, “a”, do art. 150 é extensiva ao Banco Central, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.

§ 6º Lei complementar, cuja iniciativa observará o disposto no caput do art. 61, disporá sobre os objetivos, a estrutura e a organização do Banco Central, asseguradas:

I – a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial, sob supervisão do Congresso Nacional;

II – a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica.

§ 7º A fiscalização contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial do Banco Central, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, e pelo sistema de controle interno do Banco Central.

§ 8º A lei disporá sobre o relacionamento financeiro entre o Banco Central e a União.” (…) [GN]

Caso o texto seja aprovado, estaremos diante de uma situação inusitada. A alta direção do BC, em completa e estreita articulação com a nata da finança privada terá ao seu dispor o manuseio de valores trilionários do setor público brasileiro. No entanto, ao contrário do desenho institucional que vige atualmente, essa tecnocracia a serviço do grande capital do parasitismo não deverá prestar contas a praticamente ninguém do destino que fizer de tais valores. Se no modelo criado por Guedes da quase independência a transparência é rarefeita, imaginemos o que poderá ocorrer com a independência plena proposta pela PEC 65.

Vários trilhões de R$ sem controle e ao dispor do financismo

Afinal, o BC é responsável pela movimentação cotidiana da soma existente na chamada Conta Única do Tesouro, que apresenta o “modesto” saldo de R$ 1,8 trilhão de acordo com o último balanço divulgado pela autoridade monetária. Ou seja, ficaria ainda mais sem controle da sociedade algo próximo a 18% do PIB de nosso país. Além disso, o BC é responsável pela gestão e movimentação das Reservas Internacionais, que fecharam o mês de janeiro no saldo de US$ 355 bilhões. Esses valores representam também algo próximo a mais 18% de nosso Produto Interno. Finalmente, é sempre bom lembrar que o BC tem por incumbência a implementação das políticas associadas ao pagamento de despesas financeiras da dívida pública. Assim, devemos somar os R$ 720 bi que foram pagos a esse título ao longo do ano passado.

Com todas as características da independência elencadas na PEC, sem nenhum Ministério de tutela a quem deveria prestar contas e estar subordinado hierarquicamente, e ainda contando com o incompreensível “poder de polícia”, o BC seria apenas controlado de forma genérica pelo Congresso Nacional. Na verdade, conhecendo um pouco a história desse tipo de mecanismo, pode-se imaginar que o modelo da nova institucionalidade será o universo da ausência de controle.

Lula precisa avisar que o governo é contra a PEC 65

O processo ainda está em seu início. A tramitação no Senado conta apenas com a nomeação do Relator no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça. Mas o governo precisa urgentemente se manifestar para que não paire a menor sombra de dúvida quanto aos prejuízos presentes na matéria para o conjunto da sociedade. O ministro da Fazenda tem evitado se pronunciar publicamente a esse respeito, mas é sabido que tem participado intensamente de articulações com RCN para viabilizar o texto. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, tem denunciado a medida, alertando para os risco de se estabelecer uma “ditadura monetária” no Brasil.

O presidente Lula deveria esclarecer de forma urgente que seu governo não tem nada a ver com a essência da PEC 65 e que os parlamentares da base aliada não deveriam colaborar com o financismo em sua tramitação.

Paulo Kliass

Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

Anais da privatização

Como a Braskem se livrou dos bloqueios bilionários por afundar 5 bairros em Maceió

Nayara Felizardo, Intercept (expandir)

DECISÕES DO MINISTRO do Superior Tribunal de Justiça João Otávio Noronha, em 2019, foram determinantes para a Braskem. Ele mandou suspender bloqueios bilionários que tinham sido determinados pela justiça de Alagoas, o que ajudou a empresa a pressionar os órgãos públicos por cláusulas favoráveis no primeiro acordo que assinou após o afundamento do solo causado por sua mineração em Maceió. 

É isso que indica o processo no STJ, ao qual o Intercept Brasil teve acesso na íntegra, e as informações do defensor público Ricardo Melro, que participou das negociações.

Segundo ele, a Braskem ganhou força após as decisões do ministro Noronha para negociar o Termo de Acordo para Apoio na Desocupação das Áreas de Risco, de dezembro de 2019. Ele define medidas para assistir as vítimas, mas não reconhece a responsabilidade da empresa pelo desastre ambiental e ainda lhe concede a posse dos imóveis de moradores indenizados. Isso serviu de base para os acordos firmados nos anos seguintes.

A primeira decisão que o ministro João Otávio Noronha suspendeu a favor da Braskem, em junho de 2019, foi do desembargador Alcides Gusmão. Ele havia bloqueado cerca de R$ 2,7 bilhões em lucros que seriam pagos aos acionistas da empresa. 

Em agosto, o ministro determinou também o desbloqueio de R$ 3,6 bilhões da empresa, que tinham sido determinados por Tutmés Airan. O desembargador havia se baseado em um relatório do Serviço Geológico do Brasil para apontar o “risco latente e de largo alcance lesivo” com “impactos diretos a, no mínimo, 30 mil pessoas”. 

Ele ainda fez referência aos casos de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, onde o rompimento de barragens da Vale somaram centenas de mortes. “O que distingue esses desastres dos riscos tratados nestes autos, é que esta tragédia anunciada [em Maceió] ainda pode ser evitada”, escreveu na decisão anulada por Noronha.

Em maio de 2019, o Serviço Geológico do Brasil confirmou que as rachaduras nos imóveis e o afundamento das ruas de cinco bairros de Maceió foram consequência da extração de sal-gema da Braskem. Nos últimos cinco anos, estima-se que cerca de 60 mil pessoas perderam suas casas.

Mesmo assim, atendendo aos pedidos da Braskem, o ministro determinou que os bloqueios de R$ 2,7 bilhões e de R$ 3,6 bilhões fossem substituídos por um seguro garantia no mesmo valor – mecanismo que substitui os depósitos judiciais, cauções e penhoras de bens, preservando o patrimônio do réu até o fim do processo.

O seguro garantia, porém, teria prazo de cinco anos e a Braskem poderia se negar a renová-lo, se provasse que não havia mais risco a ser coberto ou provasse a perda do direito do segurado. Além disso, o dinheiro não seria usado na reparação imediata às vítimas. 

Segundo Thiago Gomes, especialista em mercado financeiro e professor no projeto de extensão Sala de Ações, da Universidade Federal do Piauí, o seguro garantia era a melhor alternativa para a Braskem, porque não afeta o pagamento dos acionistas, não causa desconfiança no mercado financeiro, nem interfere na gestão empresarial.

Procurado por meio da assessoria de imprensa do STJ e pelo e-mail do seu gabinete, o ministro João Otávio Noronha não respondeu. 

Órgão públicos ‘tiveram que ceder’ após decisões de João Otávio Noronha

Com os recursos desbloqueados, a Braskem mudou a postura na mesa de negociação, disse um dos representantes dos órgãos públicos que assinaram o acordo meses depois. 

“O fator determinante para tirar o equilíbrio na negociação com a Braskem foram os desbloqueios feitos pelo STJ. A segunda decisão do ministro Noronha foi uma pá de cal. A gente teve que ceder”, admitiu Ricardo Melro.

As negociações vinham sendo costuradas com um equilíbrio entre as forças, segundo o defensor. Os órgãos públicos tinham, a seu favor, o relatório do Serviço Geológico do Brasil confirmando que a Braskem havia causado o desastre ambiental, e a empresa estava com R$ 3,6 bilhões bloqueados. 

Melro lembra que a Braskem apresentou a decisão de João Otávio Noronha depois de uma pausa para o almoço. “Então, mudou o nível da conversa e a paridade de armas”, contou.

Uma das cláusulas que a empresa impôs, segundo Melro, foi a 14ª. Ela diz que “os pagamentos [feitos pela empresa] referentes aos terrenos e edificações [das vítimas] pressupõem a transferência do direito sobre o bem à Braskem”. 

“A empresa não abriu mão disso”, explicou o defensor. “Vieram de Brasília essas decisões que interferiram demais”.

A cláusula de transferência de posse dos imóveis para a Braskem foi mantida no Instrumento Particular de Transação Extrajudicial, Quitação e Exoneração de Responsabilidade. Os moradores precisam assinar esse documento para receber uma indenização de valor questionável. Ele era sigiloso, até ser revelado com exclusividade pelo Intercept.

O preço que a Braskem paga pelo imóvel é definido pela avaliação de uma empresa contratada pela própria mineradora. Além disso, cada família recebe R$ 40 mil de danos morais. Em muitos casos, a quantia total sequer é suficiente para comprar outro imóvel.

Segundo Melro, os órgãos públicos tiveram que fazer o acordo que era possível em 2019, para não precisar esperar o resultado do processo judicial. “Uma ação dessa dimensão, com uma empresa que tem o corpo jurídico da Braskem, levaria uns 20 anos de disputa. Estaria, até hoje, todo mundo em área de risco e sem nada”, argumentou. 

Em nota, a Braskem não respondeu à maioria das perguntas, mas argumentou que “as decisões do STJ ocorreram dentro de prazos comuns para decisões liminares, que tratam de medidas urgentes, e foram baseadas na legislação que fundamentou decisões similares, em diversos processos”.

Sobre a cláusula que transfere a posse dos imóveis indenizados, a empresa disse apenas que isso foi necessário para a solução do problema, sem especificar quais por quê.

Braskem convenceu ministro com lei destinada ao poder público

Nos pedidos de suspensão dos bloqueios, a Braskem usou como fundamento o artigo 4º da lei 8.437, de 1992. Ele diz que cabe ao presidente do tribunal – no caso do STJ, o ministro João Otávio Noronha, à época – suspender decisões em ações “movidas contra o Poder Público ou seus agentes”, a pedido do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. 

A Braskem, contudo, é uma entidade privada. Embora tenha concessão pública para explorar recursos minerais, considerados bens da União, a empresa não presta um serviço público, como é o caso das empresas de transporte coletivo.

Segundo o ambientalista Daniel Neri, doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp, é comum a tentativa das empresas de distorcerem o que representa a concessão pública. 

“As mineradoras defendem que prestam um serviço público, porque possuem a concessão pública do uso dos recursos do subsolo. Mas não significa a mesma coisa”, argumentou.

Em 2021, o lobby da mineração tentou incluir a atividade, no texto-base para o novo Código de Mineração, como “de utilidade pública, de interesse nacional e essencial à vida humana”, mas a proposta não avançou.

Para convencer Noronha da legitimidade de invocar a lei, a Braskem argumentou que o bloqueio de R$ 2,7 bilhões dos lucros dos seus acionistas gerava enormes prejuízos “à economia do estado, à geração de impostos e empregos” e “à economia pública”.  

Afirmou, também, que a notícia da proibição de distribuir os lucros fez cair a cotação de suas ações na Bolsa de Valores, “causando reflexos econômicos de enorme monta e de inestimável potencial lesivo para a economia”. 

Por isso, estaria justificado o pedido de suspensão de decisão, com base na lei destinada a órgãos públicos.

A Braskem usou até a Petrobras como argumento. A petroleira é uma das principais acionistas da mineradora e teria cerca de R$ 1 bilhão para receber. Outra grande acionista é a Novonor, antiga Odebrecht, que poderia ficar “ainda mais comprometida, podendo impactar milhares de empregos” — em 2020, a empresa entrou em processo de recuperação judicial.

João Otávio Noronha concordou. Embora tenha apontado que a lei invocada pela Braskem é prerrogativa de pessoa jurídica que exerce função pública, ele entendeu que suspender a distribuição de lucros “afetou, direta e indiretamente, a economia local e nacional”. 

Para o defensor Melro, se a decisão da justiça alagoana afetava tanto o município de Maceió, o estado de Alagoas e a Petrobrás, eles é que deveriam ter entrado com o pedido de suspensão, pois tinham legitimidade para isso, ao contrário da Braskem.

Os argumentos da Braskem se repetiram no novo pedido de suspensão do bloqueio de R$ 3,6 bilhões, em julho de 2019. Noronha até reconheceu os “riscos da atividade minerária, as calamidades já ocorridas no Município de Maceió”. Mesmo assim, em sua decisão em agosto, considerou que o bloqueio para reparar os danos prejudicava a economia pública.

João Otávio Noronha respondeu Braskem em dias e ignorou órgãos públicos

O ministro Noronha agiu com celeridade para responder favoravelmente aos pedidos da Braskem. No primeiro, levou apenas sete dias. No segundo, 16. Já os pedidos da Defensoria Pública e do Ministério Público de Alagoas nunca tiveram resposta no período de um ano em que a ação tramitou no STJ. 

O caso foi arquivado, em junho de 2020, seis meses depois de a Braskem assinar o benevolente acordo com os órgãos públicos. O encerramento do processo estava previsto em uma das cláusulas. 

Na decisão de arquivamento, Noronha destacou que ficaram “prejudicados o agravo interno, os embargos de declaração e os dois pedidos de reconsideração” – ou seja, que as quatro petições da defensoria e do MP ficaram sem resposta. Nenhuma petição da Braskem, contudo, ficou prejudicada. 

O segundo pedido de suspensão de bloqueio de recursos foi respondido por João Otávio Noronha em 8 de agosto de 2019, enquanto o agravo interno que a defensoria e o MP peticionaram em 18 de junho ainda aguardava decisão.

Nessa petição, os órgãos públicos questionavam a legitimidade de a Braskem usar a lei 8.437/1992, chamavam atenção para o real interesse público de milhares de moradores que foram desalojados, insistiam que já havia confirmação da responsabilidade da Braskem pelo desastre ambiental em Maceió e pediam a restituição do bloqueio de R$ 2,7 bilhões. 

Cinco dias depois de Noronha suspender o bloqueio de R$ 3,6 bilhões, os órgãos questionaram a omissão do ministro quanto à petição anterior: “A população já sofre com o descaso da empresa mineradora Braskem, não podendo ser duplamente desprezada, agora por conta do Poder Judiciário”. Continuaram sem resposta.

Já em novembro, um mês antes de assinarem o acordo com a Braskem, a defensoria e o MP fizeram dois pedidos de reconsideração. Novamente, silêncio. 

O escritório contratado pela Braskem, Sérgio Bermudes Advogados, com mais de 50 anos de atuação, é reconhecido no meio jurídico e tem sede no Rio de Janeiro, em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília. Para Alessandro Soares, professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie e ex-chefe de gabinete do Ministério da Justiça, o acesso que a banca tem aos tribunais pode ter facilitado o despacho diretamente com o ministro Noronha, o que não é ilegal.

Contudo, o mesmo não aconteceu com os defensores e promotores de Alagoas. “A gente foi até Brasília falar, mas as nossas petições não tiveram a mesma celeridade”, reclamou o defensor Melro. 

Procurado pelo e-mail disponível no site, o escritório Sérgio Bermudes Advogados não respondeu.

Ministro negou pedidos semelhantes de outras empresas

João Otávio Noronha negou pedidos de suspensão de decisões feitos por empresas com base na lei 8.437/1992, alegando a “natureza privada do interesse”, em ao menos dois casos que julgou, em 2019. 

A empresa de transporte rodoviário Gontijo recorreu ao STJ para suspender uma decisão que autorizava sua concorrente, Edson Agência de Viagens e Turismo, a transportar passageiros de Chorrochó, na Bahia, para São Paulo. A empresa alegou que a decisão poderia abalar o equilíbrio econômico-financeiro das demais empresas de transporte interestadual. 

O ministro reconheceu que empresas privadas com concessão de serviço público, como o de transporte, podem alegar grave lesão à economia pública para pedir suspensão de decisão judicial, mas acrescentou que “as pessoas jurídicas de direito privado” só têm legitimidade “quando comprovado o interesse público – o que não é a hipótese”.

A Viação Ouro e Prata recebeu a mesma resposta do ministro. A empresa queria suspender uma decisão que autorizou a Gran Express Transportes e Turismo a explorar o transporte interestadual de passageiros entre Brasília e Novo Progresso, no Pará.

O ministro negou por não haver interesse público, observando que a Viação Ouro e Prata só queria “impugnar outorga concedida a outra empresa”.

Decisões de Noronha também foram favoráveis para família Bolsonaro

“Foi um amor à primeira vista”, disse Jair Bolsonaro para João Otávio Noronha em abril de 2020. A declaração foi feita na posse de André Mendonça, atual ministro do STF, como ministro da Justiça. Havia uma razão para tanto afeto: várias ações de Noronha foram favoráveis a Bolsonaro entre 2020 e 2021. 

Quando ainda era presidente do STJ, em maio de 2020, Noronha derrubou decisões que obrigavam Jair Bolsonaro a divulgar seus exames de covid-19 para comprovar os resultados negativos. 

Em julho, ele concedeu prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e à sua esposa Márcia Aguiar, foragida da justiça. O argumento foi de que Queiroz estava com câncer e a presença dela era “recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias”. 

Uma das mais importantes intercessões veio em fevereiro de 2021, com a anulação da quebra de sigilo bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro. Noronha alegou que houve direcionamento da investigação no caso da “rachadinha” – esquema de desvio dos salários dos funcionários – para atingir o filho mais velho de Bolsonaro. 

O ministro também votou para anular o compartilhamento de relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, com o Ministério Público do Rio de Janeiro. Sem as informações, a investigação foi praticamente esvaziada. 

Em agosto do mesmo ano, ele suspendeu de vez a investigação contra Flávio Bolsonaro; o amigo da família, Fabrício Queiroz; e outros 15 investigados, alegando que foram usadas provas ilegais. 

Três meses depois, Noronha decidiu que seria necessário o MPRJ apresentar uma nova denúncia para o caso das rachadinhas prosseguir, mas sem usar as provas obtidas nas investigações já feitas.

Jamais esquecer!

"Ninguém, desde Hitler, propagou tanto o antissemitismo como Netanyahu"

O que faz o governo sionista de Israel em Gaza é, no mínimo, um “holocáustico”. Após o extermínio de 6 milhões de judeus pelo regime nazista, na Segunda Grande Guerra, a cultura judaica se apropriou do vocábulo holocausto, que deriva do grego “holos” (todo) e “kaustos” (queimado), relativo aos antigos rituais nos quais vítimas humanas eram sacrificadas no fogo. É questionável se o termo se aplica apenas às vítimas do nazismo.

Frei Betto, IHU (continue a leitura)

E como denominar o que os colonizadores ibéricos fizeram com os indígenas da América Latina e do Caribe? Segundo pesquisas da UCL (University College London), os espanhóis exterminaram, em um século, 56 milhões de indígenas, 90% da população dessa etnia. Já Marcelo Grondin e Moema Viezzer (“O maior genocídio da história da humanidade”, Toledo (PR), Princeps, 2018) calculam 70 milhões de mortos entre os povos originários.


Não apenas os judeus foram exterminados em campos de concentração. Também comunistas, homossexuais e ciganos. Contudo, o epistemicídio (quando se anula ou segrega um conhecimento) coloca no olvido os outros segmentos sociais levados às câmeras de gás. Em Berlim, que revisitei em fevereiro último, há um Museu do Holocausto.


Não se logrou que houvesse um único museu em homenagem às vítimas do nazismo. Foi preciso que comunistas, homossexuais e ciganos instalassem cada um o seu. O que agora Israel faz em Gaza é inominável. Como é inominável a cumplicidade dos países árabes e ocidentais com o genocídio ali praticado. Se o século XX teve como marco o antes e depois de Auschwitz, este início do século XXI terá o antes e depois de Gaza.


Ninguém, desde Hitler, propagou tanto o antissemitismo como Netanyahu. Enquanto isso, a “democrisia” (democracia + hipocrisia) dos EUA lança, por ar, provisões aos sobreviventes de Gaza e, por mar, entrega a Israel as armas que os exterminam. O povo judeu nos ensinou a jamais esquecer. No presente, manter vivo o passado, para que não se repita no futuro.


Por isso, nenhuma atrocidade merece ser varrida para debaixo do tapete da história. Se Lula não admite, acertadamente, impunidade para os golpistas de 8 de janeiro de 2023, e nem que se fale em anistia para eles, maior razão para exigir a punição dos criminosos que, ao longo de 21 anos de ditadura (1964-1985), prenderam, torturaram, sequestraram, estupraram, baniram e “desapareceram” inúmeros brasileiros e brasileiras que lutavam por democracia. O próprio Lula foi preso político, encarcerado no Dops de São Paulo por liderar greves consideradas “subversivas”. Isso o levou a responder processos na Auditoria Militar da capital paulista e, mais tarde, em Brasília, no Superior Tribunal Militar.


Esquecer, nunca mais! Daí a urgência de restabelecer a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e investigar e punir militares e civis que praticaram crimes hediondos e, injustamente, foram beneficiados pela esdrúxula Lei da Anistia de 1979. Como anistiar quem jamais chegou a ser investigado, julgado e condenado? Quanto mais integrantes de nossas Forças Armadas continuarem impunes, mais nossa frágil democracia estará ameaçada pelo golpismo.

A virtude da nulidade é apenas uma: o disfarce que usa para sobreviver ao lado dos iguais. Sinuosa e melíflua, a nulidade é um perigo!

No reino da Dinamarca

Ricardo Nunes... ou o valor de uma nulidade

Prefeito de São Paulo entra em cena para disputar com Tarcísio e com Bolsonaro as 'virtudes' que assustaram Hamlet: corrupção e desmandos como nem o pior dos chicaneiros de Shakespeare seria  capaz de imaginar (expandir)

Em tempo: Pesquisa Realtime Bigdata: Boulos 34%, Nunes 29%

# O milagre da multiplicação dos pães na gestão Nunes: Família vai do despedo a R$ 750 mi em 87contratos sem licitação

Três empresas que assinaram 38 contratos no total de R$ 751,1 milhões com a Prefeitura de São Paulo pertencem a uma mesma família, que perdeu por dívida, há cinco anos, o apartamento em que morava...

# São Paulo tem 223 contratos irregulares de 'obras emergenciais'

Pelo menos 223 dos 307 contratos para obras emergenciais sem licitação realizadas na gestão de Ricardo Nunes (MDB), prefeito de São Paulo, trazem indícios de combinação de preços entre empresas concorrentes. São obras para contenção de encostas, intervenções em margens de rios, córregos e galerias pluviais, recuperação de passarelas, pontes ou viadutos… 

# Como foi feita a reportagem sobre as obras emergenciais da gestão Nunes

A reportagem sobre obras emergenciais da Siurb (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras de São Paulo) tem como base documentos de processos administrativos que subsidiaram as 307 contratações realizadas pela secretaria nos últimos três anos… 

# Secretário diz que verificará suspeita de conluio em obras emergenciais

O secretário municipal de Infraestrutura Urbana e Obras, Marcos Monteiro, disse que pedirá ao corpo técnico da secretaria que avalie o comportamento das empresas convidadas a apresentar preços para a realização de obras emergenciais em São Paulo.

# Prefeitura diz que reportagem faz 'ilações'

Logo depois da publicação de "Obras emergenciais em SP: 223 contratos têm indícios de conluio" nesta segunda-feira (4), a assessoria do prefeito Ricardo Nunes (MDB) enviou uma nota em que chama de "ilações" os dados apresentados pela reportagem do UOL sobre os indícios de cartas marcadas na escolha de empreiteiros pelo município… 

# Obras emergenciais: maioria dos vereadores silencia

Após reportagem do UOL mostrar que 223 contratos de obras emergenciais em São Paulo apresentam indícios de conluio entre empresas, lideranças da Câmara de Vereadores da capital e candidatos à Prefeitura repercutiram a investigação. O PSOL e o PT protocolaram pedido de abertura de CPI… 

# Boulos e Tábata pedem que Nunes seja investigado

Os deputados federais Guilherme Boulos (PSOL) e Tabata Amaral (PSB) protocolaram nesta segunda (4) pedidos para que o Ministério Público de São Paulo investigue o prefeito Ricardo Nunes (MDB) por causa de possíveis irregularidades reveladas por reportagens do UOL. Os três são pré-candidatos à Prefeitura de São Paulo. O partido de Boulos também protocolou na Câmara, junto com o PT, um pedido de abertura de CPI… 

Por um triz

Como seria o golpe e por que não foi dado? Posse de Lula quase não acontece. Evidências recolhidas pela Polícia Federal e depoimentos de várias testemunhas mostram que Brasil esteve à beira de um colapso institucional que poderia desembocar numa guerra civil. Bolsonaro e seus aliados são criminosos e devem pagar por isso.

Luiz Costa Pinto, 247 (expandir)

Frouxos, Bolsonaro e sua corja de aloprados tentaram criar cenário de “caos” político e social para invocar o golpismo. Militares aconselharam antecipar diplomação de Lula.


Ao cabo das 11 horas em que permaneceu na sede da Polícia Federal, em Brasília, depondo sobre as intentonas golpistas promovidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e os elos que as conectam à violenta tentativa de abolição do Estado Democrático ocorrida em 8 de janeiro de 2023 no Brasil, o general Freire Gomes, comandante-geral do Exército entre março e dezembro de 2022, sabia que tudo o que disse fazia sentido para os investigadores. PF e Ministério Público Federal atuam em sintonia e sob comando do procurador-geral Paulo Gonet. O ministro Alexandre de Moraes é o responsável por denunciar, ou não, o ex-presidente e a corriola golpista aos demais integrantes do Supremo Tribunal Federal. A dinâmica dos fatos narrados pelo general, chamado de “cagão” pelo ex-ministro da Defesa, Walter Braga Netto, não só põe Bolsonaro na condição de co-autor intelectual do golpe pretendido como determina que sejam colocados nele - em breve - os grilhões da modernidade: a tornozeleira eletrônica, que virá como medida punitiva alternativa a fim de que o réu seja monitorado até o julgamento final da ação. Tudo o que Freire Gomes contou à PF e aos procuradores encarregados de acompanhar o longo depoimento estava perfeitamente sintonizado com a versão e a dinâmica dos fatos narrados pelo brigadeiro Antônio Baptista Jr., comandante da Aeronáutica entre abril de 2021 e dezembro de 2022.

Havia uma certeza dominante na ala majoritária das Forças Armadas e entre os interlocutores estabelecidos por eles no Poder Judiciário, no Congresso e no Ministério Público: sem força para dar um autogolpe, o então presidente e os militares que lhe eram mais leais dificilmente agiriam de moto próprio. Queriam um estopim, um argumento, uma desculpa para endurecer o regime e instituírem uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) nacional ou a invocação do Artigo 142 da Constituição (segundo o blablablá bolsonarista, que é só lero-lero, as Forças Armadas seriam garantidoras da Ordem Constitucional e como tal poderiam ser chamadas a dirimir momentos de discórdia nacional). A centelha que incendiaria o País precisava vir, então, de alguma crise social ou institucional fabricada. Essa era a fórmula dos “laboratórios de Golpe de Estado” de Bolsonaro e de sua trupe de aloprados. E que tiraria o pino da granada ou acenderia o rastilho de pólvora podia estar num dos Poderes - um ministro do STF mais afoito, por exemplo, decretando prisão de alguém muito próximo do chefe do Poder Executivo, ou até mesmo um subprocurador determinando busca e apreensão em endereços do clã.

No fim do ano de 2022, quando a reeleição já estava perdida e Jair Bolsonaro fechou-se no Palácio da alvorada para urdir os derradeiros ataques ao Estado Democrático e forçar o açulamento dos militares golpistas, três eventos foram planejados como os detonadores do golpismo: o 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula como presidente eleito, o que pôs fim ao processo eleitoral e instituiu a figura do Governo futuro legitimamente eleito, o atentado mal sucedido (graças a Deus) no aeroporto de Brasília na manhã de 24 de dezembro e o confronto entre os generais Freire Gomes, comandante-geral do Exército, e Dutra de Menezes, Comandante Militar do Planalto, no dia 29 de dezembro. Naquela data, a três dias da posse de Lula, Dutra de Menezes ordenou uma retirada à força - não planejada - do acampamento de bolsonaristas diante do Quartel General do Exército em Brasília. Haveria resistência. Os acampados estavam armados. Havia potencial para a detonação de uma baderna, com mortos e feridos. Ainda com Bolsonaro envergando a fantasia da personagem que sempre se jactou de ser - “Comandante Supremo das Forças Armadas” - a desordem nos portões do QG do Exército seria a senha para a decretação de uma Garantia da Lei e da Ordem com o candidato a autocrata ainda no comando do Governo. Em síntese, esses foram alguns dos pontos relatados por Freire Gomes em seu longo depoimento. O brigadeiro Baptista Jr., da Aeronáutica, corroborou tudo.

Os ex-comandantes do Exército e da Força Aérea ainda deixaram claro que o debate em torno da minuta de golpe, com decretação de Estado de Sítio e Estado de Emergência e o plano para mandar prender o ministro Alexandre Moraes, do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, de fato existiu. Nada daquilo que, hoje, soa como fantasia patética de uma choldra de malucos que vestiam uniformes militares e sentavam em cadeiras executivas do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios, era mentira. Não, não era fake news: existiu. E o cenário de decretação de um Golpe de Estado e de uma esteira golpista rolando sobre Brasília foi debatido a sério por próceres de uma gestão caquistocrática.

Por fim, tanto Freire Gomes quanto Baptista Jr. disseram em seus depoimentos no âmbito dos inquéritos sobre a abolição do Estado Democrático no Brasil, que no dia 25 de agosto de 2022 alertaram o então procurador-geral da República, Augusto Aras, e o ministro do STF, Dias Toffoli, da possibilidade de as celebrações dos 200 anos da Independência, no 7 de setembro daquele ano eleitoral, se converter em pantomina golpista com chances de subversão a partir de badernas programadas pelos bolsonaristas que começavam a acampar diantes de quartéis. Aras e Toffoli, que haviam atuando em conjunto em 2021 - inclusive com o auxílio de Alexandre de Moraes e de Luiz Fux, do STF, e de governadores de estado e de comandantes de Polícias Militares em todo o País - para desarmar o mesmo circo golpista, puseram o bloco na rua a fim de se certificarem de que não havia uma armação latente para eclodir. Não tinha, até porque Bolsonaro estava eleitoralmente enfraquecido. 

Novamente na última semana de novembro, Aras e Toffoli foram acionados pelos comandantes militares que não davam ousadia ao golpismo bolsonarista e nem chance ao azar, para advertir de “algo que se armava” para o dia 19 de dezembro, quando Lula seria diplomado. Nem Freire Gomes, nem Baptista Jr., contaram ali da existência de uma “minuta de golpe” ou de planos para prender Alexandre de Moraes. Contudo, era disso que se tratava. Eles deram os alertas ao procurador-geral e ao ministro do STF, que acionaram contatos no governo de transição, no TSE e no próprio Supremo e no PT. Em razão disso, a diplomação de Lula foi antecipada para 12 de dezembro - desarticulando parte do núcleo que detonaria a centelha golpista. A baderna diante da sede da Polícia Federal no início da noite de 12 de dezembro foi o que puderam produzir, sem articulação alguma, de última hora.

  Sobre o golpe abortado de Bolsonaro

# O maior prego no caixão de Bolsonaro (Sakamoto, Uol) # Capelli para Bolsonaro: "a Justiça te espera" (GGN) # Bolsonaro tenta escapar da prisão, diz Lula (RBA) # Irritados com depoimento de Freire Gomes, militares e bolsonaristas chamam-no de "traidor" (Andrea Sadi, G1) # Para ministro do STF, depoimento do general Freire é "melhor que delação" (Josias de Souza, Uol) # Esquenta o clima entre PF e militares em razão da abrangência do comprometimento militar com a conspiração bolsonarista (Monica Gugliano, adapt Estadão).

General Freire Gomes confirma conspiração chefiada por Bolsonaro

Depoimento do ex-chefe do Exército implode versões mentirosas de Bolsonaro e de seus aliados sobre evidências de ação golpista para violar a Constituição. Ex-presidente está na porta da cadeia. Leia mais nos boxes abaixo.

As águas de março fechando o verão

Vini Jr faz 2 gols na volta ao estádio em que foi vítima de racismo e celebra no melhor estilo dos áureos tempos dos panteras negras: punhos cerrados e olhar determinado pela consciência étnica e política (leia mais)

A economia brasileira e a orquestração conservadora 

"A Vale não pode pensar que ela é dona do Brasil, não pode pensar que ela pode mais do que o Brasil. Então o que nós queremos é o seguinte: empresas brasileiras precisam estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro"

Presidente Lula, em entrevista a Kennedy Alencar, na Rede TV (expandir)

Pois então...

O crescimento de 2,9% do PIB brasileiro em 2023, como foi apontado pelo IBGE, mostra o país com uma das melhores performances entre as principais economias do mundo, melhor até mesmo que o crescimento dos EUA e do Japão. A notícia é muito boa principalmente porque vem acompanhada de outras duas: o desemprego está diminuindo e o estado psicológico da população apresenta sinais de otimismo que refletem confiança no presente e no futuro. 

Essas informações são um dos indicativos de que a disposição do governo Lula em afastar o risco de uma crise estrutural na economia - como praticamente vivenciamos desde as tragédias representadas pelos desgovernos Temer e Bolsonaro -, começa a apresentar resultados e isso advém de uma percepção de que as primeiras reformas implementadas ou já propostas neste 1o ano do governo petista resgatam políticas públicas que nos permitem sair do atoleiro neoliberal.

No entanto, o mau-humor atávico da "grande imprensa" e de seus pelotões de comentaristas anti-petistas, não acredita que esses fatos sejam verdadeiros ou pelo menos duvida de que estamos próximos em acertar o passo com o crescimento econômico. Já se disse de tudo um pouco na galeria de asneiras enunciadas para confundir a opinião pública: o PIB (apelidado jocosamente de Pibão do Lula) é uma invenção narrativa do personalismo do presidente (Vinicius Torres Freire, da Folha), na mesma Folha, um levantamento suspeitíssimo de "consultorias" afirma que "a economia está devagar, quase parando" e a resenha de Luis Nassif, que nos presta o favor de reunir num único texto o ceticismo com que os 'principais' veículos receberam a notícia do crescimento do PIB, alguns até enfrentando um silogismo insolúvel que esse mesmo grupo criou: o crescimento do PIB vai gerar inflação, o que significaria admitir que a estagnação econômica seria preferível... apesar do desemprego. Afinal, o que é melhor: desemprego ou inflação? A resposta é simples para essa turma neoliberal: melhor mesmo é o que favorece o capital e o interesse privado... Para os desenvolvimentistas, no entanto, é preferível alargar o mercado consumidor interno pelo aumento dos investimentos públicos, pelo ampliação da oferta de emprego e pelo crescimento da distribuição da renda. Mas vá fazer um ortodoxo entender isso...

Portanto, o que é possível constatar,  mais uma vez,  é que essas narrativas  desvairadas que fustigam sistemática e ininterruptamente o governo Lula em todas as áreas de sua atuação, têm um claro e forte viés ideológico,  quaisquer que sejam os resultados efetivos da ação do Planalto, da desoneração da folha de pagamentos (que agrava o déficit público, déficit que é criticado pelo mesmo pessoal que quer a desoneração) à denúncia do genocídio israelense em Gaza (um crime com o qual o Brasil não pode ser complacente), da revogação da reforma do ensino médio (que se vigorar como está vai sepultar a inteligência de alunas e alunos e a modernidade futura do país) à política ambiental que nos isola internacionalmente e faz a festa do agronegócio. Trata-se, dessa forma, de um jogo retórico jogado com critérios absolutamente desprovidos de alguma fundamentação comprometida com o bem-estar social.

Agora mesmo, neste fim de semana, dois outros temas renovam o espaço da investida neoliberal. O primeiro é essa declaração mal-educada e arrogante do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, dizendo-se disposto a negociar com o governo uma autonomia mais ampla para a entidade que dirige. Como assim? O Banco Central lida com a nervatura monetária e financeira do país, isto é, uma instituição de governo, de gestão política de programas de ampla repercussão social que, por sua natureza, precisam ser referendados em processos eleitorais que escrutinam os projetos propostos pelo Poder Executivo. A ideia de que se trata de uma autarquia, um organismo técnico que atua à margem do governo a partir de considerações feitas sobre uma política monetária dissociada da política econômica do estado, é uma balela criminosa cujo único objetivo é blindar a atividade financeira (os bancos e os rentistas) das modulações e intempéries políticas da sociedade; uma espécie de "Estado dentro do Estado", com o perdão do truísmo tantas vezes usado para contestar a sugestão de Roberto Campos Neto

Com exceção dos Estados Unidos, não há um único exemplo na economia mundial, em qualquer tempo, de um banco central autônomo que tenha assegurado uma política efetiva de desenvolvimento social (e nem mesmo nos EUA essa afirmação pode ser categórica, um país campeão em marginalidade e pobreza em vários níveis). Em todos os casos, o que ocorreu quando a experiência foi posta em prática, foi a formação de um setor financeiro que se apossou da riqueza do trabalho canalizando-a para sua acumulação no âmbito da especulação monetária - fato que explica a forte coexistência da pobreza, do desemprego, das carências básicas da sociedade, em meio à ostentação do poder financista. É só olhar em volta, ir a Los Angeles ou passar pelos baixos do Elevado Costa e Silva.

Posso estar enganado, mas há um componente de natureza doutrinária que explica toda a complexidade desses fatos: o projeto de destruição do Estado como o  ente articulador do contrato social, uma última retaguarda que ainda pode impedir a dissolução radical de qualquer controle sobre os desmandos do interesse privado. Penso que esse arco de conflitos que vai da negação da mídia hegemônica do êxito momentâneo de políticas públicas - como ocorre com esse ganho do governo Lula já no primeiro ano de sua gestão - à prepotência de Campos Neto em propor o que está propondo, reflete um programa (ainda que não esteja articulado como tal) e acompanha outras manifestações muito concretas que pretendem atingir esse objetivo estratégico de aniquilamento do Estado. É uma campanha orquestrada... não se iludam.

Refiro-me agora à fala de Lula que abriu esta postagem (A Vale não pode pensar que ela é dona do Brasil) e à imediata reação que se seguiu às afirmações que o presidente fez a Kennedy Alencar. Não se trata da Vale, embora tudo nela seja mais do que simplesmente a ideia de que "é dona do Brasil". A julgar pelos desastres que vitimaram milhares de pessoas em Minas, a Vale é uma das principais predadoras do país e tem ficado impune diante do mal que causa com a conivência e com o afago de veículos e cronistas que formatam o fim da nossa soberania nacional. Leiam o editorial Retrocesso à espreita publicado na Folha neste domingo (3/3/24); ou o artigo de Samuel Pessôa na mesma edição do jornal (Lula, a Vale e o déficit democrático do PT) para entender qual é a natureza ou o âmago do discurso que deslegitima a urgência em colocar um ponto final nesse processo de desfiguração do Brasil que temos assistido até agora. O momento é ideal porque ainda está só no inicio essa vaga de infelicidade vivida pela população quando chegam as empresas que abocanham setores de forte presença no cotidiano do povo: as linhas do Metrô de SP, nenhuma delas regular e segura; a Ênel, uma campeã no desrespeito ao fornecimento de energia; as empresas de ônibus, também de São Paulo; e agora os cemitérios...

Essa discussão precisa avançar até que seja possível o controle do público sobre o privado, da sociedade sobre toda a área dos serviços básicos que o interesse predatório subtraiu da órbita de ação do Estado e do horizonte de uma vida melhor para cidadãs e cidadãos.

Leituras sugeridas: 

# Todo poder ao financismo (Paulo Kliass, Outras Palavras)

# O que é o neoliberalismo (Nancy Fraser, A Terra é redonda)

Textos de Paul Krugman:
# Ideias realmente ruins (El País)
# Krugman contra as medidas de austeridade (Infomoney).  

Textos de Joseph Stiglitz:
# Stiglitz defende crescimento contra austeridade (Euronews)
# Austeridade é receita para o suicídio econômico (Vermelho)
# Austeridade levará a mais desemprego e desigualdade (Agência Brasil). 

Sem licitação, Nunes gasta R$ 2 bi em obras que agravam problemas estruturais da cidade  

Apenas 3 das 93 obras do Plano Diretor de Drenagem foram entregues

Marcos Hermanson e Julia Estanislau, Folha (expandir)

# Acesse o  aqui o texto original da matéria da  Folha para  os gráficos que ilustram a reportagem

De março de 2022 a setembro de 2023, a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras de São Paulo contratou de forma emergencial, sem licitação, oito diferentes obras de concretagem das margens do córrego Rio Verde, na zona leste. Três delas num raio de 620 metros da casa de Eliseu Alcântara, 45.

As obras pararam a 80 metros da ponte que dá acesso à rua onde ele mora. Deixaram um trecho do riacho com as margens desprotegidas e continuaram em outro ponto.

A intervenção estreitou o rio. Com isso, dizem quatro moradores ouvidos pela Folha, o lugar passou a conviver com enchentes. "Perdi sofá, geladeira e outros móveis", conta Alcântara. "Tomei R$ 6.000 de prejuízo."

De setembro de 2021 a dezembro de 2023, a gestão Ricardo Nunes (MDB) contratou R$ 2,2 bilhões em 140 obras emergenciais deste tipo, de contenção de margens de córrego. O valor representa 65% de toda a verba empenhada pela prefeitura em obras de combate a enchentes no período, incluindo piscinões licitados nesse período.

Por outro lado, as ações que a própria prefeitura estabelece como estratégicas para combater o problema acabaram recebendo menos atenção —das 93 obras estruturais previstas no PDD (Plano Diretor de Drenagem), apenas três foram entregues até o fim de 2023. O documento define exatamente quais as principais intervenções de combate a cheias na cidade.

As obras entregues são o reservatório Paciência, na zona norte, o polder Aricanduva R3 e o reservatório Taboão, na zona leste. A prefeitura investiu R$ 65 milhões nas três estruturas, o que equivale a 3% do total gasto com as obras emergenciais. As informações foram obtidas via Lei de Acesso à Informação.

Procurada, a prefeitura disse que as obras do PDD e as obras emergenciais fazem parte de frentes de trabalho distintas, que não competem entre si. Sobre as cheias no córrego Rio Verde, afirmou que duas obras ainda estão em andamento e que trabalha para construir um reservatório na região. As empresas B&B Engenharia e BBC Construções, responsáveis pelas três obras mais próximas ao local com alagamento, disseram que o problema das enchentes é antigo.

Além do caso do córrego Rio Verde, pessoas de outras regiões da cidade também apontam problemas semelhantes. É o caso de moradores da rua Botuverá, por onde passa o córrego Água Espraiada, na zona sul. Eles afirmam ter começado a enfrentar enchentes após obras emergenciais.

A Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras do município contratou seis intervenções de contenção de margens no riacho, todas num raio de um quilômetro, mas deixou exposto o trecho que percorre a rua.

Uma dessas obras termina na ponte que fica a poucos passos do bar de Antônio Stochmal, 68. "A rua vira um piscinão", diz o comerciante. "Esse problema não existia aqui antes da obra".

Um vídeo gravado em dezembro, após a entrega do empreendimento, mostra uma enchente tomando a esquina das ruas Botuverá e Capuavinha. A água invadiu casas, arrastou caçambas e cobriu carros até a altura do capô.

Três moradores ouvidos pela reportagem relatam que o estreitamento do rio, causado pela colocação das paredes de concreto, fez a água represar na ponte, causando o alagamento.

A secretaria disse que está analisando alternativas para o combate às enchentes na rua Botuverá.

Os R$ 2,2 bilhões gastos em intervenções emergenciais de contenção de margens seriam suficientes para construir ao menos 15 das 56 obras previstas no chamado Plano de Ações do Plano Diretor de Drenagem.

O Plano de Ações reúne a maior parte das obras previstas no PDD –as 37 intervenções restantes são do acervo técnico da Siurb, que não divulga o custo estimado.

As 56 obras têm potencial de reduzir em 4,6 quilômetros quadrados a mancha de alagamento do município, retendo mais de quatro milhões de metros cúbicos de água, segundo a prefeitura.

Uma delas é o Reservatório Carumbé 01, sexto lugar da lista de prioridades do Plano de Ações. Teria 60 mil metros cúbicos de volume e ajudaria a aliviar o impacto das enchentes na Brasilândia, mas não saiu do papel.

"A água chega na altura do joelho", diz o ajudante-geral Aristides Santos, 33, sobre as enchentes que atingem a favela Nova União, que fica nas margens do córrego Carumbé, a poucos metros de onde seria o piscinão.

"Uma administração séria pegaria o plano diretor e faria licitação para as obras estruturantes", diz o vereador Celso Gianazzi (Psol), que entrou com representações no TCM pedindo investigação das intervenções da prefeitura.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras disse que o reservatório Carumbé está em fase de planejamento.

GASTO COM OBRAS EMERGENCIAIS É CONCENTRADO EM DEZ CONSTRUTORAS

Na comparação com 2017, o gasto com obras emergenciais aumentou 10.000% em São Paulo. Uma auditoria do TCM (Tribunal de Contas do Município) apontou suspeita de superfaturamento de R$ 67 milhões em 18 dessas intervenções.

A lei autoriza a realização de obras sem licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizado risco à segurança da população.

"A contratação emergencial pode demonstrar falta de planejamento", diz Alessandro Soares, professor de direito constitucional no Mackenzie. "Além disso, abre margem para sobrepreço e superfaturamento."

Procurada, a secretaria disse que "as intervenções [nos córregos] são executadas somente no trecho onde há riscos", atestado por laudos da Defesa Civil, vistorias de técnicos e parecer do procurador do município.

"Não adianta fazer a obra em um ponto específico", afirma a engenheira Melissa Graciosa, da Universidade Federal do ABC. "É insuficiente, uma medida de curto prazo, e o problema pode piorar rio abaixo."

"Essas obras têm um apelo eleitoral", diz Anderson Nakano, urbanista e professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo. "Resolvem o problema de maneira muito pontual, no local onde foram realizadas, e podem piorar a vida de quem não foi atendido".

Metade das obras emergenciais contratadas pela atual gestão está na zona leste. Das 41 empreiteiras contratadas pela secretaria para as obras emergenciais, dez concentram 63% do valor dos contratos, ou R$ 1,4 bilhão. Algumas guardam vínculos entre si.

É o caso da Mathesis Engenharia, que tem R$ 139 milhões em contratos emergenciais de contenção de córregos. A empresa é de Rogério Franco Palazzi. O irmão de Rogério, Maurício Augusto Palazzi, é dono da Escopo Construtora Limitada, que tem R$ 66 milhões em contratos do tipo.

Também é o caso da B&B Construções e da BBC Construções, que juntas têm R$ 383 milhões em contratos emergenciais para contenção de margens de córrego. Estão sediadas na mesma esquina e têm os mesmos sócios: Walter Luca Braga e Cíntia Cristina Barros, que são um casal.

Em nota, a B&B disse que ambas as empresas estão credenciadas na Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras e possuem capacidade técnica comprovada, tendo atuado em obras públicas e privadas por mais de 15 anos. Acrescentou que "a escolha de contratação não cabe a empresa e sim ao órgão que executa o processo licitatório".

Local onde deve ser construído o Reservatório Carumbé (CR-01), na Brasilândia; nenhuma das obras do Plano de Ações contra enchentes saiu do papel durante a gestão Nunes - Rubens Cavallari/Folhapress

Paulo Gomes Duque, dono da Consitec Engenharia e Tecnologia, é casado com Paula Neri Duque, sócia da Arq Soluções em Serviços. Juntas, as empresas têm R$ 170 milhões em contratos emergenciais.

"Não há vedação legal para contratação de empresas de parentes", diz Juliana Sakai, da ONG Transparência Brasil, "mas dá para ver que existe uma concentração de empresas e pessoas que estão tendo acesso a esses contratos".

Procurada para comentar os contratos, a prefeitura disse que a seleção de empresas para execução das obras se dá após uma cotação com três concorrentes, "sendo escolhida aquela que oferece o maior desconto sobre os serviços a serem realizados". Disse também que os orçamentos seguem a tabela de custos da Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras.

A Construtora Lettieri Cordaro, que pertence ao mesmo sócio da Merola Construções –R$ 57 milhões em contratos emergenciais no total– afirmou em nota que ambas as empresas possuem cadastro ativo junto à secretaria. "Cadastradas, estão passíveis de convites para realização de obras emergenciais, não havendo relação quanto ao grau de parentesco citado e sim com a qualificação técnica da empresa".

As empresas Arq, Consitec, Mathesis, Escopo, DB Construções e Tirante Construções foram procuradas por email e telefone, mas não responderam até a publicação desta reportagem.

pensatas para o fim de semana 01-03/03/24

Pesquisa Ipesp/Febraban registra Efeito Lula: 75% dos brasileiros acreditam em melhoria de vida pessoal e familiar em 2024

Percentual é o maior da série histórica. Expectativa de melhora nas condições de vida chega a 80% entre as mulheres; 81% na faixa de 25 a 44 anos; e 83% no Nordeste (leia no 247)

IBGE: País tem 700 mil desempregados a menos em um ano. Desalento cai, ocupação e renda crescem

Massa de rendimentos (R$ 305 bilhões) é recorde. A informalidade, no entanto, ainda atinge 39,2 milhões de trabalhadores (leia na RBA)

PIB do Brasil tem alta de 2,9% em 2023

Brasil cresceu mais que EUA e Japão (leia no Uol)


Estudo britânico revela que em lugar de meditação, coaching e gerenciamento de estresse, empresas deveriam focar em melhorar condições de trabalho

(leia no Science Arena)

23 de março: nas ruas de todo o país... pela prisão de Bolsonaro


Manifestações foram marcadas pelos movimentos sociais e devem ser realizadas nas 27 capitais do País; São Paulo e Salvador serão priorizados pelos organizadores
Gabriel de Souza, Estadão (expandir)

BRASÍLIA - Frentes de esquerda que abrigam sindicatos e movimentos sociais anunciaram que irão realizar, no dia 23 de março, manifestações nas 27 capitais para defender a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O anúncio da manifestação ocorreu nesta terça-feira, 27, dois dias após o ex-presidente reunir centenas de milhares de pessoas na Avenida Paulista e defender uma anistia para golpistas presos pelos atos de 8 de Janeiro.

As manifestações serão organizadas pelos movimentos de esquerda Frente Povo Sem Medo (FPSM) e Frente Brasil Popular. Nesta terça-feira, 27, os coletivos se reuniram com representantes do PT, PCdoB e PSOL e líderes de movimentos sociais para definir a data do ato.

As manifestações irão acontecer em todas as 27 capitais do País, mas deve ter um esforço de mobilização reforçado em São Paulo e em Salvador. Ao Estadão, lideranças de esquerda que participaram da reunião disseram que a capital paulista será privilegiada pelo seu histórico de manifestações e pelo resultado obtido por Bolsonaro no último domingo. A metrópole baiana, por sua vez, será privilegiada por ser a maior cidade do Nordeste e um dos principais redutos eleitorais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Bolsonaro é investigado pela Polícia Federal (PF) por ter planejado um golpe de Estado após as eleições de 2022, junto com seus aliados e militares de alta patente. Após ser alvo da Operação Tempus Veritatis no último dia 8, o ex-presidente convocou apoiadores para um ato na Avenida Paulista, que aconteceu neste domingo, 25, e reuniu centenas de milhares de pessoas

No evento, ele negou ter atuado na tentativa de um golpe de Estado e minimizou a “minuta de golpe” de Estado encontrada pela PF, que se tornou uma das principais provas contra o ex-chefe do Executivo.

“O que é golpe? Golpe é tanque na rua. É arma. É conspiração. É trazer classes políticas para o seu lado, empresariais. Isso que é golpe. Nada disso foi feito no Brasil. E fora isso, por que ainda continuam me acusando de um golpe? Agora, o golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenham santa paciência”, discursou Bolsonaro a apoiadores.INSCREVER

Bolsonaro também disse que busca a “pacificação” do País e pediu anistia para os golpistas presos pelo ataque aos prédios públicos no 8 de Janeiro. O ex-presidente chamou os vândalos de “pobres coitados que estão presos em Brasília”.

“Teria muito a falar. Tem gente que sabe o que eu falaria. Mas o que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado, é buscar uma maneira de nós vivermos em paz, não continuarmos sobressaltados. Por parte do Parlamento brasileiro, é uma anistia para aqueles pobres coitados que estão presos em Brasília. Nós não queremos mais que seus filhos sejam órfãos de pais vivos”, disse o ex-presidente.

Ato contará com carta pedindo as prisões do ex-presidente e de aliados

Durante o ato, está prevista a leitura de uma carta onde será defendida a prisão de Bolsonaro e dos seus aliados que também foram alvos da operação da PF. Ao Estadão, o coordenador geral do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Rud Rafael, que integra a Frente Brasil Sem Medo, disse que os setores da esquerda que irão participar da manifestação consideram que as provas já coletadas pela PF sustentariam a privação de liberdade do ex-chefe do Executivo.

“A prisão de Bolsonaro precisa ser feita em decorrência das investigações. A gente quer que seja concluída o mais rápido possível. As provas já estão colocadas e a gente quer que haja o julgamento para que tenha a punição para ele e para todos que tiveram envolvimento com essa tentativa de golpe”, disse o coordenador geral do MTST.

O ato será realizado dois dias após o aniversário de 69 anos de Bolsonaro. Porém, segundo os seus organizadores, ele será feito no dia 23 de março para relembrar os 60 anos do Golpe Militar de 1964. O acontecimento se deu no dia 31 de março, porém as frentes de esquerda disseram que adiantaram uma semana por conta do feriado da Páscoa.

Além da prisão do ex-presidente e dos demais investigados pela Polícia Federal, a manifestação também terá como pauta o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas. Segundo organizadores das manifestações ouvidos pelo Estadão, os movimentos irão prestar solidariedade ao povo palestino e pedir o fim do conflito na região.

No último dia 18, Lula comparou a incursão de Israel na Faixa de Gaza com o extermínio de judeus promovido pela Alemanha nazista. A declaração fez com que o petista fosse declarado ‘persona non grata’ pelo estado israelense, além de gerar um pedido de impeachment que foi assinado por 139 parlamentares da Câmara dos Deputados e protocolado na semana passada.

Frentes responsável pela organização dos atos unem sindicatos e movimentos sociais

A Frente Povo Sem Medo foi criada em 2015, durante a crise política que desencadeou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A partir do coletivo, que serve como uma articulação de sindicatos e movimentos de esquerda, foram feitos protestos de oposição ao processo de cassação. Após o afastamento da petista, as manifestações lideradas pelo grupo prosseguiram nas gestões de Bolsonaro e do ex-presidente Michel Temer (MDB).

Um dos principais integrantes da FPSM é o MTST, que realiza protestos pautados no direito à moradia e reforma urbana. Um dos maiores representantes do MTST é o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP), que é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo e atua na liderança do movimento desde 2002.

Também formada durante a crise política no governo Dilma, a Frente Brasil Popular é mais próxima do Partido dos Trabalhadores. O coletivo tem como integrantes de destaque a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a União Nacional dos Estudantes (UNE).

Caso único na história:
a anistia proposta pelo criminoso

Elio Gaspari: se não havia trama golpista, vai-se anistiar o quê?

Na Folha de 28/02/24 (expandir)

A anistia de Bolsonaro

A manifestação convocada por Jair Bolsonaro para a avenida Paulista mostrou o vigor de sua liderança política. Quem esteve lá informa que havia até mesmo cordialidade no ambiente. O Bolsonaro de 2024 pretende ser diferente de todos os anteriores: "O que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar uma maneira de nós vivermos em paz, não continuarmos sobressaltados".

É, ou seria, um novo e bem-vindo Bolsonaro. Dando um passo adiante, ele falou em "conciliação": "É, por parte do Parlamento brasileiro, uma anistia para aqueles pobres coitados que estão presos em Brasília. Nós não queremos mais que seus filhos sejam órfãos de pais vivos. A conciliação. Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil. Agora nós pedimos a todos 513 deputados, 81 senadores, um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil".

Na mesma ocasião, ele ressalvou que não pretende beneficiar quem vandalizou prédios no 8 de janeiro. Sobram aqueles que pretendiam anular o resultado da eleição em que Lula o derrotou.

Jair Bolsonaro discursa durante ato na avenida Paulista, no domingo (25) - Bruno Santos - 25.fev.24/Folhapress

Bolsonaro diz que não houve trama golpista. Se não houve, o que se precisa é de Justiça, inocentando quem nada tramou. Se houve, como os fatos estão mostrando, trata-se de uma anistia preventiva que, pela lógica, haveria de beneficiá-lo.

No discurso da Paulista, as palavras "pacificação", "conciliação"e "anistia" foram meros adornos. No conjunto, Bolsonaro é o mesmo de sempre, messiânico em benefício próprio. A anistia que ele propõe, como a que a esquerda defendia em 1965, pressupõe a capitulação de quem a concede.

A anistia assinada em 1979 pelo general João Figueiredo veio seis anos depois do último atentado do surto terrorista iniciado nos anos 60. Foi produto da exaustão, mas o regime não capitulou com ela.

Num caso de anistia quase instantânea, em 1956 Juscelino Kubitschek anistiou militares que, meses antes, haviam sequestrado aviões, internando-se na Amazônia. Em todos os casos, as anistias vieram junto com a deposição das armas pelos rebeldes. Assim foi desde as anistias oferecidas por Caxias no Império.

Aceitando-se a proposta de conciliação de Bolsonaro, anistia-se a infantaria golpista do 8 de janeiro, "os pobres coitados" e, por extensão, livra-se o Estado-Maior do golpe, cujos fios soltos a Polícia Federal vem puxando. Astuciosamente, a anistia congelaria as investigações. Nenhuma anistia foi preventiva.

A Conciliação patrocinada por Tancredo Neves veio da cultura histórica e da compreensão que ele tinha da realidade política. Mesmo tomando-se as anistias de JK, ele deu ao país o seu sorriso e grandes sonhos. Bolsonaro é de trato difícil e sua percepção da política nacional é primitiva. Mostrou isso tanto como deputado do baixo clero oposicionista, como presidente da República. Falando na avenida Paulista, louvou-se tanto como presidente quanto como deputado "muitas vezes, discursando para as paredes".

A manifestação da Paulista mostrou o vigor político do ex-capitão, mas sua proposta de pacificação tem pouca base, com objetivo puramente utilitário. Apesar de tudo, dando-lhe o benefício da dúvida, amanhã será outro dia e o modelo Bolsonaro Paz e Amor precisará mostrar outras cartas.

O lance de Bolsonaro e a urgência de esquerda

Ao pedir anistia, ex-presidente tenta livrar-se do STF

Gilberto Maringoni, Outras Palavras (expandir)

Qual o impacto na conjuntura da manifestação pública convocada por Jair Bolsonaro neste domingo (25) na avenida Paulista?

Estive no ato e andei ao longo de toda sua extensão, indo e vindo, por duas vezes. Fiquei impressionado. Eram quatro quadras apinhadas de gente. Havia pontos, no quarteirão onde se encontrava o caminhão de som, em que a compactação tornava quase impossível a passagem. Numa apreciação impressionista, arrisco dizer que pouco mais de dois terços da massa era composta por gente de classe média-média, branca. O restante parecia ser de classe média baixa (pobres), com presença significativa de pretos e pardos. Não era um protesto de grã-finos dos Jardins. Havia quatro governadores e algumas dezenas de parlamentares no palanque. Tarcísio de Freitas reforçou o policiamento e há notícias de que teriam vindo caravanas do interior e de outros estados. Dinheiro parece não ter faltado.

Qual a métrica para se avaliar o evento? Há pelo menos três essenciais: A). Saber se havia um público em volume expressivo; B) O que Bolsonaro pretendia com a iniciativa e C). Compará-lo com as possibilidades organizativas da esquerda.

Examinemos a primeira variável. Mesmo que não tenha colocado no asfalto os 700 mil que alguns de seus apoiadores chegaram a alardear – é possível que tenham comparecido pouco menos de 200 mil -, a soma não é desprezível. Acima de tudo, vale a foto aérea de uma Paulista apinhada de gente.

Tudo indica que Bolsonaro queria dar uma demonstração de força e retirar as acusações que enfrenta do terreno jurídico – que lhe é desfavorável – e deslocá-las para a seara política, na qual pode obter bom resultado. Cercado de processos, o ex-mandatário está absolutamente correto em buscar as ruas. Uma possível prisão, assim como foi a de Lula, depende da criação de um ambiente político que enfraqueça sua legitimidade e o torne vulnerável aos tribunais. O petista só foi encarcerado depois de anos de impiedosa campanha midiática, de acusações infundadas por parte da Lava Jato, de opções desastrosas do PT no governo e do golpe de 2016.

O marido de dona Michelle se fortaleceu na ensolarada tarde paulistana. Passa o recado de que não é carta fora do baralho, mesmo sendo inelegível. Mais do que tudo mostra que o peso político da extrema-direita brasileira não é pequeno.

Se a meta de mostrar apoio de multidões foi atingida, o segundo objetivo tem poucas chances de se concretizar. Como assinala Valter Pomar, Bolsonaro propõe um acordo que livre sua cara e isso ficou explícito em seu discurso. Antes de entrar no mérito do que o ex-presidente externou ao microfone, é preciso focar brevemente na direção do espetáculo, ou na coreografia de palco.

Os principais oradores foram três, além de Bolsonaro. Puxando a fila estava Michelle, a demonstrar fidelidade ao marido – ela cancelou uma viagem aos EUA – e pregar uma chorumela emotiva, pretensamente religiosa. Em seguida, tivemos Tarcísio de Freitas, anfitrião e possível herdeiro do espólio político do chefe, a garantir sua retidão de caráter. E por último e o mais importante, Silas Malafaia, misto de espertalhão e guru espiritual, para quem Bolsonaro terceirizou a saraivada de ataques ao Supremo, ao TSE, a Lula, ao PT, a Alexandre de Moraes e a quem mais estivesse pela frente. No meio do fraseado, destacou em tom quase apocalíptico: “Jair Messias Bolsonaro é o maior perseguido político da nossa historia.

Limpo o terreno, o indigitado ficou livre para tentar um caminho sem agressões e baixarias, quase um Jairzinho paz e amor. E se revelou tremendamente defensivo e vulnerável. Em 22 minutos de uma oratória surpreendentemente articulada para os padrões do ex-capitão, ele falou de sua infância, da vida no Exército, contou da experiência parlamentar, de seus feitos na presidência, atacou o comunismo, a ideologia de gênero, o aborto e listou um rosário de lugares-comuns do fascismo pátrio que faz a alegria de seu eleitorado. Destacou ainda a importância do pleito municipal e negou ter tramado um golpe. De cambulhada, aproveitou para insistir no vitimismo: “Levo pancada desde antes das eleições de 2018”.

Depois da pieguiece, vamos ao que interessa: buscar o que chama de conciliação e pacificação. “É passar uma borracha no passado. É buscar maneiras de nós vivermos em paz. É não continuarmos sobressaltados”.

A arenga vai em frente: “Agora, nós pedimos a todos os 513 deputados e 81 senadores um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil”. E cita os possíveis beneficiários, “Esses pobres coitados que estavam lá no 8 de janeiro de 2023”. Mas o altruísmo do ás das motociatas logo revela o verdadeiro objetivo: “Também quero dizer que nós não podemos concordar que um poder tire do palco político quem quer que seja. A não ser que seja por um motivo extremamente justo”.

Aqui, o ex-presidente manda as sutilezas às favas. Sua meta enfim é revelada por inteiro: sair liso – juntamente com o alto comando do golpe – de quase vinte acusações judiciais, transformando o caso em disputa política, apelando ao Congresso – que tem as prerrogativas constitucionais para isso – e não ao STF. O projeto do ato tem, assim, início, meio e fim. Nessa tentativa de mostrar força, é possível que busque realizar manifestações semelhantes em outras capitais.

O comportamento da mídia, ao longo do dia, foi cauteloso. Mesmo o Fantástico, principal atração dominical da Globo, enquadrou a notícia numa reportagem de 3 minutos, quase ao final do programa, na qual não faltaram menções às acusações que pesam sobre Bolsonaro. Como as corporações de comunicação têm sido atendidas em quase todas as suas demandas junto ao governo federal – arcabouço fiscal, verbas publicitárias, predomínio de fundações privadas na Educação, não reversão de privatizações e reformas de Temer e Bolsonaro – possivelmente seus dirigentes avaliem não ser esse o momento de romper com a atual gestão.

Finalmente, do ponto de vista da esquerda, convém não subestimar a força da extrema-direita. Desde a posse de Lula III, o que se entende genericamente por progressismo não colocou contingente equivalente em praça pública. Apesar da defensiva, Bolsonaro age com competência ao buscar mudar o terreno de seu enfrentamento da Justiça para o Congresso. É difícil que conquiste a anistia, mas também é pouco provável que seja preso no curto prazo. Há um objetivo secundário nessa trama toda: o mais ilustre morador do condomínio Vivendas da Barra tenta coesionar e unificar nacionalmente os aliados com vistas às eleições de outubro.

Falta uma última peça nesse quebra-cabeças. Até aqui não há uma campanha vigorosa da esquerda contra a extrema-direita. Ao contrário: o bolsonarismo está no governo e no Congresso, negociando cargos e prebendas. Sobra soberba, desleixo e falta de rumo nos campos progressistas. A celebração do 8 de janeiro no palácio do Planalto se resumiu a um convescote destinado a passar o pano geral para o andar de cima do golpe. Seguimos depositando todas as expectativas no Xandão. A esquerda acaba fazendo um lawfare com sinal trocado ao bater às portas dos tribunais diante de qualquer controvérsia. Embora Lula tenha subido o tom na política externa, seu comportamento não é acompanhado pela maioria de seu partido ou das agremiações aliadas. Com raras exceções, ministros, senadores e deputados do PT evitam se posicionar nessa questão.

Não basta reclamar, xingar, fazer piadas, desqualificar, ofender e dirigir vitupérios ao fascismo made in Brazil. É preciso enfrentá-lo politicamente, retirá-lo do governo, assumir o real comando das forças armadas e definir melhor quem são aliados e inimigos. Sei que falar é fácil, mas não há outro jeito.   


# Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos. Foi candidato do PSOL ao governo de São Paulo (2014).

o que há de novo? 26-2-24

Teve de tudo um pouco na manifestação domingueira em São Paulo: escroques de perfis variados e bandidagem de todos os naipes e setores, do bíblico ao genocida... todos comprometidos com os crimes do bolsonarismo

# Surto coletivo                                                                                     Em apelo fascista desesperado, Bolsonaro leva milhares à Av. Paulista, admite conspiração e deve ser preso

# Leia aqui as análises postadas no clipping do site

# O financismo e os crimes de Bolsonaro

Um espetáculo à parte no Carnaval de 2024

(Paulo Kliass, Terapia Política)

# A engenharia de um desfile
“Isso aqui não é lugar de marchar, não é quartel. É Carnaval, é competição. Tiro, porrada e bomba!”

(Amanda Prado, Piauí)

(Dennis de Oliveira, Jornal da USP)

# A resistência palestina em Gaza

Clipping atualizado sobre o genocídio israelense

(jsfaro.net)

pensatas (atualizadas) para o fim de semana 23-25/02/24

O ovo da serpente

Pesquisadores apontam o embrião da Operação Condor nos rastros deixados por uma entidade brasileira vinculada à Liga Anticomunista Mundial

Mariana Serafini, Carta Capital (expandir)

Em março de 2020, Carlo ­Barbieri Filho emergiu lateralmente no noticiário nativo para comentar a visita de Jair Bolsonaro nos EUA. Ele havia participado de um encontro do então presidente com empresários em Miami e também de um convescote com a comunidade brasileira na Flórida. CEO do Oxford Group, consultoria que presta auxílio a empreendedores latinos interessados em explorar o mercado norte-americano, vez por outra ele é convidado por veí­culos de comunicação para analisar as relações comerciais entre os dois países. Mantém, ainda, contatos com o corpo diplomático. No ano anterior, chegou a abrir as portas de sua casa em Boca Raton, também na Flórida, para o cônsul João Mendes Pereira, hoje embaixador na Bélgica e Luxemburgo, em um jantar de aproximação com o empresariado local.

Com experiência no mercado financeiro, sua família era dona do Banco Aplik, que quebrou e acabou vendido para ­Theophilo Azeredo Santos em 1974. ­Hoje, o ex-banqueiro apresenta-se, no ­site do Oxford Group, como consultor, analista político, jornalista, palestrante e ativista cívico. Poucos sabem, porém, que esse ativismo começou ainda nos anos 1970, quando o economista assumiu a presidência da obscura Sociedade de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais, a Sepes, braço brasileiro da Liga Anticomunista Mundial (WACL, na sigla em Inglês).

# A matéria da Carta Capital é vetada para não assinantes

Uma difícil democracia

Diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna

Patrícia Fachin, IHU (expandir)

Nesta terça-feira, 21-02-2024, faleceu o sociólogo brasileiro Luiz Werneck Vianna, que, ao longo das duas últimas duas décadas, foi um assíduo colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na tentativa de interpretar, compreender e sonhar o desenvolvimento do Brasil.

Em 2021, por ocasião da realização do colóquio "Uma difícil democracia: diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna", promovido a partir de uma parceria transdisciplinar entre a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, a Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, a Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e a Universidade Federal de Viçosa – UFV, o IHU prestou uma homenagem a este intelectual sempre disposto à nossa equipe editorial para refletir sobre a sociedade brasileira, seja na concessão de entrevistas, seja no envio de artigos periódicos para serem publicados na página eletrônica do IHU, seguidos de sua costumeira saudação fraterna: "Para o bravo IHU, com um abraço fraterno".

Republicamos, a seguir, a matéria especial publicada originalmente em 14 de abril de 2021, reiterando nossa admiração, agradecimento e homenagem ao professor Werneck Vianna, um verdadeiro intérprete do Brasil, que não se cansava de nos repetir: "O que falta ao país é clarividência, reflexão e um projeto. O inimigo é a falta de um projeto, a falta de clarividência, a falta de reflexão. O inimigo é a falta de rumo. Nós estamos navegando sem rumo em meio a um mar tenebroso onde mal se consegue distinguir, por causa do nevoeiro, um palmo diante do nariz. O surpreendente é que ainda não tenha havido um naufrágio, de que este país não tenha se transformado num Titanic. Há elementos de saúde que não estão no Estado ou nas forças políticas, estão fora delas, na sociedade".


Eis a reportagem publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 14-04-2021.

Enquanto a panfletagem cresce nas redes sociais e as torcidas se organizam para defender este ou aquele candidato nas próximas eleições presidenciais, criticando os discursos de ódio e destilando o seu próprio à medida que convém, alguns intelectuais se empenham em uma tarefa mais complexa: compreender as nossas raízes para pensar o futuro, sem estar desatento ao que de fato ocorre no presente, especialmente na jovem democracia brasileira. Um desses intelectuais é, sem dúvida, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), cujas análises sobre a democracia são influenciadas por Alexis de Tocqueville e Antonio Gramsci.

Werneck Vianna, como seu próprio pensamento demonstra, por si só, em suas intervenções no debate público, é um intérprete do Brasil porque é, antes de tudo, um observador da sociedade brasileira. Entre as várias constatações de seu espírito perspicaz, que enxerga e analisa a realidade sem deixar-se enredar por um amontoado de teorias que a enquadram antes mesmo de compreendê-la, destaca-se uma, que está no centro dos nossos males: "a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica". Foi com essas palavras que ele comentou o resultado das eleições municipais do ano passado, cujas campanhas não tocaram num ponto nevrálgico da crise nacional presente: como garantir renda e acesso aos bens comuns àqueles que estão desassistidos e sofrem mais diretamente os efeitos da crise sanitária. "Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção", disse em novembro do ano passado, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Para discutir a obra do sociólogo, hoje e amanhã, 14 e 15 de abril, acontecerá o colóquio Uma difícil democracia: diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna, promovido a partir de uma parceria transdisciplinar entre a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, a Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, a Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e a Universidade Federal de Viçosa – UFV. O evento, que será transmitido online no canal do Youtube Netsib UFES e pela página no Facebook do Netsib das 16h às 20h30, estrutura-se em três eixos temáticos em torno dos quais a obra de Werneck Vianna gravita:

a) intelectuais e pensamento social brasileiro;
b) os três poderes e a democracia; e
c) modernização, revolução passiva e República.

Todos esses temas já foram objeto de análise nas inúmeras entrevistas e artigos de Werneck Vianna publicados na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, algumas delas reunidas no livro Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual. Entrevistas com Luiz Werneck Vianna (Brasília: Verbena Editora, 2018).

 

Os intelectuais e o pensamento social brasileiro

Por ocasião dos 80 anos da obra "Raízes do Brasil", do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, o professor da PUC-Rio concedeu uma entrevista à Revista IHU On-Line N. 498, intitulada “'Raízes do Brasil' – 80 anos. Perguntas sobre a nossa sanidade e saúde democráticas", na qual analisou as tensões entre cordialidade e civilidade diante do nosso desejo de sermos modernos, enquanto continuamos atrasados. Na ocasião, ele disse que embora "Raízes do Brasil" aluda a uma civilidade que “prometeria uma sociedade mais impessoal, igualitária, menos patrimonialista”, “a cordialidade permanece, independentemente da obra, como uma presença no nosso enredo, nas nossas estruturas políticas, na nossa cultura, na nossa mentalidade, na nossa formação, a um ponto tal que se pode perguntar se ela é de fato erradicável de tudo”.

A cordialidade permanece, independentemente da obra [Raízes do Brasil], como uma presença no nosso enredo, nas nossas estruturas políticas, na nossa cultura, na nossa mentalidade, na nossa formação, a um ponto tal que se pode perguntar se ela é de fato erradicável de tudo – Luiz Werneck Vianna

Apesar de seu amplo conhecimento dos intérpretes que contribuíram para a compreensão do Brasil, Werneck Vianna não se restringe a dialogar somente academicamente com eles. Ao contrário, busca o diálogo com os intelectuais que estão pensando o Brasil do presente. Logo após o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, ao comentar a disputa eleitoral em curso em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o sociólogo fez uma observação não somente para a sociedade civil, mas também para os seus colegas intelectuais: "O Brasil está perdido? Não está. Vai ter que se repensar e os intelectuais vão ter que se posicionar de uma forma autônoma no debate público, como deixaram de fazer há tempo, seduzidos por posições do Estado, por crenças mágicas e mitológicas de que um homem dotado de poderes sobrenaturais seria capaz de mudar o país". E advertiu: "A tarefa que se impõe para nós é de recomeço. O que importa é que a reflexividade seja um instrumento crucial nessa hora. Pensar, deliberar junto. Não foi uma coisa de menos importância o que aconteceu e o que está acontecendo", referindo-se aos desdobramentos da Operação Lava Jato à época.

Nos últimos dois anos, ao longo do mandato do presidente Jair Bolsonaro, Werneck Vianna tem sido um crítico ferrenho de tentativas bolsonaristas de desestruturar as instituições democráticas e passar por cima da Constituição de 88. Ao avaliar o primeiro ano do governo, em entrevista ao IHU em janeiro de 2020, ele foi explícito ao declarar que o caminho pelo qual o país havia enveredado já não era mais “misterioso”. “Ficou claro neste primeiro ano que o tabuleiro que está posto na nossa frente é de uma guerra de posições. O governo está acantonado na sua trincheira, tentando implementar o seu projeto, que consiste em destruir o que havia antes e começar algo que considera que seja novo. (...) O importante, a meu ver, é que não há mais nada enigmático, está tudo claro: o que o governo quer e como a sociedade pode responder às pretensões autoritárias do governo”.

Mais recentemente, ao analisar a crise gerada pelo presidente Bolsonaro com as Forças Armadas e as especulações em torno de um possível autogolpe, Werneck foi taxativo: "O que se tentou foi a volta do regime do AI-5, mas isso não teve êxito. A Constituição foi reafirmada, ratificada, e sai, até então, vitoriosa desse processo do qual ela foi alvo de disputa desde que o governo Bolsonaro começou".

 

Sociedade doente

Como um observador que se impõe a tarefa de analisar a complexidade dos fenômenos ao invés de reduzi-la ao imediatismo do cotidiano em que os fatos nos são apresentados, Werneck Vianna reflete sobre a "sociedade doente do presente" à luz do passado. Ao comentar a crise política, sanitária e social em que o país está imerso, a postura do presidente Bolsonaro na gestão da crise sanitária e a descrença e o negacionismo dele e de parte da sociedade brasileira em relação à pandemia de Covid-19, o sociólogo foi categórico, na entrevista concedida ao IHU no ano passado. "Tudo que acontece hoje só foi possível porque a sociedade adoeceu antes e permitiu a vitória dos que estão aí. Eles não chegaram ao poder pelo golpe, mas pelo voto. Como os anos dos governos petistas não favoreceram a organização da vida popular, não favoreceram a organização da cidadania, a política ficou desamparada de sustentação cidadã. Se acumulou, na sociedade, por força disso, um tipo de comportamento em setores sociais bem determinados – que chamo de ralé de camadas médias –, dirigido inteiramente ao consumo, ao culto idiota às personalidades midiáticas independentemente dos seus valores". E acrescentou: "Nada do que nos ocorreu foi fruto de um acaso; não havia nenhuma fatalidade que nos empurrasse para essa situação. Nós criamos este abismo diante dos nossos pés com o tipo de política que praticamos nos últimos tempos. Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia".

Tudo que acontece hoje só foi possível porque a sociedade adoeceu antes e permitiu a vitória dos que estão aí. Eles não chegaram ao poder pelo golpe, mas pelo voto – Luiz Werneck Vianna

Ao longo dos 14 anos das gestões do ex-presidente Lula e da ex-presidente Dilma à frente da presidência da República, o sociólogo concedeu uma série de entrevistas ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em 2008, no segundo mandato do ex-presidente Lula, ele atestou que a vida política brasileira estava "amesquinhada, degradada, por uma política deliberada do governo em não estimular a organização, a mobilização social, o debate público", e criticou a falta de oposição política no país. “Só há um político no Brasil: o presidente da República. O governo trouxe todas as contradições para dentro de si e lá ele as arbitra”.

Ainda no segundo governo Lula, em 2009, o sociólogo analisou a conjuntura política e as disputas entre o PT e o PSDB, destacando a centralidade do PMDB na política, tema de debate em inúmeras análises posteriores. Na ocasião, ele disse: “Embora, nenhum deles [PT e PSDB] possa se intitular como o maior partido brasileiro, tanto um como o outro, para vencerem, precisam de um terceiro partido: o PMDB. O que os aproxima mais ainda”. E alertou: “Hoje, no Brasil, só uma pessoa faz política: o Lula. É o único que tem os condões efetivos da política nas mãos. O resto da sociedade está destituído da capacidade de fazer política real. Temos a política de um só”.

Já naquela época, Werneck Vianna dirigia seu olhar crítico aos rumos do PT e da esquerda, de modo geral. "Ele já abdicou há algum tempo de um papel mais autônomo. Tornou-se cativo do governo, do presidente, perdeu inteiramente a capacidade de agir autonomamente. Isso se é que, alguma vez, o PT, como partido, teve condições de agir a partir de deliberação própria. Ele sempre esteve muito dependente da ação seletiva e arbitral do Lula. Precisamos considerar, aqui, uma frente de vários segmentos e de pendências, como, por exemplo, a esquerda católica, o pessoal da outra esquerda que vinha da luta armada, o sindicalismo do ABC, uma intelectualidade mais antiga (tipo Sérgio Buarque, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro), que tinha expectativas em relação a um partido de novo tipo. O PT sempre agasalhou essas pendências, e a única pessoa capaz de mantê-las unidas em torno de um projeto comum é Lula."

Werneck Vianna também foi um crítico do presidencialismo de coalizão que marcou a era PT. "As alianças feitas no presidencialismo de coalizão não servem para que uma determinada orientação seja posta em prática, ou um determinado programa se viabilize, mas apenas para garantir maioria parlamentar para o governante", reiterou em 2012.


Confira neste quadro interativo algumas das entrevistas e artigos de Luiz Werneck Vianna para o IHU

 

Junho de 2013

Em novembro de 2013, o sociólogo esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, onde ministrou a conferência intitulada "A evolução processual, participação, representação e democracia progressiva a partir da Constituição Federal de 1988", a qual integrou a programação do evento "Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania", promovido pelo IHU. Na exposição, ele também conjecturou sobre os protestos de Junho de 2013, que tinham tomado o país meses antes, sobre cujas causas os intelectuais divergiram. Afirmou que elas representavam uma denúncia dos jovens que "foram expulsos da esfera pública, da possibilidade de participação. O Brasil cresceu muito rápido, teve êxitos consideráveis, mas este Estado não foi capaz de oferecer cidadania". Cinco meses depois das grandes manifestações, ele chamava a atenção para as consequências políticas dos protestos. "Eu via os jovens se organizando para participar das jornadas de junho, preparando faixas, se pintando. Foi uma experiência muito rica. Mas já estamos distantes da jornada de junho, estamos vivendo agora outro clima. Faltou política para dar continuidade àquela mobilização. Parece que não vai resultar nada deste processo".

Na palestra, Werneck Vianna também criticou as ações violentas que emergiram nas manifestações, como as ações dos black blocs, e anunciou o que veríamos se desdobrar nos meses seguintes na sociedade brasileira: o florescimento do ressentimento. “Além da superfície, havia algo encoberto que apareceu. Uma ideia de ressentimento: ‘eu fiquei de fora, agora eu quero o meu, e quero agora, não quero trabalhar por isso’. Não nasce uma cultura do trabalho daí. Da cultura do ressentimento, o que nasce é a violência. (...) A questão está na violência como vocalização das reivindicações. É triste ver uma assembleia de professores apoiar a violência nas manifestações, como ocorreu com os black blocs, como se eles fossem a vanguarda das reivindicações. Ninguém tem controle sobre o que está aí. A cultura do ressentimento é uma cultura venenosa", lamentou.

Da cultura do ressentimento, o que nasce é a violência – Luiz Werneck Vianna

Cinco anos depois das jornadas de Junho de 2013, o sociólogo examinou novamente as manifestações em retrospectiva. Em entrevista ao IHU, ele concluiu que "o terremoto" de Junho de 2013 não oxigenou a política brasileira e tampouco possibilitou mudanças substanciais. “A sociedade ficou igual, o governo e o legislativo não providenciaram mudanças, e tudo isso terminou no impeachment, como uma derivação natural, uma falta de reação a um grande sinal de que algo precisava mudar”, constatou.

À época, com a presença de Bolsonaro na disputa das eleições presidenciais, ainda que ridicularizado por diversos setores e analistas, Werneck Vianna analisou as mudanças na cena política também à luz dos efeitos de Junho de 2013 e das reações da sociedade civil diante do impeachment da ex-presidente Dilma. A principal consequência daquelas manifestações, pontuou, foi uma mudança de rota política, com o fim do governo Dilma e a introdução de uma nova lógica na condução da política econômica, “uma política econômica para a qual não estávamos preparados. (...) Isso significa uma ruptura, um afastamento e uma distância muito grande com a política centrada no Estado, com a qual vivemos desde 1930. Nós estamos vivendo agora uma nova configuração do Estado-Sociedade sem que a sociedade tenha pensado nisso, esteja querendo isso. Aliás, há candidatos que preconizam a volta do status quo anterior, quer dizer, a volta à experiência do governo de Dilma Rousseff, que foi uma experiência desastrosa para o país, com desemprego e inflação altíssimos”, acentuou.

 

Os três poderes e a democracia

O sociólogo também não se eximiu de se pronunciar sobre um dos temas mais polêmicos da conjuntura política brasileira nos últimos anos: a Operação Lava Jato. Ao comentá-la, ele fez uma declaração célebre para descrever os acontecimentos: "A sociedade tradicional brasileira estrebucha com essa intervenção, porque essa é uma intervenção cirúrgica no mundo da política e especialmente na relação entre política e economia, entre os poderes políticos e econômicos; basta ver a relação dos partidos com as empreiteiras, por onde passa esse segredo de uma relação de contubérnio [convivência] entre a esfera pública e a esfera privada no Brasil". Apesar de reconhecer a relevância da Operação, Werneck Vianna também questionou o seu "projeto de natureza messiânica" e chamou a atenção para o protagonismo do judiciário na política e os riscos de termos um governo de juízes. “Um ator que está sendo mobilizado ou para o qual a atenção se volta é o vértice do poder Judiciário, mas esse é um caminho muito sinuoso, porque nos abre as portas para um governo de juízes, e essa é uma solução ruim em qualquer circunstância”, disse em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 2015

Outro fenômeno analisado foi o da judicialização da política. Em 2018, ele observou: “O Judiciário usurpou o papel que era da política: até para a nomeação de um ministro, um juiz de primeira instância intervém com êxito. Não há caso igual no mundo. E como isso vai se repor nos seus eixos é um processo a ser discutido”. E reiterou: "Temos que colocar cada macaco no seu galho. Se a Constituição está tão valorizada, ela define como questão estratégica a divisão entre os poderes, porque não existe só um poder ou um poder acima dos demais. Isso vai depender de luta política, intelectual, jurídico-política, ou seja, de uma reflexão muito grande da sociedade sobre essa patologia da judicialização da política que tomou conta da nossa vida".

O registro que essa mídia alternativa tem feito acerca da situação política do país é mais de natureza ético-moral do que propriamente política: não tem análise, tem juízo de valor – Luiz Werneck Vianna

Em 2017, Werneck Vianna alertava para o que veríamos com mais intensidade nos anos seguintes, especialmente mais recentemente, com o turbilhão de fake news que circulam em grupos de WhatsApp e nas redes sociais. A principal “novidade” na cena pública brasileira, disse à época em entrevista ao IHU, não é mais a crise política em si, a atuação do Judiciário e as repercussões da Operação Lava Jato, mas a atuação da “mídia eletrônica”, que é “composta de uma juventude (...) que vem se apropriando desse espaço de forma muito eficiente, e eu diria, sem treinamento e sem conhecimento do país, e sem educação política para dar conta desse turbilhão que se tornou a vida política brasileira”. E complementou: "O registro que essa mídia alternativa tem feito acerca da situação política do país é mais de natureza ético-moral do que propriamente política: não tem análise, tem juízo de valor”.

 

Modernização autoritária, revolução passiva e República

Outro tema central na obra e nas análises de Werneck Vianna sobre o Brasil é a "modernização autoritária" do país. Em uma de suas entrevistas ao IHU, ele resumiu este aspecto: "A nossa história é feita de elementos de trevas também: a escravidão, o exclusivo agrário, o patrimonialismo. Nós não fizemos uma revolução democrático-burguesa; nós avançamos rumo ao moderno por caminhos autoritários, com Vargas e com o próprio Juscelino, que não era autoritário, mas manteve aquelas estruturas do Estado que o antecederam. (...) O regime militar nos devolveu os anos 1930, nos devolveu o Estado Novo. E, desgraçadamente, o PT, ao longo dos seus governos, acabou dissolvendo essa história e se tornou um elemento de continuidade dela, quando ele tinha nascido exatamente para interrompê-la".

Tendo esse cenário no horizonte ao analisar o governo do presidente Bolsonaro na última entrevista que concedeu ao IHU no mês passado, o sociólogo reiterou a necessidade de rompermos com o atraso e com o autoritarismo. "O Brasil está precisando de uma nova 'imaginação'. O Brasil que nós conhecíamos deu errado. A forma como ele vem enfrentando a pandemia é uma demonstração disso. (...) Agora, nós temos que ir para frente e para trás. Para trás, para mexermos com as nossas raízes, que têm ensejado comportamentos antissociais e esse individualismo extremado. E para frente, para procurar uma saída. Para trás, evidente que as nossas raízes sempre estiveram comprometidas, consolidando o autoritarismo. Nós fomos em frente sem interrompermos as nossas raízes, fingindo que elas tinham uma importância menor. Não é verdade; a importância delas é decisiva. Então, este é o movimento: de um lado, é olhar para trás, para remoer a tragédia do nosso passado e, para frente, para ver se a sociedade consegue, como o Canal de Suez, abrir caminho para o navio passar".

 

Clarividência, reflexão, projeto, imaginação 

Em seus pronunciamentos, Werneck Vianna não cansa de insistir num ponto: o que falta ao país é “clarividência”, “reflexão” e um “projeto”. "O inimigo é a falta de um projeto, a falta de clarividência, a falta de reflexão. O inimigo é a falta de rumo. Nós estamos navegando sem rumo em meio a um mar tenebroso onde mal se consegue distinguir, por causa do nevoeiro, um palmo diante do nariz. O surpreendente é que ainda não tenha havido um naufrágio, de que este país não tenha se transformado num Titanic. Há elementos de saúde que não estão no Estado ou nas forças políticas, estão fora delas, na sociedade".

É preciso ouvir outras vozes – Luiz Werneck Vianna

A recuperação da sanidade e de uma alternativa ao governo Bolsonaro, insistiu recentemente, depende da “união de todos que procuram caminhos contra um governo que é genocida. Agora, materializar isso depende muito de empenho, de cabeça aberta”. Uma das urgências, no entanto, é “interromper as estruturas arcaicas: as elites modernas e industriais precisariam romper com as elites agrárias tradicionais”. Para mudar o rumo, fazendo menção aos seus colegas intelectuais e também aos jovens pesquisadores que estão nas universidades, reiterou, “a reflexão ocupa um papel importante, assim como a política e as ciências, especialmente as Ciências Sociais têm um papel grande em demonstrar a natureza retrógrada que não se compromete”. Para não continuarmos presos ao atraso autoritário nas próximas eleições presidenciais, reiterou, "é preciso ouvir outras vozes”.

No seminário "Uma difícil democracia: Diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna", pesquisadores da PUC-Rio, da UFES, da UFJF e da UFV ministrarão palestras sobre temas da obra de Werneck Vianna. O encerramento do evento será no dia 15 de abril, às 19h, com a participação do próprio sociólogo e a mediação da professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, Maria Alice Rezende de Carvalho. As inscrições podem ser feitas aqui.

Luiz Werneck Vianna é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, e autor de, entre outras obras, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012).

Luiz Werneck Vianna (1938-2024)

Um dos principais nomes da sociologia brasileira. Pensamento arguto e militante que nos ajudou a entender o país e suas difíceis contradições. Alguns textos e entrevistas que reúnem parte da riqueza de seu pensamento estão lincados abaixo.

# Arquivos Luiz Werneck Vianna (A Terra é redonda) # Artigos de Luiz Werneck Vianna (PUC-Rio) # Entrevista: A luta de classes saiu da moda (UFMG) # Tudo sobre Luiz Werneck Vianna (Estadão) # Antologia (Fundação Astrogildo Pereira) # Uma difícil democracia: diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna (IHU)

Cúpula militar na mira da Polícia Federal

Leandro Parazeres, BBC (expandir)

Quase 60 anos depois do golpe militar de 1964, oficiais generais das Forças Armadas brasileiras estão sendo investigados e podem vir a ser julgados e condenados por uma tentativa de golpe de Estado. O levante investigado não é o de seis décadas atrás, cujos responsáveis nunca foram punidos, mas aquele que, segundo a Polícia Federal, era planejado dentro do Palácio do Planalto e tinha como objetivo impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder.

Bolsonaro e sua defesa vêm alegando que ele não teve nenhum envolvimento em nenhum plano de golpe de Estado ou outras irregularidades investigadas pela Polícia Federal. "Não foi chegado à minha frente nenhum documento para eu assinar e decretar (estado de) Sítio ou (estado de) Defesa", disse o presidente na sexta-feira (9/02).

Documentos divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) relativos a diferentes operações da PF como a Tempus Veriatis, deflagrada na quinta-feira (08/02), agora apontam que pelo cinco oficiais generais (aqueles que ocupam as mais altas patentes das Forças Armadas) teriam participado de um plano que incluía, entre outras medidas, a suspensão do resultado das eleições presidenciais de 2022 e até a prisão de ministros do Supremo.

Os cinco oficiais generais na mira da PF são: o ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o ex-ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto; o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira; o general Estevam Teophilo; e o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.

Os cinco são investigados pela PF por crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito. As penas por esses crimes podem chegar a 12 anos de reclusão.

Segundo relatórios da PF reproduzidos em decisões do ministro do STF, Alexandre de Moraes, os oficiais fizeram parte de diferentes núcleos da organização que teria planejado um golpe de Estado e participaram de reuniões em que foram discutidas medidas a serem adotadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Augusto Heleno, segundo a PF, seria integrante do núcleo de inteligência paralela do grupo, responsável pela coleta de informações que "pudessem auxiliar a tomada de decisões do então Presidente da República, Jair Bolsonaro, na consumação do golpe de estado".

Braga Netto, Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira fariam parte do núcleo de "Oficiais de Alta Patente" responsáveis, de acordo com a PF, por "influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação" da organização.

Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Augusto Heleno disse que havia recebido acesso aos autos das investigações recentemente e não poderia se manifestar. A assessoria do general Braga Netto confirmou o recebimento das perguntas feitas pela reportagem, mas nenhuma resposta foi enviada.

Em setembro de 2023, durante audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para apurar os atos de 8 de janeiro, Heleno negou ter participado de qualquer reunião para discutir golpe de Estado.

Em entrevista a jornalistas na quinta-feira (8/02), Braga Netto classificou as suspeitas levantadas pela PF como "perseguição" e "sonho".

"Continua uma perseguição em cima do pessoal do Bolsonaro. É tudo uma invenção, um sonho", disse.

A reportagem não conseguiu localizar as assessorias de Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira.

A investigação têm chamado a atenção de especialistas nas relações entre militares e o mundo político no país ouvidos pela BBC News Brasil.

Eles apontam que o fato de haver tantos oficiais generais investigados e passíveis de punição por atos contra a democracia no Brasil é algo inédito em um país que, segundo eles, seria acostumado a anistiar militares em outras situações similares.

Apesar disso, eles avaliam que os impactos dessa investigação para a relação dos militares com o governo deverão ser reduzidos porque tanto as Forças Armadas quanto o atual governo Lula não desejariam aumentar a tensão e tentam adotar uma estratégia que consiste em isolar os supostos responsáveis pela tentativa de golpe em vez de responsabilizar a instituição como um todo.

Eles ponderam ainda que a mera investigação não seria capaz de mudar o pensamento "intervencionista" que seria corrente entre parte das Forças Armadas. Essa mentalidade, dizem os especialistas, colocariam os militares na condição de "tutores" da sociedade brasileira, o que abriria brechas para recorrentes tentativas de intervenções e rupturas democráticas.

CRÉDITO

"País sem tradição de investigar generais"

A pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , é uma das principais referências brasileiras no estudo da atuação dos militares na sociedade brasileira. Segundo ela, a existência de tantos oficiais generais na mira da PF é um fato inédito.

"Isso é inédito na história do Brasil. Precisamos lembrar que o Brasil não tem tradição de investigar e punir militares que tentaram desestabilizar a democracia", afirmou a professora à BBC News Brasil.

Um dos exemplos mais recentes de como o Brasil lidou com atentados à democracia foi a Lei de Anistia, de 1979, que anistiou militares e civis que cometeram crimes ligados à ditadura militar entre 1964 e 1985.

O Brasil foi na contramão de países como a Argentina, que prenderam militares responsáveis pela ditadura que comandou o país entre os anos 1976 e 1983.

O historiador e professor titular da UFRJ Carlos Fico, outro estudioso da atuação dos militares no Brasil, faz uma avaliação semelhante à de Adriana Marques. Ele pontuou que a investigação tem fatores inéditos, mas pondera que ainda é cedo para dizer se ela tem o potencial de resultar em um fato histórico.

"Essa ação no STF é uma investigação com características inéditas, sobretudo porque envolve alguns oficiais generais. No Brasil, a regra geral era de que oficiais generais nunca eram investigados ou punidos por crimes contra a democracia. Mas como historiador, temos cautela para dizer se isso será ou não algo histórico. Não podemos dizer isso agora", disse o professor à BBC News Brasil.

Para o professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Ciência Política Augusto Teixeira, a investigação da PF teria um caráter revelador sobre a atuação dos militares na sociedade brasileira.

"Infelizmente, o caso que operação da PF descortinou traz à tona um histórico problema da nossa República: a atuação política de militares. Se considerarmos que a própria proclamação da República foi, em sua essência, um golpe militar contra um governo civil constituído, veremos que a participação de militares na intentona golpista bolsonarista encontra ecos na história", disse o professor à BBC News Brasil.

Segundo Teixeira, havia a sensação de que a redemocratização de 1985 e a criação do Ministério da Defesa em 1999 haviam sido capazes de estabelecer o controle civil sobre as Forças Armadas e que os militares tinham se recolhido aos quarteis.

Ele pontuou, no entanto, que desde o início dos anos 2010, teria havido um processo que ele classificou como "politização dos quarteis" marcado pela atuação política de comandantes das Forças, especialmente do Exército. Esse fenômeno teria fragilizado o controle civil sobre militares e criado o terreno para a suposta participação de oficiais em um plano de golpe.

"Diante desse quadro, não espanta a existência de tantos militares de alta patente investigados, afinal, mais do que militares, eles foram governo", afirmou o professor.

Adriana Marques avaliou que incluir tantos oficiais generais nessa investigação só foi possível por conta da suposta solidez das instituições democráticas do país.

"O regime democrático brasileiro resistiu, na medida do possível, à investida autoritária. A democracia brasileira sofreu vários percalços nas últimas décadas, mas se manteve. O fato de termos instituições democráticas como um Poder Judiciário independente permitiu termos o respaldo necessário para que essa investigação prosseguisse", afirmou.

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"Investigação, sozinha, não mudará mentalidade de militares"

A professora Adriana Marques pontuou que existe uma vasta literatura acadêmica que se debruça sobre a chamada "mentalidade de tutela" dos militares brasileiros sobre a sociedade. Ela avalia que somente a investigação conduzida pela PF não teria o poder de mudá-la.

"A investigação, sozinha, não mudará a mentalidade dos militares. Agora, se houver responsabilização dos militares, a gente pode vislumbrar, num futuro, uma mudança nessa mentalidade de tutela. Até agora, conspirar contra a democracia e participar de planos de golpe nunca gerou consequências políticas e jurídicas para os militares", disse a professora.

O historiador Carlos Fico disse que a chamada "mentalidade de tutela" está arraigada nas Forças Armadas brasileiras há vários séculos.

"É algo estrutural. Ao longo da nossa história, houve dezenas de episódios de intervencionismo militar no Brasil. Essa mentalidade confere aos militares a condição de tutores da sociedade brasileira capazes e responsáveis por arbitrar conflitos", disse Fico.

Mais recentemente, completou o professor, essa mentalidade estaria materializada no artigo nº 142 da Constituição Federal.

O texto diz que as Forças Armadas, sob a autoridade do Presidente da República, se destinam à "defesa da Pátria" e "à garantia dos poderes constitucionais". Esse artigo é frequentemente evocado por manifestantes favoráveis a uma intervenção militar como um texto que daria legitimidade à uma ruptura democrática no país.

Segundo ele, essa condição estrutural ganhou ainda mais ênfase na gestão Bolsonaro.

"Durante o governo Bolsonaro, houve uma revitalização dessa mentalidade por uma série de motivos. Essa é a razão de haver tantos oficiais generais envolvidos (nessa investigação). Isso é lamentável", pontuou o professor.

Fico concordou com Adriana Marques e disse que não acredita que a investigação possa, isoladamente, mudar a mentalidade de parte dos militares brasileiros.

"Seria preciso promover uma mudança no artigo nº 142 para redirecionar as atribuições da Forças Armadas. Mas esse é um movimento sensível e o governo Lula não tem força política para encampar isso agora", disse o professor.

O professor Augusto Teixeira concordou com Adriana Marques e Carlos Fico. Para ele, a investigação não mudará a mentalidade de parte dos militares.

"Não creio que investigações podem mudar esse ímpeto ou mentalidade de tutela. Existe um entendimento de que as Forças Armadas são uma burocracia especial, de Estado e de longa duração."

Teixeira também avalia que uma das medidas que poderia ter impacto seria a revisão do artigo nº 142 da Constituição Federal. Mas assim como Fico, ele pontuou que parece não haver interesse nisso neste momento.

"A importante revisão do artigo 142 da Constituição parece não ter nem o apoio do governo federal [...] Na prática, o que se percebe é a manutenção da omissão civil sobre esta matéria, tanto no governo quanto no Congresso, somada a uma estratégia de acomodação de interesses", disse.

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Pouco impacto na relação com governo Lula

Carlos Fico e o professor Augusto Teixeira avaliaram que tanto o governo Lula quanto a cúpula das Forças Armadas vêm adotando estratégias para minimizar o impacto das investigações nas relações entre militares e o Palácio do Planalto.

Para Teixeira, o impacto nessa relação será "mínimo".

"​​Tanto o Ministro da Defesa como os Comandantes das Forças buscarão sustentar o argumento de que a possível participação de militares em possíveis ilícitos seria uma conduta individual [...] O governo e sua bancada buscarão blindar a instituição militar e, possivelmente, o atual comando das Forças, atrelando qualquer desvio a militares em particular e ao ex-presidente e o seu grupo", disse o professor.

Carlos Fico concordou com Teixeira.

"Essa é apenas uma impressão, mas existe, claramente, uma estratégia de individualizar a culpa e não condenar toda a instituição. Alguns oficiais poderão ser condenados e as coisas continuam. Isso já está precificado", avalia o professor.

Para Augusto Teixeira, ainda que alguns oficiais possam ser punidos, o tom entre militares e governo deverá ser o de acomodação.

"Em suma, deverá preponderar o modelo de acomodação com uma retirada momentânea das Forças para os quarteis, ou seja, afastados da política", disse o professor.

Adriana Marques adotou um tom mais cauteloso. Segundo ela, será preciso aguardar como o Ministério da Defesa lidará com o avanço das investigações da PF.

"Até agora, a postura do ministro da Defesa (José Múcio Monteiro) era de conciliar e pacificar as Forças Armadas, mas acho que diante dos fatos graves que vêm sendo revelados, a pasta terá que tomar medidas contra algumas das pessoas investigadas", afirmou a professora

Governo Lula assume luta internacional pela paz em Gaza e denúncia do genocídio israelense contra os palestinos

Marielle Franco

# Quem era a vereadora assassinada e quem mandou matá-la

(Flavio Costa e Carol Castro, Intercept)


Julien Assange

# O destino de Assange e o fim do jornalismo (Chris Hedges, Outras Palavras)

# Julian Assange ameaçado (Walnice Nogueira Galvão, A Terra é redonda)

Brasken: Delícias da Privatização

Desafio todos os neoliberais a apresentarem um único exemplo de privatização que tenha trazido algum benefício para a sociedade brasileira. 

# expandir

Acusada de promover um dos maiores desastres socioambientais da história do país com a exploração de depósitos de sal em Maceió, capital de Alagoas, a petroquímica Braskem afirma que sempre operou com segurança as minas subterrâneas desenvolvidas para sua extração.


Mas documentos que vieram à tona com as investigações iniciadas depois que um tremor de terra revelou o estrago, em 2018, mostram que a empresa desprezou durante vários anos exigências das autoridades para que monitorasse com maior rigor as atividades nas suas minas.


Três anos antes do tremor, a ANM (Agência Nacional de Mineração) exigiu que a petroquímica realizasse periodicamente exames de sonar para analisar a situação no interior das minas, localizadas centenas de metros abaixo da superfície do solo, mas a empresa nunca cumpriu completamente a exigência. De 2015 até 2018, a Braskem analisou com sonar apenas 4 das suas 35 minas.


O conteúdo desses documentos foi tornado público pela ANM em junho do ano passado e chamou a atenção da Polícia Federal, que realizou buscas em escritórios da Braskem e nas casas de executivos e consultores da empresa em dezembro. O UOL analisou a íntegra deste conjunto de documentos, que soma milhares de páginas.


Em nota enviada à reportagem, a Braskem disse ter utilizado "a melhor técnica disponível no momento" para monitorar as minas e que os levantamentos topográficos realizados nunca apontaram problemas.


Nos exames de sonar, aparelhos usam a propagação de ondas sonoras no interior das cavernas criadas pelas minas para medir as dimensões das cavidades e determinar sua localização com precisão, o que permite antecipar problemas e tomar precauções antes que seja tarde demais.


Especialistas consideram esse monitoramento essencial para evitar que as cavernas ultrapassem certos limites, o que pode afetar o equilíbrio entre as camadas rochosas do subsolo e causar desmoronamentos com reflexos na superfície, como em Maceió.


Em 2014, um professor do Departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, André Cezar Zingano, consultor da ANM, recomendou que os exames de sonar fossem realizados anualmente nas minas que estavam em produção e a cada cinco anos nas minas desativadas.


No ano seguinte, a ANM exigiu que isso fosse feito. A Braskem fazia exames desse tipo com alguma frequência desde o início dos anos 2000, mas nunca os realizou com a periodicidade recomendada pelo especialista e tampouco deu a atenção requerida aos poços mais antigos.

Em 2015, quando a ANM exigiu os exames de sonar pela primeira vez, somente três das dez minas em atividade foram analisadas por esse método, segundo o relatório mais recente da Braskem para a agência. Nos anos seguintes, até o tremor de 2018, houve exames em apenas mais uma mina.


Duas minas que estavam produzindo nesse período jamais foram examinadas por sonar enquanto estiveram em operação. Quando a agência exigiu que isso fosse feito, havia 25 minas desativadas. Somente quatro tinham sido analisadas pelos aparelhos após seu fechamento, uma única vez.


A companhia só passou a fazer os exames regularmente, em todos os poços, depois do tremor de 2018, que provocou a suspensão das atividades de mineração da Braskem em Maceió e a desocupação de cinco bairros da cidade, onde viviam milhares de pessoas.


"A empresa sabia muito bem dos riscos, mas em algum momento pensou que podia adotar parâmetros menos conservadores na exploração das minas para extrair mais sal", diz o engenheiro Abel Galindo Marques, professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas.

Especialista em fundações de edifícios, Galindo começou a desconfiar de que havia algo errado acontecendo nas minas da Braskem em 2010, quando foi chamado pela primeira vez para investigar rachaduras em casas nos bairros vizinhos às áreas exploradas pela empresa.

Em 2019, especialistas do Serviço Geológico do Brasil enviados pelo Ministério de Minas e Energia para estudar a situação em Maceió concluíram que a exploração de sal nas minas era a principal responsável pela instabilidade do solo da região, provocando rachaduras em casas e nas ruas dos bairros.


A Braskem diverge das conclusões dos geólogos, argumentando que outros fatores ainda não determinados podem ter provocado o afundamento do solo e outros problemas observados nos arredores dos poços, e diz que sempre operou suas minas sob a supervisão das autoridades.

Levantamentos topográficos encomendados pela Braskem e apresentados à ANM indicavam nessa época que não havia problemas na superfície, sugerindo que não havia motivo para preocupação nas minas subterrâneas. Como se viu depois, a avaliação estava equivocada.

Era como se as minas fossem operadas às cegas. "A medição das cavidades por meio de sonar, atualmente utilizada, é uma tecnologia de medição direta, e por isso, é considerada a mais adequada e a mais precisa, perante as demais tecnologias que são indiretas", diz a Braskem em seu relatório mais recente para a agência.


Quando finalmente os exames passaram a ser feitos de acordo com as exigências da ANM, em 2019, os aparelhos mostraram que, em 18 das 35 minas desenvolvidas pela empresa, desmoronamentos haviam alterado o equilíbrio das camadas rochosas que separam as jazidas de sal e a superfície do terreno.

O caso que provocou mais alarme até aqui foi o da mina 18, cujo rompimento no fundo da lagoa de Mundaú, em dezembro, assustou a população da cidade. A mina estava desativada desde 2014, mas a Braskem só detectou o risco de rompimento em maio do ano passado.

Estudos feitos pela própria Braskem e por especialistas independentes com dados captados por satélites desde 2004 mostram que houve um afundamento lento e contínuo do solo da região das minas desde então. As estimativas variam de 40 centímetros a 2 metros em duas décadas.

Maior empresa do setor petroquímico no país, a Braskem é controlada pela Novonor, holding que administra os negócios da família Odebrecht, e tem a Petrobras como sócia. A companhia foi criada em 2002 para integrar várias participações que o grupo baiano adquiriu ao longo dos anos.


A Braskem usa o sal, importado do Chile desde a interrupção da extração em Alagoas, para produzir cloro, soda cáustica e outros compostos químicos numa fábrica localizada nas imediações das minas de Maceió. Esses insumos são usados depois na fabricação de outros produtos industriais, como o PVC.

A empresa não reconhece culpa nenhuma pelo desastre em Maceió, mas assumiu a responsabilidade pela reparação dos danos, comprometendo-se a gastar bilhões de reais para fechar os poços com segurança, monitorar as minas e indenizar as famílias que precisaram deixar as áreas de risco.

Acordos firmados pela Braskem com o Ministério Público Federal e outros órgãos para garantir o cumprimento desses compromissos livraram a empresa de ações civis movidas na Justiça. A investigação na área criminal continua em andamento e ganhou impulso em 2023.

Em dezembro, a Polícia Federal disse ter encontrado indícios de que, ao longo dos anos, a empresa não seguiu critérios de segurança previstos nos planos entregues por ela mesma aos órgãos reguladores, além de omitir informações e apresentar dados falsos aos responsáveis por fiscalizá-la.


Um dos alvos das buscas realizadas em dezembro foi o engenheiro Paulo Roberto Cabral de Melo, que foi responsável pela operação das minas por três décadas, do início da exploração, em 1976, até sua aposentadoria, em 2007, quando passou a atuar como consultor da Braskem.

Cabral assinou o primeiro plano entregue ao governo federal pela antiga Salgema, a empresa que iniciou a exploração das jazidas. No documento, ela prometeu tomar precauções para conter riscos da atividade mineradora, realizando exames de sonar anuais em todos os poços.


A promessa não foi cumprida, em parte por causa dos custos elevados para realização dos estudos. Em 1983, uma comissão criada pelo governo de Alagoas para examinar a atuação da empresa concluiu que eles eram indispensáveis para garantir a segurança das operações.

"Os dirigentes da empresa nos diziam que queriam ampliar a capacidade de produção da fábrica e para isso precisavam extrair mais sal, mas fizeram isso de forma irresponsável", afirma José Roberto de Fonseca e Silva, que presidiu o IMA (Instituto do Meio Ambiente de Alagoas) de 1986 a 1989.

Os relatórios da Braskem mostram que ela realizou os exames de sonar esporadicamente nos anos 1980 e 1990. Somente em 2012 o Departamento Nacional de Pesquisa Mineral, que exercia as funções desempenhadas hoje pela ANM, começou a cobrar mais rigor da empresa.


Mas o órgão regulador demorou a mostrar que falava sério, mesmo depois de exigir a realização dos exames de sonar anuais. A agência só multou a Braskem pelo descumprimento da exigência em 2020. A empresa recorreu contra a decisão e ainda não pagou as multas.

Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, a Braskem defendeu os métodos que adotou para monitorar suas minas. "A extração de sal-gema em Maceió sempre foi acompanhada interna e externamente utilizando a melhor técnica disponível no momento, fiscalizada pelos órgãos públicos competentes e com todas as licenças necessárias para sua operação", afirmou.

Questionada sobre os motivos pelos quais não realizou os exames de sonar exigidos pela Agência Nacional de Mineração com o rigor recomendado, a empresa disse apenas que os exames foram "realizados de acordo com critérios técnicos".

Segundo a Braskem, os levantamentos topográficos realizados para monitorar o afundamento do solo são um "método amplamente utilizado para esse tipo de medição" e nunca apontaram problemas. Questionada sobre os motivos pelos quais não fez estudos com dados de satélite antes de 2018, a companhia não se manifestou.


A Braskem informou que já executou 70% das ações previstas no plano de fechamento das minas aprovado pela ANM e destacou o reforço nos métodos de monitoramento das minas. "A Braskem instalou na região uma das redes de monitoramento mais modernas e robustas do país", afirmou.


A ANM foi questionada sobre a demora para multar a empresa após o descumprimento das exigências feitas em 2015, mas não quis se manifestar. Sua assessoria de imprensa afirmou que as informações disponíveis estão no site da agência, mas elas não esclarecem os motivos da demora.

# Acesse a matéria original para a leitura dos gráficos

É hora de passar a caserna a limpo

Roberto Amaral, Carta Capital (leia aqui)

Pensatas para a quaresma

Carnaval, o Brasil que deu errado

Tatiana Dias, Intercept (expandir)

Leia também no Intercept o texto de Fabiana Moraes "Para tudo se acabar na 4a feira: a simulação da riqueza num país pobre em cidadania"

E essa é precisamente a nossa celebração.

O Carnaval é o Brasil que deu certo, muita gente diz. Não: é o Brasil que deu errado. Quem disse isso foi o mestre Luiz Antonio Simas em um vídeo publicado na quinta-feira, 15, e todo mundo deveria ouvir o que ele tem a dizer. Quem ama e quem odeia. Porque o Carnaval ajuda a explicar o país.


O Brasil como estado-nação, Simas lembra, foi projetado para excluir e para concentrar renda. Teve uma lei de terras que beneficiou latifundiários, privilégios para imigrantes brancos, uma abolição fajuta que levou milhões de pessoas negras à marginalização. Nossa construção como país foi feita para "desarticular sentidos coletivos de vida e aniquilar as culturas não brancas", diz Simas. Projetados para excluir. Esse Brasil deu certo.


É nas brechas desse sistema de exclusão bem-sucedido que Simas, pesquisador, historiador e historiador, se embrenha. Em uma entrevista ao podcast Lado B do Rio, o pesquisador conta que o que ele estuda é justamente como os excluídos constroem seus sentidos de vida nesse sistema excludente. "No caso do Rio, você vai estudar escola de samba, cultura das ruas e inevitavelmente, o jogo do bicho", ele explica.


As palavras de Simas ecoaram quando, nessa semana, acompanhei as tentativas de criminalização da Vai-vai após o inesquecível desfile de retorno ao grupo especial deste ano, em que a escola homenageou o hip-hop (outro grito dos excluídos, aliás).


Com o tema “Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop: um manifesto paulistano”, a escola levou os Racionais MCs ao sambódromo, e empilhou referências de resistência negra e periférica, passando por bailes black, homenagem a Sabotage, Negra Li como madrinha de bateria, participação de Nelson Triunfo e um carro dedicado à São Bento, onde aconteciam as batalhas de rima. Uma ala de crianças representou os skatistas.


Um carro trouxe a estátua do Borba Gato, símbolo dos bandeirantes colonizadores, pichada – e teve a presença de Paulo 'Galo' Lima, dos entregadores antifascistas, que foi preso por colocar fogo na estátua em um protesto em 2021. Outra ala, chamada "Sobrevivendo no Inferno", em referência ao clássico álbum de 1997 dos Racionais, mostrou policiais com chifres.


O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, também desfilou. Neto de um fundador da Vai-vai, Almeida tem uma longa relação com a escola. Neste ano, estava no carro do Borba Gato. Não demoraram a pipocar as primeiras manchetes: "Silvio Almeida desfila com Borba Gato pichado". Hoje, veículos de direita já falam em "ode ao crime".


Logo após o desfile, o sindicato dos delegados de São Paulo emitiu uma nota de repúdio, afirmando que o enredo desrespeitou, afrontou e tratou de forma vil e covarde as forças de segurança, e foi um escárnio aos agentes da lei.


De onde menos se espera é de onde não sai nada mesmo. Mas a narrativa seguiu crescendo. Na quarta-feira de Cinzas, a Folha resolveu publicar sobre uma investigação de 2022 da polícia de São Paulo, que diz que a escola emprestou R$ 300 mil de um suposto chefe do PCC para desfilar naquele ano. (O empréstimo foi registrado, o ex-diretor em questão negou a ligação com a facção).


Deve ter dado audiência. Depois, outra manchete do jornal também associou a escola ao crime organizado: "Vai-Vai pode ficar sem sede após negócio que favoreceu suposto chefe do PCC". Seja qual for a razão pela qual a Folha resolveu publicar isso justamente no dia em que a escola estava sob ataque por ser supostamente "bandidólatra", como disse o pré-candidato de direita à prefeitura de SP Kim Kataguiri, funcionou. O prefeito de São Paulo já avisou que estuda uma punição à escola (em um enorme Como Queríamos Demonstrar).


Mas qualquer um que acredite e se apegue nessa narrativa generalista é, além de preconceituoso, profundamente ignorante sobre a própria história do Carnaval.


Na década de 1920, quando surgiram as primeiras escolas no Rio de Janeiro, a cultura afro-brasileira era criminalizada e perseguida; desde então, cresceram e floresceram lidando com as contradições da sociedade carioca. O poder instituído, o turismo, as mídias, o mercado, a contravenção, o crime, o jogo do bicho: essas relações cercavam o Carnaval, mostrou Simas em um artigo publicado semana passada no Intercept.


Foi na década de 1970, lembra o historiador, que se aprofundou a relação entre algumas escolas e contraventores. Hoje, o cenário está mudando, com os controles de territórios ligados à milícia e ao tráfico.


Muda o jogo de poder, mas não o papel das escolas na vanguarda da cultura carioca. "As escolas de samba nunca foram problemas para a cidade e sua gente, mas solução. Por isso tantas instâncias – da contravenção ao mercado, passando pelas esferas legais do poder – tentam cooptá-las", ele escreveu.


Simas fala do Rio de Janeiro, mas não pude deixar de pensar em seu texto, e em suas palavras, ao acompanhar a reação contra a Vai-vai. A nota de repúdio dos delegados, a reação violenta do status quo à resistência desfilando na avenida, é o tal Brasil que deu certo em ação. É justamente o projeto desse Brasil excludente, que defende o encarceramento em massa e a criminalização da cultura negra e periférica, se materializando.


Com a Vai-vai, em que as críticas aos atores desse sistema de repressão foram mais explícitas, a reação também foi mais violenta. Mas é a mesma reação, desde sempre. Neste ano, em que Yanomamis, "Um defeito de cor", África, serpentes, onças, e Alcione estiveram na avenida, a resistência foi transformada em espetáculo em grande escala. Organizar a raiva e defender a alegria. O Brasil que deu errado foi didaticamente explicado na Globo.


Simas disse, em um vídeo publicado na quinta-feira, que é a brasilidade que pode tombar esse Brasil que deu certo excludente. "O carnaval é a vitória da brasilidade sobre o Brasil. É a vitória do corpo sobre a morte", ele falou.


Há quem defenda que o que ele diz é romantização. Afinal, nesse mesmo Carnaval também vimos a Beija-flor receber R$ 8 milhões de dinheiro público para homenagear Maceió – levando à Sapucaí o presidente da Câmara, Arthur Lira, do Progressistas, após pegar um voo da Força Aérea Brasileira. Mas os jogos de poder que envolvem a maior festa do país são precisamente o que Simas aponta: a brasilidade, o Carnaval, as escolas são a salvação, e por isso mesmo não faltam tentativas de cooptação e controle – como sempre houve no Brasil que deu certo.

# Lula 3: Impasse na periferia do capitalismo

Um dos capítulos do ensaio de Luis Filgueiras publicado em Outras Palavras pode muito bem ilustrar a bela reportagem de Pública

# Sobe para 22 o número de mortos pela PM na Baixada Santista

Homem foi  morto na tarde desta 5a feira, 15, no Guarujá, após suposto confronto com a Polícia Militar

(Folha) 

# Todo Apocalipse tem seu fim

O Carnaval terminou mas a apuração da micareta golpista continua

(Folha)

O que há de novo? 

Na Folha, no Estadão...

# Tarcísio vai estar ao lado de Bolsonaro na Paulista, "como sempre estive", justifica. Qual Bolsonaro? O ladrão de joias? O genocida da covid?  O golpista? Ao lado de qual Bolsonaro o governador de São Paulo "sempre esteve"? (leia mais).

# Qual foi o papel da mídia na tentativa de golpe de estado? Só um ex-comentarista da Jovem Pan é citado na investigação, embora outros veículos tenham escondido o 8 de janeiro (Maurício Stycer).

# Clube Militar sai da toca e põe em dúvida provas contundentes da conspiração bolsonarista (Gabriel de Souza).

# Quem vai e quem já avisou que não vai na provocação de Bolsonaro na Paulista (Gabriel de Souza e Karina Ferreira)

# Jair Renan é indiciado por falsidade ideológica e lavagem de dinheiro (Anaís Mota)

Embevecido com o brilho fascista, o prefeito de SP cumpre o script vergonhoso que a História lhe reservou

Silêncio de Nunes sobre crimes de Bolsonaro mostra conivência do atual prefeito de SP com golpismo

# Entrevista de Boulos na Folha # O cinismo de Nunes para evitar o contrangimento político que está enfrentando

A definição do próprio Exército sobre Bolsonaro: "indigno de usar a farda" 

Francisco Leali, Estadão (expandir)

General quatro estrelas tirado da cama cedo pela Polícia Federal é tudo o que o Exército não precisava. A Força, que teve parte de sua cúpula ocupando os principais postos da gestão de Jair Bolsonaro, acordou na semana passada sendo obrigada a sentir o gosto amargo de ter aderido ao capitão que um dia fora considerado indigno de vestir a farda.

A memória fez apagar o que, em 2021, o repórter Rubens Valente resgatou por meio da Lei de Acesso à Informação no acervo do Exército. Deve-se ao jornalista a publicidade do “Noticiário do Exército” divulgado em 25 de fevereiro de 1988 e que trazia o título “A verdade: um símbolo da honra militar”.

O que está estampado na capa da publicação editada pelo Centro de Comunicação do então Ministério do Exército é lição de como a cartilha castrense preza a verdade e a hierarquia. Dito de outra forma, mentira e insubordinação são inadmissíveis na caserna. Se um subordinado mente, não pode estar ao lado dos seus. Numa guerra, como confiar a própria vida ao colega que não honra a palavra que dá? O ensinamento é levado às academias militares.

O episódio da década de 1980, para quem não se lembra, envolve o capitão Bolsonaro e um colega. Os dois deram entrevista à revista Veja e noticiou-se a ideia de um plano de explosão de uma bomba para causar tumulto. Bolsonaro era aquele que ousara reclamar publicamente dos baixos soldos ainda como militar. No mundo sem internet e redes sociais, falar à imprensa sem autorização do superior era conduta vedada nas Forças Armadas.

Foi aberto um processo disciplinar e Bolsonaro condenado. Chamado a se explicar, mentiu para o comandante. E isso ficou registrado no texto do Noticiário do Exército para que toda a tropa soubesse que o comando estava naquele momento expulsando da Força o mentiroso. O mesmo que anos mais tarde subiria palanque usando texto bíblico falando da verdade que liberta.

O texto começa assim: “O cadete - futuro oficial do Exército - ao ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, recebe uma miniatura da espada de Caxias, declarando solenemente: ‘recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar’. Dentro dessa máxima é formado o oficial do Exército brasileiro”. O editoral destaca o culto a valores como honestidade, lealdade e amor à verdade. Na época, uma investigação concluiu que Bolsonaro e seu colega mentiram ao seu comandante. “Conscientemente (Bolsonaro e seu colega) faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar”, diz o texto do Centro de Comunicação do Exército.

Depois disso, o caso subiu ao Supremo Tribunal Militar (STM) e o capitão safou-se apesar de laudos no processo atribuírem autoria a ele de croquis de bombas, como revelou mais tarde o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no Estadão e em livro. Inocentado, ganhou de volta o direito de ser chamado de militar ainda que a decisão judicial tenha sido na contramão do que defendera o Ministério do Exército de então.

O salvo-conduto do STM deu a Bolsonaro álibi para voltar a ser recebido nos quarteis. Mas demorou um pouco até que a porta da frente lhe fosse aberta. Por anos, o capitão era só o parlamentar insignificante do baixo clero. Mas ganhou as ruas e as redes, virou um político pop e único com musculatura para derrotar o candidato petista em 2018.

Naquele ano, tinha chegado ao generalato uma geração que ouviu o capitão-deputado gritar por melhores soldos enquanto governo tucano de Fernando Henrique Cardoso arrochava as contas. O mesmo fora ao plenário defender a morte do então presidente, mas por conta da imunidade parlamentar e sua irrelevância política na época não foi punido.

Com Lula preso e o PT enlameado por denúncias de corrupção, Bolsonaro surfou direto para o Planalto. No final daquele 2018, num café organizado no comando da Força, um general e três coronéis chamaram alguns jornalistas para conversar. Entre biscoitinhos e café adoçado a gosto, queriam medir até onde a imprensa vinculava Bolsonaro, recém-eleito, às Forças Armadas.

Ao ouvir de um dos convidados que os militares no governo Bolsonaro se equiparariam ao PFL dono da cadeira de vice de Fernando Henrique, levando ônus e bônus da gestão tucana, o general se irritou. Questionou como as Forças Armadas podiam ser comparadas com partidos.

O agastamento do general, que seguiria para atuar na Presidência da República na gestão Bolsonaro, traduzia a sensação compartilhada por parte dos militares de que têm uma missão de resguardar o País acima de tudo, e quem, sabe acima de todos. Ali estava o germe da vontade de poder voltar a mandar nos civis, ainda que sob as ordens de um comandante-em-chefe que não tinha passado do posto de capitão.

As Forças são instituições de Estado e, teoricamente, não deveriam se inclinar na direção de legendas partidárias. A verdade que lecionam aos cadetes seguem sendo o alicerce da formação da tropa. Em 1988, a mensagem já era clara: “O Exército tem, tradicionalmente, utilizado todos os meios legais para extirpar de suas fileiras aqueles que, deliberada e comprovadamente, desmerecem a honra militar. A verdade é um símbolo da honra militar”.

A operação da Polícia Federal da semana passada pode ser, para boa parte dos que viam Bolsonaro como Messias, perseguição política engendrada pelo STF. Mas há quem considere lamentável para a imagem das Forças Armadas o fato de que ex-comandantes e oficiais generais tenham recebido visita da PF por terem, de fato, flertado com um golpe sob inspiração daquele que um dia foi chamado de indigno pelo Exército.

Opinião por Francisco Leali

Coordenador na Sucursal do Estadão em Brasília. Jornalista, Mestre em Comunicação e pesquisador especializado em transparência pública. Escreve às sextas-feiras.

Delícias neoliberais

Livro recém-lançado examina rede de alianças que protege e amplia a riqueza dos rentistas. O papel de políticos, mídia, academia e economistas de mercado. O novo: surgem, em todo o mundo, movimentos e produção teórica para virar o jogo 

(C.J. Polychroniou, Outras Palavras)

Acionistas recebem cada vez mais, os trabalhadores adoecem e a população sofre com um atendimento cada vez mais precarizado”

(Rede Brasil Atual)

Vigília

Sociedade brasileira acompanha em estado de suspensão os lances políticos e jurídicos que envolvem as últimas tentativas de manter Bolsonaro vivo. Nesta postagem, notícias e comentários que atualizam e põem em perspectiva o cenário da quaresma nacional. 

Bolsonaro e o abraço dos afogados

Golpistas civis e militares não se conformam com as derrotas sucessivas que sofreram pelas mãos do povo nas eleições, pelas mãos dos juízes e pelas mãos da Polícia Federal. Desesperados, armam agora estratégias suicidas para respirar e tentar a volta por baixo, qualquer que seja a indignade que for preciso cometer. Acompanhe nos boxes desta postagem...

Para tudo se acabar na 4a feira: a simulação da riqueza num país pobre em cidadania

Festas como Carnaval e São João viraram apoteose de um modelo de negócios que vende direitos básicos como forma de distinção social

Fabiana Moraes, Intercept (expandir)

SERVIÇO PRIME, picolé gourmet, cartão black, camarote VIP, bar premium, espaço privilege. São muitas as distinções usadas para indicar quem são as pessoas muito importantes, que merecem lugar no palco, e quem pode, no máximo, servir de plateia. 

Embora a camarotização do espaço público não seja uma novidade em si, a “democratização” dos títulos VIP mostra que nosso desejo de ser melhor do que o outro nunca foi tão compartilhado. No aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por exemplo, as 22 salas VIP agora vivem lotadas. 

Com mais gente se servindo de canapés nos confortáveis sofás VIP, a grita de quem quer se sentir “exclusive”, é claro, começou: há uma corrida, agora, para mimar com mais privilégios quem já era “privilege”.

Outra evidência do desejo popular pelo carimbo very important person foram as adesões ao “cartão black” oferecido pelo Girabank, banco digital que tem o influencer Carlinhos Maia como ex-sócio fundador

Voltado para classes mais populares, o cartão nunca prestou serviços comumente atrelados aos cartões black, como descontos em itens chiques ou prioridade no embarque em aeroportos. 

Mas isso não impediu que milhares de pessoas corressem para garantir aquela espécie de passe mágico para um mundo pretensamente mais exclusivo: “Vai ser uma honra ter o seu cartão na minha carteira. Em nome de Jesus“, disse uma mulher no YouTube sobre o serviço ruidosamente vendido por Maia nas redes. 

A  animação do influencer durou pouco – o banco foi inaugurado em 2022 e, já em 2023, o alagoano saiu da empresa, acusada de dar golpes e reter dinheiro de correntistas.

O desejo de se distinguir é uma propriedade humana hipervalorizada e instrumentalizada no contexto do capitalismo, ainda mais bombada pela política do parecer ser das redes sociais. 

O caso do cartão black voltado para pessoas pobres é o exemplo máximo dessa sacada: simbolicamente, ele diz a todos que quem o porta é dono de uma boa renda, ou até um investidor. 

Não importa se sua renda é equivalente a um salário mínimo , o que vale é simular socialmente – e plataformas como o Instagram são excelentes para isso – que você ganha, no mínimo, R$ 15 mil por mês

Esse sim é um fenômeno novo: na história recente do Brasil, quando houve estabilização da inflação, aumento real de salário mínimo e políticas de inclusão social como o Bolsa Família, eram os eletrodomésticos e carros alguns dos principais objetos de exibição. 

Mas, no planeta pós-pandêmico e hiperquente, com seus bilhões de fotografias e memes inundando as redes, o consumo mais acessível é o da imagem – é o mundo da iconofagia. Nele, buscamos representações que correspondam aos nossos desejos e vontades, como escreve Ana Paula Fiori Sawamura no texto “Consumo e distinção social no Instagram“. 

Carlinhos Maia foi sócio-fundador do Girabank, banco digital que oferecia cartão VIP “acessível” e acabou acusado de dar golpes. Foto: Divulgação/Girabank

Carnaval e festas juninas são apoteose do consumo VIP

Para além dos objetos de consumo, o espaço público é o lugar mais evidente desse desejo de se segregar e demonstrar mais riqueza e sucesso do que os demais. 

Para que isso aconteça, é preciso transfigurar o que é público em privado, partindo assim as ruas e praças em dois ambientes: em um, está quem tem direito não só ao som de DJs e drinques, mas ainda à segurança, lazer e saúde. No outro, aqueles com acesso precário – ou nenhum –, principalmente aos três últimos “itens”. 

As grandes festas do país, como o Carnaval e São João, são a apoteose desse fenômeno.

No Galo Summer, serviço de camarote oferecido durante o bloco Galo da Madrugada, em Recife, os serviços de open bar e open food, além de “calçada VIP” (sim, CALÇADA VIP) foram oferecidos em conjunto com segurança especializada e socorristas.

Mas, veja só: era possível localizar, no mesmo dia, camarotes por preços populares, feitos para garantir que o comprador não se misturasse com “o povo”. 

No pacote do Camarote Novo Galo, por exemplo, por R$ 28, você consegue ser um pouco mais cidadão e driblar, de leve, a crise climática: ventiladores, seguranças, bombeiros, enfermaria, praça de alimentação e banheiros eram alguns dos “produtos” vendidos.

É sem dúvida importante que os tais espaços VIP não sejam um privilégio somente de quem recebe mais de 10 salários mínimos por mês. Por outro lado, se praticamente todo mundo está num cercadinho VIP, como pensar a folia – e a vida cotidiana – de quem está lá fora?

A adesão cada vez maior da população aos “serviços VIP” indica um triste fenômeno: a desistência da fé no bom funcionamento dos serviços públicos. 

Essa é uma questão central, quando a possibilidade de não ser assaltado, de não sofrer outras violências ou de ser atendido no caso de um problema de saúde só é benefício de quem pode pagar. 

Mais: o dinheiro de foliãs e foliões não vai para governos de cidades e estados. Ele se concentra na iniciativa privada, a mesma que adora a ideia de um estado mínimo.

Ficam as perguntas: quanto as prefeituras arrecadam ao licenciar esses espaços? E como esse valor é devolvido para a administração pública? A que serviços públicos esse dinheiro é voltado? Saúde? Educação? Limpeza?

O bloco Galo da Madrugada, em Recife, oferece serviços VIP para quem quer ficar longe do povo: open bar, open food, segurança especializada, socorristas e até calçada VIP. Foto: Marcelo Justo/UOL/Folhapress

A farra privada virou modelo de negócio

Em “‘Agora assista aí de camarote’: como os camarotes reconfiguraram a rede de negócios do Carnaval de Salvador“, a pesquisadora Bruna Lopes, da UFBA, mostra, historicamente, como o espaço de todos foi se tornando de poucos a partir da mercantilização da festa. 

Inicialmente, na capital baiana, era a elite que podia estar nos carros que desfilavam a céu aberto, cabendo às famílias – inclusive as mais abastadas – colocarem bancos e cadeiras em frente à casa para ver o “carnaval” passar. Depois, com as ruas mais ocupadas pelo povo, a burguesia recorreu aos salões, realizando bailes bem longe da folia popular. 

O aparecimento dos trios elétricos e a invenção da dupla Dodô e Osmar (tudo na década de 1950) levou ainda mais gente para as ruas, fazendo com que a população que assistia guardasse suas cadeiras nos terraços e varandas. 

Logo, a farra privada que servia para reunir amigos e família virou modelo de negócio desejado por todas as classes – e esse modelo sublinha os abismos sociais do país. 

Evento que envolve milhões de pessoas durante todo mês de junho, especialmente no Nordeste, as festas juninas  (Santo Antônio, São João e São Pedro) também passaram por um brutal processo de demarcação de ricos e pobres. 

Cidades como Caruaru, em Pernambuco, e Campina Grande, na Paraíba, mostram como a camarotização da festa popular transformou os espaços coletivos em cabides de propaganda de bets e cervejas.

Em “A segregação sócio-espacial no São João do Parque do Povo em Campina Grande“, Juliana Tavares Marinho demonstra como um local específico da cidade foi convertido em produto a ser vendido. Para isso, desenhou seus espaços “prime”, processo que resultou, é claro, na segregação sócio-espacial.

Cartão black serve para brancos

É impossível falar de espaços VIP e distinções sociais por meio do consumo sem falarmos de raça: ser “prime” ou “privilege” também indica, no x-tudo da desigualdade social brasileira, ser branco. 

Aliás, permitam-me uma digressão: circular em espaços da elite econômica é um desafio constante para pessoas negras. 

Há uns anos, fui visitar uma amiga doente que morava à beira-mar de Boa Viagem, bairro de Recife. Errei o andar e bati à porta de outro apartamento. Ao me ver, uma mulher abriu e fechou muito rapidamente a porta, dizendo: “Não estamos contratando ninguém”. Eu, que estava usando um vestido verde bonito, nem consegui abrir a boca.

Retomando: a psicóloga Sylvia da Silveira Nunes traz bons relatos sobre corpos pretos e espaços VIP em seu texto “Racismo contra negros: sutileza e persistência“, no qual observa um fenômeno comum no Brasil: as dúvidas sobre se uma ocorrência é ou não discriminação racial. 

Uma de suas entrevistadas contou como o namorado foi barrado em uma área reservada:

Ele não é negro. Mas ele é mestiço. A mãe dele é e o pai dele não é. Então, assim, às vezes, acontece uma situação. Faz muito tempo e a gente foi numa balada e… deixou várias pessoas passarem para uma área lá que era vip, e deixou as pessoas que estavam com a gente e tal e não deixou ele, e justamente sabe… Então, assim, você fica pensando: por que que é, entendeu? Não sei se realmente é por isso. Mas não deixou ele, justamente, sabe.

Os estranhamentos – seguidos de violências – de não encontrar pessoas negras nos espaços VIP são comuns mesmo em lugares predominantemente negros, como Salvador, haja vista o relato de Jocélio dos Santos, da UFBA, sobre um um caso de racismo na pista VIP para ver Beyoncé, em 2010. 

O portal Geledés também publicizou as agressões de três homens pretos que estavam na área VIP em uma festa em Santa Catarina.

No final, o cartão black ou a área refrigerada com DJ podem até servir para simular poder e riqueza nas redes – mas, depois da folia, como cantaria o grande Candeia, voltamos todas e todos (portando um ilusório cartão black) para o barracão.

A música que embala a coluna não poderia ser outra: Dia de Graça, do maravilhoso Candeia, citado logo acima: “E deixa de ser rei só na folia/E faça da sua Maria, uma rainha todos os dias/E cante um samba na universidade/E verá que teu filho será príncipe de verdade”.

Notas da folia

Que mundo estamos criando?

O mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio

João Domingos de Godoi Filho, A Terra é redonda 


Guerra contra a vida é a herança que 2023 deixou para 2024. Pode-se avaliar que o mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio. Guerra contra a natureza, apesar das alterações climáticas, das COP, da transição energética global, das dimensões da exploração dos recursos naturais e da mercantilização da natureza em nome da “economia verde” e demais propostas de “greenwashing” (continue a leitura)

“Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa \ Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado. \ Compreensivo observo \ As veias dilatadas da fronte, indicando \ Como é cansativo ser mau”
(Bertolt Brecht, A máscara do mal).

A herança mais aterrorizadora é o genocídio, mostrado em tempo real, em Gaza, repetindo o que foi denunciado por Edgar Morin,1 em 2002, como “Israél-Palestine: le Câncer”: “Os judeus de Israel, descendentes das vítimas de um apartheid denominado ghetto, guetificam os palestinos. Os judeus que foram humilhados, desprezados, perseguidos, humilham, desprezam e perseguem os palestinos. Os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa, impõem sua ordem impiedosa aos palestinos. Os judeus, vítimas da desumanidade, mostram uma terrível desumanidade.”

Na Faixa de Gaza está ocorrendo um dos piores crimes deste século, um genocídio generalizado (sem com isso isentar crimes cometidos pelo Hamas) que já atingiu, até o final de janeiro 2024, cerca de 25 mil mortes na Palestina, das quais mais de 8600 crianças,310 profissionais de saúde, 35 funcionários da defesa civil ,97 jornalistas e, aproximadamente 2 milhões de pessoas deslocadas, segundo dados levantados pela BBC Verify(2) e considerados confiáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Somam-se, escondidos ou pouco informados pela “grande mídia”, dentre outros, os massacres que ocorrem na África (Sudão e Sudão do Sul, Nigéria, Ruanda, Mali, Burundi, República Democrática do Congo e Angola); o apoio dado pelos Estados Unidos e seus aliados ao genocídio em Gaza; o financiamento do governo neonazista da Ucrânia para provocar a Rússia; as escaramuças com o Hezbollah na fronteira com o Líbano; os ataques dos Houthis do Iêmen contra navios militares americanos no Mar Vermelho; os bombardeios no enclave separatista Nagorno-Karabakh , que significou o rompimento do cessar-fogo entre a Armênia e Azerbaijão complicando o complexo jogo de interesses geopolíticos no Cáucaso, além de colocar sob risco humanitário a população civil de Karabakh, controlada pelo Azerbaijão.

No final de 2023, ficou registrado o maior número de conflitos armados desde o final da Segunda Guerra Mundial. E, inquestionavelmente, como herança, também ficou evidenciada a farsa das potências ocidentais, especialmente dos Estados Unidos e seus aliados para atender os seus interesses e não o de construir a paz.

A hipocrisia e a fraudulência desses países, frente ao cenário de beligerância mundial, atingiram níveis sem precedentes de perda de credibilidade; comprometendo gravemente os princípios do direito internacional, o respeito aos direitos humanos e à ordem mundial.

No texto 1984, George Orwell, que merece ser reproduzido, retrata bem a conjuntura dos conflitos atuais e permite refletir sobre a necessidade de resistir e alterar a herança deixada pelo ano de 2023: “O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto degradação. Destruiremos tudo mais – tudo… Não haverá amor, exceto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, exceto riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo de vida……Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano – para sempre”.3

A parcialidade da “grande mídia”, inclusive no Brasil, extrapola a veiculação da notícia, se comportando de modo parcial e tendencioso aos interesses dos Estados Unidos e de seus aliados e asseclas. Assim, temos, entre nós, “um Grande Irmão que nos vigia, que vela por nós. Dia a dia, ao ligarmos a televisão (precursora das teletelas?), ao lermos os jornais, ao nos conectarmos com a internet, percebemos a ação de um invisível Ministério da Verdade que acaba por nos convencer de que guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força.4

Samuel Huntington5, no seu instigante Choque das civilizações, apresentou uma premonitória “interpretação da evolução da política mundial depois da Guerra fria” que auxilia na compreensão da política mundial no século atual. Questionou, “se as melhorias no nível material de civilização em todo mundo, foi acompanhada da melhora das dimensões moral e cultural de civilização?”

Analisando os anos 90, do século passado, indicou existirem muitos indícios “da relevância do paradigma do ‘puro caos’ dos assuntos mundiais: uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família, um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revolver predominam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra – Moscou, Rio de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johannesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington –, a criminalidade parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da Civilização estão se esvanecendo”.

E concluiu: “A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo – na África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional, no Oriente Médio – elas parecem estar evaporando, estando sob séria ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma idade das trevas mundial, que se abate sobre a humanidade”.

Os organizadores do Fórum Econômico de Davos-2024, implicitamente se alinharam às análises de Huntington, ao avaliarem que a herança de 2023 mostra a “fragilidade do estado de paz, segurança e cooperação globais”. Apontaram que “o aumento da divisão, o aumento da hostilidade e o aumento dos conflitos estão criando um cenário global desafiador. Que a humanidade está lidando com várias questões simultaneamente, incluindo como revigorar as economias, responder à ameaça das mudanças climáticas e garantir que a Inteligência Artificial seja usada como uma força para o bem. Os conflitos e a sua superação estão esgotando a energia humana, que, de outra forma, poderia ser canalizada para moldar um futuro mais otimista”.

O Fórum Econômico concordou que “a atual onda de pessimismo é sem precedentes”. E faz um alerta para a mídia global: – “o poder e a presença da mídia global e da tecnologia de comunicação hoje significam que cada desafio e retrocesso é amplificado, ampliando ainda a sensação de desgraça e melancolia.”

E conclui os organizadores do Fórum Econômico: – “é primordial reconstruir a confiança no nosso futuro. A questão é por onde começar, dadas as circunstâncias complexas de hoje…. Devemos primeiro identificar e abordar as causas profundas do nosso mal-estar. Estamos em um momento crucial da história, mas ainda apegamos a soluções ultrapassadas. Para complicar, estamos lidando com muitas questões simultaneamente, todas profundamente interconectadas e que se reforçam mutuamente. Não há solução rápida ou solução única. Trata-se de abordar todos os sintomas de forma holística.”

Resistir é preciso, para vencer a herança pessimista deixada ao final de 2023. E, Ortega y Gasset6 pode auxiliar com suas reflexões: “É natural: a vida se fez ela mesma equívoca e são tempos de inautenticidade. Recorde-se que a origem da crise é precisamente haver-se o homem perdido porque perdeu contato consigo mesmo. Daí que pulule em tais épocas uma fauna humana sumamente equívoca e abundem os farsantes, os histriões; e, o que é mais doloroso, que não se possa estar certo de se um homem é ou não sincero. São tempos turvos”.

Ao mesmo tempo assinala que: “Todo o extremismo fracassa inevitavelmente, porque consiste em excluir, em negar – menos um ponto – todo o resto da realidade vital. Mas esse resto, volta, volta sempre e impõe-se nos, queiramos ou não. A história de todo o extremismo é de uma monotonia verdadeiramente triste: consiste em ter de ir pactuando com tudo o que havia pretendido eliminar… Qual é a perspectiva em que o homem sói viver? Faz um momento, como em todos os momentos de todos os dias, inexoravelmente, encontraram-se os senhores com que tinham de fazer algo de fazer algo, porque isso é viver. Ante os senhores se abriam diversas possibilidades de fazer, portanto, de ser no futuro”.

Retomando 1984, de George Orwell, “é impossível fundar uma civilização sobre medo, ódio e crueldade. Nunca poderia durar… Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia”.

Para não deixar que o cenário pessimista saia vencedor, que a resistência sobreviva e fortaleça a generosidade humana, uma provocação, a partir de uma das mais belas fábulas de Giono,7 para queo difícil caminho de “por onde começar” seja encontrado o mais breve possível: “Quando considero que um único homem, reduzido a seus meros recursos físicos e morais, foi capaz de transformar um deserto em uma terra de Canaã, penso que, apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas quando faço a conta de quanta constância na grandeza de alma e de persistência na generosidade foram necessárias para obter esse resultado…”.

Resistir é imprescindível.

*José Domingues de Godoi Filho é professor da Faculdade de Geociências da UFMT.


Notas:

(1) Morin, E. Israel-Palestina:câncer. Disponível em

https://www.mundomultipolar.org/2018/11/israel-palestina-cancer.html

(2) Thomas, M. 20 mil mortos em Gaza: o que número de vítimas revela sobre o conflito. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/clmergn9gmro#:~:text=Grande%20n%C3%BAmero%20de%20mortos&text=%E2%80%9CDentro%20da%20s%C3%A9rie%20de%20guerras,matan%C3%A7a%20indiscriminada%E2%80%9D%2C%20afirma%20Spagat.&text=Podcast%20traz%20%C3%A1udios%20com%20reportagens%20selecionadas.&text=O%20n%C3%BAmero%20de%2020%20mil,milh%C3%B5es%20de%20habitantes%20de%20Gaza.

(3) Orwel, G. 1984. São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

(4) More, T. Utopia, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

(5) Huntington, S. P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1997.

(¨6) Ortega y Gasset, J. Em torno a Galileu. Petrópolis: Ed. Vozes,1989.

(7) Giono, J. O homem que plantava árvores. São Paulo: Ed. 34, 2018.


Sociologia tardia: a classe média cultural se recarnavalizou

Com a ajuda de músicos de vanguarda que resgatam hits dos anos 1990 a cada Carnaval, público desse estrato social deixa de lado recalque com a arte popular e revisita axé music e comportamentos antes elitistas

Igor de Albuquerque e Pérola Mathias, piauí (expandir)

Uma pergunta difícil: quanto tempo dura o pré-Carnaval de rua? Mais ou menos um mês, quando os músicos e foliões vão esquentando os motores nos circuitos antes da chegada do rei Momo? Seria uma resposta aproximativa. O pré-Carnaval de 2025 começa depois da quarta-feira de cinzas de 2024 – seria uma réplica mais drástica que daria origem a um ciclo infinito onde tudo é Carnaval o tempo todo. Mas se tudo for Carnaval, qual seria mesmo a graça? Se é no contraste entre a vida cotidiana e os dias de folia desbragada que a energia é gerada, essa força estranhíssima que nos leva ao nonsense, ao delírio coletivo e, por fim, à ressaca, que nesse interregno não se transforma em rebordosa moral.

Nós, os autores deste ensaio, andamos meio cismados durante o verão. Moramos na cidade de São Paulo e somos vizinhos no bairro dos Campos Elíseos. Também temos em comum um longo histórico como foliões hardcore, sobretudo na cidade de Salvador, num passado em que o Carnaval de rua ainda não estava na moda por aqui. Hoje a festa cresce desenfreadamente, como tudo nesta cidade, e testemunhamos uma série de fenômenos que pipocam ao nosso redor. É bom dizer logo que este não é um texto do tipo “o Carnaval de Salvador ou de Recife é melhor do que o de tal cidade”. Também estamos cismados com o bairrismo identitário. E nós gostamos do Carnaval de São Paulo. No entanto, não podemos deixar de ver os vários tipos de desfile que passam diante de nós: 1) A ansiedade eufórica que estende o pré-Carnaval e desperta a antipatia dos moradores dos bairros que ficam todos urinados e atulhados de lixo; 2) As marcas de acessórios e roupas caríssimas que alimentam o narcisismo do pessoal descolado nas redes sociais; 3) O aumento da violência, principalmente contra a mulher, incluindo a escolha de Sofia de levar ou não o celular – se não levar, não tem post nem tem como perguntar para os amigos “onde tá o bloco?”; e 4) O folião classe média alta com o discurso de “vamos ocupar as ruas” etc., absurdo que a página do Instagram a Vida de Tina descreve muito melhor do que nós. Essas coisas esquisitas não acontecem só por aqui (em Salvador, por exemplo, o Furdunço do domingo que antecede a festa já engoliu o sábado, originando o Fuzuê), nem são apenas essas, mas vamos deixar de lado – por ora – esse baixo astral.

Dois anos atrás, em nossas andanças, encontramos um livro que concentrava em seu entorno uma série de contradições irresistíveis. Tudo começa com uma epifania: durante os festejos pré-momescos – as caixas de som tocando axé music –, um escritor percebe que o disco Banda Eva Ao Vivo, de 1997, com Ivete Sangalo à frente, é uma obra notável. A partir daí João Varella escreve Me Tirar da Solidão (ou como aprendi a amar Banda Eva Ao Vivo) para tentar entender por que estava curtindo tanto a voz daquela cantora com a qual não simpatizava. Feito como uma autoanálise do gosto e da própria formação, o livro arrisca reflexões estimulantes e muito vivas, sobretudo quando extrapola a autorrepresentação do relato e pensa nas contradições movidas pela gravidade de grandes estrelas da cultura de massa – nas misteriosas forças de atração entre elas e o público. 

O tom do texto é de conversa informal; ouve-se a voz empolgada de um interlocutor interessado por música, videogames e literatura tecendo tiradas sagazes durante o papo. Mas para fazer jus ao gesto do ensaísta, é preciso observar com atenção seu autorretrato. A epifania inaugural, a revelação ante a beleza rara, acontece no corpo de um homem de 30 e poucos anos, “no terraço de um prédio no coração de São Paulo”, no contexto de revitalização do Carnaval de rua, quase duas décadas depois do lançamento do álbum. No entanto, em meados dos anos 1990, Varella era roqueiro raiz e queria distância de qualquer coisa que se parecesse com o axé. Aqui o mea culpa dele: “Minha atitude roqueira era diversofóbica. Bem simples de entender: o que estivesse dentro do rock era bom, o que estivesse fora era ruim.” Um personagem bastante conhecido da adolescência, mergulhado naquela rebeldia americana anglófila em vestes negras, que às vezes mantém-se do mesmo jeito pelo resto da vida.

Não foi o caso de João, que, assim como muitos jovens adultos da classe média cultural, hoje é um tipo simpático à folia de rua e às expressões da cultura popular brasileira, incluindo aí artistas e grupos dos quais, no passado, teria vergonha de gostar. Confirmando algumas afirmações que têm circulado bastante entre os jovens adultos de meia-idade da nossa geração: descobriu-se que o frevo é punk (o que Chico Science, Fred Zero Quatro, Otto, Sheik Tosado etc. já sabiam); e que o pagodão baiano de agora é mais rock do que os quarentões tristes e sem bronzeado que outrora se intitulavam rebeldes. Talvez o funk tenha sido um dos grandes responsáveis por fazer a classe média entender que o avant-garde esteve sempre nas periferias.

Mas estamos ouvindo um disco de música baiana dos anos 1990, e a questão é a seguinte: por que hoje em dia é legal gostar de Banda Eva Ao Vivo? Em outras palavras: por que agora é possível amealhar prestígio cultural valorizando esse bem de consumo? Tentaremos entender o que fez o jogo virar.  

Por muito tempo, os signos em torno da axé music eram sinônimos do mau gosto que a classe média cultural queria evitar: as letras alienadas das músicas, o Carnaval de Salvador reproduzindo estruturas da violência classista (cordas dos blocos) e machista (beijo à força, para dizer o mínimo), a objetificação do corpo, a onipresença dos artistas nos programas de auditório cuja vulgaridade envergonhava as sensibilidades pensantes que se insurgiam discretamente contra o status quo embrutecedor. Pular e curtir dentro das cordas vestindo os abadás dos blocos de Banda Eva, Claudia Leitte, Chiclete com Banana e Asa de Águia eram coisas de gente inculta e sem consciência social – e muito menos estética –, numa época em que o espaço das ruas foi assaltado por empresas privadas que transformaram os blocos na epítome da festa soteropolitana. Nessa época, o folião pipoca estava em decadência, e foi ainda pior quando os camarotes de luxo lhe tomaram até as calçadas; realidade não apenas da capital da Bahia, pois o formato da micareta foi exportado para todo o país.

Ao longo das décadas de 2000 e de 2010 o cenário foi mudando, inclusive em outras cidades brasileiras, dentre elas São Paulo e Belo Horizonte, que testemunharam o fenômeno do renascimento da festa de rua. Um misto de pulsão popular que acarretou novas demandas por políticas públicas concomitante à ascensão de artistas e de movimentos coletivos que repensaram e repropuseram os moldes da folia. Formaram-se, então, grupos de dimensões variáveis em torno da ideia e da prática da renovação e/ou resgate de tradições: os blocos de rua que abandonaram o som mecânico e pegaram novamente em instrumentos para tocar seus repertórios; o BaianaSystem, que além de reclamar a democratização do espaço urbano através das letras, sempre tocava em trio sem cordas; a presença luminosa e monumental do gênio Letieres Leite (1959-2021) no rearranjo geral das mais poderosas possibilidades musicais e farrísticas pesquisadas dentro e além dos ritmos afro-brasileiros. E muito mais gente.

A sofisticação das empreitadas estéticas desse período é inegável. Se o próprio Leite já participava há muito tempo da axé music e do Carnaval (inclusive ao lado de Ivete Sangalo), a liberdade artística e o grau de experimentação das composições de sua Orkestra Rumpilezz chegaram a níveis nunca antes vistos em nossa música; até o trio elétrico deles tinha formato diferente: um caminhão com as laterais abertas para que o palco colocasse músicos e foliões na mesma altura. 

Em São Paulo, surge a Espetacular Charanga do França, bloco que sai por aí tocando arranjos engenhosos de composições próprias e versões personalíssimas de clássicos. Ideias e andanças de Thiago França, um dos músicos mais criativos que já produzimos. A pedagogia lúdica de França libera um repertório que dialoga com referências internacionais e brasileiras, sem amarras puristas. Faz pensar na vibrante cultura carnavalesca dos cortejos de New Orleans, ou melhor, de Olinda.

Este texto não tem a pretensão de fazer o mapeamento das tendências estéticas em jogo no Carnaval de rua contemporâneo, missão quase impossível. A ideia é mais modesta: evocar alguns acontecimentos artísticos inquestionáveis para mostrar que as contribuições desses agentes são únicas e mudaram a relação do público com a festa, implicando também em mudanças comportamentais. Nesse sentido, é importante entender a dimensão das reivindicações das mulheres, que têm intensificado a luta contra a cultura do assédio (o movimento “não é não”, por exemplo) e continuam na luta para criar um ambiente respirável e seguro para as foliãs. Além disso, observar como a briosa participação das pessoas LGBTQIAP+ abala os alicerces das instituições e das normas conservadoras da sociedade. E como não mencionar também o papel das redes sociais?

Nesse bolo de glitter, confete e serpentina, o que se serve é a exibição da vida privada como se fosse pública através de registros infinitos e comprometedores do que antes era vivido como efêmero. Mistérios sempre hão de pintar por aí, mas imagina só se um tal de bebê de tarlatana rosa fosse flagrado no fundo de uma foto de grupo? A conformação da vida off e online transmitida em tempo real, com filtro, faz com que a participação em qualquer evento cultural ou social de um gesto cívico espontâneo se transforme num way of life muito bem codificado e precificado pelo império da publicidade.

Em meio a tudo isso, o gosto da classe média cultural vai se recarnavalizando. É chegada a hora de fazer as pazes com as referências duvidosas que formam parte do repertório desse estrato social que aos poucos descobre uma fonte de energia renovável: desrecalcar a arte popular, desbloquear o plexo solar e cantar a plenos pulmões “minha pequena Eva”.

Voltando ao ensaio de João Varella, sua tese é a seguinte: o movimento da axé music chega ao auge com o disco Banda Eva Ao Vivo, gravado por uma Ivete de 24 anos cuja voz “orgânica, sem concessões; sente a vibração percussiva, prescinde de acrobacias vocais. É pop com qualidades únicas”. O autor é ousado, divertido, competente e, além disso, assume riscos quando, por exemplo, encara a problemática do racismo durante a defesa do álbum– que estampa na capa uma cantora branca –, como o apogeu de uma expressão cultural de matriz negra. Ou quando diz que os solos de sax são fraquinhos, já que ficou cringe achar sax cafona, tanto quanto evitar a cultura popular de massa. Afinal, temos aqui, seguindo um sax, essa multidão que se desloca – de toda parte da cidade e do mundo – para tentar acompanhar a Charanga do França como um bloquinho, uma ideia idílica de passeio carnavalesco no paulistano bairro de Santa Cecília. Ora, o despreparado que cuide do celular e garanta sua água, porque o aperto de corpos para ficar perto dos músicos não amplificados é quase comparável com a agonia de pegar Daniela Mercury saindo do Farol da Barra, fazendo a curva com o trio para entrar na avenida no sábado de Carnaval sem cordas.

Afora o mérito do livro de Varella, quando analisamos as dinâmicas de prestígio artístico-intelectual e as forças de tensão em volta desses discursos, abrimos espaço para uma discussão mais ampla. A reconciliação com o Carnaval só foi possível devido ao trabalho de diplomacia operado por blocos, artistas e movimentos sociais. Continuemos com Thiago França: a charanga tem um arranjo de Arerê (faixa do disco Banda Eva Ao Vivo), sempre motivo de delírio para a multidão. Acontece que antes de virar carnavalesco, Thiago era (e continua sendo) um dos três do Metá Metá, grupo que faz música afro experimental, grande sucesso no meio alternativo – depois de uma longa trajetória pelo choro. Então, quando o Carnaval junta as duas coisas, isto é, um destacado músico de vanguarda tocando na rua um repertório que boa parte de seu público considera de segunda categoria, aí as coisas começam a embolar. O povo começa a entrar em contradição, a pescar na mente melodias recalcadas que agora se mostram úteis, a franzir cenhos e ao mesmo tempo dançar embalado por uma canção que já disse não gostar, mas é Carnaval e a regra é cair na gandaia. Da Anitta de Show das Poderosas a Gloria Groove, não há quem torça o nariz dentro de sua boa camisa florida ou meia arrastão.

O fenômeno guarda sua complexidade, pois os valores dos produtos culturais começam rapidamente a mudar de figura (negativo e positivo) através de reações que se sucedem sem parar dentro dos corpos envolvidos nos eventos de resgate e atualização. Para que Arerê arranjada por Thiago França – ou um velho Ijexá turbinado por Letieres Leite – chegue aos ouvidos do povo, um longo caminho de experimentação e sofisticação formal precisou ser percorrido, de ensaio a ensaio, de festa a festa, de Carnaval a Carnaval. Criar um novo repertório para a festa é uma constante negociação que passa por processos conscientes e inconscientes dos artistas e do público, passíveis de questionamentos em todas as esferas da sociedade, inclusive no mais implacável juiz: o tempo. E aqueles que passam pelo novo Carnaval, ao revisitar as canções antigas já estão contaminados pelas ações daqueles que no presente dão nova vida a elas. Como diria Jorge Luis Borges, o Metá Metá é precursor da Banda Eva. Como finda a Charanga, citando o mais melancólico e erudito dos mestres do samba e do sentimento: o sol há de brilhar mais uma vez. E como entoam Alice Coutinho e Elza Soares: mulher do fim do mundo eu sou e vou até o fim cantar.

Igor de Albuquerque

é editor, ensaísta e tradutor. Doutorando em Língua, literatura e cultura italianas pela Universidade de São Paulo.

Pérola Mathias

é jornalista musical e doutora em Sociologia pela UFRJ. Edita o blog Poro Aberto

Nêmesis(*)

Polícia Federal vai pra cima da mais nefasta quadrilha que já atuou no Brasil: Bolsonaro e personalidades diversas, civis e militares, todas com níveis variados de responsabilidade constitucional, conspiraram e agiram para fazer regredir o Brasil à condição de republiqueta de traficantes.
Acompanhe as principais matérias sobre a ação autorizada pelo STF e que pode agora levar suas lideranças à cadeia.

(*) Na mitologia grega, o castigo dos deuses contra a prepotência, a arrogância e a presunção do poder sem limites

A partir de 12/02, as postagens de 2024 estão sendo iniciadas com a devassa da PF em torno da conspiração bolsonarista contra a democracia. Para um bom resgate do cenário que antecedeu a divulgação do escândalo e postagens anteriores, acesse aqui

Virtuosismo militar

Não dá para elogiar generais por não terem dado um golpe de Estado

Vocês não vão me cumprimentar? Hoje eu não roubei nenhum banco nem estuprei ninguém. Ridículo, certo? Deixar de cometer crimes não é virtude, mas obrigação.

Hélio Schwartsman, Folha (continue a leitura)

Não me convencem, portanto, as loas à cúpula das Forças Armadas, que teria se recusado a participar do golpe tramado por Bolsonaro e seus asseclas. Pelo contrário, o que vai emergindo das investigações é que mesmo oficiais-generais que não tiveram participação direta na conspiração foram de uma leniência ímpar para com os que tiveram. Não é difícil argumentar que, ao deixar de agir contra os golpistas, cometeram crimes omissivos.

Como ainda estamos numa democracia, não é absurdo afirmar que as instituições funcionaram. Mas foi por muito pouco. Se mais dois ou três generais com comando de tropas tivessem embarcado na aventura, poderíamos estar agora sob lei marcial. O Parlamento, que deveria constituir a linha de frente da resistência ao autoritarismo, também foi interessadamente omisso. Enquanto usufruíam das delícias das emendas parlamentares, deputados e senadores deixaram que Bolsonaro pintasse e bordasse. Devemos ao STF e à sociedade civil, que soube se mobilizar, ainda que na undécima hora, a preservação da democracia.

Um país não pode ficar refém de seus generais. É preciso profissionalizar e modernizar as Forças Armadas, para que se afastem definitivamente da política. Penso em mudanças nos currículos das academias, num redimensionamento do próprio tamanho das Forças e na reformulação do artigo 142 da Constituição, para deixar claro que militares não escolhem a qual Poder devem obedecer.

Não sou, porém, muito otimista. Até por causa das investigações, os generais deverão ficar retraídos pelos próximos anos. Não criarão problemas maiores para o governo Lula. Com isso, Lula não deverá gastar energias e capital político nas reformas necessárias. É sempre mais fácil apaziguar do que aprimorar as instituições.

Ex-ministro de Bolsonaro, General Paulo Sergio Nogueira, mentiroso e conspirador, uma vergonha para o Exército (# leia no Estadão)

Quem são os 18 militares bolsonaristas no coração do golpismo

Até um mês atrás, na marca de um ano do fatídico 8 de Janeiro, havia mais dúvidas do que certezas quanto ao papel militar na crise golpista entre o fim do governo Bolsonaro e o início do governo Lula. O cenário mudou com a operação da Polícia Federal (PF) nesta quinta-feira (8), centrada em oficiais de alta patente das Forças Armadas (continue a leitura)

Caio Freitas Paes, Pública

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) expõe as digitais militares em toda a crise golpista. Havia, segundo as investigações, um “núcleo de Inteligência Paralela” com a presença do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Bolsonaro, general Augusto Heleno, atuando no período.

Para a PF, a “Inteligência Paralela” do golpe fazia a “coleta de dados e informações”, como “itinerário, deslocamento e localização” do ministro Alexandre de Moraes e outras autoridades que seriam presas na tomada do poder.

O material também ressalta que oficiais atuaram para “manter as manifestações em frente aos quartéis militares, incluindo a mobilização, logística e financiamento de militares das Forças Especiais”, seguindo a linha, por exemplo, do presidente do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Joseli Camelo, que disse em entrevista à Pública que os chefes militares “toleraram” os antros de golpismo.

A decisão do STF também menciona o financiamento de “empresários do agro” e do repasse, via tenente-coronel Cid, de R$ 100 mil a militares envolvidos na trama.

As investigações também sugerem o envolvimento de militares na “produção, divulgação e amplificação de notícias falsas” sobre as eleições, para “estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe”.

A PF aponta ainda o envolvimento do comandante de Operações Terrestres do Exército (Coter) até novembro passado, general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, e de um de seus assistentes diretos no Coter nas tratativas do golpe. O general ficou no cargo até o fim do primeiro ano de governo Lula, no comando do “maior contingente de tropas do Exército”.

A partir de diálogos no telefone do tenente-coronel Mauro Cid, a PF aponta que o general Estevam “teria consentido com a adesão ao golpe”, sendo o “responsável operacional pelo emprego da tropa caso a medida de intervenção [militar] se concretizasse” – o Comando de Operações Terrestres, por ele comandado, reunia “o maior contingente de tropas do Exército”.

Ao todo, a operação de ontem revelou a presença de pelo menos 18 oficiais do Exército e da Marinha entre os suspeitos de envolvimento na tentativa de golpe.

Destes militares, três tiveram pedido de prisão preventiva decretado pelo STF: o coronel Bernardo Romão Correa Neto, o major Rafael Martins de Oliveira e o coronel da reserva Marcelo Costa Câmara, todos do Exército.

Um deles segue livre: o coronel Correa Neto, tido como “homem de confiança” do tenente-coronel Mauro Cid e responsável por agrupar os oficiais das Forças Especiais envolvidos na trama. Ele está(va) em missão em Washington, nos Estados Unidos, desde dezembro de 2022, fim do governo Bolsonaro, no Colégio Interamericano de Defesa.

Questionado pela Pública sobre a presença de oficiais da ativa e da reserva entre os suspeitos de envolvimento na trama golpista, o Exército Brasileiro não se manifestou até o fechamento do texto. Caso o faça, a matéria será atualizada.

Já a Marinha do Brasil afirmou que “não se manifesta sobre processos investigatórios em curso, sob sigilo, no âmbito do Poder Judiciário” e disse ainda que “que pauta sua conduta pela fiel observância da legislação, valores éticos e transparência”.

A “Inteligência Paralela” do general Heleno

Uma das bases da investigação seria o registro em vídeo de uma reunião convocada por Jair Bolsonaro em 5 de julho de 2022. Nela, estavam o vice na sua chapa, general Walter Braga Netto (PL), os ministros da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e da Justiça, Anderson Torres. O então ministro do GSI, general da reserva Augusto Heleno, também estava no encontro.

De acordo com a investigação da PF, a certa altura, o general Heleno contou para todos que tinha conversado com o então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Victor Felismino Carneiro sobre “montar um esquema para acompanhar o que os dois lados estão fazendo” nas eleições daquele ano. 

À época, Carneiro havia assumido interinamente a Abin após a saída do delegado Alexandre Ramagem (PL) – na mira de outra investigação da PF atualmente, a da “Abin Paralela”. Carneiro tem trânsito na caserna: ele foi capitão do Exército antes de entrar na Abin e é filho do atual presidente do Clube Militar, o general da reserva Sérgio Tavares Carneiro – que, segundo o jornalista Lúcio de Castro, esteve envolvido em supostas fraudes milionárias.

Porém, antes do general Heleno contar o que conversou com o diretor da Abin, o ex-presidente Bolsonaro interrompeu o ministro do GSI, pedindo para que conversassem “em particular, na nossa sala” sobre a atuação da inteligência do governo nas eleições.

Segundo a PF, o general Heleno e outros dois militares – o tenente-coronel Mauro Cid, e o coronel Marcelo Câmara, ex-ajudante de ordens e ex-assessor especial de Bolsonaro, respectivamente – formavam a “Inteligência Paralela” do grupo. Cid foi solto mediante o uso de tornozeleira eletrônica em setembro de 2023, enquanto o coronel Câmara foi preso neste dia 8 de fevereiro.

Para a PF, a “Inteligência Paralela” do general Heleno coletava “dados e informações que pudessem auxiliar a tomada de decisões” de Jair Bolsonaro na condução do golpe, vigiando a localização dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD), e de outras autoridades, para “captura e detenção” quando o golpe fosse consumado.

Vale lembrar: a Pública revelou que o GSI do general Heleno recebeu uma série de acampados golpistas e até mesmo um dos bolsonaristas presos pelo quebra-quebra no 8 de janeiro pouco após as eleições, durante a crise dos acampamentos, ainda em 2022.

POR QUE ISSO IMPORTA?

Novos diálogos e mídias não apenas comprovam de forma mais evidente o intuito golpista discutido durante o governo Bolsonaro, como implica o ex-presidente e seus apoiadores militares de alta patente.

Suspeito de golpismo se manteve no Alto Comando no governo Lula

Último general a entrar para a reserva entre os alvos da operação de ontem, Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira comandou o Comando de Operações Terrestres (Coter) do Exército por quatro anos, de novembro de 2019 até dezembro passado. Suspeito de envolvimento no caso, ele foi suspenso do Exército por decisão do STF nesta quinta-feira (8).

Segundo as investigações, o general Estevam faria parte do “Núcleo de Oficiais de Alta Patente com Influência e Apoio a Outros Núcleos” do grupo – formado por militares acusados de usarem seu prestígio na caserna para “incitar apoio” ao golpe junto ao Exército.

Fracassado o plano, porém, Cid ficou apreensivo com seu destino e compartilhou com o general Estevam, ainda no início de 2023, uma notícia que sugeria a possibilidade de ser preso. Segundo diálogo entre os dois obtido pela PF, o general do Coter teria respondido ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro: “fique tranquilo, Cid, vou conversar com o Arruda hoje. Nada lhe acontecerá”.

O teor da conversa sugere que Arruda seja Júlio César de Arruda, comandante do Exército do início do governo Lula, demitido com menos de um mês no cargo após rumores de leniência com militares envolvidos no 8 de Janeiro.

Um dos motivos por trás da queda do general Arruda teria sido sua recusa em “cancelar a designação de Mauro Cid ao comando do 1º Batalhão de Ações de Comandos, justamente o setor do Exército que seria encarregado de cumprir semanas antes a prisão do ministro Alexandre de Moraes” no fracassado golpe – segundo a própria PF.

Filho do general-de-brigada Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Neto, que era da cúpula verde-oliva durante a Ditadura Militar, o general Estevam é irmão de Guilherme Theophilo – general da reserva, ex-candidato ao governo do Ceará em 2018 e ex-secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça de Sérgio Moro (União).

Como já lembrado pela Pública no último 8 de janeiro, o general Estevam teria tentado centralizar a elite do Exército sob seu comando, já no governo Lula – ideia que esbarrou em resistências internas na própria caserna.

Além dele, os ex-ministros Braga Netto e Paulo Sérgio Nogueira, os coronéis Laércio Virgílio, da mesma turma do general Estevam na Academia Militar dos Agulhas Negras (AMAN), e Mário Fernandes, hoje lotado no gabinete do general Eduardo Pazuello (PL) na Câmara, fariam parte do “núcleo de Alta Patente” do golpe.

Tido há meses como um dos grandes entusiastas da trama, o ex-almirante Almir Garnier dos Santos é o único representante da Marinha no “núcleo de alta patente”.

Forças Especiais do Exército fariam o ‘trabalho sujo’

As investigações destacam o papel dos “Kids Pretos”, como são chamados os membros das Forças Especiais do Exército, nas maquinações golpistas antes do 8 de Janeiro.

Coordenado pelo tenente-coronel Mauro Cid, o grupo formava o “Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas”, responsável por ‘sujar as mãos’ num eventual golpe. Eles teriam se reunido em sigilo em Brasília, durante a crise pós-eleições, com suspeita de repasse de R$ 100 mil para manutenção e organização dos acampamentos golpistas, de acordo com a investigação.

O “núcleo operacional” do golpe tinha somente oficiais da ativa no Exército: os coronéis Bernardo Romão Correa Neto, então assistente do Comandante Militar do Sul, e Cleverson Ney Magalhães, assistente do comandante do Coter, em Goiânia (GO); os tenente-coronéis Alex de Araújo Rodrigues, Hélio Ferreira Lima, hoje comandante da 3ª Companhia de Forças Especiais, em Manaus (AM), e Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, atualmente no Comando Militar do Oeste; além do então major Rafael Martins de Oliveira, que subiu de posto após passar pelo Comando de Operações Especiais, também em Goiânia.

Vale lembrar que o coronel Cleverson Ney Magalhães era assistente direto do general Estevam no Comando de Operações Terrestres, “unidade cuja adesão seria fundamental” para o golpe, segundo as investigações.

De acordo com a PF, estes oficiais “atuavam em reuniões de planejamento e execução de medidas no sentido de manter as manifestações em frente aos quartéis militares, incluindo a mobilização, logística e financiamento de militares das forças especiais em Brasília”.  

Dos quatro pedidos de prisão preventiva expedidos para a operação de ontem (8), apenas um não foi efetivado: o do coronel Bernardo Romão Correa Neto. Segundo o jornal O Globo, o Exército vai determinar o retorno dele ao Brasil.

A Pública tenta contato com os representantes legais ou diretamente com os militares citados nesta reportagem. Este espaço será atualizado conforme houver manifestações individuais dos envolvidos na investigação.


Colaboração: Ananias Queiroga de Oliveira Filho | Edição: Ed Wanderley | Infografista: Matheus Pigozzi


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Um furor de reportagem

O messiânico

As motivações e táticas de Deltan Dallagnol em 950 mil mensagens do Telegram, Piauí (expandir)

Li na diagonal a denúncia. Ainda tenho de lê-la melhor. Está muito boa, porém faço algumas críticas construtivas”, escreveu o procurador Orlando Martello Júnior, do Ministério Público Federal no Paraná. A mensagem foi enviada pelo Telegram, no grupo batizado como “Filhos do Januário 1”, que reunia os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato. Era 9 de setembro de 2016 e a Lava Ja­to estava no auge. Em cinco dias, o país seria apresentado à primeira grande denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na forma do famoso PowerPoint, que mostrava catorze balões, cada um com conteúdo diferente, dos quais saíam setas apontando para o balão central, onde estava escrito LULA.

A despeito do breve elogio de Martello Júnior, a denúncia ainda era um rascunho e pontos importantes não estavam parando de pé, na visão dos próprios procuradores, a começar pelo pilar central da acusação: a de que Lula ganhara um apartamento tríplex no Guarujá, no litoral de São Paulo, como recompensa por favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras. Mesmo faltando tão pouco tempo para a divulgação da denúncia, havia incertezas abundantes sobre fatos, sobre dados e sobre provas.

Martello Júnior começou então a enumerar suas “críticas construtivas”. A primeira dizia respeito à forma: o texto da denúncia estava longo demais. “Reduziria à metade. O que não foi contado em trinta folhas (ou no máximo em cinquenta), não merece ser contado”, escreveu, mas foi ignorado: a peça final saiu com 149 páginas. Em seguida, apontou que a expressão “projeto de poder” aparecia pelo menos dez vezes, coisa que julgava “desnecessária e política” – e, desta vez, foi ouvido: na versão final, caiu para cinco vezes. O procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa e principal autor da denúncia, propôs trocar “projeto de poder” por “projeto de financiamento partidário ilícito”. O procurador Paulo Galvão, de Brasília, considerou que a expressão podia aludir ao uso de caixa dois e sugeriu “projeto de financiamento partidário por meio de corrupção”. Dallagnol tentou outras duas opções: “projeto de governabilidade mediante corrupção” e “projeto de enriquecimento ilícito mediante corrupção”. O procurador Antônio Carlos Welter, do Rio Grande do Sul, achou a solução: “Talvez se possa usar mais de uma expressão, não precisa ser sempre a mesma: projeto de poder mediante captação ilícita de apoio, corrupção de agentes políticos para obter apoio político, e aí vai.”

Por fim, Martello Junior reclamou do trecho em que dizia que a acusação se baseava em “indícios suficientes de autoria”. Sugeriu que os redatores se limitassem a dizer “autoria”. Explicou: “Dificilmente teremos mais prova do que isso. Logo, para não dizer depois que só tínhamos ‘indícios de autoria’, e com isso condenamos, é bom deixar ‘autoria’.”

Enquanto o grupo debatia, Martello Júnior chamou Dallagnol à parte, em uma mensagem reservada, para falar sobre a acuidade das informações. Um trecho da denúncia, por exemplo, era baseado em excertos de jornais. “Nas frases seguintes”, escreveu Martello Júnior, “há cinco ou seis afirmações que não sei se são verdadeiras. O que sai na imprensa nem sempre é verdadeiro; logo, me dá medo de eles contestarem isso de modo cabal. Tentar desqualificar a denúncia dizendo que é baseada em recortes de jornal que só falam bobagem!”

A constatação era delicada para uma denúncia tão grave e às vésperas de vir a público. Martello Júnior se referia a uma passagem em que a denúncia contabilizava os deputados e senadores – da situação e da oposição – que foram aderindo ao governo Lula quando a propina começou a ser distribuída. Era tudo baseado em matérias de jornal. Uma hora depois, Dallagnol lamentou a falta de solidez – “caramba, mas isso é um contexto bem relevante…” –, mas tudo o que lhe ocorreu foi ampliar a pesquisa sobre reportagens: “E se checar em outras matérias? Tiver mais fontes?”

Em paralelo, em outro grupo de procuradores no Telegram, chamado “Incendiários ROJ”, sigla que a piauí não identificou, Dallagnol compartilhou algumas alterações no texto e pediu para dois colegas que avaliassem um acréscimo que ele fizera, mas sobre o qual não estava “muito seguro”. O adendo dizia: “A partir da erupção do escândalo do mensalão em 2005, aliás, LULA teve contato com evidências que vieram a público mostrando a toda a sociedade que o ‘caixa dois’ era fruto de corrupção e, nesse caso, sua omissão em reconhecer, apurar e estancar o esquema fala por si.”

O procurador Roberson Pozzobon observou: “Acho perigoso, Delta. Dá a entender, a contrario sensu, que antes ele [Lula] não sabia. Quando na verdade falamos que ele foi o maestro.” Dallagnol respondeu que removeria o trecho – o que de fato aconteceu. Horas depois, pediu ao procurador Júlio Noronha que resumisse os fatos apresentados na denúncia, tendo em mente os problemas que Martello Júnior apontara mais cedo. Queria que a denúncia fosse recebida sem que se percebessem suas fragilidades. Dallagnol escreveu: “Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… Então, é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre a Petrobras e o enriquecimento, e, depois que me falaram, tô com receio da história do apartamento… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua.”

Pozzobon reclamou da falta de um “documento matador”. Em resposta a Dallagnol, que queria uma providência saneadora até quarta-feira, ele escreveu: “Temos provas para essa denúncia, mas não é tão simples, Delta. Ela envolve offshore e operações de compra e venda sucessivas. Acho que vale fazer […], mas acho que não dá tempo até quarta.” Em seguida, detalhou: “Não temos ainda um documento matador para fechar alguma das hipóteses possíveis: a) Que eles queriam ficar com as duas unidades; b) Que a OAS não quis mexer no antigo apartamento do presidente (deixou de canto); c) Que o [apartamento de número] 131 só foi vendido depois de a cobertura [ser] entregue.”

Depois de ajustes aqui e ali, Dallagnol pareceu convencer-se de que estava tudo certo. No grupo “Incendiários ROJ”, escreveu: “Caros, vocês não têm mais a mesma preocupação que tinham quanto ao imóvel, certo? Pergunto porque estou achando top e não estou com aquela preocupação.” E logo recomendou: “Acho que o slide do apartamento tem que ser didático também.” Mais adiante, acrescentou, fazendo referência à parte do PowerPoint que trataria do tríplex do Guarujá: “Imagino o mesmo do Lula: balões ao redor do balão central, ou seja, evidências ao redor da hipótese de que ele era o dono.”

Naquela época, a Lava Jato já tinha seus opositores, mas Dallagnol festejava o apoio maciço que a operação recebia. No “Incendiários ROJ”, comentou que viajara com a família de avião no fim de semana e só se falava disso. “Todo mundo que me reconhece me pergunta quando vem a acusação do Lula ou quando vai ser preso rs.” Mas, mesmo na última hora, a peça acusatória tinha inconsistências importantes. Em outro grupo, Dallagnol apontou o problema do dolo da construtora OAS: “Não vi nada falando de dolo deles na denúncia no tocante ao conhecimento da origem criminosa dos valores. Talvez seja o caso de retirá-los. Alguém mais pensou nisso?” Ele prosseguiu: “Se o dolo é direto, devemos ter alguma prova que embase nossa acusação de que eles tinham ciência de que o dinheiro que estava sendo incorporado no imóvel e no patrimônio do casal presidencial vinha de crimes.”

Era um nó e tanto, mas havia outros. Como fundamentar a tese da “espécie de conta-corrente” da propina? Era a expressão que os procuradores usavam para designar um suposto fluxo de dinheiro, no qual parte dos lucros que a OAS obtinha com contratos públicos era encaminhada como propina para os imóveis de Lula. Dallagnol, num momento de discussão sobre o assunto, comentou: “O problema é que não estamos provando os crimes antecedentes diversos. Acho capenga.” O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, outro integrante do “Filhos de Januário 1”, grupo cujo nome fazia referência a um procurador da força-tarefa, Januário Paludo, também já tinha observado outra inconsistência: “O que me incomodou mais foi a ausência de explicação clara, na parte da corrupção, do sistema de conta-corrente que as propinas geravam. Isso é claro na lavagem, mas na corrupção não.”

Na madrugada do dia 13 de setembro, na véspera da apresentação da denúncia, Dallagnol falou um pouco mais sobre os slides. Dirigindo-se ao procurador Noronha, contou que havia reunido catorze expressões-chave que apontavam para Lula. Era o infográfico do PowerPoint tomando forma. “O que está em negrito e sublinhado é o que […] vai para cada balão ao redor do nome do LULA no slide.” Na tarde daquele dia, em diálogo com um assistente, Dallagnol contou que a ideia inicial era usar uma foto do petista no PowerPoint, mas decidiram-se apenas pelo nome.

À noite, Dallagnol pediu que os colegas começassem a escrever o texto de divulgação da denúncia, a ser distribuído aos jornalistas. Estava empolgado: “Será um poderoso instrumento nosso”, escreveu. “Ele vai definir as primeiras manchetes e o que vai sair primeiro. É ele que dará o tom e pautará a imprensa de cara.” Empenhado em ampliar o impacto da denúncia, Dallagnol havia criado dois grupos do Telegram com o nome “Coletiva”.

Um deles reunia procuradores, membros da Polícia Federal e da Receita Federal. Dallagnol mandou mensagem dizendo que a presença deles no evento de divulgação seria “uma honra”. Para o outro grupo, com dois assessores de imprensa do Ministério Público Federal do Paraná, pediu: “Precisa avisar à GloboNews. Gostaria que fosse transmitido tudo ao vivo.” Recomendou que houvesse um cadastramento para o acesso à sala do hotel onde o evento aconteceria para “não aparecer um maluco lá, ‘Fora Temer’ rs”. Como Dilma Rousseff fora afastada da Presidência no mês anterior, as manifestações contra o então presidente Michel Temer eram recorrentes no país.

Havia uma corrida contra o tempo. A peça seria apresentada naquele mesmo dia, mas ainda não estava finalizada. No grupo “Filhos do Januário 1”, os procuradores brincavam com a situação. A procuradora Laura Tessler, também baseada em Curitiba, escreveu:

– Parabéns pela denúncia, galera!!!

– Aquela que não está pronta, LAURA? – provocou a colega Jerusa Viecili.

– Isso mesmo!!!!

As mensagens dos grupos de Telegram descritas acima integram o acervo da Operação Spoofing, deflagrada pela Polícia Federal em julho de 2019. O objetivo era investigar o vazamento de contas de Telegram mantidas por participantes da Lava Jato, um escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato. Divulgados em primeira mão pelo site Intercept Brasil, os lotes de mensagens vazadas por um hacker revelaram que os procuradores da Lava Jato – com Deltan Dallagnol à frente – faziam combinações com o então juiz Sergio Moro. No escurinho do Telegram, trocavam informações e acertavam planos de ação.

Agora, a piauí teve acesso ao conteúdo integral das mensagens de Deltan Dallagnol apreendidas pela Spoofing. É um volume enorme, em grande parte inédito, que totaliza 952 754 mensagens, recebidas ou enviadas pelo procurador entre maio de 2014 e abril de 2019, perfazendo quase cinco anos. Todas foram lidas pela equipe de repórteres da revista ao longo de cinco meses. As mensagens – aqui reproduzidas com correções de digitação, ortografia e abreviações para melhor compreensão e fluidez da leitura – compõem um retrato didático sobre a conduta de Dallagnol, para quem a Lava Jato era um chamado de Deus.

Por vezes, o procurador parece uma voz de equilíbrio e ponderação. Outras vezes, está abrasado por um espírito à Savonarola, próprio do moralista furioso da Florença renascentista. Na sua missão lavajatista, à exceção de sua fé religiosa que se manteve constante, Dallagnol começou de um jeito e acabou de outro. De início, era um pregador da anticorrupção, apenas. Aos poucos, sem abandonar seu papel de evangelizador da moralidade pública, rendeu-se aos encantos da popularidade e entregou-se às seduções do mundo que combatia – o jogo do poder, a política partidária, as palestras remuneradas.

No curso dessa trajetória singular, Dallagnol, segundo mostram as centenas de milhares de mensagens no Telegram, aparelhou o Ministério Público Federal no Paraná para os interesses que julgava mais convenientes, divulgou informações imprecisas, expandiu seus poderes para além de sua alçada e, uma vez convertido em estrela nacional do combate à corrupção, aproveitou sua fama para obter vantagens pessoais. E, em 2022, num desfecho melancólico, foi condenado a indenizar Lula em 75 mil reais pelos ataques à honra do atual presidente na coletiva do PowerPoint.

Naquela madrugada de 14 de setembro de 2016, no entanto, Dallagnol nem sonhava que acabaria condenado a indenizar Lula. Varou a noite acionando os colegas e discutindo as palavras que usaria na apresentação da denúncia. Escreveu: “Caros, ia chamar na coletiva o esquema maior, que abrange vários órgãos, de propinópolis, para mostrar que é um Estado da Propina, algo maior do que o petrolão. Contudo, falando com Paulo [refere-se ao procurador Paulo Galvão], ele teve uma ideia genial, de chamar de propinocracia, um governo da propina, o que se encaixa em tudo”. O grupo vibrou. Noronha respondeu “excelente ideia!”. Pozzobon mandou um “top”. Quando consultou sobre a forma final do PowerPoint, Dallagnol só colheu elogios. “Muito top”, respondeu Pozzobon. “A ideia das bolas, indo e voltando, ficará massa”, disse Noronha. “Obra-prima”, disse outro.

Já era manhã do dia 14 e o documento continuava sob discussão. “Delta, bom dia!”, escreveu Noronha. “Uma coisa que senti falta na sua apresentação […] foi mostrar a corrupção denunciada mais concretamente (contratos específicos, valores, envolvimento da OAS, etc.).” Carlos Fernando dos Santos Lima, hoje aposentado, fez um resumo da denúncia que poderia ser enviado à imprensa, que encerrava assim: “Por fim, Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa Marisa Letícia também são acusados de receber de maneira dissimulada valores ilícitos para o seu enriquecimento pessoal, aproveitando-­se de fraude imobiliária cometida pelo sindicato dos bancários de São Paulo (Bancoop) em detrimento de centenas de mutuários.”

O colega Antônio Welter corrigiu de imediato: “Carlos, na última parte o recebimento não decorre da fraude da Bancoop. Melhor tirar essa referência. Ele foi beneficiado pela OAS mediante um apartamento cuja construção foi assumida por ela.” Mas Santos Lima não estava em busca de precisão, e sim de uma forma mais eficaz para minar a imagem de Lula, e então respondeu: “Gostaria de manter de alguma forma a referência ao escândalo Bancoop para colocá-lo mal frente aos trabalhadores.” O erro foi retirado do texto final de divulgação.

O procurador Andrey Borges de Mendonça, de São Paulo, membro do “Filhos do Januário 1”, se ofereceu então para ler e revisar a peça de acusação, já que não tinha participado da redação. E apontou algumas passagens dúbias, além de erros factuais: “Sou ruim de matemática, mas só para ver se eu que estou fazendo confusão. No item dois da denúncia, fala em 2,4 milhões de lavagem de dinheiro. Depois no item três, 1,3 milhão. Depois no item doze, 3,1 milhões. Não sei se os valores estão batendo…” Não estavam. A correção foi feita.

Depois disso, o procurador tentou antecipar algumas perguntas que os jornalistas poderiam vir a fazer. “Pode ser da minha cabeça, mas talvez levantem a questão: se mensalão e Lava Jato são a mesma face do esquema, por que o Moro [o então juiz Sergio Moro] é competente, se o mensalão, em primeira instância, foi pra outro juízo? Só para pensar caso levantem [o tema]”, diz. (Ninguém levantou o assunto, mas a questão da competência de Moro acabou sendo um dos motivos centrais, quase cinco anos depois, para a anulação da condenação de Lula.)

A poucas horas da coletiva, Dallagnol ponderava sobre como deveria se referir ao então ex-presidente: Lula? Senhor Lula? Senhor Luiz Inácio? Optou por “Lula”. E fez um gracejo sobre as setas que vinham de todos os lados em direção ao balão central com o nome de Lula: “Estou me segurando para não usar a expressão ‘tentáculos’ rs”. Em seguida, no grupo do Telegram que mantinha com os assessores de imprensa deu uma orientação: o púlpito não podia ficar na frente da projeção dos slides. E, já quase na hora, momentos antes de ganhar as câmeras, Dallagnol escreveu em latim.

– Alea jacta est.

Em português: a sorte está lançada.

Como se sabe, o “poderoso instrumento” definiu as manchetes – e foi um desastre. “Acho que hoje o próprio Deltan reconhece que errou naquele bendito PowerPoint… maldito PowerPoint”, disse à piauí o procurador José Robalinho Cavalcanti, lotado em Brasília. “Porque apontava o presidente Lula como chefe da organização criminosa. Independentemente dessa discussão, se era ou não era, isso nunca foi atribuição de Curitiba.” O procurador Wellington Saraiva, também de Brasília, é outro que lamenta. “Aquele famoso PowerPoint foi um equívoco evidente. Não deveria ter sido feito”, disse. “Teve efeitos muito negativos para o investigado e acabou tendo efeito negativo para o próprio Ministério Público Federal.”

No seu último dia de estudos na Universidade Harvard, em 2013, Deltan Dallagnol ouviu uma profecia feita por um pastor da igreja que frequentava, a Foursquare Church. O pastor disse que Dallagnol voltaria ao Brasil com a missão de lutar contra os maiores corruptos da história. Um ano depois disso, em março de 2014, começou a Operação Lava Jato. E, em março do ano seguinte, quando a Lava Jato completou um ano, Dallagnol já estava se convencendo de que suas ações eram movidas pela mão divina.

“Eu acho que Deus está conduzindo todo esse processo. Está fazendo chover”, escreveu ele, no primeiro aniversário da Lava Jato. “Vejo Deus agir neste caso desde o começo. Há uma série infindável de ‘coincidências’ e condições necessárias sem as quais não teríamos esse caso.” Uma coincidência resultava do seu networking religioso. Priscila Francielle Ferreira, mulher do seu pastor, era assessora da procuradora Letícia Pohl Martello, coordenadora da área criminal do Ministério Público, em Curitiba. Casada com Martello Júnior, foi ela quem convidou Dallagnol para comandar uma operação que acabara de ser aberta – chamava-se Lava Jato.

As conversas pelo Telegram mostram que, pouco depois do início da Lava Jato, Dallagnol se envolveu num projeto que ajudaria a minar sua conduta: as chamadas 10 Medidas contra a Corrupção. Era uma proposta institucional que, em breve, Dallagnol transformaria numa cruzada pessoal. Ele discutiu a ideia longamente com seu pastor Marcos Paulo Ferreira, da Igreja Batista de Bacacheri, que criou o Instituto Mude para divulgar o projeto. Numa reunião em Curitiba, o pastor sugeriu que o procurador rodasse o Brasil colhendo assinaturas de apoio. Dallagnol seguiu o conselho à risca, viajando o país como se fosse o pai da proposta – o que o tornou nacionalmente conhecido.

“Precisamos transformar essas medidas em um projeto de lei de iniciativa popular”, escreveu Dallagnol em uma mensagem, relembrando as palavras de seu mentor cristão. Entre outros pontos, o projeto previa transformar os casos de corrupção envolvendo mais de cem salários mínimos em crime hediondo e, também, tipificar o enriquecimento ilícito de agentes públicos como crime, pois até então era classificado apenas como improbidade administrativa.

Sentindo-se embalado por uma missão divina, Dallagnol escreveu para Poz­zobon: “Eu creio que Deus quer que a igreja alavanque essa mudança. Não quero espiritualizar tudo, mas estou mantendo essa hipótese bem pertinho do coração.” Apesar do alerta para si mesmo, a espiritualização era frequente. Suas mensagens aos procuradores trazem frases como: “Eu creio que Deus está atuando e usando vasos de barro, como eu, para abrir uma oportunidade preciosa de mudanças”; “Que Deus nos use, apesar do que somos”; “Eu creio que Deus fará muitas coisas boas e nos usará, como tem usado, nesse processo”; “Creio realmente que Deus nos abre uma grande oportunidade, e formaremos todos uma grande engrenagem para mudanças”; “Deus está no controle de todas as coisas. Tenho visto Ele agir nesse caso e creio que essa decisão, de algum modo, gerará bons frutos, embora eu não saiba como”; “Creio que Deus está abrindo portas no Brasil e usando líderes para que entremos por elas em diferentes frentes”.

Dallagnol dedicou-se tanto na busca de aliados para espalhar a palavra das 10 Medidas, que, no meio da campanha, começou a se deslumbrar com a adesão de famosos e o crescimento de sua popularidade. Contabilizava os apoios, comemorava cada um. Cassio Scapin, que interpretou o personagem Nino no Castelo Rá-Tim-Bum, foi um dos primeiros a aderir. A atriz Maria Fernanda Cândido também. O ator Reynaldo Gianecchini. O ator Márcio Garcia. A cantora gospel Fernanda Brum. A bailarina Ana Botafogo. A atriz Gabriela Duarte. Dallagnol adorou quando o ator Rodrigo Lombardi falou do projeto no Domingão do Faustão, da TV Globo.

A procuradora Mônica Campos de Ré, da força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro, avisou quando o senador e ex-jogador Romário assinou o documento em um restaurante. “Agora no Balada Mix com o mascote da campanha no Rio!”, festejou. Ré ampliou a lista de subscreventes com os atores Nelson Freitas, Luana Piovani, o casal Thiago Lacerda e Vanessa Lóes, a atleta Maurren Maggi, o roqueiro Andreas Kisser, o lutador Rodrigo Minotauro. Em 8 de agosto de 2016, vários artistas visitaram o Ministério Público, entre eles o cantor Fagner e os atores Victor Fasano, Susana Vieira e Lucinha Lins. “Preparem os celulares para a selfie”, disse Dallagnol. Numa mensagem, ele perguntou se “esse Gregorio Duvivier” poderia ser um aliado. E se Serginho Groisman iria topar. (Nenhum dos dois aderiu à causa.)

Em mensagem particular, Dallagnol pediu à assessora do Ministério Público que agradecesse a apresentadora Ana Maria Braga, da Globo, por “tomar posição em prol das mudanças apartidárias que o Brasil precisa para curar o câncer da corrupção e da impunidade”. Depois, se corrigiu: “Opa, melhor não falar em câncer porque ela teve, né?” A assessora riu. O procurador celebrou quando o apresentador Faustão, na época ainda na Globo, mandou um recado aos procuradores por meio de Sergio Moro. Dallagnol correu para o grupo da força-tarefa, batizado de “FT MPF Curitiba 3”, e escreveu, sem mencionar a intermediação de Moro: “Caros, Fausto Silva (Faustão) fez chegar a nós um recado: temos que usar linguagem mais simples em entrevistas e coletivas. Foi um conselho de quem está [há 32 anos] na tevê.” E então orientou a assessoria do Ministério Público a “profissionalizar as coletivas”.

Enquanto a Lava Jato corria, Dallagnol rodava o país a bordo do prestígio da operação e do projeto anticorrupção. Começou a selecionar as plateias. Entendeu que falar para líderes religiosos era mais estratégico do que para universitários. Depois de um evento com religiosos, explicou no Telegram: “Não eram ouvintes finais, mas líderes de igrejas (não necessariamente pastores). A diferença de falar para alunos de universidades ou para líderes é que 100 alunos são 100 pessoas, enquanto 100 líderes significa alcançar mais de 1 000 pessoas, de modo geral. Daí nosso incentivo em buscar líderes.”

O pastor Ed René Kivitz, um evangélico progressista de grande alcance na internet e nos cultos, já desconfiava dos propósitos da Lava Jato, mas dizia estar em oração pelo amigo, a quem oferecia um apoio crítico: “Caro Deltan, você é a única razão pela qual ainda nutro alguma simpatia pela Lava Jato. Não consigo me livrar da profunda impressão de que essa operação é mais um dos braços instrumentalizados por quem de fato ocupa o poder em nosso país.”

O prestígio pessoal e a popularidade pareciam começar a exercer um certo fascínio no procurador. Ele recorreu a uma jornalista que já tinha assessorado o Ministério Público. Convidou-a para gerenciar suas redes sociais e detalhou as funções: responder mensagens inbox, destacar mensagens positivas, propor posts básicos, curtir e responder usuários e elaborar relatórios quinzenais com “evolução e perspectivas”. Tempos depois, numa conversa sobre rede social, comparou sua presença digital com o alcance do jornal Folha de S.Paulo: “FSP atinge 300k pessoas por dia. Estou com 400k de seguidores.”

Quando foi convidado a participar do Programa do Jô, também da Globo, recebeu orientações detalhadas da assessoria do Ministério Público. Se Jô Soares fizesse uma pergunta mais engraçadinha, deveria entrar no clima e responder coisas como: “Ainda não encontramos nenhuma evidência contra você. Tem alguma coisa que queira nos contar?” Outra assessora sugeriu que, se cruzasse as pernas – “acho que é a posição mais indicada” – deveria cuidar para que a perna cruzada não apontasse para “a direção oposta do Jô” porque “isso não é nada bom, parece que o entrevistado quer se afastar/proteger do Jô”. Dallagnol cruzou as pernas do modo indicado.

Na medida em que avançava, a campanha e a própria Lava Jato ganhavam contornos ideológicos mais nítidos. Dallagnol ficou empolgado quando o presidente da Riachuelo, Flávio Rocha, que mais tarde sairia do armário como bolsonarista roxo, prometeu se empenhar na coleta de assinatura entre seus 40 mil empregados. Certo dia, depois de sair de um evento, o procurador comemorou: “Tinha mais gente na minha palestra do que no aniversário do PT  kkkk […] O 9 está cada vez mais fragilizado.” (“Nove” é referência a Lula, que perdeu o dedo mínimo da mão esquerda.)

Quando Sergio Moro divulgou a conversa telefônica em que a presidente Dilma discutia com Lula sua eventual nomeação a ministro – uma gravação ilegal, que ocorrera fora do período da autorização judicial –, os procuradores se alvoroçaram. “Ótimo dia rs”, começou Dallagnol. A procuradora Lívia Tinôco, da Bahia, torceu para que a prisão de Lula fosse decretada, o que mereceu reprimenda de uma colega: “Isso não é correto. Não é assim que se tira alguém”, disse Monique Checker, do Rio de Janeiro. Outra, a procuradora Anamara Osório Silva, de São Paulo, especulou mais tarde: “Se esse governo seguir, o que será de nós?”

Numa ocasião, os procuradores discutiram se seria conveniente para a força-tarefa da Lava Jato receber a visita de Marina Silva, da Rede. A maioria foi contra. (Em conversas posteriores, Dallagnol declarou que votaria em Marina no primeiro turno da eleição presidencial de 2018. “Se não fosse Marina, seria Amoêdo”, disse, referindo-se a João Amôedo, então no Novo.) Michel Temer, que já estava ocupando a cadeira de Dilma como interino, sondou Dallagnol sobre um possível encontro. O procurador contou que não aceitou, pois “não seria saudável”. Disse, porém, que passara um recado: “Ressaltamos que qualquer mudança na PF  do superintendente para baixo seria comprar briga. Garantiram manutenção.” Dallagnol estava satisfeito com Temer e, dois dias depois, brincou: “Melhor ‘Temer’ o futuro e enterrar o passado ‘Dilma’ vez!”

A essa altura, Dallagnol já ditava os rumos da comunicação do Ministério Público, que não estava subordinada a ele. Há mensagens em que dava bronca na assessoria. “Hoje foi o segundo dia, em menos de uma semana, em que vocês nos ignoram na comunicação.” Outras vezes ele mesmo cancelava uma coletiva. “Todos os jornalistas estão desesperados por furos e podem colocar os pés pelas mãos.” Entrava em contato direto com repórteres para corrigir o que julgasse errado e até editava os textos que a assessoria de comunicação distribuiria à imprensa. Num caso, devolveu uma nota, com a seguinte observação: “Tentei dar um toque emocional.”

A jornalista Liliana Frazão Pereira, da comunicação do MPF, era uma interlocutora frequente. Dallagnol lhe pedia para avaliar seu desempenho em palestras e entrevistas. Quando o procurador planejou entregar o abaixo-assinado em favor das 10 Medidas no mesmo dia em que Moro participaria de um simpósio sobre a Lava Jato, a assessora comentou: “Tudo bem orquestrado, hein, dr. Deltan?” A jornalista se ocupava em distribuir alertas. “Tudo na Lava Jato interessa à imprensa”, escreveu. “Principalmente se envolve o ex-presidente…”

Os vazamentos à imprensa eram bem planejados. Em conversa* com uma assessora de comunicação, Dallagnol calculou que os termos do acordo da Odebrecht, a empreiteira mais enroscada na Lava Jato, deveriam vir a público de forma gradual. “Esse acordo atrairá muitos inimigos”, previu, sugerindo que as informações saíssem em vazamentos homeopáticos. “Primeiro, as comprovadas e mais fortes, com provas. Para ganhar legitimidade e força, e não tudo junto. É um caso muito sensível.” Em outra mensagem, falou dos seus propósitos: “Meus vazamentos objetivam sempre com que pensem que as investigações são inevitáveis e incentivar a colaboração.”

A estrutura do Ministério Público acabou cada vez mais envolvida na divulgação do projeto das 10 Medidas. Em um grupo de Telegram, Dallagnol conta que o vídeo de divulgação do projeto custaria 38 mil reais. “Estamos vendo como levantar esse valor”, escreveu. Sugeriu usar “valores da Vara, daqueles mais antigos, se estiverem disponíveis”. (Em nota à piauí, Dallagnol diz que nunca usou “valores da Vara” e, se o conteúdo da mensagem do Telegram for efetivamente verdadeiro, a ideia nunca passou de uma especulação.) Os funcionários do MPF também foram mobilizados. Em uma mensagem, Dallagnol disse que conseguira autorização para que cada servidor usasse trinta minutos de seu dia de trabalho para ajudar na campanha.

Quando foi entregue no Congresso Nacional, em março de 2016, o projeto 10 Medidas já havia recolhido 2 milhões de assinaturas. Fora um sucesso de público. E Dallagnol, agora, era o homem que pretendia lancetar a corrupção no Brasil, era o chefe da Lava Jato que, num desdobramento raro, já havia então prendido políticos e empreiteiros. Em novembro de 2016, quando foi finalmente votado, o projeto era apenas uma sombra da proposta original. A corrupção como crime hediondo subiu de 100 para 10 mil salários mínimos. O enriquecimento ilícito de agentes públicos continuou sendo apenas uma improbidade administrativa. Menos de um mês depois, por decisão do ministro Luiz Fux, do STF, o projeto voltou a tramitar no Congresso. Em 2017, chegou ao Senado. Em 2019, o Senado aprovou. No mesmo ano, voltou para a Câmara, onde está parado até hoje. (Em nota à piauí, Dallagnol lamentou o destino do projeto: “Infelizmente, terminou com o enterro das medidas na calada da madrugada pela Câmara dos Deputados, em flagrante desrespeito à sociedade.

Entre as milhares de mensagens pelo Telegram trocadas entre 2014 e 2019, a primeira conversa entre Deltan Dallagnol e o então juiz Sergio Moro aconteceu na noite do dia 9 de julho de 2015. Moro queria saber se o doleiro Alberto Youssef tinha informações sobre o então governador do Paraná, Beto Richa, como havia sido divulgado pela imprensa. “Prezado. Procede esta notícia […]?” Dallagnol respondeu que não, mas Moro insistiu: “Será que ele não falou somente aos promotores de Justiça?” Dallagnol então se ofereceu para checar a informação e despediu-se, não sem antes fazer uma saudação: “Bem-­vindo ao Telegram!!”

As comunicações se estreitaram ao longo do tempo e sugerem que Dallagnol comportava-se como uma espécie de auxiliar do então juiz. Transmitia pedidos de entrevista, dava recados, sugeria palestras, fazia alertas. Depois de um evento em Brasília, repassou o convite para um jantar na casa do ministro Luís Roberto Barroso, do STF. No aniversário de Moro, em agosto, transmitiu os parabéns enviados pela atriz Susana Vieira e prontificou-se para entregar algum recado à artista. Moro agradeceu “pela paciência em receber esses recados”. O procurador devolveu: “Imagina, você é um símbolo de uma causa. É um prazer participar disso.”

Dallagnol também não economizava elogios ao juiz. Quando o impeachment de Dilma se aproximava e as cidades estavam cobertas por cartazes em favor de Moro, o procurador fez coro: “Parabéns pelo imenso apoio público hoje. Você hoje não é mais apenas um juiz, mas um grande líder brasileiro (ainda que isso não tenha sido buscado). Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal.” Moro respondeu: “Parabéns para todos nós.”

A leitura das mensagens parece indicar que a relação entre procurador e juiz, cuja revelação pública começou a destruir as bases da Lava Jato, acabou estimulando Dallagnol a expandir seus poderes. Num caso, ao ser questionado sobre a origem de uma informação numa investigação, o procurador deixou claro que vinha do seu círculo familiar. Escreveu: “De uma parente minha que teve uma prima que foi casada com o filho do Guaracy (divórcio litigioso).” Em outro, queria investigar um namorado de sua irmã, “super suspeito de psicopata”. Consultou sua mãe, para pegar o nome do sujeito, e pediu ajuda à sua mulher, a advogada Fernanda Dallagnol, para levantar a ficha do rapaz. Ela respondeu: “Eu investigar? Vou pedir para um cara do MP que eu conheço.”

Em outra situação, Dallagnol mandou às favas os escrúpulos de consciência quando apoiou uma delegada da Polícia Federal, Érika Mialik Marena, que cometera um exagero fatal numa investigação. Como a delegada era sua aliada, o procurador ignorava seus erros. Antes, Marena havia prestado um serviço inestimável – e ilegal – na Lava Jato. Assinou um documento atestando ter tomado o depoimento de um delator, o lobista Fernando Moura. Era uma falsificação. A delegada não havia tomado depoimento algum. Numa mensagem, Dallagnol explicou: “Como expõe a Érika: ela entendeu que era pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada…” Em seguida, apesar de defender a amiga, Dallagnol admitiu: “Dá no mínimo uma falsidade…”

Passados quase dois anos dessa fraude, Marena estava novamente no centro das atenções, depois que sua investigação sobre supostos desvios de recursos na Universidade Federal de Santa Catarina acabara resultando numa tragédia: sob suspeita, e depois de passar um dia na prisão, o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi proibido de entrar no campus e suicidou-se ao pular do sétimo andar de um shopping em Florianópolis. A delegada recebeu críticas violentas por sua conduta arbitrária. Dallagnol a apoiou. “Érika, eles não prevalecerão. São um absurdo essas críticas. Um bando de – perdoe-me – imbecis”, escreveu. “Nessas horas, quando há maior pressão, o importante é focarmos na realidade crua: você respeita todas as regras, atuou 100% corretamente e como fazemos em TODOS os outros casos.”

Quase dois meses depois, como as críticas contra a delegada continuassem, Dallagnol voltou ao assunto. “Érika, estou com o coração apertado com as injustiças que você vem sofrendo. Imagino como deve ser doído. Ao mesmo tempo, sei como você é e precisa ser forte para passar por isso. Deus usa situações como essa para nos preparar para novos desafios.” (Em 2023, ao analisar o caso da UFSC, o Tribunal de Contas da União concluiu que o reitor não cometera nenhum desvio ou irregularidade.)

O tom do seu apoio à delegada remetia à situação que ele próprio enfrentara, no final de 2016, quando se descobriu que havia comprado dois apartamentos do Minha Casa Minha Vida, o programa habitacional destinado à população de baixa renda. A compra não era ilegal, mas, para um paladino da honestidade, pegou mal a notícia de que usara um projeto social para ganhar dinheiro. Como se tivesse debruçado sobre um diário, o procurador buscou forças em longas mensagens que escreveu para si mesmo. Uma delas dizia: “Orei para que o Criador, aquele que tem o manual do fabricante, me cure dessa minha preocupação com a imagem, diante das falsas matérias sobre Minha Casa Minha Vida. Caráter é quem Você é. Reputação é o que os outros dizem que Você é. Deus não se importa com sua reputação, com o que os outros dizem de Você. Veja Jesus. E o que ele disse? Dê a outra face. Ore pelos seus inimigos.”

Em seguida, Dallagnol recorreu aos ensinamentos das histórias em quadrinhos. Escreveu: “Batman vs. Superman: Batman era criticado por seus métodos, violência, por ser justiceiro. Superman era colocado em falsas polêmicas, como um potencial risco em razão do seu poder.” E chegou à síntese do que deveria fazer diante das denúncias: “Se eu me concentrar em responder as falsas acusações, desperdiçarei muita energia que preciso investir para fazer minha parte pelo Brasil.” E encerrou inspirado numa frase atribuída ao primeiro-ministro inglês: “Churchill: se parar para atirar pedras em cada cão que ladra pelo caminho, não chegaremos ao nosso destino.” (Dallagnol já vendeu os dois imóveis, que ficam em Ponta Grossa, no interior do Paraná.)

As mensagens do Telegram mostram que a retidão ética exibida em público nem sempre pautava sua conduta em privado. Quando planejou uma viagem internacional com a família, deu-se conta de que não haveria tempo hábil para obter passaporte para a filha caçula. Fernanda, sua mulher, propôs ao marido que desse um jeitinho: “Você pergunta para algum delegado da PF se podemos levar [a menina] em algum horário para fazer o passaporte dela?” Dallagnol entendeu logo – “vai parecer que quero furar a fila, quando não é o caso” –, mas fez exatamente isso. Escreveu para o delegado Felipe Hayashi, que integrava a Lava Jato, e expôs seu problema, sem pedir favores explicitamente, e obteve o resultado que desejava. Hayashi perguntou: “Que dia você quer vir com ela e sua esposa fazer o passaporte?” Dallagnol sugeriu a manhã seguinte. “Venha amanhã então”, assentiu o delegado. Pronto, a fila estava furada.

"Mor, saiu a série O mecanismo na Netflix”, anunciou Dallagnol à sua mulher em 23 de março de 2018, uma sexta-feira. “Vamos suspender Suits hehehe”, acrescentou, falando da série americana sobre advogados poderosos. A empolgação do coordenador da Lava Jato com O mecanismo, dirigido por José Padilha, era partilhada pelos demais procuradores e, também, por boa parte de Curitiba. Pelas vias do Centro da capital paranaense, inclusive na rua da sede do MPF, havia totens e outdoors exibindo peças de divulgação da série, com uma foto em close do ator Selton Mello, que interpretou o fictício delegado Marco Ruffo.

O entusiasmo inicial, no entanto, logo deu lugar a uma decepção generalizada. Já na manhã de sábado, 24 de março, começaram as mensagens de frustração nos grupos de Telegram. Os procuradores reclamavam que eram representados como profissionais despreparados e arrogantes, que cometiam erros elementares até para interpretar decisões do STF, mas o pior de tudo era outra coisa: quem brilhava na série era a Polícia Federal, o que jogou lenha na fogueira das vaidades.

Orlando Martello Júnior, que já havia assistido a sete dos oito episódios, foi um dos primeiros a gritar. “Bomba!! Assisti O mecanismo. Pinta o MPF da pior forma possível. Preocupou-me que isso irá para o mundo. A PF é mais ética que o juiz e o MPF. Se a coisa continuar assim, a defesa de Lula vai chamar o diretor para depor na ação […]. Essa temporada está perdida para nós.” Depois da manifestação de alguns colegas, Martello Júnior explicou seu receio: “Quando vemos filmes baseados em fatos reais acabamos por aceitar a trama. Para pessoas do exterior que não leram – e não lerão – livros, jornais, a estória dos abusos pode pegar […]. É o que fica para a história!”

Em princípio, como ainda não tinha começado a assistir à série, Dallagnol fez piada: “Eles têm que botar um galã. Vou ser eu, com certeza.” Mas logo foi informado de que seu personagem já aparecia naquela primeira temporada e era retratado “como um almofadinha”. No próprio sábado, ele viu o primeiro episódio e mudou de tom. “Foda pra gente mesmo. Louva a PF. Detona MP como soberbo, ingênuo e não ponta firme. Sobrou até pro Moro também […]. Fiquei na dúvida até se não é o caso de deixar bem claro que tem um pequeno percentual de realidade, mas a maioria é criação.”

O temor de que a PF aparecesse melhor que o MPF era antigo. Ainda na fase em que os produtores da série estavam pesquisando o assunto, a dúvida angustiou os procuradores. Um deles, Alan Mansur Silva, levou o assunto a Dallagnol. “Deltan, alguém da Lava Jato está fornecendo informações ao José Padilha […]? Nosso receio é que como há consultoria dos delegados, [a série] saia muito ‘pró-delegado’.”

Dallagnol explicou ao colega que a série era baseada no livro Lava Jato: o juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, de autoria do jornalista Vladimir Netto, que fez a interlocução entre os produtores da série e os membros do MPF. Depois de um almoço com o pessoal da série, em um restaurante do Shopping Itália, em Curitiba, Dallagnol escreveu: “Sendo franco e realista rs, acho impossível que o foco [da série] não seja a PF… Mas de qualquer modo perguntei agora ao Vladimir Netto sobre isso, dizendo que fui demandado, na linha de que haja um reconhecimento ao papel do MP… Mas o ideal é que a ANPR [Associação Nacional dos Procuradores da República] ou outro fizesse isso, porque a gente pedindo parece disputa de vaidade.”

Era tanta disputa de vaidade que Dallagnol voltou a procurar o jornalista para enfatizar sua apreensão sobre a visibilidade dos procuradores na série. O jornalista tranquilizou-o: “Entendo sua preocupação, mas a importância do MPF na Lava Jato está superclara para o Padilha e para a Elena [refere-se a Elena Soárez, a roteirista da série] e para todos nós do projeto.” Quando O mecanismo saiu, o procurador Diogo Castor de Mattos decretou: “Perdemos nosso tempo dando infos para os produtores.”

(Procurado pela piauí para comentar as críticas dos procuradores, José Padilha mandou uma mensagem em que diz o seguinte: “Sobre os procuradores reclamarem que a PF tem mais protagonismo na série: não me surpreende em nada. Durante a produção o Dallagnol me procurou para que eu assinasse as dez medidas DELE contra a corrupção. Eu achei descabido e recusei. Depois, na filmagem do documentário que estou fazendo, em parte sobre meu próprio erro crasso de avaliação da Lava Jato, pedi que a turma do Intercept desse um search nas mensagens usando meu nome. Apareceu uma mensagem dos procuradores dizendo pro Dallagnol me procurar que era certo que eu iria apoiar a sua lista! A procuradoria buscava o apoio de pessoas conhecidas para ganhar visibilidade. Queriam os holofotes.”)

A rivalidade entre os procuradores e os agentes da PF tinha um histórico. No dia em que aconteceram as três primeiras prisões de políticos, nos primórdios da Lava Jato, houve um clima de euforia entre os procuradores. Martello Júnior, que atuara na investigação, começou a receber cumprimentos dos colegas logo de manhã, quando as prisões ainda estavam sendo feitas. Mas, quando perceberam que a imprensa estava dando destaque à Polícia Federal, o caldo entornou nos grupos de Telegram. Dallagnol colocou panos quentes: “O MPF tem tido um bom espaço e é saudável que a PF, que é grande parceira neste caso, tenha o seu.” Mas o tom de civilidade não durou.

Quando saiu uma reportagem no jornal O Estado de S. Paulo sobre uma eventual autonomia da PF, os procuradores sentiram sinal de perigo. Temiam perder espaço e poder para a polícia. Luiz Fernando Lessa, do Rio de Janeiro, sugeriu contra-atacar: “Então é soltar os podres [da PF]. Cadê os casos de controle externo?” Depois, sugeriu que notícias negativas contra a PF poderiam ser veiculadas em programas popularescos da Bandeirantes e da Record. Quando aconteceu outra prisão, o procurador João Carlos de Carvalho Rocha, do Rio Grande do Sul, escreveu, desolado: “Estou acompanhando pelo g1. Entrevista da PF, com mera coadjuvância do MPF. Praticamente todos os comentários postados se referem apenas à PF. Lamentável.”

O então procurador-geral, Rodrigo Janot, foi acionado e reclamou, junto ao STF, sobre a autonomia da PF, que marcava depoimentos e decidia quem e quando seria ouvido sem consultar os procuradores da Lava Jato. O STF acatou a demanda e suspendeu depoimentos agendados para os dias seguintes pela PF. Os procuradores vibraram, mas a notícia não estava chegando à imprensa. Aílton Benedito de Souza, procurador de Goiás, lamentou porque a ideia era que a divulgação servisse para “meter na cara desses FDP”. Só ficaram aliviados quando o Jornal Nacional divulgou a notícia à noite.

Houve momentos, como mostram as mensagens no Telegram, que procuradores especulam sobre a possibilidade de que venha a ser instalada uma “CPI da PF”. Quando houve uma sucessão no Ministério da Justiça, a procuradora Monique Checker estava indignada com o tratamento privilegiado que vinha sendo dado à PF. Fez um desabafo: “Eu preferia alguém que tocasse o terror, mesmo aumentando a crise institucional.” Mais cedo, Checker havia criticado os delegados que “agem sem pensar” e usam a “tática do achaque explícito [que] sempre dá certo”. No dia seguinte, a procuradora espinafrou todo mundo. “No afã de atacar o governo, toda a mídia e o público estão embarcando na onda dos delegados.”

O conteúdo das trocas de mensagens mostra que os procuradores da força-­tarefa buscavam intensamente o apoio da imprensa, mas queriam exclusividade. Quando comentava sobre as relações entre a PF e a imprensa, Gustavo Velloso, procurador do Distrito Federal, avaliou que havia uma “relação promíscua muito antiga”. Checker subiu o tom: “É antiga, mas acho que atualmente virou quase um estupro. Não sei se pela velocidade da comunicação ou pelo descontrole em si. Ou ambos.”

A notícia de que o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fechara um acordo de delação premiada com a PF – e sem a participação do Ministério Público – caiu como uma bomba. Dallagnol, que tentava se preservar nas polêmicas com a polícia, lembrou no grupo “Filhos de Januário 2” que os delegados estavam violando um entendimento prévio: “Não tinha ficado combinado que íamos chamar uns aos outros para acordos?” Ao que a procuradora Isabel Groba Vieira, do Paraná, respondeu: “Eles [os delegados da PF] conhecem a palavra lealdade?”

O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, tratado como mentor do grupo, propôs que os procuradores boicotassem o acordo de Palocci. Explicitou seu plano: “Podemos ir queimando aos poucos [o acordo] dizendo que nos recusamos [a aceitá-lo] por falta de comprovação, que os anexos não correspondiam à importância de Palocci e que a PF virou a porta da esperança.” (A delação de Palocci tornou-se uma das mais complicadas. O Ministério Público acabou por rejeitá-la, mas a Polícia Federal a validou. Mais tarde, às vésperas da eleição de 2018, Moro divulgou um trecho da delação, que não trazia novidades, nem provas. A iniciativa foi interpretada como uma forma de prejudicar a candidatura de Fernando Haddad, do PT.)

Embora reclamassem da acusação frequente de que tinham motivações políticas, os procuradores – da Lava Jato e de outras operações – viviam em discussões políticas no Telegram. Além das críticas e piadas sobre Lula e o PT, a maioria dos procuradores tampouco era fã de Jair Bolsonaro, o político que crescia junto com a Lava Jato. Dois anos antes da eleição, a procuradora Lívia Tinôco especulou que ele não teria 10% dos votos em 2018. “Será como um Enéas”, escreveu, em referência ao folclórico presidenciável dos anos 1990. “Se Bolsonaro ou qualquer outro mentecapto de direita for eleito, a culpa vai ser dos deficientes morais e mentais do PT”, escreveu o procurador Luiz Fernando Lessa.

Depois que Bolsonaro disse no programa Roda Viva, da TV Cultura, que seu livro de cabeceira era A verdade sufocada, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único oficial militar condenado pelo crime de tortura, o procurador Aílton Benedito de Souza fez um tuíte recomendando a leitura do livro, e a discussão pegou fogo. “Lamentável e constrangedor”, reagiu Wellington Saraiva. Começou então uma discussão sobre a ditadura militar, a Lei da Anistia e a tortura.

Na eleição de 2018, quando Bolsonaro se elegeu, já não havia tanta antipatia contra seu nome. “Apesar da italianice dos Bolsonaro, da emotividade, dos rompantes de cólera verbal, dos avanços e recuos em diversos temas, Bolsonaro tem uma cabeça de milico bem formada e uma intuição absurda”, escreveu o procurador Angelo Augusto Costa, de São Paulo, mostrando-se aliviado com a perspectiva de que o eleito seria tutelado por “cinco generais e um almirante no Ministério. Rs”.

O procurador Peterson de Paula Pereira, do Distrito Federal, considerado um caso raro de petista nos diversos grupos de conversa do Ministério Público, decretou: “Ninguém respeitará esta anta.” O procurador-chefe da Lava Jato evitava participar dessas discussões que, na maioria das vezes, produziam bate-­boca e acabavam como tinham começado. Apesar de sua militância política, Dallagnol parecia sempre mais pragmático e focado em questões capazes de produzir resultados concretos.

Depois de Lula e do PT, o grande inimigo de Deltan Dallagnol era o ministro Gilmar Mendes, decano do STF, crítico dos métodos empregados pela Lava Jato. Para Gilmar, segundo suas próprias palavras pronunciadas no plenário do Supremo, os procuradores eram “cretinos”. Para os procuradores, Gilmar era o “Gilmau”.

Logo no começo das mensagens, ainda em 2014, os procuradores já criticavam Gilmar, que era tratado como “idiota”, “sem escrúpulos” e “mau-caráter”. Quando o ministro concedeu um habeas corpus que tirou o ex-ministro José Dirceu detrás das grades, Dallagnol ficou furioso, temendo que outras solturas fossem feitas. No momento em que Antonio Palocci também pediu um habeas corpus, Dallagnol enviou uma mensagem aos colegas dizendo que, se o ex-ministro acabasse sendo libertado, era preciso pedir o impeachment de Gilmar.

Havia, segundo ele, uma lista de razões. Gilmar não se declarava suspeito de julgar casos do escritório de advocacia em que sua mulher trabalhava, tinha o hábito de imputar crimes aos procuradores publicamente, votava de modo incoerente – “denotando favorecimento” – e, entre outras coisas, acusava a Lava Jato de fazer “reféns” para manter o apoio popular. Dallagnol recebeu a solidariedade da procuradora Laura Tessler, que fora procurada pelo advogado Modesto Carvalhosa para ajudar na redação de um pedido de impeachment de Gilmar. Carvalhosa pediu a destituição do ministro apenas em 2019, e não deu em nada.

A ideia de impichar Gilmar é recorrente nos grupos de Telegram. Para Dallagnol, segundo escreveu nas mensagens, o ministro era um inimigo e, mais do que isso, um empecilho para sua missão de varrer a corrupção do Brasil. Achava que só completaria sua tarefa se tirasse Gilmar do seu caminho. No grupo “Filhos de Januário 4”, até articulou uma forma de tentar incriminá-lo – o que extrapolava sua alçada profissional. A ideia era encontrar algum elo entre Gilmar e Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto, então encarcerado em Curitiba sob a acusação de ser o operador financeiro do PSDB. Dallagnol acreditava que Gilmar, que já tinha concedido dois habeas corpus em favor de Paulo Preto, fosse beneficiário das contas que o operador mantinha na Suíça. (À piauí, Gilmar disse: “Não sei quem é Paulo Preto, só conheço por fotografia. Tenho recursos em Portugal, porque comprei um apartamento e pago contas lá. Não tenho nada na Suíça.”)

O Supremo, por ser a instância final das decisões sobre a Lava Jato, atraía muita atenção. Cármen Lúcia, hoje a única mulher no tribunal, era alvo das grosserias mais insultuosas e machistas nos grupos de Telegram – inclusive das procuradoras. Quando assumiu a presidência da Corte, posição que ocupou de 2016 a 2018, a ministra recebeu críticas técnicas, mas, sobretudo, de cunho pessoal. Falavam de seu cabelo, seus dentes, seu estado civil, seus cuidados corporais.

Numa passagem, porém, os procuradores fizeram jus à perspicácia e ao bom humor característicos de Cármen Lúcia. O ministro Teori Zavascki, então relator dos processos da Lava Jato no STF, morrera num acidente de avião e os procuradores estavam ansiosos para saber quem seria seu sucessor. Divulgaram a seguinte piada, que se passa no velório do ministro e satiriza o interesse de Gilmar em assumir como relator da Lava Jato: “Um colega me contou que viu e ouviu o ministro Gilmar Mendes se aproximar da presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia, e perguntar: ‘Presidente, posso ocupar o lugar do Teori?’ Ela respondeu: ‘Se você couber no caixão e fizer tudo discretamente, pode.’”

Deltan Dallagnol comandou a Lava Jato dos 34 aos 41 anos – e transformou a sua vida, inclusive financeira, em antes e depois. Já nas primeiras horas da investigação, o procurador mandou uma mensagem ao pastor Sócrates Oliveira de Souza, diretor executivo da Convenção Batista Brasileira, colocando-se à disposição para se reunirem no Rio de Janeiro. Como já estava empenhado na divulgação do projeto das 10 Medidas contra a Corrupção, propôs fazer uma palestra. Estava ganhando o apoio de vários ramos da religião – do espiritismo ao candomblé.

Logo surgiram convites de outros campos. De seguradoras, planos de saúde, bancos, sindicatos, empresas. Dallagnol fazia questão de dizer que suas palestras eram filantropia e que o dinheiro que recebia era integralmente destinado a entidades como o Hospital Erasto Gaertner, de Curitiba, especializado no combate ao câncer. Quando se interessou em profissionalizar sua atuação, contratou a Star Palestras e Eventos, uma empresa paulista que passou a intermediar a negociação de seus cachês. A Star Palestras tinha – e ainda tem – no seu catálogo nomes famosos como Hortência, a ex-jogadora de basquete, e o infectologista David Uip, ex-secretário de Saúde do Estado de São Paulo.

Em agosto de 2016, por exemplo, Dallagnol fez uma palestra para a cooperativa financeira Sicoob, no Espírito Santo. A empresa pagou 60 mil reais. As contas foram divididas assim: 45 mil para o fretamento do voo do procurador e 15 mil reais ao Hospital Erasto Gaertner, em forma de doação. Em poucos meses, já tinha um cachê estabelecido. Em uma mensagem no Telegram, informou: “Estou cobrando 35 mil reais.” Os valores não eram fixos. Para instituições ligadas à educação, cobrava menos. Para dar uma aula no Acre, pediu 10 mil.

Com o aumento da demanda, começaram as regalias. O convite para palestrar para contabilistas do Paraná incluía um fim de semana com a mulher no hotel Bourbon, em Foz do Iguaçu. O mesmo hotel na cidade das cataratas foi também o destino de uma palestra para a Unimed – nesse caso, pediu quarto adicional para a família, mas sugeriu arcar com os custos da babá e despesas extras. Também teve hospedagens pagas com a família no SPA Lapinha, no Paraná, e no resort Costão do Santinho, em Santa Catarina.

Com o tempo, passou a se interessar pelo modelo das aeronaves que faziam seu transporte, já que costumava andar em jatos fretados. Pegou gosto pelo King Air, um bimotor de alto desempenho, que seu sogro avaliou que era muito seguro. Em um caso, pediu ao contratante que o transporte entre o Rio de Janeiro e Volta Redonda fosse de helicóptero – para ele e a família. Fernanda, sua mulher, gostou da ideia: “Falei com a minha vó e ela aceitou a carona rs.”

As palestras começaram a chamar a atenção de sua própria assessoria. Quando foi convidado pela Associação Brasileira de Importadores e Distribuidores de Produtos para Saúde (Abraidi), uma assessora alertou: “Tem muitos distribuidores de órteses e próteses e querem pregar a não corrupção nesta área tão atolada na corrupção. O que você me diz?” Dallagnol achou bobagem e disse que “não adianta pregar para convertidos”. Estava aberta a porta para aceitar qualquer convite.

Nicolao Dino, subprocurador-geral da República, enviou uma mensagem para dizer que, mesmo doando os honorários das palestras, Dallagnol podia ser acusado de tirar proveito do cargo para beneficiar terceiros. Ele agradeceu a preocupação, mas descartou. Avisou que seguiria adiante com as palestras porque estava, desta forma, “contribuindo com a sociedade”.

Estava tão seguro do que fazia que até estimulava outros a adotar o mesmo caminho. Sugeriu que a promotora Luciana Asper y Valdés, do Distrito Federal, procurasse a Star, caso quisesse entrar no mercado. Disse que não pegava bem ela mesma negociar cachês. Contou que o segmento era rentável. O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, segundo ele, estava cobrando 35 mil. Rodrigo Janot, então procurador-geral da República, levava 30 mil. Para o procurador Athayde Ribeiro Costa, do Paraná, Dallagnol deu até dicas de como fazer uma boa palestra: “Invista os dois primeiros minutos para sorrir e conquistar o público”; “Use a palavra SONHO”; “Trocar ‘indignante’ por ‘isso indigna você?’”; “O cara tem que ver e ouvir como um filme”.

Alguns colegas aderiram. Certa ocasião, Dallagnol e outros três procuradores foram convidados para um evento da XP Investimentos. Numa mensagem, ele comentou que um deles receberia 25 mil reais, mas não disse nada a respeito do seu próprio cachê. Comemorou bastante o formato do evento. “Alguém da XP vai fazer as perguntas. Não é show??? Acho que vai ser o melhor painel EVER.” Estava cada vez mais à vontade. O procurador Roberson Poz­zobon escreveu sobre o risco de palestrar para bancos. Dallagnol respondeu: “Achamos que há risco, sim, mas que o risco tá bem pago rs.”

Dallagnol passou a receber todo tipo de convite, inclusive sigilosos. Débora Santos, que se apresentou como consultora de política e Judiciário da XP, convidou o procurador para dar uma outra palestra e, desta vez, argumentou que o bate-papo seria privado. Para convencê-­lo, a consultora escreveu que o ministro Luiz Fux, do STF, participara de um evento na XP nas mesmas condições e não saíra nenhuma notinha na imprensa. Dallagnol aceitou o convite.

Gostou tanto das palestras que repassava contatos também para Sergio Moro. “Caro, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica vai te convidar para palestrar no evento deles”, escreveu. E avisou: “Estarei lá também. Eles pagam cachê elevado.” Moro respondeu: “Prezado, agradeço mas este ano minha programação já fechou, a não ser que seja em Curitiba.” O evento era em São Paulo. Em outra ocasião, Dallagnol compartilhou um convite ao então juiz para falar na Federação das Indústrias do Estado do Ceará. E contou sua própria experiência. “Eu pedi para pagarem passagens para mim e para minha família e estadia no Beach Park. As crianças adoraram”, disse. “Além disso, eles pagaram um valor significativo, perto de uns 30k. Fica para você avaliar.” Moro não disse se aceitou o convite ou não. A via era de mão dupla. Numa ocasião, Moro sondou Dallagnol para palestrar no Grupo Sinos, na cidade gaúcha de Novo Hamburgo. O procurador autorizou que o juiz passasse seus contatos aos interessados.

Em dado momento, Dallagnol decidiu fazer um fundo de reserva para a hipótese de ter que pagar uma indenização para Lula, que o acionava na Justiça por danos morais. Caso não precisasse usar todo o valor do fundo, doaria o restante para o combate à corrupção – nunca especificou de que forma. Ganhou dinheiro quando lançou seu livro A luta contra a corrupção pelo selo Primeira Pessoa, da editora Sextante. Recebeu 100 mil reais como adiantamento. Até agora, vendeu 32 mil exemplares – um bom número para o mercado brasileiro.

Com o patrimônio em alta, Dallagnol passou a ter preocupações de investidor. Na iminência do julgamento de Lula em segunda instância, mandou uma mensagem para a mulher, lamentando não ter resgatado suas ações mediante as previsíveis oscilações na Bolsa de Valores. “Não sei se fiz besteira porque passou do horário, o resgate acontece amanhã e a data da CONVERSÃO é depois de amanhã. Ou seja, vale o Ibovespa e valor de ação da quarta, quando é o julgamento do Lula.” (Preocupou-se à toa: a condenação de Lula fez a Bolsa disparar e atingir um recorde histórico até então.)

A certa altura, Dallagnol decidiu criar sua própria empresa de palestras e eventos em sociedade com Roberson Pozzobon, aquele que tinha preocupações em relação a palestrar para bancos. Como foi revelado pela Vaza Jato, as mulheres dos dois procuradores cogitaram se tornar sócias. Dallagnol continua na Star, cujo catálogo informa que o procurador pode falar sobre “luta contra a corrupção”, “propósito e resiliência”, “ética nos negócios” e “autismo e direitos dos autistas”. Procurada pela piauí, Fernanda Cunha, dona da Star, não quis informar como anda a demanda por seu agenciado.

Com tanta atividade, Dallagnol chegou ao ano eleitoral de 2018 com a conta recheada. Em uma troca de mensagens com a mulher, comemorou que estava com 949 mil reais “em poupança”. A expectativa era fechar o ano com mais dinheiro em caixa. Em meados de outubro, faltando pouco mais de dois meses para fechar 2018, escreveu: “Mor, se tudo der certo nas palestras, vão entrar ainda uns 100k limpos até o fim do ano.” As palestras e o livro já haviam rendido 400 mil reais. Nessa época, o casal estava se preparando para mudar para um apartamento maior, em Curitiba. Quando deixou o Ministério Público, em 2021, Dallagnol ganhava 34 mil reais brutos.

Os políticos não perderam a oportunidade de fustigá-lo pela bonança súbita. Os petistas Paulo Pimenta e Wadih Damous entraram com uma reclamação disciplinar junto ao Conselho Nacional do Ministério Público, argumentando que Dallagnol usava a Lava Jato para enriquecer. O CNMP autorizou as palestras remuneradas com a justificativa de que o procurador não vinha falando sobre assuntos sigilosos e, além disso, doava a maior parte dos cachês. (À piauí, a administração do Hospital Erasto Gaertner afirmou que recebeu 219 mil reais de doações de Dallagnol em 2016. A partir de 2017, no entanto, o procurador não fez mais doações à entidade.)

É uma ironia que a atuação de Lula como palestrante tenha sido um dos motivos da Lava Jato para pedir a quebra do seu sigilo fiscal e bancário. Moro autorizou a medida com o objetivo de descobrir se o dinheiro era propina disfarçada de cachê. Pouco antes de Moro dar sua sentença sobre o assunto, o procurador Angelo Augusto mandou uma mensagem aos colegas comentando o rosário de lambanças dos petistas: “Agora, a tigrada do PT, essa curte um luxo, um jatinho, um agrado, uma palestra, um lobizinho…”

Gilmar Mendes, o ministro do STF que mais criticou a força-tarefa e por ela foi criticado, identificou outra tigrada. Em conversa com a piauí, fez uma avaliação ácida tanto da Lava Jato quanto dos procuradores. “Eram pessoas que estavam aí para ganhar dinheiro. Já me falaram que ele [Dallagnol] acumulou um patrimônio imobiliário enorme”, disse. E completou: “Eles são pai e mãe do Bolsonaro. Eles imaginaram um cenário de terra arrasada em que eles seriam os sobreviventes. É o chamado tenentismo de toga: eles realizariam esse sonho.”

A reportagem da piauí conversou com Deltan Dallagnol durante cinco horas e meia em uma sala de reuniões de um hotel em Curitiba no dia 15 de fevereiro. O procurador estava acompanhado por dois assessores. Ali, combinou-se que a conversa era para apresentar contextos, e não uma entrevista. É o que se chama no jargão jornalístico de “conversa em off”. A piauí só deveria publicar as explicações que o procurador mandaria mais tarde, por escrito, em resposta às 36 perguntas apresentadas pela revista. A piauí está cumprindo o acordo. Dallagnol respondeu a todas as perguntas, exceto a que indagava sobre a mensagem em que escreveu “melhor ‘Temer’ o futuro e enterrar o passado ‘Dilma’ vez”.

Nas suas respostas, por dezenove vezes, Dallagnol escreveu o seguinte antes de dar sua versão: “Não responderei com base em supostas mensagens que não reconheço, mas com base na realidade.” A frase, tantas vezes repetida, faz parte da linha de defesa dos autores das mensagens que vieram a público com a Vaza Jato. Alegam que não reconhecem os conteúdos, sugerindo que podem ter sido editados, distorcidos, inventados, tirados de contexto ou mal interpretados.

Nas 27 páginas de resposta, o procurador fez questão de defender a lisura da Lava Jato e de sua conduta, a começar pelo empenho na defesa das 10 Medidas contra a Corrupção – afinal, era um “projeto oficial, institucional, do Ministério Público Federal, capitaneado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão”. Contou que se lembra de ter havido “uma maciça adesão ao projeto” da parte dos procuradores e disse que, em todos os lugares por onde viajou, “havia sempre procuradores e servidores engajados”.

Sobre seus investimentos, disse que jamais usou informação privilegiada. “Ao contrário de tantos investigados pela Lava Jato, prefiro perder dinheiro a ganhá-lo à custa da minha integridade”, escreveu. Ressaltou que nunca negociou com ações “de empresas investigadas ou vítimas na Lava Jato desde o início da operação” e que suas aplicações “estiveram declaradas no Imposto de Renda”. Detalhou: “Por exemplo, eu tinha ações da Petrobras antes de a Operação Lava Jato começar e não as vendi até meses após ter deixado de trabalhar na investigação. Durante o período, não comprei e não vendi ações da estatal, mesmo quando, com base em informações públicas, parecia a melhor decisão financeira.”

Ele não se lembra da “situação específica” em que teria pedido para investigar o namorado de sua irmã, o “super suspeito de psicopata”, mas disse duvidar que as mensagens sejam verdadeiras, porém – “se forem” – não passavam de “uma conversa familiar, que pode ser uma brincadeira”. Em seguida, complementou: “Entrando no terreno da especulação, caso tenha ocorrido qualquer tipo de verificação [sobre o namorado] a partir dessa conversa […], posso assegurar que tal verificação teria sido realizada exclusivamente por meio de bases de dados públicas, internet e redes sociais, sem implicar o uso indevido de recursos estatais.”

Sobre a fila que furou para tirar passaporte para a filha, disse desconfiar que a mensagem que lhe é atribuída esteja adulterada – porque o nome de sua filha está escrito errado – e defendeu que, ao contatar o delegado Felipe Hayashi, que integrava a Lava Jato, não lhe pediu nenhuma vantagem pessoal, nem solicitou que os protocolos fossem violados. Em sua resposta, Dallagnol deu a entender que qualquer brasileiro comum, ao enfrentar o mesmo problema, poderia ligar para um delegado federal e ainda escolher a data em que gostaria de pegar o passaporte. Disse que a interpretação de que burlou a fila para viajar na data desejada “é equivocada e ofensiva”.

No capítulo das palestras, Dallagnol frisou que a grande maioria era gratuita. Na campanha a favor das 10 Medidas, contabilizou mais de 150, “todas gratuitas”. Em 2018, um ano particularmente intenso, disse que fez 34 palestras gratuitas – sem citar o total das pagas – e deu detalhes: das 34, vinte ocorreram “em dias de folga, férias, fins de semana e feriados” e três aconteceram “à noite em Curitiba e Joinville (a uma hora e meia de carro), o que demonstra que amar, servir e lutar por boas causas é um propósito de vida mais do que meramente um trabalho relevante de interesse público”.

Quanto às palestras remuneradas, suas respostas são menos precisas. Escreveu que, entre 2016 e 2019, destinou 734 mil reais à filantropia e embolsou “menos de 40% do total”. A piauí voltou ao procurador para pedir que fornecesse o valor exato que recolheu para o seu bolso, evitando o uso de um percentual impreciso, mas Dallagnol respondeu que já havia dado todas as respostas necessárias. A revista voltou a insistir no esclarecimento. Sua assessoria de imprensa tentou durante dois dias agendar uma nova conversa, mas não conseguiu.

Sobre a escolha de jatinhos e helicópteros para viajar, inclusive com a família, Dallagnol explicou na nota que só fez certos pedidos para facilitar os deslocamentos e economizar seu tempo, mas explicou que “isso jamais foi uma demanda que fiz, mas uma possibilidade aberta para [viabilizar] certos convites para palestra”. Esclareceu: “Não creio que houve, nesses deslocamentos mais raros, preponderância de ‘jatinhos’, termo usado na pergunta que pode sugerir um viés de exigência de luxo e que não se reflete na realidade. Houve preponderância de aeronaves de menor porte, inclusive aeronaves simples, monomotor, de quatro lugares.”

Em novembro de 2021, quando abandonou a carreira de dezoito anos no Ministério Público, desiludido com o desmonte das operações contra a corrupção, Deltan Dallagnol já estava no mercado de palestras, atividade tão malvista pelos procuradores quando investigavam Lula, e entrou no mercado político, outra área que tantos procuradores consideravam suja. Filiou-se ao Podemos durante um evento em Curitiba com a presença de Sergio Moro, outro que criminalizara a política e, na época, já estava filiado ao mesmo partido. Não era um destino inusitado. Os grupos de Telegram de Dallagnol mostravam que, havia alguns anos, ele cogitava lançar-se como candidato a algum cargo eletivo.

Com a Lava Jato no auge, ele ainda dispensava a política. Em mensagens no Telegram, comentou sobre as desvantagens da carreira: “Ganha menos, tem menos férias, fica tomando pedrada na vitrine num jogo de mentiras.” Mas não era um caso encerrado. Escreveu: “A verdade é que quero em minha vida, em primeiro lugar, servir a Deus, e a Bíblia coloca que a vida do cristão é como o vento, que não sabe para onde vai. Se um dia decidir tentar, é porque entendi que é o melhor modo de servir a Deus e aos homens e por puro espírito público.”

Pouco tempo depois, o empresário Joel Malucelli – implicado em investigações da Lava Jato – mandou sondá-lo sobre uma candidatura ao Senado pelo Podemos. Nas mensagens, não fica claro se a negociação avançou, mas, em certo momento, Vladimir Aras, procurador do Distrito Federal, perguntou ao colega se ele estava “firme na candidatura”, ao que Dallagnol respondeu: “Eu não descarto também (assim como não descarto várias outras coisas), mas hoje minha saída [do MP], a meu ver e salvo alguma mudança radical de cenário, mais prejudicaria a causa anticorrupção do que ajudaria.” Mas disse: “Pelas pesquisas, estaria eleito, mas tem muito mais coisa importante em jogo.”

Na mesma época, escreveu uma longa mensagem a um colega em que voltou a falar sobre os aspectos negativos de uma eventual candidatura. Disse que perderia credibilidade pública, vários apoiadores na sua igreja não entenderiam a decisão, os eleitores do Paraná talvez ficassem insatisfeitos com suas viagens constantes pelo país e, por fim, faria com que o movimento em favor das 10 Medidas contra a Corrupção parecesse uma plataforma pessoal. Na eleição de 2022, Dallagnol declarou patrimônio de 2,7 milhões à Justiça eleitoral e elegeu-se deputado federal com 344 917 votos – o mais votado do Paraná.

Durou pouco. Em maio de 2023, perdeu o mandato por decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral sob a alegação de que pediu exoneração do Ministério Público para escapar de eventual punição em processos administrativos abertos para apurar sua conduta durante a Lava Jato. Caiu atirando. Afirmou que era vítima de perseguição porque declarara uma guerra sem fronteira contra poderosos políticos corruptos, que não havia processo disciplinar contra ele na época em que deixou o MP e concluiu que, para cassá-lo, o TSE fez “malabarismo jurídico”. Trocou o Podemos pelo Novo, cuja assessoria informa que lhe paga 44 mil reais, mais ou menos o que ganha um deputado. Sua tarefa é atrair novos filiados e dar palestras para candidatos nas eleições municipais, nas quais concorrerá à prefeitura de Curitiba. Na última eleição, o Novo elegeu apenas um prefeito** no país: em Joinville, em Santa Catarina. Desde então, porém, outros três migraram para a legenda.

Dallagnol conta com uma força generosa de apoiadores – aos quais ele chama de “agentes de Deus”. Quando foi condenado a pagar os 75 mil reais de indenização para Lula em razão do episódio do PowerPoint, nem precisou recorrer ao fundo de reserva que disse ter constituído para essa emergência. Seus apoiadores fizeram uma avalanche de Pix para a sua conta, totalizando 500 mil reais. Mais tarde, o Tribunal de Contas da União – com votos de ministros citados ou investigados pela Lava Jato – condenou Dallagnol e o ex-procurador-geral Rodrigo Janot a devolverem 2,8 milhões de reais pelo uso indevido de diárias e de passagens aéreas durante a Lava Jato. Cada um ainda deverá pagar multa de 200 mil reais. Dallagnol voltou às redes sociais e, em menos de 24 horas, conseguiu recolher 150 mil reais dos “agentes de Deus”.

*Esse parágrafo foi alterado para suprimir a informação de que o procurador Eduardo Pelella fazia parte do grupo do Telegram para o qual Dallagnol enviou essas mensagens.

**O texto original da reportagem informava que o Novo tem apenas uma prefeitura no Brasil, a de Joinville, em Santa Catarina. Na verdade, o partido elegeu apenas um prefeito em 2022, mas, desde então, filiou outros três. Hoje, tem dois prefeitos em Santa Catarina e dois em Minas Gerais.

João Batista Jr.

Repórter da piauí, publicou A Beleza da Vida: A Biografia de Marco Antonio de Biaggi (Abril)

Allan de Abreu

Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)

Felippe Aníbal

É jornalista investigativo e cronista

Lígia Mesquita

É repórter, com passagens pela Folha de S. Paulo e BBC Brasil

Luiz Fernando Toledo

É mestre em jornalismo de dados pela Universidade Columbia e um dos diretores da Abraji

Matheus Pichonelli

Formado em jornalismo e ciências sociais. É roteirista do ICL Notícias, com passagens na Folha de S. Paulo, iG, CartaCapital, Yahoo e UOL