História Cultura Comunicação

O que há de novo?

O desmonte

Tarcísio avança sobre a TV Cultura, que enfrenta corte de verbas e pode ser privatizada


"[A última investida de Tarcísio] é sobre a Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura, e um dos símbolos da sociedade civil paulistana. Ao longo do tenebroso período bolsonarista, a Cultura conseguiu se safar relativamente inteira, com exceção de alguns âncoras das rádios. 

"A verduga da Fundação Padre Anchieta é a Secretária da Cultura, Economia e Indústria Criativa do Estado de São Paulo, Marilia Marton. Apenas reeditou a perseguição que o governo Bolsonaro empreendeu contra a Fundação".

Luis Nassif, GGN (expandir)

Sua primeira atitude foi cortar totalmente as verbas de manutenção da Fundação – aquelas destinadas a pagamento de salários, reformas, manutenção e lançamento de programas. Em março houve o bloqueio de R$ 35 milhões para a fundação, que teve que se virar com projetos para terceiros.

Depois, entrou em uma série de conflitos conceituais:

Financiamento: A Secretaria da Cultura questiona o alto custo de produção da TV Cultura, defendendo uma redução de despesas. A FPA argumenta que a verba recebida é insuficiente para manter a qualidade da programação e que cortes afetariam negativamente os serviços prestados.

Gestão: A Secretaria da Cultura deseja ter maior controle sobre a gestão da FPA, incluindo a nomeação de diretores. A FPA defende sua autonomia como entidade de direito privado, reivindicando liberdade para tomar decisões estratégicas.

Conteúdo: A Secretaria da Cultura busca direcionar a programação da TV Cultura para um público mais amplo, com foco em entretenimento e divulgação dos feitos do governo. A FPA defende a manutenção de uma programação educativa e cultural de qualidade, mesmo que direcionada a um público de nicho.

Futuro da FPA: A Secretaria da Cultura avalia diferentes modelos para o futuro da FPA, incluindo a privatização ou a fusão com outras entidades. A FPA defende sua permanência como instituição autônoma, com foco na produção de conteúdo educativo e cultural.

Antes disso, não passou incólume pelo governo José Serra, mas por puro oportunismo de Paulo Markun, que assumiu a presidência. Serra estava em fim de governo estadual e Markun ambicionava ser reconduzido ao cargo. Para mostrar serviço, rompeu o contrato com Heródoto Barbero, por críticas ao preço do pedágio, e a mim próprio, por críticas que fiz à iniciativa de Serra de gastar publicidade da Sabesp no Nordeste.

Mas, em ambos os casos, foi decisão individual de Markun. Quem me contou, na época, foi o Secretário de Cultura João Sayad. O arroubo de Markun acabou irritando o próprio Serra, que foi responsabilizado pelas demissões.

Depois de ter sido desligado da Fundação, por manter postura independente, recebi convite da TV Brasil. E fui alvo de reportagem sensacionalista da jornalista Vera Magalhães, na Folha, me “acusando” de ter sido contratado sem licitação. A repórter ouviu a próprio FPA, que falou o óbvio: não podia haver licitação para a contratação de comentaristas. Vera cortou esse trecho da reportagem. E o factóide quase gerou uma CPI proposta pelo deputado Roberto Freire.

Curiosamente, a única irregularidade da FPA ocorreu com a própria Vera, âncora do Roda Viva: a prorrogação do contrato de Vera com a FPA, assinada quatro meses antes do término do anterior, violou a lei proibitiva de assunção de despesas em final de gestão.

Nenhum dos episódios teve responsabilidade da FPA. Foram atitudes individuais de jornalistas ambiciosos. O modelo institucional da FPA, até agora, tem permitido a manutenção de uma programação de qualidade.

Governo do Estado abandona expansão do Metrô

Nova Raposo: outro crime de Tarcísio contra São Paulo

Nos últimos dias, veio à tona mais um projeto que promete mexer com a cidade: o governo estadual anunciou a concessão de várias rodovias incluindo o trecho da Rodovia Raposo Tavares entre a capital e Cotia. Mauro Calliari, Folha (expandir)

No trecho da chegada a São Paulo, o projeto pode afetar bairros inteiros e causou reação de moradores, que já começaram a se articular para tentar entender e eventualmente se defender dos efeitos de uma mudança gigante.

Como encarar um projeto com potencial de interferência enorme na cidade e que parece querer prescindir de debate?

Estrada é diferente de rua

A cidade de São Paulo é um nó. Estradas entram e saem diretamente do município, o que foi a razão para a criação do Anel Viário, que está incompleto até hoje.

Esse é a contradição: a estrada é construída para circular em alta velocidade. Quando chega à região urbanizada, porém, muda de caráter, precisa se integrar à cidade, acomodar comércios, dar passagem a moradores, oferecer acessos a ônibus urbano, bicicletas e pedestres. As duas coisas não combinam.

Existe até um termo usado por urbanistas americanos: stroad, mistura de street (rua) e road (estrada). A via que tenta ser as duas coisas não é nem uma coisa nem outra.

Não por acaso, o trecho inicial, da capital até o km 34, em Cotia, ficou fora do primeiro programa de concessões da gestão Mário Covas, em 1998. Ao trazer a concessionária para o trecho urbano, revela-se a intenção de pedagiar o trânsito de pessoas que trafegam dentro da própria cidade.

A distância entre as esferas da gestão parece jogar contra a cidade

O governo estadual é responsável pelo transporte entre cidades e pela rede de trilhos. Mesmo assim, não se concebe um novo projeto sem a participação do governo municipal. A Prefeitura de São Paulo está esperando detalhes para se manifestar, o que não parece ser um começo promissor se a ideia é justamente adequar projetos às necessidades da cidade.

Na outra ponta, há outro conflito, advindo da pergunta óbvia que se faz quem olha o mapa. O que vai acontecer com Regis Bittencourt, que chega praticamente ao mesmo ponto da capital? Algumas soluções poderiam ser integradas, mas nada está previsto, o que parece revelar a distância entre a gestão federal (Regis) e a gestão estadual (Raposo).

Comunicação e participação

O processo da Nova Raposo está no mínimo mal comunicado e só gerou reações após uma reportagem em O Estado de S. Paulo. Há duas audiências públicas nessa fase, sendo apenas uma em São Paulo. Não parece republicano nem civilizado começar uma conversa sem convidar moradores, comerciantes, conselheiros, técnicos, representantes do Executivo e Legislativo das cidades por onde passa a estrada.

Ideias descasadas de planos urbanísticos

São Paulo acabou de aprovar a revisão do Plano Diretor, um processo difícil, cheio de idas e vindas. Não há nele –nem no Plano de Mobilidade– nada a respeito da Nova Raposo. Aliás, também não se discutiu outra ideia do governo estadual, a de mudar a estrutura administrativa para os Campos Elíseos.

Premissas antigas para um projeto contemporâneo

O projeto prevê duplicação, faixas adicionais, vias marginais, a construção de pontes e túneis e passarelas para pedestres. Chama a atenção que uma escala de intervenções tão grande possa ser concebida sem considerar alternativas e impactos. Onde estão as considerações sobre o transporte público? Como ficam os ônibus nessa nova configuração?

E, principalmente, onde está o metrô? Ora, há um projeto justamente para essa região: a nova linha 22–Marrom do metrô, que vai ligar São Paulo até a Granja Viana (fase 1) e Cotia (fase 2). O projeto da nova linha está previsto para 2026, quando as intervenções rodoviárias provavelmente já estarão em andamento ou concluídas. Será que ela não poderia aliviar parte considerável do trânsito que se pretende combater agora? Não seria o caso de apressar os estudos para poder fazer uma escolha mais racional?

O impacto nos bairros

A falta de detalhamento e o tempo escasso não permitiram nem que se estude em detalhes os impactos, mas é possível ver no vídeo do site uma extensa rede de viadutos, túneis e derrubada de árvores a partir da chegada a São Paulo. Ora, nós já vimos esse filme em 1971, quando a construção do Minhocão trocou qualidade de vida por mobilidade, sugando a vitalidade do centro pelos lugares onde passou.

A fluidez da Raposo Tavares é importante. O custo do trânsito parado tem impacto econômico, ambiental e de qualidade de vida, assim como a segurança dos pedestres que precisam cruzar a estrada. Entretanto, é possível que haja condições de melhorar essa fluidez, resolvendo gargalos pontuais da estrada sem ter que comprometer o futuro de bairros que circundam a estrada.

A melhor solução será aquela que leva em consideração as infraestruturas existentes, como a segregação de ônibus e o Rodoanel, as futuras, como o metrô e trem e, principalmente, a vida que acontece na cidade que ela vai impactar.

Leitura ampliada

# Nova Raposo requer pedágio urbano e alcança área de casas e parque em SP (Folha)
Governo mente quando diz que projeto foi debatido e também mente quando diz que mudanças vão desafogar rodovia

Eleições SP 2024

Amigos do prefeito disputam contratos milionários na prefeitura

Empresas que tentaram licitação de R$ 19 milhões são ligadas a dirigente de associação na qual prefeito é presidente. Amanda Audi, Pública (expandir)

Leia também a matéria anterior de Amanda Audi (também na Pública):
Nunes contrata por R$ 19 milhões diretor de Associação que ele mesmo preside

As três empresas que disputaram a licitação de R$ 19 milhões na qual a prefeitura de São Paulo comprou armadilhas contra o mosquito da dengue têm ligação direta ou indireta com o empresário Marco Bertussi, próximo ao prefeito Ricardo Nunes, revela nova apuração da Agência Pública. A Pública mostrou que Nunes e Bertussi são presidente e diretor de uma associação de empresas de controle de pragas.

Duas concorrentes da licitação são do próprio Bertussi – a Biovec (a vencedora) e a TN Santos. Agora, a apuração revela que a terceira empresa a disputar a concorrência, a Biolive Proteção Ambiental, também tem relações com Bertussi.

A Biolive, de Salvador, na Bahia, está em nome de Luiz Henrique Faria Martins. Ele é um dos donos da DDM Cobrança Empresarial, uma empresa sediada no Rio de Janeiro que faz parte do Grupo DDM, especializado em cobrança de dívidas. O Grupo DDM pertence a Christiano di Maio, que é sócio de Bertussi em duas empresas – justamente a Biovec e a TN Santos. 

A licitação, feita por meio de pregão eletrônico, necessitava que ao menos três fornecedores enviassem uma cotação para ocorrer. A prefeitura entrou em contato com 19 empresas de controle de pragas, mas apenas as três empresas apresentaram proposta comercial. As demais informaram que não tinham os equipamentos pedidos pelo edital, não atuavam em São Paulo ou não responderam.

“Pode haver uma mácula aos princípios da moralidade pelo vínculo entre o prefeito e o empresário ofertante de um produto que, ao que tudo indica e o Ministério Público investiga, pode ter sido superfaturado”, diz Marcelo Nerling, professor de direito público da Universidade de São Paulo (USP). “Chama atenção o fato de que nem a Câmara Municipal e o Tribunal de Contas investiguem. Deve haver justificativa para cada fornecedor e o preço ofertado deve estar compatível com o de mercado”, continua.

POR QUE ISSO IMPORTA?

Todas as empresas que disputaram a licitação estão ligadas a um mesmo empresário, que é diretor numa associação presidida pelo prefeito de São Paulo

Foi Ricardo Nunes quem abriu as portas para a empresa de Bertussi se aproximar da prefeitura quando ele era vereador. A licitação é hoje alvo de representações no Ministério Público

A DDM Cobrança Empresarial, do dono da Biolive, funciona no mesmo prédio comercial do Grupo DDM, na avenida Ayrton Senna, no Rio de Janeiro. O e-mail usado para registrar a empresa na Receita Federal é de Di Maio.

Na Biovec, Di Maio se tornou sócio e administrador em julho de 2022, com participação de R$ 1 milhão no capital social. No mês seguinte, ele deixou a Biovec, mas segue como único sócio da CMDM Participações, empresa que gere ativos e é sócia da Biovec. Na TN Santos, ele é sócio administrador. 

Quando a licitação paulista ocorreu, no início do ano passado, Di Maio fazia parte das duas sociedades, a Biovec e a TN Santos, com Bertussi. Agora, sabe-se que a outra competidora, a Biolive, também é ligada a ele. 

A licitação de compra das armadilhas já é investigada pelo Ministério Público de São Paulo por suspeita de superfaturamento. Cada armadilha custou cerca de R$ 400 aos cofres públicos, enquanto poderia ter sido fabricada por menos de R$ 10, segundo apuração da Folha de S.Paulo. Após a reportagem da Pública, o órgão recebeu representações para investigar também a ligação de Nunes e Bertussi.

Empresa baiana que disputou licitação em SP fez proposta mais cara

Apesar de ter se candidatado a um contrato milionário com a maior prefeitura do país, não há registros de que a Biolive já tenha prestado serviços para a prefeitura de Salvador ou o governo da Bahia, locais onde está sediada. Também não há nenhuma informação em sua página na internet sobre as armadilhas que ela se propôs a fornecer para São Paulo.

A Biolive se apresenta como uma empresa de controle de pragas, lavagem automotiva, desinfecção de ambientes e tratamento de fossas sanitárias e efluentes. Ela foi aberta em 2006. Os telefones informados estão desativados. Tentamos contato por e-mail, mas não houve resposta.

O endereço que consta no site da empresa é, hoje, de um serviço de emergências médicas. Um atendente disse à reportagem que a Biolive se mudou do local “há anos”, mas não soube informar para onde.

Um outro endereço, registrado pela empresa na Junta Comercial da Bahia, é de uma rua residencial. Ele é o mesmo da Truly Nolen Salvador, do grupo ao qual pertence a TN Santos, de Bertussi, que também participou da licitação. 

Como revelado pela Pública, enquanto as propostas comerciais enviadas pela TN Santos e Biovec para a licitação na prefeitura detalham os equipamentos que seriam fornecidos conforme o edital e fazem uma apresentação das empresas, o da Biolive se limitou a apenas citar os valores dos produtos, sem sequer usar uma logomarca ou papel timbrado.

Os preços da Biolive eram expressivamente mais caros do que os das concorrentes. A empresa se propôs a vender as armadilhas e o sachê inseticida para matar larvas por R$ 33,3 milhões, valor mais de 50% mais alto do que a proposta vencedora, da Biovec, de R$ 21,3 milhões.

Relembre: contrato de R$ 19 milhões começou com doação de empresa do mesmo sócio

A TN Santos é uma velha conhecida da prefeitura de São Paulo. Em 2019, o então vereador Ricardo Nunes articulou para que o município aceitasse participar de um “projeto-piloto” para testar armadilhas contra o mosquito cedidas pela empresa. Na época, a TN Santos acordou com a prefeitura de Bruno Covas uma doação de armadilhas no valor de R$ 118,2 mil.

O projeto resultou na recomendação para que a licitação fosse realizada posteriormente, em 2022, sob a gestão de Nunes. A disputa resultou na compra das armadilhas fabricadas pela Biovec. Em outras palavras, uma das empresas de Bertussi e Di Maio fez uma doação para a prefeitura que, anos depois, foi usada como argumento para realizar a licitação de R$ 19 milhões vencida por outro negócio deles.

As armadilhas são um dos investimentos mais caros pagos pela prefeitura no combate à dengue em meio à pior crise da doença desde 2015. Recentemente, Nunes declarou emergência em saúde por dengue. Apenas cinco distritos da cidade estão sem epidemia da doença.

Armadilhas foram adquiridas a R$ 400 cada

Sem manutenção, as armadilhas perdem a eficácia e estão virando criadouros do mosquito, segundo denúncias recebidas pela reportagem e reveladas pela Pública no início do mês. Há registros de armadilhas há meses sem troca da água e veneno de seu interior, o que faz com que as larvas se desenvolvam e possam ajudar a espalhar a doença.

A Pública procurou os citados nesta reportagem. Apenas a Biovec respondeu, em nota: “A Biovec Comércio de Saneantes LTDA é uma empresa que nasceu com o objetivo de desenvolver, entre outros, programas de combate a mosquitos, especialmente do gênero Aedes, atuando na defesa da saúde pública. A Biovec afirma que todas as contratações realizadas pela empresa seguiram rigorosamente suas políticas de compliance e as legislações vigentes, reafirmando assim seu compromisso com a plena integridade”.

Leia também em A Terra é redonda: # Esquerda brasileira e tradição republicana (entrevista com Luiz Werneck Vianna) # Grandes herois do ressentimento brasileiro (Alexandre Carrasco)

Proletariado perdeu seu papel; mas universalizar os direitos e riquezas é caminho para retomar o projeto emancipatório sob uma condição: recuperar o papel do Estado (Outras Palavras)

Estudantes protestaram contra cortes no orçamento das universidades públicas promovidos pelo governo Milei e teve público de 500 mil pessoas, segundo a Universidade de Buenos Aires (G1)

Bolsonaro volta às ruas para tentar escapar da prisão

Josias de Souza, Uol (expandir)

Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, o capitão recorre à empulhação de atos como o deste domingo, em Copacabana.

Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias que Bolsonaro adota: a declarada e a real. A concentração de poderes nas mãos de Alexandre de Moraes fornece material para a confusão.

No gogó, Bolsonaro mantém Moraes na alça de mira porque o Brasil está "perto de uma ditadura" e "o mundo toma conhecimento do quanto está ameaçada a nossa liberdade de expressão." (continue a leitura)

Festa nos EUA

# 20 de abril: o Dia da Maconha nos Estados Unidos (G1)

 Diferentemente do Brasil, onde a proposta de uma PEC foi aprovada para tornar a simples posse de drogas um crime independente da quantidade, nos EUA a maconha é legal em 1/2 dos estados

Voltem para casa companheiras e companheiros cientistas 

# Governo Lula deve investir R$ 1 bilhão para repatriar cientistas 

Presidente do CNPq fala em critica 'míope' dos que divergem da iniciativa (Carta Capital)

Menos é mais: a infomania que se abate sobre nós

O universo digital tornou-se o paraíso dos pesadelos e, na maioria das vezes, um culto à estupidez. Marília Pacheco Fiorillo, A Terra é redonda (expandir)

1.

O universo digital é o paraíso dos pesadelos: a epidemia de opioides (como fentanil) que hoje mata mais pessoas que algumas guerras só tem um paralelo, igualmente mortífero: o patológico vício em redes digitais.

Esta é a opinião do filósofo coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han, que em seu livro Não-coisas -reviravoltas no mundo da vida, alerta para o insidioso e altíssimo risco de que o universo digital destrua a humanidade mais rápido que a crise climática, por exemplo. Para Byung-Chul Han, vivemos sobrecarregados e esgotados por zarabatanas de informações, a maioria mentirosa, o que nos transforma em zumbis desorientados e narcisistas. O mundo tangível se confunde com o mundo virtual, gerando uma sociedade deprimida, embrutecida e desmiolada. É a “sociedade do cansaço”.

A obsessão com o compartilhamento de informações e dados (sobretudo privados) nos converte em “infômanos” submersos num turbilhão de estímulos que corroem nossa estabilidade e tranquilidade, eliminando os pequenos rituais cotidianos, a pausa necessária à reflexão, a contemplação, o convívio.

“No começo da digitalização, se sonhava que ela substituiria o trabalho pelo jogo. Na verdade, ela explora impiedosamente a pulsão humana pelo jogo”, diz Byung-Chul Han. E o maior dispositivo de subjugação, vigilância e controle sub-reptício é o smartphone/celular, ao mesmo tempo uma prisão e um confessionário digital. O celular na mão é o rosário contemporâneo. E os likes são o amém digital.

No romance de Aldous Huxley Admirável mundo novo, o totalitarismo não operava pela violência explícita, mas pela administração de uma droga do prazer, o “soma”, que fazia de todos uns cordeirinhos satisfeitos. Assim é o universo digital, um anestésico potente. Isso no médio prazo. A curto prazo, a rede digital tem se mostrado uma poderosa ferramenta para fraudes, golpes, falcatruas, crimes financeiros e até armadilha para assassinatos.

2.

Notem o caso Elon Musk versus ministro Alexandre de Moraes, como ficou conhecido, mas que poderia ser definido concisamente como a luta agônica entre o vale tudo (salve-se quem puder) do poder cyber econômico versus as blindagens legais e legítimas para a proteção do cidadão-internauta.

Invocar a liberdade de expressão, o atual mantra da extrema direita, é para lá de ridículo. É estrambótico, estapafúrdio. Costumava ser o clamor típico (de serena pronúncia e empolada elocução) da “direita caviar”, aquela que ciosamente empunha tecnicalidades jurídicas quando se trata de salvar a pele de “moças ilibadas” ou apaniguados – nada diferente, passados quase 50 anos, da tese da “legítima defesa da honra” que absolveu Doca Street, assassino confesso de Ângela Diniz.

Doca Street apenas havia exprimido um descontrole compreensível, “sob forte emoção” diante de uma femme fatale provocadora –matou “por amor”. Não havia X, tik, insta e congêneres. Se houvesse, a decisão seria aplaudida por milhões de seguidores.

A extrema direita motociata aprendeu direitinho com a caviar, exceto gramática e sintaxe (haja vista o “conge” e o massacre do verbo haver), mas quem liga para a língua portuguesa, pois nem mesmo conteúdo importa, se não for bilioso? Ela macaqueia as mesmas proteicas tecnicalidades para fazer das suas, como liberar sem tornozeleira criminosos graúdos, desde que endinheirados.

É tudo lhano (ops, palavra “caviar”), íntegro, ilibado, perfeitamente compulsável nos parágrafos, alíneas e entrelinhas da lei. Pois a lei é para todos, não? Enquanto isso, as redes associais de direita ganham músculos e exultam!

Já passou da hora de combater essa predatória “infomania” (deglutir sem digerir) com a única arma que temos: não dar cadeira para flechadas digitais escandalosas e injuriosas, aquelas que mais viralizam. É bloquear e evitar o contágio. Mesmo quando a boa intenção é debochar dos absurdos, o efeito bumerangue acaba sendo multiplicá-los. Sim, o sensacionalismo é tentador e atraente, suculento e quase irresistível, pisca de graça para nós… e justamente por isso alicia e adoece tão rápido quanto o crack.

Vamos jogar no lixo o que não provém de fontes com credibilidade, e as fofocas de famosidades (antigamente eram celebridades, pois tinham algum talento além de se intitular influencers).

Estamos cansados de saber os efeitos devastadores desta mídia associal: a quantidade de suicídios juvenis que ela provoca, as toneladas de ódio que ela instiga, as megatoneladas de mentiras e calúnias. Sem falar dos abusos sexuais, redes de pedofilia, negócios criminosos, assassinato de reputações ou compras instantâneas de drogas, notadamente os tais opioides que geram lucros astronômicos para a indústria farmacêutica.

3.

Mas nem tudo no universo digital é o culto à estupidez.

Em um artigo publicado no jornal Washington Post em 8 de fevereiro deste ano, um grupo de economistas das universidades de Chicago, Berkeley e Colonia (Köln/Alemanha) mediu o quanto as pessoas pagariam para que estas plataformas sumissem do mapa. Resultado: a maioria pagaria bem, pois achava que não perderia nada se ficasse sem elas. Elementar: somos bombardeados com tal volume e velocidade de informações falsas, estúpidas e inúteis (embora não inócuas) que a atual infomania galopante (acumular, acumular, acumular obsessivamente o que cai na rede) não nos deixa tempo para selecionar, ignorar e, principalmente, pensar.

Isso quanto a informações. Já quando se trata de consumismo, a posição se inverte. Os novos endinheirados penhorariam a alma para adquirir um Rolex e não se sentir um perdedor diante do vizinho, primo ou amigo que ostenta esta ou outras grifes. Não é exatamente que queiram. É que ‘não possuir’ os transformaria em párias no seu círculo social. Que pacto fáustico mequetrefe, mixuruca, brega e perverso. Isso se chamava cobiça (desejar só por impulso de imitação). E, pior, o Rolex do vizinho provavelmente é falso.

Menos é mais. Mais confiável, seguro e proveitoso. E mais chique, até.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).

Veja neste link todos artigos de



Todo apoio às decisões de Moraes

# Os perfis citados em decisões de Moraes e por que foram suspensos (Estadão) # Comitê dos EUA defende até grupo neonazista para atacar Moraes (Intercept)

A imprensa brasileira está em 2o lugar entre as que mais recebem dinheiro das big techs. Leia a postagem do site feita em fevereiro e entenda a troca de carícias entre alguns dos nossos 'jornais' e Musk na agressão ao STF (leia mais)

Os sabujos da extrema direita e os ataques à soberania do Estado brasileiro

A leniência com que o conservadorismo  reacionário trata o crime cometido contra a soberania nacional no episódio da divulgação por Elon Musk de decisões do ministro Alexandre de Moraes, a figura do Judiciário que salvou a democracia brasileira das investidas criminosas do bolsonarismo e de seus seguidores (leia a postagem abaixo).

Ordem Nacional do Mérito para Alexandre de Moraes

A violência à liberdade de expressão é justamente aquela que se volta contra os fundamentos legítimos da informação e não contra os 'produtos' manipulados pelas esferas de poder, como tem ocorrido com as práticas de Musk e da facção bolsonarista que o apoia (expandir)

Pois então... paciência tem limite

Dias a fio a mesma farsa discursiva dos 'grandes' jornais. A proibição, pelo STF, da divulgação de notícias cujo objetivo não é propriamente jornalístico, mas destinado a confundir o escrutínio da esfera pública em torno do Estado e do governo, essa proibição é uma violência contra a liberdade de expressão e deve ser rejeitada quaisquer que sejam os meios para que se consiga isso, diz a extrema direita em seus disfarces.  Na verdade, estamos muito longe disso. A violência à liberdade de expressão é justamente aquela que se volta contra os fundamentos legítimos da informação e não contra os 'produtos' manipulados pelas esferas de poder, como tem ocorrido com as práticas de Musk e da facção bolsonarista que encontrou nele um atalho de expressão e de apoio nacional e internacional.

É essa delicada distinção entre uma coisa e outra que as nossas elites não podem revelar, pois que o emaranhado entre elas reforça o senso comum de que as práticas do STF são arbitrárias e, por isso, antidemocráticas. Para a direita fascista, devem ser combatidas. É esse silogismo fundado em premissas falsas que permite a parte da imprensa advogar a negação de seus princípios liberais: a denúncia a uma suposta censura é, a rigor, a defesa da mentira contra qual não só as instituições devem se opor, mas a própria imprensa que se vale dela para alimentar seu projeto autoritário de poder. 

Resta saber: por qual motivo essa operação é realizada? O motivo é torpedear a expectativa de normalidade do governo. Trata-se de um motivo estratégico que sintetiza uma aversão ideológica profunda a essa "mudança de mãos" em que vive o governo brasileiro desde 2002 (16 anos sobre o total de 22 que se seguiram desde a primeira eleição de Lula), uma verdadeira rotina de sobressaltos das classes dominantes para cujo alívio vale de tudo: corrupção, lava jato, apartamentos, sítios, filhos machistas, ministros suspeitos, semi-analfabetismo, apoio a ditaduras estrangeiras, déficit público, estatização, privatização e o diabo... até que se chegue à decomposição da estrutura do Estado - com a desmoralização do poder que, até aqui, ficou fora das armadilhas das elites - o STF. Em suma, e como disse Vargas, o que essa turma não quer é que o povo seja livre.

Na etapa presente o que estamos assistindo é o refinamento dessa velha conspiração e que agora, na sua sinuosidade e hipocrisia, não transparece como tal: o atrevimento indigno de um apelo à intervenção externa - que em nome de uma suposta liberdade de expressão o poder discursivo da mídia vê como legítima, como demonstra a matéria da Folha que me serve de pretexto e para cuja repercussão o STF se vê no constrangimento de se explicar, como se sua soberania - como poder do Estado brasileiro - não o dispensasse disso. Eu realmente gostaria de ler no editorial da Folha, algum dia desses, a defesa de um pedido de desculpas diplomáticas oficiais dos EUA diante da desfaçatez com que estão se comportando os cafajestes parlamentares aliados de Trump de braços dados com os cafajestes aliados de Bolsonaro, inclusive seus filhos... 

Fazer o quê? Primeiro: é preciso radicalizar os procedimentos que 'cancelam' as iniciativas da extrema direita, quaisquer que sejam elas. A menor denúncia de corrupção, de desmandos em relação ao universo dos direitos humanos, da agressividade física dos delinquentes do MBL e assemelhados, qualquer um desses registros deve resultar em pena. Segundo: eu entendo que pela 2a vez na sua passagem pela Presidência da República, Lula enfrenta o desafio da "governabilidade" e a maneira complacente como ele lida com isso pode enfraquecê-lo (como deixam 'quase' claro os enunciados da mídia). Mas também para esse cálculo político há um limite: o "Centrão" tem que ser tratado a pão e água... de preferência só a pão... Por último: a  "Ordem Nacional do Mérito" - a maior condecoração brasileira - para Alexandre de Moraes... na Praça dos 3 Poderes, no dia 7 de setembro.

J.S.Faro

O que há de novo?

Violência policial aumenta em SP

Embora a PM tenha assegurado que o incidente em Paraisópolis com criança atingida por bala não tenha sido provocado por soldados (leia ao lado), tudo indica que o governador tem pouco controle sobre as ações da corporação. Estressado e dando mostras de evidente despreparo para os problemas que enfrenta, Tarcísio de Freitas precisa, com urgência, ser afastado do governo para tratamento. O  Estado de São Paulo já se ressente do sentido caótico da administração do bolsonarista, fato que gera tensão em todos os setores. Um processo de licença aberto na Assembleia Legislativa poderia aliviar o ambiente da insegurança que cerca as ações do executivo paulista.

Tarcísio e Feder: um quer comprar; o outro quer vender...  Ambos dispostos a substituir o conhecimento pela racionalidade utilitária da tecnologia. Em termos pedagógicos, isso é um crime

# Leia: Especialistas criticam projeto de Tarcísio (Carta Capital)

Tarcísio vai substituir professores pelo ChatCPT

Crime é passível de inquérito que pode levar ao impeachment e à prisão do governador e de seu secretário da Educação.

Até agora, o material didático era produzido por professores especialistas na elaboração dos currículos. Agora, esses docentes terão apenas a função de "avaliar a aula gerada [pela inteligência artificial] e realizar os ajustes necessários para que ela se adeque aos padrões pedagógicos" Quais? Ninguém sabe (leia aqui a matéria da Folha).

Sabesp: desastre anunciado

Privatizar é um retrocesso

Sob controle estatal, a empresa levou São Paulo à liderança nacional na cobertura e qualidade do saneamento. Vendê-la quando privatizações fracassam mundo afora e o cenário climático requer mais gestão pública é tomar a contramão da história (leia mais)

Maioria da população é contra a privatização da Sabesp: 56% dos paulistas a rejeitam, contra apenas 36% que a apoiam

Graciliano e Clarice

Luis Eustáquio Soares

(Outras Palavras)

Ainda falta muito.. 


Não foi preciso nem um dia inteiro para que se frustrassem as expectativas em torno dos poucos avanços que o Brasil tenta consolidar em diversas áreas. A 'absolvição' da juíza Hardt, a criminalização indiscriminada da posse de drogas, a ameaça que as 'saidinhas' sofrem nas mãos do Congresso, a dificuldade na regulamentação das big techs e na tipificação das fake news como crime, as pressões diversas e intensas que um certo tipo de jornalismo de aluguel faz de forma sistemática sobre Lula, o passeio de Eduardo Bolsonaro nos EUA em busca de algum comprador que queira o Brasil, o Tarcísio com sua sanha letal no combate ao crime. Em algumas horas, não mais que um dia, fica evidente que estamos como os Náufragos da Medusa: sem rumo, atarantados diante da necessidade de algum tipo de avanço ou de porto no nosso regramento jurídico e ético que nos abra a porta para a civilidade. A julgar pelo noticiário, ainda falta muito para isso...

Especial (Outras Palavras)

A doutrina intelectual da ultradireita (e seus disfarces)

Para Moysés Pinto Neto, trata-se de um movimento orquestrado por diversos atores que cresce e ascende no cenário mundial, ainda que traga consigo traços de fascismo, nazismo e autoritarismo. Uma “rede de conservadorismo e ressentimento” que se vale das plataformas digitais para disseminar o ódio. Essa é a extrema-direita que chegou ao topo em diferentes países (leia mais).

"Um Netanyahu em plena fuga para frente vai responder ao Irã, e apenas os EUA podem evitar o pior"

Artigo de Jesus Nuñez, IHU (expandir)

A dependência de Israel em relação aos EUA pode fazer com que Biden decida usar as alavancas diplomáticas, econômicas e militares que tem em suas mãos para evitar que o primeiro-ministro israelense acabe por provocar o que racionalmente ninguém pode desejar no Oriente Médio.

O artigo é de Jesús A. Núñez, professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade de Comillas, de membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos e do Comitê Espanhol da UNRWA, em artigo publicado por El Salto, 15-04-2024.

Eis o artigo.

Que Israel vai responder ao ataque realizado pelo Irã no sábado passado não deixa dúvidas. Na verdade, é razoável supor que quando Benjamin Netanyahu ordenou o ataque à sede consular iraniana em Damasco, em 1º de abril, ele estava plenamente consciente de que Teerã não iria aceitar passivamente o golpe. Aliás, Netanyahu estaria hoje muito decepcionado se o bombardeio iraniano não tivesse ocorrido, pois teria arruinado seu plano.

Um plano que buscava sair da dinâmica dos últimos meses, na qual ficava claro que o Irã se limitava a permitir que seus peões regionais mantivessem a tensão com "a entidade sionista", mas garantindo que não levassem a uma escalada regional que resultasse em uma guerra aberta com Israel, ciente de que sairia muito prejudicado dada sua inferioridade de forças em relação à aliança entre Tel Aviv e Washington.

O que aconteceu desde então permite a Netanyahu apresentar Israel novamente como vítima - obrigado a responder -, desviar a atenção internacional sobre o massacre que continua a realizar em Gaza e ancorar ainda mais os Estados Unidos ao seu lado para o que possa vir. Tudo isso pensando muito menos nos interesses de seu país do que em seus problemas pessoais, tanto pela deterioração de sua imagem como garantidor da segurança de seus cidadãos, arruinada após o 7 de outubro, quanto pelo risco de uma antecipação eleitoral que resultaria em sua queda política e sua previsível condenação penal.

O que corresponde agora, portanto, é vislumbrar que tipo de ação Israel vai realizar. Em termos de maior ou menor probabilidade, é mais provável que realize um ataque pontual e limitado. Mas de maneira alguma pode-se descartar que Netanyahu aproveite a oportunidade para ir além, lançando uma campanha militar mais ambiciosa com o objetivo final de eliminar, ou pelo menos degradar seriamente, quem Israel identifica há muito tempo como sua principal ameaça à segurança, muito além do que representam os grupos armados palestinos ou milícias como o Hezbollah ou Ansar Allah.

Se Israel se limitar a restaurar a dissuasão para retornar ao status quo anterior a 1º de abril, as Forças Armadas israelenses têm muitos alvos potenciais ao seu alcance. Pode simplesmente repetir o que já foi feito centenas de vezes, atingindo alguns dos peões iranianos na região, começando pela milícia xiita libanesa e/ou o grupo Resistência Islâmica do Iraque, na medida em que ambos participaram do ataque iraniano, lançando alguns mísseis contra a base aérea israelense de Kila (nos Altos do Golan sírios, de onde partiram os caças que realizaram o ataque à sede diplomática iraniana na capital síria).

Mas, dado que a maioria dos drones e mísseis utilizados partiram do solo iraniano, é muito mais provável que Tel Aviv queira enviar uma mensagem mais contundente, atingindo diretamente o território iraniano. Tem à disposição múltiplos alvos, começando pelas bases de onde partiram os lançamentos e seguindo por outras instalações militares, especialmente as do Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica do Irã, os Pasdaran, que Israel pretende que toda a comunidade internacional termine por classificar como uma entidade terrorista; sem esquecer as instalações onde são fabricados os drones Shaeed-136 utilizados na primeira onda do ataque de 13 de abril.

Nesse mesmo aspecto, é preciso incluir todas as instalações relacionadas ao controverso programa nuclear iraniano, tanto as usinas de Natanz com suas milhares de centrífugas, a usina de água pesada de Arak e a de enriquecimento de urânio de Fordow, quanto a central nuclear de Bushehr, a usina de processamento de Isfahan ou os dois reatores de pesquisa atualmente em operação.

Ataque pontual ou campanha prolongada?

A chave estará em decidir se o ataque a qualquer um desses alvos será pontual - o que provavelmente não será suficiente para destruí-los, dada sua alta proteção - ou sustentado no contexto de uma campanha prolongada por semanas ou até meses. Em qualquer dos casos, e apesar de sua esmagadora superioridade em relação às capacidades iranianas, Israel não apenas precisará da permissão, mas também do envolvimento direto dos Estados Unidos para realizá-lo. Qualquer um desses alvos está a mais de 1.000 km do território israelense e para chegar até eles Israel só possui aviões (incluindo os muito avançados F-35 americanos) e os mísseis Jericó II e III. Isso significa que, em primeiro lugar, precisará da permissão da Jordânia e/ou Arábia Saudita para entrar no espaço aéreo iraniano, o que não pode ser dado como certo. Mas, além disso, especialmente se se tratar de uma campanha prolongada, está fora de seu alcance sustentar o esforço bélico sem o apoio americano, tanto em inteligência quanto em munições e reabastecimento em voo.

Em resumo, resta apenas verificar se essa dependência servirá para que Joe Biden - que indicou que Tel Aviv não pode contar com Washington para uma ação ofensiva contra Teerã - finalmente se decida a usar as alavancas diplomáticas, econômicas e militares que tem em suas mãos para evitar que Netanyahu, em plena fuga para frente, acabe por provocar o que racionalmente ninguém pode desejar no Oriente Médio.

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Stuart Russell, professor de ciência da computação da Universidade da Califórnia em Berkeley e autor do livro "Inteligência Artificial a Nosso Favor", não é lá muito fã do ChatGPT.

Não porque ele vai tomar seu emprego em uma das universidades mais renomadas dos EUA ou porque vai destruir a sociedade como a conhecemos. É porque, ao contrário do que o entusiasmo em torno das IAs generativas faz parecer, ele não o considera muito inteligente.

"Ele faz coisas interessantes, mas parece que faltam grandes capacidades de raciocínio e planejamento, de refletir sobre suas próprias operações, sobre seu próprio conhecimento", disse, em entrevista por videoconferência à Folha.

O pesquisador está mesmo preocupado é com o controle que exercemos sobre sistemas que nem sequer existem hoje.

São as AGI (inteligência artificial geral, na sigla em inglês), as IAs que serão capazes de fazer tudo que um ser humano faz e provavelmente melhor. Para ele, garantir que essas máquinas poderosas estejam sob o nosso controle é o que vai definir se continuaremos a existir como espécie —mas sem pressão.

É por isso que Russell foi um dos signatários da carta que pediu uma interrupção nas pesquisas avançadas em inteligência artificial. Elon Musk, Steve Wozniak, cofundador da Apple, e o escritor Yuval Noah Harari também assinaram. Sam Altman, CEO da OpenAI, dona do ChatGPT, não.

Russell afirma que sua publicação, em março do ano passado, foi o que deixou o mundo mais atento sobre os perigos da IA.

O professor de Berkeley é um dos palestrantes do próximo ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. Ele dará palestras no Brasil nos dias 30 de abril, em Porto Alegre, e em 2 de maio, em São Paulo.

Há um ano, o sr. foi um dos signatários de uma carta que pediu uma pausa em pesquisas avançadas de IA por ao menos seis meses. O que mudou desde sua publicação?
Mudou quase tudo. É interessante porque, quando a carta foi divulgada, muitas pessoas disseram que ninguém daria atenção. Mas, na verdade, nos seis meses seguintes, não foram anunciados sistemas mais poderosos do que o GPT 4 [versão mais avançada do motor que roda o ChatGPT]. E o mundo basicamente acordou.

Houve reuniões de emergência na Casa Branca e na ONU. A China anunciou uma regulação muito rígida para sistemas de IA. Geoffrey Hinton renunciou ao seu cargo no Google para expressar suas preocupações. O Reino Unido mudou completamente de posição. Se o ritmo de trabalho de pessoas da área é um sinal de progresso, então houve um enorme progresso no mundo, tanto na compreensão da questão quanto na disposição de lidar com ela.

A OpenAI pode lançar o GPT 5 ainda neste ano, então talvez eles não concordem muito com a carta.
Bem, a carta mencionava seis meses, e já se passou um ano. Mas eu acho que as empresas se sentem em uma corrida. Sob a lei atual, nada as impede de construir sistemas muito grandes. Na verdade, nada as impede de construir um sistema que destruirá o mundo.

Elas sentem que é melhor construir esse sistema antes que outra empresa o faça. E elas parecem reconhecer que há mesmo um risco de ser o fim do mundo. Mas, até agora, não parece ter passado pela cabeça delas simplesmente parar. Sam Altman já disse que vai construir a AGI e só depois descobrir como torná-la segura. Isso é loucura.

A pesquisa em IA hoje parece estar concentrada nas big techs. A OpenAI é financiada pela Microsoft e concorre diretamente com o Google. Essa concentração nos estágios iniciais do setor não é prejudicial?
Não sei se isso representa um mercado muito concentrado. Além das grandes empresas, existem algumas startups muito bem financiadas construindo sistemas concorrentes. O custo de entrada é significativo se você quiser que seu sistema se expanda e seja usado por milhões de pessoas, mas eu não acho que as barreiras sejam enormes. O que me preocupa é ver que a Microsoft está absorvendo uma dessas startups, a Inflection. Isso não é saudável.

O ChatGPT foi lançado no momento certo, no final de 2022?
Consigo entender o motivo econômico para terem feito isso. Eles sentiram que sairiam na frente das outras empresas. Isso teve o efeito de expor milhões de pessoas a um aperitivo do que seria se tivéssemos disponível uma IA de verdade.

Foi também um choque para o mundo. Possibilitou conversas com chefes de Estado e políticos sobre os riscos e o impacto da IA. Nesse sentido, eles fizeram um favor ao mundo.

Por outro lado, vimos muitas maneiras pelas quais o ChatGPT falha, dando respostas sem sentido, inventando coisas. Eu acho que eles viram a humanidade como milhões de cobaias de um produto.

Eu gostaria que as empresas se esforçassem para entender como seus sistemas funcionam e dissessem que são capazes de controlá-los, para garantir que não farão coisas inaceitáveis. Mas não estão fazendo isso. E acho que a única maneira de fazerem isso é regulando.

Então o ChatGPT não é uma IA de verdade?
Ele faz muitas coisas interessantes, mas parece que faltam grandes capacidades de raciocínio e planejamento, de refletir sobre suas próprias operações, sobre seu próprio conhecimento.

Se você olhar o AlphaGo, que venceu o campeão mundial de Go, ele não tem nada a ver com o ChatGPT. O AlphaGo é um sistema de IA muito clássico que raciocina sobre possíveis estados futuros do jogo. É um plano básico que remonta aos anos 1950.

Mas com o ChatGPT não temos ideia do que está acontecendo. Ele finge jogar xadrez e, muitas vezes, parece estar fazendo boas jogadas, mas, de repente, fará uma jogada que nem é permitida. E isso sugere que na verdade ele nunca esteve jogando xadrez. É uma miragem.

O AlphaGo seria então mais inteligente, mesmo que o ChatGPT tenha sido treinado com terabytes de dados de toda a internet?
Isso só ilustra a necessidade de ter essas outras formas de computação, além dessa na qual você apenas insere um input em uma rede para obter um output. O ChatGPT não consegue sentar e pensar em algo. Funciona como um circuito onde o sinal entra, passa e sai.

Será que conseguiríamos obter melhorias no ChatGPT de forma que ele seja capaz de raciocinar e planejar de forma confiável? Ou fazemos híbridos nos quais usamos o ChatGPT como apenas um componente? Ou será que precisamos de alguma concepção nova, que não tenha a ver com nenhum desses tipos?

Como o sr. define a AGI?
Em termos gerais, sistemas de IA que podem aprender rapidamente a executar, em nível humano ou super-humano, qualquer tarefa. Isso excederia as capacidades humanas em todas as dimensões.

E esses tipos de IA como o ChatGPT estão próximos de uma AGI?
Temos evidências de que esses grandes modelos transformadores estão aprendendo algo de interessante. Não estão apenas procurando frases semelhantes em seus bancos de dados e depois respondendo. É um circuito complexo.

Ao treiná-lo para prever a próxima palavra, você está forçando-o a desenvolver pelo menos algumas das estruturas internas que representam o mundo e algumas formas de raciocínio que não entendemos completamente.

O grande problema é que não temos a menor ideia do que está acontecendo dentro do GPT 4. E estão produzindo o GPT 5. A solução deles é aumentar e adicionar mais dados. Eu não acho que vai funcionar.

Quando eles chegarem ao GPT 5, terão usado praticamente todo o texto que existe no universo. Então não haverá mais dados de treinamento. E, se o sistema não mostrar uma melhoria nas suas capacidades, pode ser um sinal de que esse tipo de pesquisa atingiu um teto.

Não sei qual impacto isso terá nos investimentos, mas suponho que algumas pessoas ficarão decepcionadas e poderão parar de investir.

Por que diz que não entendemos o que está por trás do GPT?
As pessoas que o fizeram também não entendem. São trilhões de parâmetros. Entender o que está acontecendo por dentro é muito complexo para nós. Pode não ser compreensível, ele pode estar realizando processos estranhos ao pensamento humano.

A chegada da AGI nos levará imediatamente a um cenário distópico, como uma Skynet de "O Exterminador do Futuro" assumindo o controle?
A história da Skynet e de muitos outros filmes envolve a máquina se tornando consciente e depois decidindo que odeia a raça humana. Mas, na verdade, ninguém que trabalha com segurança da IA está preocupado com isso, porque não tem nada a ver com isso.

O que importa é se o sistema é competente. Se ele é bom em agir de forma a alcançar seus objetivos. Se você jogar contra o melhor programa de xadrez, no nível mais alto, você não terá chance alguma. E por que isso? Não é porque ele é consciente, é porque ele é melhor.

Pegue esse conceito e estenda para o mundo inteiro, supondo que o sistema seja simplesmente mais competente do que a raça humana em alcançar seus objetivos. E, então, se esses objetivos não estiverem alinhados com o que os humanos querem que o futuro seja, teremos um problema.

Como manter para sempre o poder sobre entidades que são mais poderosas do que nós mesmos? Essa é a pergunta que precisamos fazer.

Estamos próximos de alcançá-la?
Eu acho que estamos mais longe do que algumas pessoas acreditam. Alguns dos meus colegas muito renomados, como Geoffrey Hinton, que é um dos principais pioneiros nessa área, acredita que a alcançaremos em cinco anos. Eu acho que ainda precisamos de grandes descobertas.

E eu não acho que a AGI virá apenas tornando os sistemas maiores. Acho que precisamos de mais avanços conceituais, que têm acontecido rapidamente nos últimos anos. Então, não tenho certeza, mas acho que levará um pouco mais do que cinco anos.

Podemos ser otimistas sobre o futuro da IA?
Bem, há dois tipos de otimismo. Há o otimismo de que a IA gerará muito dinheiro, produzirá muitos lucros e resolverá muitos problemas importantes no mundo. E, então, há o otimismo de que continuaremos a existir como espécie.

Não tenho certeza se otimismo é a palavra certa, porque temos que decidir como vamos proceder. E, no momento, estamos agindo na direção errada.

Estamos construindo sistemas cada vez mais poderosos que não entendemos e não controlamos. Temos de resolver o problema do controle antes de criarmos a AGI. Os governos deveriam exigir que as empresas garantam que seus sistemas se comportem adequadamente.


Raio-X | Stuart Russell

Uma das maiores referências em inteligência artificial, é professor de ciência da computação na Universidade da Califórnia em Berkeley e autor de "Inteligência Artificial a Nosso Favor". Foi vice-presidente do Conselho de IA e Robótica do Fórum Econômico Mundial e atuou como consultor da ONU para o controle de armas.

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"Vale dizer que a saída temporária foi prevista na legislação pelo General João Batista Figueiredo, presidente da ditadura militar brasileira. O que vemos hoje no Congresso e no Executivo é uma sanha punitiva que ultrapassa, até, os limites estabelecidos no golpe militar", aponta a nota da Pastoral Carcerária Nacional, publicada no seu site,  IHU (expandir)

A Pastoral Carcerária Nacional reconhece a tentativa do presidente Lula ao vetar parcialmente o PL nº 2.253/2022 que propunha, dentre outras medidas, o fim das saidinhas para as pessoas privadas de liberdade. O veto, como está, permite a saída temporária e o direito ao trabalho externo apenas para pessoas que não foram condenadas por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa. As saídas temporárias, por sua vez, permitem a volta gradual das pessoas encarceradas ao convívio social e, mais importante, à sua família, respeitando a dignidade e os direitos fundamentais dos presos e presas.

No entanto, manifestamos nossa preocupação em relação ao texto publicado no Diário Oficial da União. O veto parcial do Presidente pode proibir a saída temporária para uma gama altíssima de pessoas, haja vista o crime de tráfico de drogas, por exemplo, ser equiparado a hediondo em nosso país. ⅓ das pessoas presas hoje respondem por crimes contidos na Lei de Drogas e o veto impossibilita que ao menos 200 mil pessoas se relacionem gradualmente com seus familiares.

Além disso, o texto ainda prevê. a obrigatoriedade do exame criminológico o que, além de inviabilizar a progressão de regime, acarreta um gasto público sem precedentes. Além disso, a ampliação do uso de tornozeleiras eletrônicas pode aumentar a estigmatização das pessoas presas e dificultar sua inserção no mercado de trabalho, prejudicando sua reintegração à sociedade.

Vale dizer que a saída temporária foi prevista na legislação pelo General João Batista Figueiredo, presidente da ditadura militar brasileira. O que vemos hoje no Congresso e no Executivo é uma sanha punitiva que ultrapassa, até, os limites estabelecidos no golpe militar.

A Pastoral Carcerária Nacional reafirma seu compromisso com a evangelização e a promoção da dignidade humana de todos/as irmãos e irmãs privados de liberdade e seus familiares, bem como com a busca por políticas públicas que promovam a justiça, rumo ao mundo sem cárceres.

O que é e para o que serve a “saidinha”?

A saída temporária é um direito da pessoa presa de sair do presídio e ficar com a família por 7 dias, ocorrendo 5 vezes por ano, com datas pré definidas, como parte do processo de reintegração do preso na sociedade.

Este é um benefício concedido apenas aos presos e presas que cumprem pena em regime semiaberto. Presos em regime fechado, provisório ou aberto não têm direito a esse benefício. A forma como o preso chegou ao regime semiaberto não influencia a concessão da saída temporária.

Durante a saída temporária, as pessoas presas devem seguir regras específicas, como horários definidos, recolhimento noturno, proibição de frequentar certos locais e possibilidade de uso de tornozeleira eletrônica. As restrições são detalhadas em um documento entregue na saída e o advogado pode esclarecer dúvidas sobre as regras impostas.

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Em Haia, Tarcísio e Derrite são acusados de crimes contra a Humanidade

Denúncia registrada no Tribunal Penal Internacional, por três parlamentares do Psol, aponta responsabilidade do governador de São Paulo e seu secretário de Segurança Pública pelas dezenas de mortes na operação “Escudo”, na Baixada Santista

RBA (expandir)

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário estadual de Segurança Pública, Guilheme Derrite, foram denunciados no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia na Holanda. Tarcísio e Derrite são acusados de crimes contra a humanidade por conta das dezenas de mortes em ações policiais. Especialmente nas operações “Escudo”, na Baixada Santista. Na última fase da ação, realizada entre fevereiro e março, pelo menos 56 pessoas foram mortas pela polícia. O que entrou para a história como a operação mais violenta da Polícia Militar paulista desde o massacre do Carandiru, em 1992.

Antes disso, a primeira fase da Escudo, realizada entre julho e setembro de 2023, deixou 28 mortos em 40 dias. A denúncia de crimes contra a humanidade foi apresentada por três parlamentares do Psol ainda na terça-feira (9). A acusação é assinada deputada federal Luciene Cavalcante (SP), o deputado estadual Carlos Giannazi (SP) e o vereador Celso Giannazi (SP).

Os parlamentares destacam que os números de homicídios e outras violações de direitos cometidas por agentes da PM “aumentaram exponencialmente” depois que Tarcísio e Derrite assumiram seus cargos, em janeiro de 2023. No início de março, um mês após o início da operação Escudo com o nome de “Verão”, a letalidade policial cresceu 94% no primeiro bimestre, em comparação com igual período de 2023. Houve um salto de 69 para 134 mortes por policiais no período. Sendo que a maioria delas, 63, ocorreram na Baixada Santista.

Denúncia ponta deboche de Tarcísio

De acordo com os denunciantes, a decisão de levar as acusações ao Tribunal Internacional surgiu da ausência de investigações a respeito das suspeitas de “execuções sumárias, tortura e prisões forjadas” nas duas operações. “Apesar de inúmeras denúncias sobre as condutas dos Representados (Tarcísio e Derrite), ainda não foi instaurado no país de origem qualquer inquérito ou processo judicial relativamente às pessoas físicas aqui representadas pelos crimes cometidos”, destaca o documento.

A representação no TPI cita, ainda, o tom debochado de Tarcísio ao falar sobre outras denúncias que foram feitas sobre a atuação policial e o aumento da letalidade. O governador chegou a dizer que estava “nem aí”, em uma entrevista em 8 de março, minimizando todas as denúncias e mostrando apoio à operação policial. Na ocasião, o governador paulista havia sido questionado sobre uma denúncia contra sua gestão enviada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU pela Comissão Arns e a organização Conectas. As entidades brasileiras também apontaram ao mundo as “execuções sumárias, tortura e prisões forjadas” nas duas fases da Operação Escudo promovidas pelo bolsonarista.

Na semana passada, uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo revelou que o deboche de Tarcísio foi seguida pelo aumento do números de mortes provocadas por policiais.

SSP responde

Em nota, a SSP-SP defendeu, porém, que “as polícias de São Paulo atuam para proteger a população e combater o crime organizado, que tem forte presença na Baixada Santista”. A pasta também alegou que “as mortes registradas decorreram de confrontos com criminosos, que têm reagido de forma violenta ao trabalho policial”.

“Todos os casos de morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário, reforçando a transparência do Estado sobre a atuação das forças de segurança. As corregedorias das instituições também estão à disposição para formalizar e apurar toda e qualquer denúncia contra seus agentes”, completou. A secretaria também acrescentou que houve mais de mil prisões e grandes apreensões de drogas e armas na operação.

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Educação, alvo estratégico da ultradireita na Câmara dos Deputados

A Comissão de Educação tornou-se uma cabeça de ponte de setores ultraconservadores e bancadas religiosas para manter sua pauta de costumes na ordem do dia, critica Silvia Barbara diretora do SinproSP (expandir)

A escolha do deputado federal Nikolas Ferreira (PL/MG) para presidir a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados tem um alcance que vai muito além do papel institucional que cabe aos presidentes das comissões temáticas, compostas por parlamentares para discutir e votar projetos de lei específicos.

As comissões foram criadas para serem uma instância de debate mais qualificado sobre os projetos de lei e permitir um diálogo maior com os cidadãos e entidades representativas da sociedade. Em geral, os parlamentares escolhidos para compor esses colegiados têm conhecimento técnico e afinidade com o assunto específico. Não é o caso do deputado Nikolas…

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Não há nada em sua vida pública que o credencia para a Comissão de Educação. Durante a pandemia, Nikolas Ferreira afrontou a ciência, defendeu a cloroquina e, por ironia, foi obrigado a imunizar-se tardiamente para viajar ao Reino Unido e participar de um evento antivacina. 

Em 8 de março, num ato de boçalidade explícita, apresentou-se com uma peruca na tribuna da Câmara dos Deputados, para ironizar os ‘homens que se sentem mulheres’, segundo suas palavras. Por fim, é réu num processo por ter exposto uma adolescente transexual de 14 anos nas redes sociais, filmada (pela irmã do deputado) no banheiro feminino da escola em que estudava. O deputado já tem uma condenação, em segunda instância, por transfobia.

Comissões

Voltando às comissões, embora tenham sido criadas como espaço de debate qualificado, elas perderam parte de seu protagonismo na Câmara dos Deputados, especialmente nas duas últimas legislaturas, face o poder da presidência da casa em levar matérias importantes para serem votadas diretamente no plenário, sem passar por comissão. 

Ainda assim, a disputa pelo comando desses colegiados tem se acirrado por conta dos vultosos recursos destinados a emendas de comissão e dada a polarização política que transformou cada um desses espaços em palco de disputas ideológicas. É esse o contexto, acirrado e belicoso, que explica a opção por Nikolas Ferreira.

A Comissão de Educação tornou-se uma cabeça de ponte de setores ultraconservadores e bancadas religiosas para manter sua pauta de costumes na ordem do dia. Entre as propostas mais frequentes defendidas por esses grupos estão a proibição de abordagens sobre questões de gênero nas escolas, a perseguição e censura a professores, livros didáticos e conteúdos de aula, a educação domiciliar, o ensino de religião, inclusive com uso de recursos públicos, e as escolas cívicos militares.

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A estratégia não se limita à atuação parlamentar na Comissão. Em outubro de 2023, por exemplo, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa da Escola sem Doutrinação Ideológica que tem como vice-presidente o deputado Nikolas Ferreira. 

Segundo reportagem da Agência Pública (Educação é o principal foco de projetos conservadores na Câmara), o Instituto de Estudos da Religião (ISER) monitorou projetos de lei apresentados por deputados identificados como católicos ou evangélicos e concluiu que a educação respondia pela maior parte das proposições, inclusive entre os parlamentares de direita. 

Bolsonaro foi derrotado nas urnas, mas o projeto político da ultradireita continua assombrando. A disputa e o controle pela pauta da educação dão visibilidade a esse projeto e possibilitam que ele se expanda por espaços políticos que vão além do Congresso Nacional. Quem perde com isso é a sociedade brasileira. Se alguém tem alguma dúvida, basta acompanhar uma sessão da Comissão de Educação. É triste, muito triste.

intermitências

Atualizações intermitentes deixam a impressão de que a realidade, apesar de dinâmica na aparência, é estática e sonolenta, mas não é. Rola um ajuste em cada um dos processos dessa crise de curta duração em que o Brasil e boa parte do mundo encontram-se mergulhados. Como diz o Luis Nassif, é um xadrez.

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leituras (tensas) da 4a feira

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Pois então...

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Chama a atenção o jeito adocicado como os "grandes" jornais e veículos de forte presença conservadora na imprensa brasileira vêm tratando nos últimos dias aquilo que já pode ser chamado de "escândalo Musk" (o editorial do Estadão de ontem, 9/4, chega a ser aviltante com a dignidade nacional). O país está diante de um bando de criminosos que encontrou nesse cidadão sul-africano um arrimo, e dos piores: o dono do antigo twitter aposta alto no colapso político que significaria a desqualificação da estrutura jurídica do país - a começar pela Constituição. E aposta alto por 2 motivos. O primeiro é de natureza empresarial, já que alcançar o topo da queda de braço com o STF alavancaria o estado de dificuldades globais que seus negócios enfrentam (leia no GGN e no Intercept). Sob esse aspecto, as bravatas do tuiteiro mostram que o combate ideológico contra Alexandre de Moraes tem muita encenação. Quem deu a esse processo o colorido 'programático' foram os fantoches de extrema direita que viram nos ataques de Musk alguma coisa que poderia se traduzir em dividendo político contra Lula e os setores mais progressistas do cenário nacional. O próprio Bolsonaro, que anda fazendo de tudo para não ser preso, atirou para cima na esperança de que alguém o ajude:  "é o mito da nossa liberdade", disse o imbecil. Ninguém mais leva a sério esse cara...

O segundo motivo é político, mas não diz respeito às condições políticas nacionais e sim ao quadro que vai se desenhando com a proximidade das eleições nos EUA. Musk vê no crescimento das possibilidades eleitorais de Trump a ampliação de seu capital de referências internacionais, e nesse caso o Brasil tem peso e, na hipótese de que o dono do 'X' se saia bem na queda de braço com a nossa suprema corte, sob todos os aspectos, do simbólico ao financeiro, estaríamos diante de um processo de efeitos difíceis de avaliar, embora todos (os efeitos) sejam favoráveis a ele.

A coisa toda fica mais complexa quando a análise volta seu foco para as consequências desse embate no Brasil. As primeiras avaliações dão conta de que a reação conservadora-liberal, social-democrata e de esquerda (esse arco legalista que se formou em paralelo com os desastres da extrema direita) ao ataque de Musk teve o efeito de clarear o quem é quem na crise política, uma coisa que nem mesmo as eleições de 2022 conseguiram, da tentativa de inviabilizar a posse de Lula à cadeia de escândalos bolsonaristas, passando pelo fracasso do asilo do capitão na embaixada da Hungria, da possibilidade de sua prisão, pelo vergonhoso envolvimento de altas patentes das FAs no 8 de janeiro, delações, 1a dama usando joias que não são dela e pelo desencanto dos bolsonaristas com tudo isso, em especial agora que o STF mandou para o espaço, por  unanimidade, a tese do poder moderador das Forças Armadas. O 25 de fevereiro pode ter sido alguma coisa como a sofreguidão do atleta que vê o pódio se distanciando porque depois daquela multidão atarantada na Paulista as notícias só pioraram. Nesse cenário, Musk aparece aos bolsonaristas como a (peço desculpas pelo lugar comum)  'tábua de salvação': todo mundo correndo em seu apoio nos ataques a Moraes, erguendo-o como um demiurgo que vai salvar a democracia no Brasil, campeão dos direitos civis e toda a pataquada que só os bolsonaristas sabem reproduzir.  A exceção fica para a coerência que os "grandes veículos" de comunicação (vários, mas nem todos) guardam com a impressão de descontrole que a cena geral evoca. Se Musk turva a gestão Lula, viva Musk! De manchete em manchete, de artigo em artigo, de condicionais em condicionais... tudo, absolutamente tudo, entra na moedeira das insuportáveis colunas feitas por encomenda contra o equilíbrio orçamentário, contra o Estado do Bem-Estar Social, contra as mazelas dos partidos... Alguns jornais, por conta dessa política editorial caolha e anti-jornalística, acabaram se tornando verdadeiros almanaques de curiosidades com baixíssimo nível de informação. Essa turma está com o canto da boca húmido de prazer, prazer que aumenta agora com a entrada em cena do Sr. Musk

A realidade, no entanto, é mais dura, e nem só de Alexandre de Moraes vive o Brasil. Um dia depois do "ecândalo Musk", quem falou grosso foi o presidente do STF, Luiz Roberto Barroso: empresas de qualquer tipo têm que obedecer a legislação brasileira, disse ele. Mostrou que não está para brincadeira e denunciou "o inconcormismo contra a prevalência da democracia [que continua sendo manifestado na] instrumentalização criminosa das redes sociais". A essa altura, Alexandre de Morais já tinha instalado inquérito contra Musk. Refiro-me a Barroso como poderia tê-lo feito com outros personagens que se distribuem entre esses 2 grandes grupos em que o país está dividido. Para um deles, parece-me que a situação ficou mais difícil...

Minha impressão é a de que essa gente atordoada com o sinuoso mas perceptível isolamento do fascismo mediu mal medida sua carga de recursos políticos e orgânicos para um enfrentamento  dessa dimensão. Vou elencar abaixo aqueles que considero os textos que melhor dimensionam o cenário... É ler e acompanhar...


# Para entender o jogo de Musk (GGN)

# Sakamoto: Musk destampa o esgoto do X/twitter (Uol

#  Bolsonaristas vão às redes e apoiam Musk em ataques a Moraes (Folha

# Anatel de prontidão para retirar X do ar (Uol

# Jamil Chade: Musk e extrema direita repetem no Brasil receituário que aplicaram nos EUA (Uol

# Estadão disfarça, mas aposta em Musk para desestabilizar governo (Estadão)

# Musk joga água no moinho da extrema-direita no Brasil de olho na eleição de Trump (G1)

# PL das redes sociais. Entenda o que o texto diz sobre conteúdo criminoso e obediência a decisões judiciais (G1)

# Musk infla rede bolsonarista e mira interesses comericiais do X (Uol)

# Elon Musk atacou soberania nacional, diz Orlando Silva, relator do PL das fake news (Uol)
# O que pode acontecer com Musk e com o X após decisão de Moraes (Uol

# Pochmann alerta: "o ataque de Musk é uma ação calculada" (247)

# O que as bravatas de Elon Musk têm a ver com Eduardo Bolsonaro? (Pública)

# Musk lucra com vigilância estatal que diz combater (Intercept)
# Empresas de mídia que tiveram atuação suspensa por desobediência à lei (Uol)

# Musk tentou silenciar críticos, pesquisadores e censurar uso de dados (Uol) 

# Gilberto Maringoni: O governo caminha para um não-lugar? (Facebook)

Braços inteiros, mentes quebradas

As crianças e os adolescentes dos Estados Unidos fraturam os ossos cada vez menos. É que eles estão mais isolados, grudados no celular.

Tania Menai, piauí (expandir)

Um adolescente americano de hoje é menos propenso a fraturar os ossos que alguém de sua idade quinze anos atrás. Até seus pais e avôs, ou qualquer pessoa acima dos 50 anos, correm mais risco de se quebrar do que meninos e meninas entre 10 e 19 anos. 

Até o ano 2000, os garotos lideravam as internações anuais por acidentes, com mais de 15 mil casos a cada 100 mil habitantes, seguidos das meninas, com pouco mais de 10 mil. Em 2018, as internações em cada um dos grupos caiu pela metade. Os dados são dos Centers of Disease Control and Prevention, órgão oficial do governo norte-americano, que observa a taxa de hospitalização nos Estados Unidos por lesões acidentais, como braços, dedos e punhos quebrados.  

“Embora possa parecer bom não ter fraturas, esse cenário também significa que não há experiência de vida”, disse à piauí o psicólogo social Jonathan Haidt, autor do recém-lançado livro The Anxious Generation – How the great rewiring of childhood is causing an epidemic of mental illness (A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de doenças mentais), um volume de 385 páginas a ser lançado no Brasil em novembro pela Companhia das Letras. No índice remissivo, a obra inclui palavras que deveriam passar longe do universo infantil, como “ansiedade”, “automutilação”, “depressão” (mencionada em vinte páginas), “hikikomori” (isolamento social grave, identificado em muitos jovens japoneses), “pornografia” e… “Zuckerberg”.   

“Até uma década atrás, adolescentes eram de longe os mais propensos a quebrar um osso por imprudência. Eles andavam de bicicleta, saltavam em rampas, subiam em árvores. Isso aconteceu até a primeira geração passar a puberdade com smartphones em mãos – o primeiro iPhone foi lançado em 2007 e a mídia social ganhou força em 2012. Foi então que o índice de adolescentes feridos psicologicamente escalou incessantemente, e o número de ossos quebrados despencou”, revela Haidt.

Professor de Liderança Ética na Stern School of Business, na New York University, Haidt compilou estudos, debates e sugestões, tornando-se mais uma voz que engrossa o crescente movimento contra smartphones nas mãos de crianças e adolescentes no país. Ele ainda lançou o site Free The Anxious Generation (Liberte a geração ansiosa). O lançamento do livro, na última semana de março, dominou a mídia americana. O autor Simon Sinek, um entre dezenas de entrevistadores que convocaram Haidt nos últimos dias, fez em seu podcast uma pergunta com resposta embutida: “O que aconteceu com os pais que levavam lápis-de-cera, papéis e livrinhos para os restaurantes em vez de colocar crianças na frente de telas de celulares para almoçaram em paz?”

Haidt, que por três anos agregou estudos e debates, alerta que a Geração Z, nascida entre 1995 e 2010, é a primeira a ingressar na puberdade com um “portal em seus bolsos”, longe de interação presencial e sugada por um mundo virtual viciante e instável.   

Consequentemente, esta é a geração mais avessa a correr qualquer tipo de riscos, e entrará para a história como a que carrega mais problemas de saúde mental, sedentarismo e falta de habilidades sociais. “Essas crianças raramente vão para a casa dos amigos, apenas ficam sozinhas em casa no telefone.” E essa falta de convivência é uma das principais fontes de depressão: as taxas de depressão e suicídio entre meninos e meninas basicamente duplicaram. Entre os anos 2010 e 2019, o aumento de meninos americanos entre 10 e 19 anos que tiraram suas próprias vidas foi de 35%. No caso de meninas da mesma faixa etária, o salto ficou em 59%, na tabulação de dados feita pelo autor.

A disparidade entre meninos e meninas, como mostra o resultado de estudos cruzados feitos pela psicóloga e autora Jean Twenge, tem uma relação com o fato de se isolarem no quarto sozinhas, mergulhadas nas mídias sociais, comparando seus corpos e cabelos às imagens online. Os meninos isolam-se em casa, em vez de brincarem ao ar livre, mas pelo menos se juntam mais frequentemente em grupos em torno dos videogames. 

Na semana do lançamento, esses dados alarmantes sobre a saúde mental dos menores de idade estavam estampados numa caixa de leite de aproximadamente 3 metros de altura. Era uma instalação criada pelo artista Dave Cicirelli, que ficou fixa nos dias 25 e 26 de março numa esquina da Union Square, em Nova York, antes de seguir para a capital Washington. Uma das laterais da caixa imitava o design de informação nutricional, mostrando as porcentagens mencionadas acima, além do aumento de depressão entre meninos de 12 a 17 anos (96%) e meninas (97%), e tempo passado com amigos na faixa dos 15 a 24 anos: para meninos, uma queda de 48%, e meninas, 52%, também entre 2010 e 2019.  

Na parte frontal da caixa, estava a foto da capa do livro, em preto e branco, onde uma menina está fissurada em seu telefone. Destacava em letras maiores: Missing Childhood (infância desaparecida). Em um texto menor, estampava os dizeres: “Vista pela última vez com um portal no bolso que a atraiu para longe das interações pessoais e para um mundo virtual emocionante, viciante e instável. A infância em si foi sequestrada. Mas podemos salvá-la.”

A arte é uma alusão às caixas de leite dos anos 1980 nos Estados Unidos, que serviam de veículo para divulgar as crianças desaparecidas em suas comunidades. Na instalação, quem desapareceu foi a infância. Haidt passou algumas horas no local da instalação interagindo com o público, que veio de diversos cantos para falar com ele, e na semana seguinte, a ação seguiu para Washington DC. Na primeira semana de lançamento, o livro já liderava as vendas na Amazon. 

“Entrei nesse debate para fazer com que a Geração Alfa, nascida a partir de 2011, não passe pela puberdade com um smartphone em mãos. Se isso acontecer, acredito que a saúde mental dessa nova geração será muito melhor do que a da Geração Z”, diz ele. “Nos Estados Unidos, as crianças ganham smartphones na quinta série, aos 10 e 11 anos. E esses aparelhos passam a ser o centro de suas vidas, empurrando o restante para escanteio. Não há qualquer segurança ao colocar um celular na mão delas, além de ser impossível garantir qualquer bem-estar digital”, diz. Ele é a favor de que as crianças acessem a internet por computadores, mas não que estejam conectadas o tempo inteiro a um dispositivo pessoal.

Haidt, que nasceu em 1963, reforça que a mudança de hábitos deve começar a partir de quatro regras, a serem implementadas conjuntamente pela sociedade: a primeira é não colocar um smartphone na mão de ninguém até o início do High School, que nos Estados Unidos equivale à nona série, ou 14 anos completos. “Os anos entre a sexta e oitava séries são uma época muito difícil da vida das crianças. Temos que tirar esses aparelhos inteiramente dessa faixa etária”, diz o autor. Nos Estados Unidos, crianças começam a ir para a escola sozinhas por volta dos 11 anos, então um telefone básico se faz necessário para se comunicarem com os pais no caminho. Haidt, inclusive, é a favor da volta ao flip-phone tradicional (só ligação e SMS) para crianças com menos de 14 anos, além de apoiar o uso de telefones feitos especialmente para elas, como as marcas Gabb, Pinwheel e Bark, inexistentes no Brasil, que são despidas de internet, jogos ou aplicativos nocivos. São aparelhos mais elementares, com câmeras, SMS, e opções como Duolingo. Vale notar que o WhatsApp é pouco usado entre americanos no dia a dia e não é uma ferramenta comercial (usa-se mais para se comunicar com quem vive no exterior). Por isso, não faz falta nos telefones sem internet.

A segunda regra proposta por Haidt é proibir acesso às redes sociais até os 16 anos, idade também indicada por Vivek Murthy, cirurgião-geral do governo americano, num estudo divulgado em 2023, como a piauí mencionou nesta reportagem em setembro passado. Haidt celebrou ainda a decisão do governo da Flórida, que em março passado vetou a mídia social para menores de 14 anos, um passo para alcançar a idade ideal de 16.

A terceira sugestão é abolir celulares das escolas, uma vitória vencida pelo secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro, Renan Ferreirinha, que implementou a prática na rede pública. Professor universitário, Haidt sabe que as notificações são um imenso fator de distração e observa que os jovens navegam até em sites de pornografia em sala de aula. Haidt também apoia as pochetes Yondr, usadas em escolas para trancar os telefones durantes as aulas. A escola judaica Alef Peretz, de São Paulo, foi a pioneira no Brasil a adotar o produto depois de a pochete ser também assunto da reportagem de setembro da piauí. Curiosamente, Haidt cita que nos Estados Unidos são justamente as escolas judaicas que têm mais sucesso na empreitada, porque as crianças já estão acostumadas a ficarem desconectadas durante o Shabat, o sábado de descanso. 

Quarta regra: acabar com a onda de superproteção parental que tomou conta das últimas gerações. Haidt, que tem dois filhos, enfatiza a importância de promover mais independência para as crianças, mais brincadeiras ao ar livre e responsabilidades no mundo real, incluindo tarefas domésticas. “Não devemos proteger nossos filhos de se estressar, porque o estresse faz parte da vida. Com uma ressalva: é fundamental estar atento ao estresse duradouro, a longo prazo. Ninguém deve ficar ansioso ou preocupado por dias. Isso é muito ruim.” 

Haidt diz que essas quatro mudanças, de custo quase zero, não são difíceis de implementar se feitas coletivamente. “Quando os pais e as mães se comprometem em conjunto, eles livram seus filhos da tirania do smartphone e da mídia social. E ainda dão a eles uma infância divertida com amigos que brincam pessoalmente. Os pais têm um grande papel conjunto em promover a brincadeira e a independência, além da função crucial de adiar o ingresso de seus filhos no mundo virtual.”

O objetivo inicial do autor era escrever um livro chamado Life After Battle, que trata do impacto das mídias sociais na democracia. O ano era 2021 e, ao escrever o primeiro capítulo, sobre a influência das mídias sociais nos adolescentes, e fazer os gráficos em conjunto com o pesquisador Zach Rauch, notou que esse tema merecia uma obra específica. O projeto de um livro virou dois, e a nova ideia passou na frente na lista de prioridades. “[O vício em telas] é uma das maiores epidemias do nosso tempo. Eu não podia passar para o segundo capítulo do livro original e deixar esses dados para trás. Resolvi investigar a causa do problema, e  ver que podemos fazer para resolvê-lo”, diz ele.

No Brasil, onde o problema é semelhante, o combate à superexposição dos menores às telas está alguns passos atrás: não existem telefones celulares especializados para crianças e adolescentes, que ajudam a adiar o acesso às mídias sociais. Nos Estados Unidos, há ainda dezenas de movimentos de pais americanos engajados, que pregam, baseados em ciência e informação, adiar o ingresso de crianças às redes sociais e reduzir ao máximo a exposição às telas – entre eles, o Wait Until 8th , Delay is the Way , Defend Young Minds, 1000 Hours Outside e Protect Young Eyes. Esses pais, juntos, têm um grande poder de persuasão para atrair mais famílias nessa luta para adiar a compra do smartphone para os filhos.

“O contato com a tecnologias faz parte da vida. Mas adolescentes precisam de muito mais”, diz o hebiatra (médico especializado em adolescentes) gaúcho Felipe Fortes. “Eles precisam conviver presencialmente com seus amigos, praticar esportes, assistir a uma peça de teatro, fazer as refeições com a família, brincar com um bicho de estimação, desenhar, escrever, namorar, estar na natureza, escutar uma música ou até não fazer nada”, alerta o médico, que atende em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, além de falar sobre o assunto para 46 mil seguidores no Instagram. 

“Os pais e cuidadores têm um papel fundamental na construção desses hábitos. Devemos encarar o assunto “conectividade” de nossos adolescentes como o novo grande tema da parentalidade contemporânea, da mesma forma como nos preocupamos que eles mastiguem de boca fechada ou que olhem para os dois lados ao atravessar a rua”, alerta Fortes. 

Ele reforça a necessidade constante de monitorar o conteúdo que os filhos acessam online, limitando o tempo de tela (qualquer tipo, somadas) a duas ou três horas por dia. “Durante as minhas consultas, alguns jovens entram em crise aguda de ansiedade. Choram e dizem que não conseguem imaginar como seria a vida com apenas ‘duas horas de telas’ diárias”, revela Fortes. No livro, Haidt compara esses tipos de reações à abstinência de usuários de drogas pesadas como cocaína e heroína que, assim como o vício em smartphone, estimulam a dopamina no cérebro, dando uma sensação de prazer, mas não de satisfação: elas fazem o usuário pedir mais.

A atenção deve seguir na maioridade. Fortes ensina que entre a adolescência e os 25 anos de idade há um intenso desenvolvimento do tecido cerebral. Nessa fase, habilidades cruciais estão sendo desenvolvidas, como capacidade motora, raciocínio, sensibilidade artística, competências sociais, afetividade, resiliência, saúde emocional e comunicação. Por isso, o cérebro é mais plástico, moldável, adaptável. Para que essa evolução aconteça, precisamos oferecer múltiplos estímulos sensoriais ao adolescente e seu tecido neuronal. E quanto mais diversificado esse estímulo, maior o desenvolvimento cerebral e de habilidades. “No entanto, a atual geração está fechada em apenas um desses estímulos: as telas.” 

O cérebro lê todo o conteúdo digital – seja um vídeo, uma foto no Instagram ou um movimento no videogame – como um único tipo de estímulo. A riqueza sensorial (textura, cheiro, tato, atividades físicas) é fundamental para a neuroplasticidade. “O resultado inevitável é a falta de desenvolvimento em habilidades fundamentais para a nossa existência”, alerta. Fortes explica ainda que o tecido nervoso, que recebe e transmite sinais elétricos, é segmentado em áreas específicas para cada habilidade. Ou seja, em lugares pouco estimulados surgem “apagamentos neuronais”. Isso significa que alguns circuitos são “desligados”. “Por isso, nossos adolescentes estão com menos “aptidões”, o que pode ser irreversível e devastador para um indivíduo em franco desenvolvimento socioemocional”, lamenta o médico.

“No entanto, o papel do limite não cabe apenas aos pais. Muitas vezes, escolas já extrapolam o tempo de telas conectando os alunos ou pedindo deveres de casa em plataformas digitais. Defendo um ambiente escolar 100% livre de telas”, diz o médico, que também apoia a exigência de regulamentação das redes e elaboração de algoritmos pelas big techs que protejam crianças e adolescentes. “O tempo excessivo de telas prejudica o sono, que atrapalha a rotina alimentar, que prejudica o crescimento físico e mental saudável, e piora as relações interfamiliares, já delicadas na adolescência. Precisamos arrumar essa cadeia de acontecimentos, antes que seja tarde,” diz ele.

Para muitos Gen Z, os efeitos já são sentidos. Haidt argumenta que essa é a geração mais tímida, que menos arrisca, menos namora e faz menos sexo. Essas características já são aparentes no mercado de trabalho: gerentes que empregam esses jovens dizem que essa é uma turma difícil de administrar, e de empregar: a mão de obra tornou-se mais escassa. Até no Vale do Silício, onde grandes empreendedores até pouco tempo atrás despontavam já na faixa dos 20 anos, a Geração Z anda devagar. Desde 1970, esta é a primeira vez que nenhum deles figura entre os fundadores mais promissores da indústria. 

Haidt, que dedica o livro a professores e diretores de quatro excelentes escolas públicas de Nova York, por onde suas duas crianças passaram, esmiuçou a vida infantil em diversos aspectos, sugerindo inclusive que tirar o recreio como castigo de uma criança arteira é o pior que se pode fazer, porque talvez tempo e espaço para arejar seja o que ela mais precise. 

Entre as sugestões de experiências no mundo real que ele lista no livro, está o movimento CISV International, que estimula debates e engajamento multicultural em colônias de férias em todo o mundo, incluindo onze cidades brasileiras, e onde celular é como uma persona non grata. O autor sabe que muita gente acredita que essa epidemia é irreversível, porque, como se diz em inglês, “o trem já deixou a estação”. Para essas pessoas, Haidt manda um recado: “Ora, se o trem está cheio de crianças em direção a uma ponte quebrada, é hora de freá-lo.”

Tania Menai

autora de seis livros, entre eles Unicórnio Verde-Amarelo: Como a 99 se Tornou uma Startup de um Bilhão de Dólares, pela Companhia das Letras

Moro escapa, mas TSE deve reverter julgamento do Paraná

Por 5 votos a 2, TRE do Paraná rejeita pedidos de cassação do ainda senador (leia em Carta Capital)

O que há de novo?9-4/24

A polícia do Tarcísio em ação: governador inspira covardia e morte

Elon Musk: arrogância e prepotência podem ter dias contados no Brasil

Gangster das redes sociais ameaça democracia e põe em risco a soberania nacional

Dono do antigo twitter e promotor das fake news no mundo inteiro, recebe apoio do bolsonarismo e questiona decisões do Supremo Tribunal Federal.

Que gente é essa? (editorial)

"Vamos dar golpe em quem nós quisermos"

De um tuíte de Elon Musk postado em 2020, recuperado agora por Letícia Casado, no Uol (expandir)

Pois então...

Chama a atenção o jeito adocicado como os "grandes" jornais e veículos de forte presença conservadora na imprensa brasileira vêm tratando nos últimos dias aquilo que já pode ser chamado de "escândalo Musk". O país está diante de um bando de criminosos que encontrou nesse cidadão sul-africano um arrimo, e dos piores: o dono do antigo twitter aposta alto no colapso político que significaria a desqualificação da estrutura jurídica do país - a começar pela Constituição. E aposta alto por 2 motivos. O primeiro é de natureza empresarial, já que alcançar o topo da queda de braço com o STF alavancaria o estado de dificuldades globais que seus negócios enfrentam (leia no GGN e no Intercept). Sob esse aspecto, as bravatas do tuiteiro mostram que o combate ideológico contra Alexandre de Moraes é mais encenação do que qualquer outra coisa. Quem deu a esse processo o colorido 'programático' foram os fantoches de extrema direita que viram nos ataques de Musk alguma coisa que poderia se traduzir em dividendo político contra Lula e os setores mais progressistas do cenário nacional. O próprio Bolsonaro, que anda fazendo de tudo para não ser preso, atirou para cima na esperança de que alguém o ajude:  "é o mito da nossa liberdade", disse o imbecil. Ninguém mais leva a sério esse cara...

O segundo motivo é político, mas não diz respeito às condições políticas nacionais e sim ao quadro que vai se desenhando com a proximidade das eleições nos EUA. Musk vê no crescimento das possibilidades eleitorais de Trump a ampliação de seu capital de referências internacionais, e nesse caso o Brasil tem peso e, na hipótese de que o dono do 'X' se saia bem na queda de braço com a nossa suprema corte, sob todos os aspectos, do simbólico ao financeiro, estaríamos diante de um processo de efeitos difíceis de avaliar, embora todos (os efeitos) sejam favoráveis a ele.

A coisa toda fica mais complexa quando a análise volta seu foco para as consequências desse embate no Brasil. As primeiras avaliações dão conta de que a reação conservadora-liberal, social-democrata e de esquerda (esse arco legalista que se formou em paralelo com os desastres da extrema direita) ao ataque de Musk teve o efeito de clarear o quem é quem na crise política, uma coisa que nem mesmo as eleições de 2022 conseguiram, da tentativa de inviabilizar a posse de Lula à cadeia de escândalos bolsonaristas, passando pelo fracasso do asilo do capitão na embaixada da Hungria, da possibilidade de sua prisão, pelo vergonhoso envolvimento de altas patentes das FAs no 8 de janeiro, delações, 1a dama usando joias que não são dela e pelo desencanto dos bolsonaristas com tudo isso, em especial agora que o STF mandou para o espaço, por  unanimidade, a tese do poder moderador das Forças Armadas. O 25 de fevereiro pode ter sido alguma coisa como a sofreguidão do atleta que vê o pódio se distanciando porque depois daquela multidão atarantada na Paulista as notícias só pioraram. Nesse cenário, Musk aparece aos bolsonaristas como a (peço desculpas pelo lugar comum)  'tábua de salvação': todo mundo correndo em seu apoio nos ataques a Moraes, erguendo-o como um demiurgo que vai salvar a democracia no Brasil, campeão dos direitos civis e toda a pataquada que só os bolsonaristas sabem reproduzir.  A exceção fica para a coerência que os "grandes veículos" de comunicação (vários, mas nem todos) guardam com a impressão de descontrole que a cena geral evoca. Se Musk turva a gestão Lula, viva Musk! De manchete em manchete, de artigo em artigo, de condicionais em condicionais... tudo, absolutamente tudo, entra na moedeira das insuportáveis colunas feitas por encomenda contra o equilíbrio orçamentário, contra o Estado do Bem-Estar Social, contra as mazelas dos partidos... Alguns jornais, por conta dessa política editorial caolha e anti-jornalística, acabaram se tornando verdadeiros almanaques de curiosidades com baixíssimo nível de informação. Essa turma está com o canto da boca húmido de prazer, prazer que aumenta agora com a entrada em cena do Sr. Musk

A realidade, no entanto, é mais dura, e nem só de Alexandre de Moraes vive o Brasil. Um dia depois do "ecândalo Musk", quem falou grosso foi o presidente do STF, Luiz Roberto Barroso: empresas de qualquer tipo têm que obedecer a legislação brasileira, disse ele. Mostrou que não está para brincadeira e denunciou "o inconcormismo contra a prevalência da democracia [que continua sendo manifestado na] instrumentalização criminosa das redes sociais". A essa altura, Alexandre de Morais já tinha instalado inquérito contra Musk. Refiro-me a Barroso como poderia tê-lo feito com outros personagens que se distribuem entre esses 2 grandes grupos em que o país está dividido. Para um deles, parece-me que a situação ficou mais difícil...

Minha impressão é a de que essa gente atordoada com o sinuoso mas perceptível isolamento do fascismo mediu mal medida sua carga de recursos políticos e orgânicos para um enfrentamento  dessa dimensão. Vou elencar abaixo aqueles que considero os textos que melhor dimensionam o cenário... É ler e acompanhar...


# Para entender o jogo de Musk (GGN)

# Sakamoto: Musk destampa o esgoto do X/twitter (Uol

#  Bolsonaristas vão às redes e apoiam Musk em ataques a Moraes (Folha

# Anatel de prontidão para retirar X do ar (Uol

# Jamil Chade: Musk e extrema direita repetem no Brasil receituário que aplicaram nos EUA (Uol

# Estadão disfarça, mas aposta em Musk para desestabilizar governo (Estadão)

# Musk joga água no moinho da extrema-direita no Brasil de olho na eleição de Trump (G1)

# PL das redes sociais. Entenda o que o texto diz sobre conteúdo criminoso e obediência a decisões judiciais (G1)

# Musk infla rede bolsonarista e mira interesses comericiais do X (Uol)

# Elon Musk atacou soberania nacional, diz Orlando Silva, relator do PL das fake news (Uol)
# O que pode acontecer com Musk e com o X após decisão de Moraes (Uol

# Pochmann alerta: "o ataque de Musk é uma ação calculada" (247)

# O que as bravatas de Elon Musk têm a ver com Eduardo Bolsonaro? (Pública)

# Musk lucra com vigilância estatal que diz combater (Intercept)
# Empresas de mídia que tiveram atuação suspensa por desobediência à lei (Uol)

# Musk tentou silenciar críticos, pesquisadores e censurar uso de dados (Uol) 

60 anos do golpe de 1964

As universidades públicas brasileiras e a violência 'confidencial' dos anos de chumbo

Gaspar Paz (A Terra é redonda)

Na foto,  o físico Mário Schenberg, uma das vítimas da ditadura

Sergio Barbo (Pública)

Batidas policiais nas madrugadas...

Renan Quinalha (A Terra é redonda)

A bela homenagem de Maringoni

O traço de Ziraldo devia ser símbolo nacional

Por Gilberto Maringoni, DCM (expandir)

NUNCA HOUVE NO MUNDO UM ARTISTA GRÁFICO COMO ZIRALDO. Não estou exagerando: nunca houve! Em tempo algum. Até porque seria um reducionismo classificar o mais famoso filho de Caratinga – desculpem Ruy Castro, Miriam Leitão, Agnaldo Timóteo e Silvio Brito – apenas como “artista gráfico”.

O PAI DO MENINO MALUQUINHO abraçou os ofícios de editor, quadrinhista, chargista, locutor, jornalista, escritor, teatrólogo, publicitário, entrevistador, roteirista, jurado de televisão e ator. Sim, ator: procurem no Youtube “Esse mundo é meu” (1964), filme de Sérgio Ricardo, no qual nosso herói faz papel de padre. E ainda se gabava de cantar boleros com a competência de um Gregório Barrios. Ninguém foi tantos, nenhum foi muitos assim. Um showman, um dínamo, um azougue, como se dizia muito lá atrás (ele só não se entendia com a internet).

ISABEL LUSTOSA LEMBRA que apenas dois artistas poderiam se equiparar a ele na imprensa brasileira: Angelo Agostini, absoluto em jornais e revistas na segunda metade do século XIX, e J. Carlos, explosão criativa nos primeiros 50 anos do seguinte. O mineiro surgiu nessa época e esparramou seu talento daí por diante.

ZIRALDO CRIOU A PRIMEIRA série de quadrinhos do mundo a ter como protagonistas um menino negro com deficiência – o Saci – e um membro dos povos originários – Tininim. Era a Turma do Pererê, que mesmo publicado esparsamente nos últimos 65 anos, não tem comparação a altura. Com suas namoradas – Boneca de Pixe e Tuiuiú -, conviviam com a onça (Galileu), o macaco (Allan), o jabuti (Moacir), o tatu (Pedro Vieira) e um coelho estranhamente vermelho (Geraldinho) – tudo supervisionado por Mamãe Docelina. Os nomes vinham de amigos de infância. O gibi vendia como água, entre 1959-64. Saiu de circulação no mesmo mês do golpe.

O PERERÊ SINTETIZOU modos de vida da transição demográfica do Brasil rural para o urbano. O país que em 1930 tinha quase 80% da população distribuída esparsamente no campo passou a ter, três décadas depois, metade de sua gente habitando cidades do sul-sudeste, inchadas e carentes de infraestrutura e instituições que amparassem os fugitivos da fome e da miséria.

NAS PÁGINAS DO GIBI, isso é mostrado sem cacoetes acadêmicos, através de uma trupe em infindáveis peripécias num ponto incerto do “Brasil central”, defendendo seu modo de ser, sua floresta e até mesmo o direito de estar vivo num mundo que se transformava aceleradamente. Moacy Cirne destacou, em “A linguagem dos quadrinhos” que “poucas vezes, no quadro geral da literatura e arte brasileiras, uma obra refletiu com tanta agudeza crítica os problemas sociais de sua época”.

NO DESENHO, SUAS INFLUÊNCIAS MAIORES vieram da geração de cartunistas europeus surgidos no pós-Guerra – Sempè, Steinberg, André François e outros – e expoentes do modernismo brasileiro. “A partir de determinado tempo, passei a olhar mais os trabalhos de Portinari e Di Cavalcanti, com formas justapostas de efeitos gráficos muito originais”, me contou numa conversa em fins de 1990. Seus traços do começo dos anos 1970 revelam uma crescente preocupação formal, tendente ao geometrismo, que resultava em composições quase construtivistas

ZIRALDO FOI TAMBÉM O MAIS POPULAR autor de livros infantis brasileiros da atualidade. O seu “O menino maluquinho” (1979) já passa de 2,5 milhões de exemplares vendidos, tendo sido convertido para teatro e cinema, além de gerar uma série de outros produtos. Marcante foi sua atuação durante a ditadura (1964-1985), não só através dos trabalhos para a imprensa, mas também em colaboração com as campanhas da Anistia e das Diretas Já, bem como para inúmeras entidades populares. Deve entrar nessa conta, também, seu papel decisivo para o sucesso do “Pasquim”, a partir de 1969.

UMA AMIGA EM COMUM – Sonia Luyten – me sintetizou o significado afetivo de Ziraldo, depois de viver anos no Japão, num tempo em que não existia internet ou facilidades de comunicação instantânea. “Vi por acaso uns desenhos dele numa publicação e senti uma saudade imensa do Brasil. Aquilo para mim é um pedaço de nosso país”.

É ISSO MESMO. O traço de Ziraldo – agora um imortal sem nunca ter entrado na Academia – é um símbolo nacional. O Pererê bem poderia estar no centro de nossa bandeira.

Valeu, Ziraldo

Bonita e abrangente matéria sobre Ziraldo publicada neste fim de semana: o resgate da história de um dos maiores artistas brasileiros. 

Do Menino Maluquinho à luta contra a ditadura: irreverência e delicadeza a serviço da cultura brasileira (leitura indispensável no G1)

pensatas para o fim de semana 4-6/4/24

60 anos depois do golpe...

"Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue" (Fernando Pessoa, Livro do desassossego).

"Eu nem sabia que eram 56", disse Derrite (em 2o plano) sobre o número de mortos durante a Operação Verão

Tarcísio, Derrite, a Operação Verão e a banalidade da morte

# Programa de ação da PM acabou oficialmente nesta 3a feira (2/4) e acumula denúncias de torturas e execuções. Somados os números da Operação Escudo, do ano passado, o total de mortos chega a 80 (leia mais na Carta Capital e na Folha), abaixo portanto do número mágico que inspira Tarcísio: 111. Mas ele chega lá... se o MP não adotar alguma restrição legal que o impeça de conduzir a política de segurança da forma como vem fazendo.

Licença para matar

Um retrato da Polícia Militar de Tarcísio. Fernando de Barros e Silva, Piauí (expandir)

No dia 2 de fevereiro, Lula e Tarcísio de Freitas participaram das comemorações de aniversário do Porto de Santos, que completava 132 anos. A plateia, quase toda simpática ao petista, chegou a ensaiar vaias contra o governador de São Paulo, mas foi contida pelo presidente, que pediu respeito aos presentes. Quando chegou a sua vez de falar, Lula disse que o fato de estar ali, ao lado de Tarcísio, era um “ato civilizatório”: “Mais do que um anúncio de investimentos em Santos, este ato significa que precisamos restaurar a normalidade neste país”, disse o presidente. Sobraram sorrisos, afagos e amabilidades de lado a lado, tudo registrado pela lente de Ricardo Stuckert.

A cerimônia foi marcada pelo anúncio da parceria de 6 bilhões de reais para a construção do túnel Santos-Guarujá, uma demanda já muito antiga, considerada estratégica para desafogar o trânsito da região e modernizar a infraestrutura do maior porto do país.

Ato civilizatório. Restauração da normalidade institucional. Túnel para o progresso. São palavras que não faziam – e não fazem – o menor sentido a poucos quilômetros dali, nas favelas das cidades que compõem a Baixada Santista, onde uma multidão de brasileiros aviltados, vivendo em condições de vulnerabilidade extrema, vem sendo aterrorizada pelas ações da polícia. 

Enquanto Lula gastava saliva, Tarcísio estava trabalhando. A verdade da retórica civilizatória do petista não estava na imagem da confraternização flagrada por Stuckert, mas no túnel da barbárie que a polícia de Tarcísio, o engenheiro do bolsonarismo, não para de cavar. Se estivéssemos diante de um quadro – a tela da “restauração da normalidade” –, Lula seria o encarregado pela definição da moldura, enquanto Tarcísio seria o artista responsável pelo desenho sinistro da nova aquarela do Brasil.

Eis a nova cara da normalidade. Essa é a mensagem do governador  – a quem alguns humoristas da imprensa insistem em caracterizar como gestor moderado – quando afirma que “o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não estou nem aí”.

Em 2012, diante da execução pela Rota de nove integrantes do PCC, num sítio em Várzea Paulista, município próximo da capital, o então governador Geraldo Alckmin lançou mão de uma frase cínica que ficaria famosa: “Quem não reagiu está vivo.” A era do cinismo foi para o raio que o parta, ficou para trás, mas não porque as coisas tenham melhorado – elas na verdade se agravaram. O “eu não estou nem aí” de Tarcísio equivale ao “eu não sou coveiro” de Bolsonaro. Não basta empilhar cadáveres, é preciso tripudiar sobre eles.

Vamos aos fatos.

Até o dia 18 de março, a polícia havia matado 76 pessoas na Baixada Santista ao longo de duas operações supostamente destinadas a combater o crime organizado, mas voltadas, na verdade, para vingar a morte de dois policiais. A primeira delas, chamada Operação Escudo, foi deflagrada após o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, da Rota, em 27 de julho de 2023, e resultou em 28 mortes. A segunda, conhecida como Operação Verão, foi desencadeada após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, também da Rota, numa favela de Santos, no mesmo dia 2 de fevereiro em que Lula e Tarcísio se encontravam na cidade. Em um mês e meio, a reação policial havia resultado na morte de 48 pessoas.

Os números falam, ou gritam, por si. Mas não traduzem todo o horror patrocinado por Tarcísio e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite: execuções sumárias; modificação das cenas dos crimes; ausência de socorro e falsos socorros, como o transporte ao hospital de pessoas já mortas, impedindo a perícia no local do crime; tiros de fuzil a longa e a curta distância, em regiões letais, como rosto e tórax; ameaças e intimidações a testemunhas; abordagens violentas e torturas, especialmente quando as vítimas já tiveram passagens criminais; omissão de informações no boletim de ocorrência; violação do direito ao luto e ao acesso a informações, impedindo que as famílias das vítimas conheçam os laudos necroscópicos ou façam o reconhecimento do corpo de seus parentes no IML.  

Esse inventário de ilegalidades (e atrocidades) praticadas pelos agentes do Estado consta do mais recente Relatório de monitoramento de violação de direitos humanos na Baixada Santista, documento assinado por um coletivo de entidades que se dedicam a mapear, entender e combater em várias frentes a violência brasileira.

A socióloga Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que integra o grupo, foi à Baixada mais de uma vez desde fevereiro. Entrou nas casas invadidas pela polícia, conversou com parentes das vítimas, documentou in loco as marcas da matança e não hesita em dizer que este é um caso “sem precedentes” na história da polícia paulista (excetuando, claro, o massacre do Carandiru, em 1992). “A situação é mais grave, muito mais grave do que a imprensa tem conseguido reportar. E não vai parar por aqui.” De fato, não parou: depois da publicação do relatório, a polícia havia assassinado mais cinco pessoas na Baixada: já eram 53 mortes no âmbito da Operação Verão até o fechamento desta edição.

Samira Bueno compara o que acontece na Baixada aos piores momentos das operações policiais em morros cariocas – “a gente só via algo parecido com isso no Rio de Janeiro”. Despreparo, descontrole, sadismo e fúria são palavras que usou durante nossa conversa.

Entre os fatores que explicam a escalada da violência em São Paulo, a socióloga destaca o abandono quase completo do uso das câmeras corporais por parte dos policiais desde que Tarcísio tomou posse. Os números gritam mais uma vez. No caso da Rota, as câmeras haviam sido adotadas em junho de 2021, na gestão de João Doria. Entre janeiro e maio daquele ano, a Rota havia matado 42 pessoas. De junho a dezembro de 2021, foram 4 mortes, uma queda superior a 90%. Em 2022, o único ano em que as câmeras foram usadas todos os meses, a Rota matou 9 pessoas. A partir de 2023, sob Tarcísio, a coisa muda: 33 mortes em 2023, 18 mortes só no primeiro bimestre de 2024.

Estamos diante de uma política de Estado. Tarcísio está fazendo com a Polícia de São Paulo o que Bolsonaro não conseguiu fazer com a Polícia Federal. A bolsonarização está em curso: em 21 de fevereiro, no meio da matança, o governador anunciou a mudança, de uma só vez, de 34 coronéis em funções de comando na Polícia Militar. Os cargos mais importantes da PM paulista agora estão sob a direção de oficiais que fizeram carreira na Rota. Derrite emplacou sua patota na cúpula da principal polícia estadual do país.

Vale lembrar quem é o secretário: um ex-capitão da Rota, afastado de lá em 2013, apenas três anos depois de seu ingresso na corporação, por comportamento excessivamente violento – acreditem. “Eu matei muito ladrão”, disse ele a um canal do YouTube em 2021, quando repetiu diversas vezes que a Rota era sua “grande paixão”.

Famoso nas redes sociais, eleito duas vezes deputado federal, em 2018 e 2022, Derrite é um tipo desclassificado o bastante para ter futuro político no bolsonarismo. Já se fala que ele seria um nome para suceder Tarcísio em 2026, caso o governador se aventure a disputar a Presidência da República. São só especulações. Há outras, talvez mais preocupantes, ou mais próximas de nós. Um coronel da PM legalista e defensor do uso de câmeras corporais, devidamente escanteado pela atual gestão, disse a Samira Bueno que se o Oito de Janeiro fosse hoje, o comportamento da polícia de São Paulo talvez fosse diferente. Podemos imaginar o que isso significa. A carnificina na Baixada seria só o primeiro sintoma de uma onda capaz de varrer, e cobrir de sangue, o Brasil.

Tarcísio é uma ameaça à democracia

# Para Comissão Arns projeto de reforma da PM põe em risco Estado Democrático de Direito (Folha) # Tarcísio é a mais perigosa expressão do bolsonarismo (Luis Nassif, GGN) # O batalhão de Derrite. Editorial da Folha denuncia política de desprofissionalização da PM em favor de práticas criminosas na ação policial # Tarcísio promove a coronel PM condenado por violência policial em SP (Folha) # "Tô nem aí" de Tarcísio funcionou como "senha" para execuções na Baixada Santista (Folha)

Arqueologia de um crime: Os bastidores da investigação do caso Marielle

Chico Otávio, Piauí (expandir)

- Tem visto a Cris? – perguntou o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz à sua mulher, que o visitava na Penitenciária Federal em Brasília, no início do ano passado. Queiroz estava preso desde março de 2019, sob a acusação de participar do atentado que, um ano antes, matou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. “Cris”, na verdade, era um código que o casal combinara para designar a ajuda financeira que sua família recebia do comparsa Ronnie Lessa, outro ex-policial militar, que estava preso pela mesma razão. O dinheiro era o pagamento que Queiroz recebia em troca de sua lealdade. Quando sua mulher, Suzana, lhe respondeu que a Cris não aparecia havia tempos, Queiroz percebeu que estava sendo abandonado – ou “cheirando a peixe”, expressão que, no submundo do crime no Rio de Janeiro, significa apodrecer na prisão.

Quando foi preso, Queiroz passou a receber uma ajuda de 10 mil reais mensais, fornecida por Ronnie Lessa. Eram 5 mil reais para a família e outros 5 mil para os advogados, valores sempre entregues pelo ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, conhecido como Suel. Com o tempo, a ajuda aos advogados foi cortada e, aos poucos, a parcela destinada à sua família foi minguando. Em 2022, o dinheiro já estava em apenas 2 mil reais, depois caiu para 1,5 mil – até que parou por completo. Queiroz chegou a pensar que o corte do pagamento decorria do fato de que Suel estivesse no “spa”, outro código, que se refere à prisão. “Que nada”, respondeu a mulher de Queiroz, durante a visita ao marido, segundo a reconstituição feita mais tarde pelo próprio preso. Suel continuava em liberdade naquela altura. “A Cris é que sumiu mesmo”, disse Suzana.

A Polícia Federal, que em fevereiro de 2023 fora acionada para voltar à investigação dos dois assassinatos, aproveitou a penúria financeira. Cada vez que agentes federais visitavam Queiroz na prisão, exibiam algum novo indício da participação de Lessa e dele próprio no assassinato de Marielle e Anderson. Era uma forma de tentar quebrar sua resistência e induzi-lo a falar o que sabia – e o sumiço da Cris foi providencial.  

Numa ocasião, os agentes mostraram um trecho do depoimento da mulher de Lessa, Elaine Pereira Figueiredo Lessa. Ao falar com a PF em abril do ano passado, ela admitiu que, no dia do crime, 14 de março de 2018, havia passado quase todo o tempo em casa. Saiu apenas para levar o filho na aula de inglês às 15h30 e estava de volta às 18h30. E introduziu uma revelação decisiva. Disse que só viu o marido chegar em casa na manhã seguinte. Aparentemente, ela não percebeu que sua informação derrubava o álibi de Lessa e Queiroz, que insistiam em dizer que estavam juntos, na casa de Lessa, no momento do crime, que ocorreu por volta das 21h30.

Em outra ocasião, os investigados exibiram para Queiroz os comprovantes de que Lessa fizera uma busca online para descobrir dados pessoais de Marielle na tarde do dia 12 de março de 2018, dois dias antes do crime. No CCFácil, um site de dados cadastrais para a concessão de crédito, Lessa pesquisou o CPF de Marielle e seu endereço residencial – Rua do Bispo, nº 227. Quatro minutos depois de obter o endereço, fez nova pesquisa no Google Maps com as palavras-chave “rua do bispo 227”. O cerco, lentamente, estava se fechando. Mas, o pior de tudo para Queiroz, era mesmo a sensação de abandono, de estar “cheirando a peixe”.

Em junho de 2023, magro e abatido, Queiroz estava rendido. Resolveu contar o que sabia. Fez um acordo de delação premiada e contou sobre sua participação no crime, deu detalhes sobre a atuação de Ronnie Lessa e falou do envolvimento de outros dois comparsas. As suas revelações jogaram luz no caso e pulverizaram as chances de absolvição dos envolvidos no crime – e, seis meses depois, abriram caminho para a mais decisiva delação no caso. 

Pressionado pela confissão de Queiroz e convicto de que jamais seria absolvido, Ronnie Lessa capitulou e selou um acordo de colaboração. Confessou que ele próprio executara Marielle e o motorista. Foram treze tiros de uma submetralhadora alemã HK MP5. Disse que os mandantes do crime eram os irmãos Domingos Inácio Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e João Francisco Inácio Brazão, o Chiquinho, deputado federal então filiado ao União Brasil. E contou que todos receberam a garantia de que o crime ficaria impune da boca do próprio chefe da Polícia Civil do Rio, o delegado Rivaldo Barbosa de Araújo Júnior, que assumira o cargo um dia antes do crime e ajudara a planejar o atentado. A menção ao delegado era uma surpresa, mas apenas parcial. Afinal, quando Barbosa foi nomeado para chefiar a Polícia Civil em 2018, a subsecretaria de Inteligência da própria corporação avisara ao comando da intervenção federal na segurança do Rio que não o nomeasse devido às suspeitas sobre seu comportamento. No entanto, os interventores, liderados pelo general Walter Braga Netto, ignoraram o alerta.

No início deste ano, com as delações na mão, estava tudo se encaminhando para anunciar publicamente o desfecho da investigação sobre o assassinato de Marielle e Anderson, o crime de maior repercussão no Brasil e no exterior nos últimos anos. Os investigadores esperavam dar a notícia antes do aniversário de 6 anos do atentado, em 14 de março. Mas, no dia 21 de janeiro, quase tudo foi por água abaixo.

Naquele dia, o colunista do jornal O Globo, Lauro Jardim, publicou uma nota com o seguinte título: Assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes faz acordo de delação com a PF. O furo provocou uma crise interna. Lessa, que contava com a promessa de sigilo total, pensou em desistir da colaboração. Outras delações, já engatilhadas, emperraram. Era previsível. A PF sabia que, no mundo violento do crime, onde impera a lei do silêncio, a notícia de que um criminoso está em processo de colaboração pode ser fatal. Tanto que, dentro da própria equipe da PF, houve quem quisesse abandonar o caso.  

Desde o primeiro momento, os policiais federais haviam selado um pacto de que não haveria qualquer vazamento à imprensa no curso das investigações. O acerto teve resultados concretos. A imprensa só soube da delação de Queiroz quando houve o anúncio oficial. Também só soube da prisão do ex-bombeiro Suel – acusado de participar dos preparativos do crime e depois de apagar os rastros – no dia exato de sua detenção, em 24 de julho do ano passado. A nota publicada em O Globo era um sinal de que a unidade se rompera, mas o grupo – desconfiado de que o vazamento tivesse partido de advogados – logo se reaglutinou.

Entretanto, os investigadores continuaram preocupados com as notícias que saíam aqui e ali. Antes mesmo da assinatura do acordo de delação de Ronnie Lessa, alguns sites noticiosos retomaram uma especulação antiga: a do possível envolvimento de Domingos Brazão no crime. Os agentes ficaram tensos diante da certeza de que haviam perdido o elemento-surpresa. Quando a delação foi concluída, Brazão sentiu que as coisas estavam ficando nebulosas e começou a se movimentar. Na sede do Tribunal de Contas, ele andava inquieto. Dizia que não tinha nada a ver com o crime e nunca vira “esse tal de Lessa”. Mas não conhecia o conteúdo da delação.

Em busca de informações, Brazão acionou advogados e aliados para ter acesso à investigação. Disparou ofícios para todo mundo: o Ministério Público do Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o Tribunal Regional Federal, o Superior Tribunal de Justiça e, por fim, o Supremo Tribunal Federal. Ofereceu-se para depor, alegando que não tinha nada a esconder. Seus argumentos não surtiram efeito, seus apelos caíram no vazio – e Brazão, segundo apurei com fontes muito próximas do conselheiro, convenceu-se de que sua prisão era inexorável.

Tomado pela angústia, Brazão montou um dossiê. Nele, segundo me foi relatado por uma fonte que teve acesso ao conteúdo, Brazão aponta quem foi o culpado pela morte de Marielle e Anderson: o ex-bombeiro e miliciano Cristiano Girão. Na tentativa de provar sua denúncia, Brazão lembra que o nome de Girão apareceu oitenta vezes no relatório final da CPI das Milícias, presidida em 2008 pelo então deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), que era assessorado por Marielle Franco. (No mesmo relatório, o nome do próprio Brazão também aparece, mas é citado apenas três vezes.) No encerramento da CPI, Girão acabou na prisão, de onde só saiu em 2017. Na tese de Brazão, o assassinato de Marielle era uma vingança do miliciano pelos anos passados na cadeia.

O dossiê também recorda que Girão voltou à prisão, onde está atualmente. E, desta vez, foi preso em decorrência de uma investigação que concluiu que Girão mandou matar outro policial miliciano – André Henrique da Silva Souza, o André Zóio – e quem executou o crime foi o mesmo Ronnie Lessa. Para Brazão, são indícios suficientes para convencer as autoridades de que Girão é o mandante do assassinato da vereadora e do motorista. Quando foi preso, Brazão entregou o dossiê na mãos dos investigadores da Polícia Federal.

Na prática, mediante as especulações do seu envolvimento, Domingos Brazão estava voltando ao primeiro plano das investigações. Seu nome entrara no radar da Polícia Federal em 2019, quando foi acusado de obstrução da justiça no inquérito do caso Marielle, então conduzido pela Delegacia de Homicídios do Rio. Na época, os investigadores da PF , que foram chamados para fazer uma “investigação da investigação”, suspeitaram que Brazão usara um policial federal aposentado, Gilberto Ribeiro da Costa, que trabalhava no seu gabinete no Tribunal de Contas, para embaralhar as investigações ao plantar uma testemunha falsa, o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha.

A suspeita dos agentes federais empacou no Ministério Público do Rio, que não viu razões para denunciar Brazão por obstrução da justiça. A posição do MP foi referendada pela Justiça estadual, e assim Domingos Brazão voltou a submergir. Até que Ronnie Lessa fez o acordo de delação e trouxe seu nome à tona, junto com o do irmão Chiquinho Brazão.

Para chegar neste resultado, a Polícia Federal teve que percorrer um calvário, onde se misturaram clamorosas falhas investigativas, sabotagem institucional, crise corporativa e pressões políticas.

Em fevereiro do ano passado, quando o então ministro da Justiça, Flávio Dino, ordenou que a Polícia Federal voltasse a se envolver na investigação do caso Marielle, os agentes federais encontraram um cenário desalentador. Tiveram que trabalhar como se fossem arqueólogos, buscando vestígios sob os escombros de uma investigação que, até ali, se empenhara mais em esconder do que em revelar. Já fazia cinco anos que o crime fora cometido e muita coisa havia se perdido. Não havia esperança de recuperar os dados telemáticos dos suspeitos, desprezados pela Delegacia de Homicídios.

Também já era tarde demais para buscar as imagens das câmeras de segurança nas vias públicas. O Centro de Convenções SulAmérica, que fica a poucos metros do local do atentado, tinha seis câmeras. A rota de fuga do Cobalt, o automóvel usado por Queiroz e Lessa para cometer o crime, passava em frente a esse prédio. No entanto, segundo consta no relatório da Polícia Federal, um agente da Polícia Civil esteve no local logo depois do crime, mas nem sequer apresentou um pedido formal para recolher as imagens, contentando-se em tirar uma foto com seu celular da sala de monitoramento.

As falhas proliferaram. O celular da pessoa que clonou a placa do carro dos assassinos chegou a ser apreendido, mas sumiu dentro da delegacia e jamais foi encontrado. O último a ter contato com o aparelho foi o delegado Giniton Lages, que, na época, comandava as investigações. Lages nunca explicou a razão do sumiço. Mais: uma semana depois do crime, a repórter Vera Araújo, de O Globo, voltou ao local do atentado, no mesmo dia da semana (quarta-feira) e na mesma hora em que tudo aconteceu (21h30), e encontrou o que procurava: uma testemunha direta do caso. No entanto, essa testemunha acabou desprezada nas investigações pelo delegado Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil.

Além do acobertamento, o rumo das investigações também foi errático. Durante cinco anos, a Delegacia de Homicídios conduziu as apurações e, neste período, teve cinco delegados diferentes, entre eles Daniel Rosa, que esteve à frente da unidade entre 2019 e 2020. Nestes anos, desconfiou-se – ou simulou-se a desconfiança – de que o crime tivesse o envolvimento dos chefões da contravenção no Rio, supostamente em disputa para demarcar o domínio de territórios. Pelo menos dois bicheiros, Rogério de Andrade e Bernardo Bello, um pessoalmente e outro por meio de emissário, fizeram chegar a pessoas ligadas a Marielle a garantia de que eram inocentes. O desfecho da investigação mostrou que a suspeição sobre os bicheiros era um equívoco.

Os atropelos na investigação se somaram a complicações corporativas. Quando o procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos, foi nomeado para um novo mandato, abriu-se uma crise no Ministério Público. Mattos fora derrotado na eleição interna do MP e, ao aceitar a recondução pelo governador Cláudio Castro, estava descumprindo o acordo segundo o qual todos os candidatos ao cargo respeitariam a ordem da lista tríplice. A equipe do Gaeco, grupo especializado em combate ao crime organizado, não gostou da atitude do procurador-geral e pediu as contas. A demissão coletiva interrompeu a parceria do Gaeco com a Polícia Federal.

Em paralelo a essa crise, a Polícia Civil do Rio ainda vivia a ressaca da prisão, ocorrida em setembro do ano anterior, do ex-chefe da instituição, o delegado Allan Turnowski, sob suspeita de pertencer a uma organização criminosa e manter ligações com bicheiros. Diante disso, a Polícia Civil não demonstrava maiores interesses em Marielle. Era outro problema, mas, neste caso, a crise acabou virando uma vantagem: a Polícia Federal, aproveitando-se da distração dos policiais civis, assumiu o caso com carta branca.

Os entraves chegaram também no terreno político. Em Brasília, havia pressão para que a investigação se resolvesse o mais rápido possível. No Rio de Janeiro, o poder parecia caminhar noutra direção. O ex-deputado Marcelo Freixo, atual presidente da Embratur, diz que, desde o início da investigação, o governador Cláudio Castro jogou contra a nomeação do delegado Leandro Almada à Superintendência da PF no estado. Almada montara uma força-tarefa para investigar a plantação de informações falsas na investigação. Conhecia bem o caso e, como chefe da PF, poderia ampliar suas condições para elucidar o crime. Segundo Freixo, Castro desconfiava que Almada era um dos responsáveis pela investigação que o envolvia num caso de corrupção.

A pressão do governador não surtiu efeito. Almada virou superintendente da PF no início de 2023. Era uma vitória de Freixo e uma derrota do governador, que já haviam se embrenhado em outros embates. O governador, por exemplo, cortara a segurança pessoal que Freixo recebia desde 2008, quando presidiu a CPI das Milícias. Em janeiro passado, o então secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, estava tentando restabelecer a segurança de Freixo e lhe perguntou se tinha algo para dizer ao governador. Freixo respondeu: “Mande ele tomar no cu.” Desde então, a segurança de Freixo – cujo irmão, Renato, foi assassinado pela milícia em 2006 – passou a ser feita pela PF.

A jornalista Fernanda Gonçalves Chaves, que assessorava Marielle e foi a única sobrevivente do atentado, também se irritou com a postura do governador. No dia 20 de março passado, ao sair de uma audiência com o presidente Lula em Brasília, Castro foi indagado sobre a investigação que corria no Rio. “A gente espera o desfecho o mais rápido possível”, disse, para acrescentar em seguida: “Só o que tem até agora são fofocas jurídicas e políticas.” Logo depois, Fernanda Chaves aproveitou uma reunião da bancada federal do Psol com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para fazer um desabafo. Reclamou que o governador fora desrespeitoso com a investigação e com a memória de Marielle.

De todos os ex-assessores da vereadora, ninguém carrega mais traumas do atentado do que a jornalista. Marielle morreu no seu colo, no banco de trás do carro em que estavam. Nas investigações da Polícia Federal, ela foi uma colaboradora importante, lembrando de detalhes e informações relevantes para o inquérito. Sempre esteve disponível para esclarecer dúvidas. Os policiais às vezes não conseguiam a mesma atenção da parte de outros colaboradores e conhecidos de Marielle, que não escondiam ainda o medo e a desconfiança. Por tudo isso, Fernanda Chaves achou que a postura do governador não era admissível.

(Em nota à piauí, o governador do estado alega que os policiais estaduais estavam prestando segurança irregularmente a um deputado federal (Freixo cumpriu mandato em Brasília de 2019 a 2023) e, aparentemente, suspendeu o serviço. Quando o governo parecia tentar regularizar a situação, o deputado já estava sendo atendido por forças federais, acionadas pelo Ministério da Justiça. A nota é confusa, deixa informações pela metade, não informa as datas das movimentações e termina acusando Freixo de disseminar “mentiras, calúnias e fake news”. A nota não diz uma palavra sobre o caso Marielle.)

Com essa sucessão de problemas – políticos, policiais e corporativos –, os agentes federais logo se voltaram para o último recurso que restava para esclarecer o crime: a delação premiada. Liderados pelos delegados Guilhermo de Paula Machado Catramby e Jaime Candido da Silva Júnior, os investigadores apostaram inicialmente em obter a colaboração de Queiroz por considerá-lo o elo mais fraco. A dupla era experiente. Catramby vinha de uma investigação vitoriosa sobre o ex-garçom Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como Faraó dos Bitcoins, que dera um golpe milionário em quase 90 mil pessoas. Jaime Candido da Silva Júnior, delegado regional de Polícia Judiciária, mais velho que o colega, conhecia como poucos o mundo do crime no Rio, já que passara pela chefia do Setor de Inteligência da PF fluminense.

Os dois, ainda sem saber que Queiroz já se sentia “cheirando a peixe”, pensaram em quebrar sua resistência apontando aquelas provas da investigação. Além disso, tentavam convencê-lo de que, com a Polícia Federal na jogada, era seguro fazer uma delação. Afinal, Queiroz estaria livre da areia movediça da Polícia Civil do Rio. Quando aceitou abrir negociações, Queiroz foi transferido da Penitenciária Federal em Brasília para o Complexo Penitenciário da Papuda, considerado mais seguro para o próprio detento. O hangar da PF, vizinho ao Aeroporto Internacional de Brasília, foi o cenário das negociações.

Queiroz foi logo alertado de que nada resolveria se tentasse proteger alguém em suas revelações. Naquela altura, ele já havia mudado de defesa. Dispensara o advogado Fernando Santana, que também defendia Lessa, e lhe garantia que seria absolvido. Santana achava que as provas contra seu cliente eram frágeis demais. Em seu lugar, Queiroz contratou a advogada Ana Paula de Araújo Fonseca Cordeiro. Antes de começar a falar no hangar da PF em Brasília, Queiroz, segundo me relatou uma testemunha, virou-se para a advogada e perguntou: “Tenho chance de ser absolvido?” A resposta foi dura, mas clara. “Não, você será condenado”, disse ela.

Com uma caneta e um bloco de notas na mão, Cordeiro começou a anotar os detalhes do longo relato de Queiroz. Sim, ele era o motorista do Cobalt que levou Lessa da Barra da Tijuca até a Casa das Pretas, no Centro do Rio, onde Marielle participou de um evento, e dali até a Rua Joaquim Palhares, no Estácio, onde seu comparsa disparou a submetralhadora contra a vereadora e seu motorista. Queiroz também deu detalhes da trama, que começara a ser montada cinco meses antes, e apontou mais dois envolvidos: Edmilson da Silva de Oliveira, o Macalé, ex-sargento da Polícia Militar, que vigiou a vítima, e o próprio Suel, o ex-bombeiro, que também vigiou a vítima e se encarregou depois de dar um fim ao Cobalt, que foi desmontado num ferro-velho.

Seu relato era claro e detalhado, mas não apontava os mandantes. Os delegados nem insistiram nesse ponto porque conheciam o modo de agir de Lessa: ele compartimentava as informações e nunca dizia tudo para uma só pessoa. Queiroz, observando a movimentação de Macalé, chegou a desconfiar – e disse isso na delação – que o bicheiro Bernardo Bello, um dos chefes da contravenção carioca, pudesse estar entre os mandantes do crime. Era um engano. Mais tarde, a PF conseguiu comprovar que o alvo de Bello era outra mulher, Regina Celi, então presidente da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. (Macalé foi assassinado em dezembro de 2021. Bello está foragido.)

De volta ao Rio de Janeiro, a advogada de Queiroz pegou suas notas e ordenou o relato, arrumando tudo em anexos, antes de submeter o material ao seu cliente. Estava tudo certo, mas Queiroz ainda precisava fazer uma escolha. Seguindo o protocolo, a PF ofereceu-lhe o ingresso no programa federal de proteção a testemunhas. Se aderisse, Queiroz teria de cortar o contato com sua família, para, entre outros motivos, não expor o local de acolhida. Nem Queiroz, nem seus parentes aceitaram a oferta. Preferiram uma proteção convencional. Entenderam que a sua liberdade não estava tão longe: ele deve ser sentenciado a doze anos, dos quais já cumpriu cinco.

Os agentes federais chegaram ao mês de julho do ano passado com o processo dos executores do crime praticamente resolvido. Era a hora de se concentrar nos mandantes. Os irmãos Brazão voltaram a atrair a atenção dos investigadores. Afinal, em 2019 já tinham sido alvos da PF por plantar informações falsas sobre os mandantes do atentado. Mas os agentes federais precisavam encontrar um motivo, ou pelo menos uma suspeita de motivo. A tese de que os Brazão poderiam ter matado Marielle para se vingar da CPI das Milícias não parecia fazer muito sentido. Embora os irmãos tivessem influência em regiões dominadas pela milícia, sobretudo em Jacarepaguá e Rio das Pedras, o fato é que o relatório final da CPI mal mencionava os nomes dos irmãos.

A outra possibilidade dizia respeito à Operação Cadeia Velha, deflagrada em novembro de 2017 para investigar um esquema de corrupção em que empresários de ônibus pagavam propina para deputados estaduais – a chamada “caixinha da Fetranspor”, a entidade que representa as empresas de transporte público. Na época, o então deputado estadual Marcelo Freixo entrou com uma ação civil pública que abortou uma manobra que os parlamentares suspeitos bolaram para escapar da prisão. Três acabaram em cana – Jorge Picciani, Edson Albertassi e Paulo Melo –, e a morte de Marielle seria uma retaliação contra Freixo. Ocorre que Domingos Brazão nem sequer fora alvo da Operação Cadeia Velha.

Descartadas as duas hipóteses, a equipe da PF voltou-se para a suspeita de que Marielle, mesmo sem saber, poderia ter contrariado um negócio vital para a família Brazão: a exploração irregular de terras na Baixada de Jacarepaguá, uma região extensa com muitos vazios urbanos e sob forte influência de grupos milicianos. Essa suspeita já existia desde 2018 na Delegacia de Homicídios. O esquema das terras funcionava assim: um empreendedor malandro, que muitas vezes é também grileiro, ergue um condomínio ao arrepio da lei. Constrói casas de classe média, algumas com piscina e quadras esportivas, sem oferecer as contrapartidas exigidas por lei, como arruamento, iluminação pública, área de praças e outros equipamentos urbanos. Feito isso, os vereadores aprovam uma lei destinada a legalizar o loteamento que nasceu irregular, quase sempre sob o argumento de que a área tem “relevante interesse social”.

Inspirada na lógica da desconcentração de poderes, a Constituição de 1988 criou condições para que os vereadores interferissem nas regras de ocupação das cidades, definindo o uso das áreas urbanas e a fixação de gabaritos de edificação. A intenção dos constituintes era boa: democratizar o controle de questões essenciais para a vida urbana. A medida, no entanto, permitiu a aproximação entre vereadores e empresários do setor que, juntos, começaram a alavancar uma fartura de empreendimentos urbanos – e não pararam de criar atalhos.

Um dos atalhos, aberto pela Câmara Municipal do Rio, resultou na criação das chamadas Áreas de Especial Interesse Social (Aeis), que ficam autorizadas a receber um tratamento diferenciado da Prefeitura. As Aeis – em geral, ocupadas por uma favela, um loteamento irregular, um conjunto habitacional de baixa renda – podem operar com gabaritos e dimensões de lotes diferentes dos padrões previstos em lei. Como, na prática, ninguém fiscaliza se os projetos de fato contemplam moradores de baixa renda, abriu-se a porta da farra.

Em 2016, o então vereador Chiquinho Brazão – que pouco depois viraria presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara Municipal – propôs um audacioso projeto de lei, o PLC nº 174. O objetivo da proposta era facilitar a regulamentação de loteamentos em áreas valorizadas da Zona Oeste do Rio, como Vargem Grande, Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá – regiões onde sua família tinha interesses imobiliários. Depois de seis meses tramitando, o projeto acabou sendo aprovado por um triz, mas não contou com o voto de Marielle, nem dos demais integrantes da bancada do Psol.

Depois dessa votação, um assessor de Marielle pediu a assinatura de Brazão em favor de um projeto do Psol. “Vocês votaram contra meu projeto e, agora, pedem meu apoio?”, reagiu ele, irritado, segundo a lembrança do assessor. Era uma negativa inusitada. A troca de assinaturas entre vereadores – os chamados “apoiamentos” – destina-se apenas a viabilizar a apresentação de um projeto, e não sua aprovação. É uma prática comum entre os parlamentares, mesmo aqueles com divergências ideológicas. Os assessores alertaram Marielle sobre a recusa irritada de Brazão. Ela também estranhou. Sabia que o colega conhecia as posições do Psol em relação a projetos sobre ocupação urbana e achava que ele não tinha razões para se aborrecer.

(Em abril de 2018, no mês seguinte ao assassinato de Marielle, o projeto de Chiquinho Brazão foi vetado pelo então prefeito Marcelo Crivella, sob o argumento de que a iniciativa em matéria de zoneamento urbano é uma atribuição reservada ao prefeito. A Câmara derrubou o veto no mês seguinte, mas o Órgão Especial do Tribunal de Justiça considerou o projeto inconstitucional, enterrando de vez o assunto.)

O antagonismo repentino de Chiquinho Brazão contra Marielle podia ser um alerta sobre as relações tensas, mas era preciso investigar mais a fundo. Como os irmãos Brazão tinham direito a foro privilegiado, o caso foi então transferido para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Com isso, a Polícia Federal evitava qualquer passo que pudesse mais à frente gerar a nulidade da investigação. Diante da mudança de competência, o Gaeco estadual, depois de cinco anos e meio envolvido no caso, precisou sair de cena. Deixou então de atuar no processo dos mandantes, mas ficou no caso dos executores.

Enfim, tudo começava a avançar.

Ao saber que a esfera jurídica do caso fora transferida do Rio para Brasília, duas figuras relevantes ficaram otimistas: as promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile, que haviam deixado o inquérito do atentado quase dois anos antes por desconfiar de interferência externa no caso que investigavam. Quando estavam envolvidas na apuração de Marielle, as duas fizeram progressos significativos. Um deles veio na forma de uma perícia nas imagens do Cobalt, quando o veículo estava estacionado perto da Casa das Pretas à espera de Marielle. A perícia mostrou que o braço apoiado no banco traseiro do carro era compatível com o de Lessa.

Outra contribuição decisiva das promotoras foi descartar a linha de investigação escolhida pelo delegado Giniton Lages, que comandava a Delegacia de Homicídios e de onde foi afastado em 2019. Lages insistia em apontar o então vereador Marcello Siciliano (PHS) como mandante e o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, como executor. As promotoras discordavam dessa tese e chegaram a romper relações com Lages. Como ficou comprovado mais tarde, elas estavam certas: os nomes de Siciliano e Curicica foram plantados para desviar a atenção dos reais mandantes do crime.

Convidadas a retornar ao Gaeco, as promotoras aceitaram voltar e passaram a dar orientações aos colegas. Logo retiraram dos arquivos um dos achados relevantes da apuração que haviam feito: as provas de que Ronnie Lessa consultara os dados pessoais de Marielle online. E não só de Marielle. A pesquisa de Lessa também buscara informações sobre Luyara, filha de Marielle, sobre Isadora, filha de Freixo, e dos então vereadores Renato Cinco e Chico Alencar, ambos do Psol. Resgatados das gavetas do Ministério Público, os dados foram entregues à Polícia Federal, que os usou para convencer Queiroz a assinar um acordo de delação.

Nessa altura, com a entrada do STJ no caso, onde a relatoria do inquérito ficou a cargo do ministro Raul Araújo, praticamente todas as instâncias da Justiça estavam envolvidas na investigação, menos o STF – por enquanto. A teia jurídica se ampliou de tal modo que chegou a confundir os agentes federais. Coube a um desembargador do Rio, por exemplo, assinar a ordem de prisão contra Edilson Barbosa dos Santos, o Orelha, dono do ferro-velho onde o Cobalt do crime foi desmontado. Assinada pelo desembargador Paulo Sérgio Rangel do Nascimento às 16 horas de 28 de fevereiro passado, uma quarta-feira, a medida pegou a equipe da PF de surpresa. Os agentes montaram às pressas uma operação para capturar o suspeito.

(Nem o Gaeco, nem a Polícia Federal estavam muito interessados na prisão do dono do ferro-velho. Ninguém acreditava nas chances de recuperar, ainda que apenas partes, o Cobalt que os criminosos usaram na noite do atentado. Mas, se não era um passo relevante para o caso Marielle, a detenção fazia sentido: Edilson dos Santos continuava usando sua oficina para desmanchar carros roubados. Hoje, ele está preso.)

O alvo principal dos investigadores eram os mandantes. A motivação dos irmãos Brazão estava sendo mapeada, mas os federais tinham um caminho claro: insistir em dobrar a resistência de Lessa a fazer uma delação. Nas primeiras abordagens, ele reagia com evasivas. Segundo ouvi de um dos investigadores federais, o pistoleiro sempre dizia alguma variação da seguinte frase: “Não tenho nada a dizer. Sou inocente.” Lessa foi então confrontado com as mesmas provas que venceram a resistência de Queiroz. Quando soube que havia evidências concretas de sua pesquisa online sobre Marielle e que sua mulher derrubara seu álibi, Lessa se abalou. “Isso é igual uma bomba de Hiroshima e Nagasaki nos meus peitos”, disse.

Mas manteve a couraça. Os criminalistas que faziam sua defesa, Fernando Santana e Bruno Castro, que até então estavam confiantes na absolvição, começaram a perder a fé. Eles trabalhavam com a estratégia de esvaziar a natureza política do caso e levar o embate com os promotores para a arena técnica. Pretendiam mostrar que, ao contrário do que afirmava a carga acusatória, Lessa não tinha condições físicas de se mover com destreza dentro de um carro apertado para efetuar os disparos. Ele perdera uma perna em um atentado a bomba em 2009 quando trabalhava como segurança do bicheiro Rogério de Andrade.

Lessa desmontou de vez ao saber que, em meados do ano passado, Queiroz fizera uma delação e Suel, que cuidava de sua operação financeira, fora preso. Tudo somado, Lessa perdeu a esperança de tentar a absolvição. Seus advogados, que trabalham num escritório avesso a acordos de delação, abandonaram o caso. E ele enfim soltou o verbo. Contou que teve três encontros com os irmãos Brazão para discutir o crime. Contou que os mandantes acreditavam que Marielle estava atrapalhando os negócios da família com terras urbanas. E contou que o delegado Rivaldo Barbosa não só prometera impunidade, como ajudara a arquitetar o crime. O delegado, na versão de Lessa, chegou a sugerir que o assassinato não fosse cometido nas imediações da Câmara Municipal para que não caracterizasse um crime político, o que poderia atrair a competência da Polícia Federal para o caso.

Monica Benicio, viúva de Marielle, ainda estava dormindo na manhã de domingo, 24 de março, quando o celular começou a vibrar na mesa de cabeceira. Eram cerca de seis da manhã. Ainda sonada, ela viu na tela que era uma ligação do delegado Jaime Candido da Silva Júnior. Observou, ainda, que perdera várias ligações do delegado e, inclusive, do superintendente da PF, Leandro Almada. Seu coração acelerou. “Bom dia, o que houve, Jaime?”, disse, sem rodeios. O delegado respondeu que, assim como fazia em cada novidade do caso, estava telefonando para dar a notícia que todos esperavam havia seis anos: os mandantes do assassinato de Marielle e Anderson, finalmente, estavam sendo presos.

Assim que ouviu a notícia, Monica Benicio, hoje vereadora pelo Psol, perguntou se poderia saber os nomes ou se teria que esperar o noticiário da manhã. “Sim, posso dizer. Domingos Brazão, Chiquinho Brazão e Rivaldo”, informou o delegado. Surpresa, Benicio achou que não tinha escutado bem. “Rivaldo?” Sim, era ele mesmo, Rivaldo Barbosa, o ex-chefe da Polícia Civil, o homem que se dizia especialmente empenhado em resolver o atentado e que se apresentara como amigo de Marielle.

“Naquele momento, minha cabeça girou 360 graus”, lembra Benicio. “Rivaldo foi a primeira autoridade a receber a família. Marcelo Freixo nos apresentou como uma pessoa confiável.” Estava impressionada e saiu logo buscando na memória sinais de que havia, desde o início, algo errado com o delegado. “Me incomodava que Rivaldo tinha aquele constante sorriso no rosto mesmo num momento tão grave”, rememorou. Logo depois do assassinato, houve uma reunião que não saiu da cabeça de Benicio. “Quando ele disse que era amigo pessoal de Marielle, não aguentei. Pedi a palavra e respondi que os amigos pessoais de Marielle frequentavam a nossa casa e eu não me lembrava dele. Depois, quando ele se referiu a Marielle como uma mulata bonita, lembrei a ele que eu era a viúva e perguntei se ele faria o mesmo comentário se eu fosse homem.”

Horas antes, em pleno sábado, o delegado Guilhermo Catramby, que coordenava a força-tarefa da PF, chamou às pressas sua equipe de nove agentes à sede da corporação, na Praça Mauá. Todos entraram tensos na sala de briefing, com a certeza de que algo importante estava por vir. Logo entenderam: foram recebidos com um sonoro “parabéns” pelo superintendente Leandro Almada e outros chefes. O desfecho do assassinato de Marielle e Anderson estava a poucas horas de ser anunciado. A equipe, então, recebeu uma homenagem pelo bom trabalho: seus parentes haviam gravado vídeos elogiando o resultado da investigação – e dizendo que as longas horas de trabalho longe do convívio familiar tinham valido a pena. Alguns se emocionaram. Só depois disso, foi dada a ordem para que os agentes buscassem no aeroporto os reforços que estavam chegando de Brasília, São Paulo e Minas Gerais. Ninguém dormiu.

Enquanto o delegado Jaime Candido dava a notícia para Benicio, os agentes da Polícia Federal estavam na rua. Por volta das 6 horas, deram voz de prisão a Domingos Brazão, o conselheiro do TCE, que estava em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. O deputado federal Chiquinho Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa  foram presos em seus apartamentos, também na Barra. Os três foram levados para o prédio da Superintendência da pf e, de lá, voaram para Brasília a bordo de uma aeronave da polícia. Na capital federal, os Brazão desembarcaram do avião algemados. O delegado, por falha dos funcionários do Departamento Penitenciário Nacional, estava com as mãos livres – e só foi algemado dentro do veículo que levou o trio até o presídio da Papuda. Depois de três dias na Papuda, cada um deles foi transferido para uma penitenciária federal diferente.

Como o ministro Raul Araújo, do STJ, havia transferido o caso para o STF, a ordem de prisão foi assinada pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito. Fora outra surpresa para a Polícia Federal no âmbito jurídico. Como o deputado federal Chiquinho Brazão cumpria mandato de vereador no Rio na época do atentado, os agentes entendiam que ele não tinha direito ao foro privilegiado no STF. Mas se tranquilizaram quando souberam que Alexandre de Moraes fora o sorteado para cuidar do caso. Confiavam que o ministro, como de praxe, seria rigoroso em suas decisões.

Em entrevista coletiva realizada em Brasília no dia das prisões, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, deu por encerrada a investigação. Mas restam muitas indagações, a começar pelo destino que será dado ao material apreendido nas operações de busca nos endereços do delegado Giniton Lages, ex-titular da Delegacia de Homicídios, e do inspetor da Polícia Civil, Marco Antônio de Barros Pinto, o Marquinho. Os dois são suspeitos de ajudar a fazer do inquérito policial uma farsa. Continuam em liberdade, mas agora com tornozeleira eletrônica.

Outra indagação diz respeito ao conteúdo integral da delação de Ronnie Lessa, que continua inédito. Apenas alguns trechos foram divulgados até agora. Ouvi fontes que me garantiram que o pistoleiro falou de outros crimes – homicídios, inclusive – que foram mantidos na impunidade em razão da blindagem cevada pela propina do crime organizado na Delegacia de Homicídios. E como se comportará a polícia de Cláudio Castro, o governador que, até poucos dias, considerava o caso um amontoado de “fofocas jurídicas e políticas”?

A divulgação do relatório da Polícia Federal, naquele chuvoso domingo carioca, fez muita gente afundar no sofá, com o celular na mão. O texto de 479 páginas revelou um desenho assustador: o crime não envolve um único bandido convencional. São todos agentes públicos: um conselheiro de tribunal, um deputado federal, um chefe de polícia, delegados, ex-policiais militares. À luz dessa realidade, o jornalista Elio Gaspari, em sua coluna publicada nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, escreveu: “Desvendada a trama do assassinato de Marielle Franco, resulta que nela não havia um só bandido desorganizado, daqueles que assaltam, roubam casas ou celulares.” E, referindo-se às autoridades presas, completou: “Essa casta não rouba carros, alguns usam veículos oficiais.”

A imprensa deu ampla cobertura às prisões, mas as críticas não demoraram a aparecer. A principal delas é o fato de que a Polícia Federal se baseou na delação de Ronnie Lessa, mas não trouxe provas – de acordo com o que foi divulgado até agora – capazes de corroborar o que o pistoleiro denunciou. Não há provas dos três encontros que ele diz ter mantido com os irmãos Brazão – no primeiro dos quais, ocorrido em setembro de 2017, o crime já foi encomendado, segundo Lessa. A intermediação dos encontros, ainda segundo Lessa, foi feita por Macalé, o miliciano assassinado em 2021. Também não há provas concretas da ligação entre os Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa, além da afirmação do pistoleiro de que ouviu Domingos Brazão dizendo que “o Rivaldo é nosso” e que ajudou a preparar o crime. Todos eles – os Brazão e o delegado – negam qualquer envolvimento no caso.

Desde 2019, a lei diz que denúncias apresentadas durante uma delação não se bastam. Precisam ser acompanhadas por provas que as comprovem. Por isso, os investigadores já estavam preparados para as críticas. Sabiam que era impossível encontrar imagens dos supostos encontros entre Lessa e os irmãos Brazão, por exemplo. “Vai ser a palavra de um contra a palavra de outro”, me disse uma autoridade envolvida no caso. O delegado Catramby, conhecido pela discrição e pela economia verbal, certa vez, quando a investigação começava a decolar, comentou com amigos: “Não vamos entregar exatamente a resposta que gostaríamos. Já passou muito tempo, as dificuldades são grandes. Mas vamos entregar uma resposta à sociedade.”

A arte imita a vida ou é o contrário?

Zona de Interesse: para os vizinhos de Auschwitz, foi como se nada estivesse acontecendo

Crítica de Wison Ferreira sobre The Zone of Interest (Oscar de melhor filme internacional em 2024), reproduz o estado da brutal indiferença que o cotidiano provoca com o cancelamento sistemático da vida. Olhando de perto, o diretor do fime, Jonathan Glazer, tem em Tarcísio de Freitas e no seu secretario Guilherme Derrite fortes concorrentes ao Prêmio Hannah Arendt(*). Clique aqui para ler a postagem expandida

Link para o acesso à postagem orginal do site de Wilson Ferreira: https://cinegnose.blogspot.com/2024/03/zona-de-interesse-quando-banalidade-do.html 

Oscar de Melhor Filme Internacional, “Zona de Interesse” (The Zone of Interest, 2023) se diferencia de todas outras produções premiadas sobre o nazismo e o Holocausto como A Vida é Bela, O Pianista, O Filho de Saul etc. Vai além da época que pretende retratar. E a fala do diretor Jonathan Glazer na cerimônia do Oscar foi totalmente coerente com o seu filme: “Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer ‘olhe o que fizeram na época’, mas para olhar o que fazemos agora”, criticando o genocídio de Israel em Gaza. A família de um oficial da SS vive uma vida bucólica e pastoral, indiferentes ao que ocorre do outro lado do muro da propriedade: o genocídio de Auschwitz. A poucos metros do Holocausto, acompanhamos uma típica vida de classe média de comerciais de margarina na TV. Glazer tem um conceito radical: e se a banalidade do mal se transformou em uma “banalidade do bem” na sociedade de consumo pós-guerra?

Premiado no Oscar 2024 (Melhor Filme Internacional e Som), Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023) para muitos é mais um filme sobre o capítulo horrível do Holocausto na História, ao lado de uma lista de produções como Noite e Nevoeiro, A Lista de Schindler, O Pianista, Cidade Ocupada etc.

Outro apontam como grande diferencial do filme de Jonathan Glazer, vagamente baseado no livro de 2014 de Marin Amis, a perfeita figuração cinemática do conceito de banalidade do mal da filósofa Hannah Arendt – a recusa (ou a indiferença) do caráter humano em assumir por iniciativa própria as consequências dos seus próprios atos.

A família de um oficial da SS mora confortavelmente em um casarão com sua esposa e filhos, cercado por um jardim espaçoso, uma piscina ao lado de um escorregador de água, colmeias, estufas e grandes hortas de legumes e canteiros de flores meticulosamente bem cuidados – vivendo um cotidiano idílico de piqueniques às margens de um rio próximo e encontros sociais regados a licor. 

Tudo seria normal, não fosse que o muro coberto por arame farpado que fica atrás do casarão separa a propriedade (a “zona de interesse”), nada mais nada menos, do mais sinistramente famoso campo de concentração da História, Auschwitz. Com suas chaminés fumegando 24 horas por dia a morte em escala industrial de judeus nos crematórios. Ouve-se à distância gritos, tiros, marchas de soldados e a intensa movimentação de caminhões trazendo prisioneiros. Mas nada que abale o cotidiano bucólico da “zona de interesse”.

Mas há algo mais. Algo que incomodou este humilde blogueiro. Até visualizarmos esse muro cinzento de concreto e arame farpado, além do espectador tomar consciência do terror que cerca a vizinhança, parece que estamos acompanhando uma típica vida de uma família de classe média suburbana, isto é, desses condomínios fechados vendidos por comercial de TV de margarina. Aquilo que ficou conhecido como “o sonho americano” ou o “american way of life”, irradiados para o planeta pela sociedade de consumo dos EUA.


É notório como no pós-guerra os ilustradores publicitários americanos emularam o estilo das ilustrações dos cartazes publicitários nazistas – principalmente aqueles que figuram rostos sorridentes de arianos perfeitos. 

Mais do que isso, tentaram reproduzir no sonho americano urbano o estilo de vida idílico pastoral do imaginário nazista da raça pura retornando aos valores da terra, família e sangue. Basta uma rápida comparação semiótica da propaganda política e da publicidade para percebermos isso - veja imagens acima.

Em Zona de Interesse, o oficial, comandante do campo de Auschwitz Rudolf Höss (Christian Friedel) e chefe daquela família acredita que está cumprindo uma sagrada missão de Hitler: a colonização ariana do Leste Europeu – o campo de Auschwitz (hoje transformado em museu) fica na Polônia.

 Esse viés de Jonathan Glazer (que vai muito além do livro de Amis) confere uma complexidade maior ao conceito de banalidade do mal: e se o “sonho americano” (casa, jardim, piscina, carro na garagem e cercado de gadgets tecnológicos comprados em um shopping mall) for a própria extensão da banalidade do mal no pós-guerra?  A vida perfeita dentro de bunkers suburbanos (condomínios e shopping centers) que nos separam da violência, desigualdade e a miséria social no qual todo o luxo consumista de sustenta. Mais do que isso, evitando que olhemos diretamente para o Mal.

A proximidade desse paraíso pastoral com o campo de Auschwitz (cujos vários edifícios pontilham a vista) é um choque baseado em fatos históricos.

A verdadeira família Höss, assim como suas contrapartes fictícias, vivia no complexo de Auschwitz, uma faixa de cerca de 15 milhas quadradas de tamanho que abrigava diferentes campos em uma área chamada “Interessengebiet” ou “zona de interesse”. 


A casa estava escondida perto de um canto do campo mais antigo, Auschwitz I, que tinha quartéis de prisioneiros, forca, uma câmara de gás e crematório. Depois que Höss foi preso em 1946, ele escreveu que “minha família estava bem em Auschwitz, todos os desejos que minha esposa ou meus filhos tinham foram realizados. As crianças corriam livres e minha esposa tinha seu paraíso de flores”. 

Ele foi enforcado em Auschwitz em 1947, não muito longe de onde a família morava. 

O Filme

O período do tempo em que se passa aa adaptação de Glazer é vago, embora pareça ocorrer principalmente em 1943 antes que o verdadeiro Höss fosse transferido para outro acampamento. 

O filme abre em uma tela preta acompanhada por uma música lúgubre, uma longa abertura que dá lugar a uma cena pacífica em um rio com um grupo de pessoas em trajes de banho. Eventualmente, eles se vestem e vão embora.

Grande parte do resto do filme acontece na casa da família Höss, onde as câmeras cuidadosamente emolduradas e muitas vezes fixas de Glazer, gravam as crianças brincando enquanto os pais conversam e às vezes discutem. Você vê Rudolf indo trabalhar no acampamento enquanto a esposa Hedwig Höss (Sandra Hüller) supervisiona a casa. 

A realidade de horror que cerca esse paraíso doméstico aparece pontualmente. Como quando observamos um dos prisioneiros, que faz as vezes de empregado da família, silenciosamente adubando, com cinzas humanas dos crematórios, os jardins floridos. 

Logo somos apresentados à casa dos sonhos deles, uma alta estrutura de concreto cercada por espaços luxuosos. Do outro do muro farpado está o próprio acampamento de prisioneiros. Com exceção de uma única cena - um ângulo contra-plongée de Rudolf, emoldurado por fumaça preta dos fornos ao fundo - nunca vemos realmente dentro do acampamento. 

Em vez disso, os espectadores são convidados a visualizar auditivamente o horror na vizinhança – não por menos o filme ganhou o Oscar técnico de Melhor Som.


A família Höss vive ao lado do genocídio em curso, mas nunca comenta os gritos horríveis ou o cheiro da morte nas proximidades. Assim, há uma frieza que se infiltra na falta de sentimentalismo do filme. Eles criam seus filhos sob o pretexto de normalidade - Rudolf conta histórias de fadas aos seus filhos antes de dormir, os leva a passeios a cavalo e participa de outras atividades pastorais. 

Toda essa frieza e indiferença de Rudolf é premiada: ele é promovido a comandante geral de todos os campos de extermínio e será transferido de Auschwitz para Oranienburg. Surge uma tensão doméstica: a esposa Hedwig quer permanecer na “casa dos sonhos” com seus filhos. Rudolf aceita ir sozinho. Afinal, sua família está realizando o sonho programático de Hitler: espalhar a raça ariana pelo Leste europeu.

Uma banalidade do bem? – Alerta de Spoilers à frente

O final do filme é irônico. O que fez reforçar a percepção inicial desse Cinegnose sobre a analogia entre o estilo de vida ariano e o sonho americano.

Rudolf recebe a notícia de que ele será pessoalmente responsável pela maior operação de transporte de prisioneiros da guerra: milhares de judeus que serão transferidos por trem da Hungria para os fornos de Auschwitz. 

A cena é cortada para o museu atual em que se transformou Auschwitz. Glazer filma funcionários limpando com vassouras e aspiradores de pó o interior de uma antiga câmara de gás e nos corredores onde estão em exibição pilhas de sapatos, muletas e outros dispositivos médicos e uniformes dos presos. 


Tudo muito asséptico e preciso, para tornar o lugar apresentável para a visita dos turistas. Glazer parece sugerir que existe tal coisa como uma espécie de “banalidade do bem”, que também torna o Mal silencioso e abstrato. 

Auschwitz se tornando parte de um roteiro turístico mórbido, em que transforma uma tragédia histórica em mais uma atração em um roteiro de consumo. Algo parecido como as violentas favelas do Rio (como a da Rocinha, p. ex.), transformando o caos urbano brasileiro em atração turística para gringos – algo como fazer um passeio turístico pelas selvagens savanas africanas.

Esse final irônico proposto por Glazer parece reforçar o conceito inicial do filme: a extensão da banalidade do mal através da sociedade de consumo do pós-guerra – a bunkerização urbana dos condomínios fechados, shopping centers etc. A promessa para poucos de uma vida idílica, familiar, entre os iguais, perto da natureza e longe do caos urbano resultante da desigualdade e exploração que sustentam esse estilo de vida elitizado.

  

Ficha Técnica 

Título: Zona de Interesse

Diretor:  Jonathan Glazer

Roteiro:  Jonathan Glazer e Martin Amis

Elenco: Christian Fiedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus

Produção: A24, Access Entertainment, Film4

Distribuição: A24

Ano: 2023

País: Reino Unido, Polônia


(*) Prêmio Hannah Arendt é uma invenção minha e uma referência àquela que considero uma de suas principais obras: Eichmann em Jerusalém (ou a Banalidade do Mal)

No genocídio, uma civilização em colapso

Por que as bombas continuam caindo e o Ocidente tolera a mão macabra de Tel-Aviv? Toda a sua moralidade é uma mentira? Ou ele é Israel, intoxicado de supremacismo e convencido de que os não-brancos nada valem, quando frágeis?

Chris Hedges, Outras Palavras (expandir)

Não há surpresas em Gaza. Cada ato horripilante do genocídio de Israel foi anunciado antecipadamente. Tem sido assim há décadas. A expulsão dos palestinos de suas terras é o coração pulsante do projeto colonial de Israel. Esta espoliação teve momentos históricos dramáticos — 1948 e 1967 — quando grandes partes da Palestina histórica foram tomadas e centenas de milhares de palestinos sofreram “limpeza étnica”. O processo também ocorreu de forma crônica — o roubo em câmera lenta de terras e a limpeza étnica constante na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental.

A incursão em 7 de outubro em Israel, feita pelo Hamas e outros grupos de resistência, que deixou 1.154 israelenses, turistas e trabalhadores migrantes mortos e cerca de 240 reféns, deu a Israel o pretexto para o que há muito anseia — o apagamento total dos palestinos.

Israel derrubou 77% das instalações de saúde em Gaza, 68% da infraestrutura de telecomunicações, quase todos os prédios municipais e governamentais, centros comerciais, industriais e agrícolas, quase metade de todas as estradas, mais de 60% das 439.000 casas de Gaza, 68% dos edifícios residenciais — o bombardeio da torre Al-Taj na Cidade de Gaza em 25 de outubro matou 101 pessoas, incluindo 44 crianças e 37 mulheres, e feriu centenas — e pulverizou campos de refugiados. O ataque ao campo de refugiados de Jabalia em 25 de outubro matou pelo menos 126 civis, incluindo 69 crianças, e feriu 280. Israel danificou ou destruiu as universidades de Gaza, que agora estão todas fechadas, e 60% de outras instalações educacionais, incluindo 13 bibliotecas. Também destruiu pelo menos 195 locais de patrimônio, incluindo 208 mesquitas, igrejas e os Arquivos Centrais de Gaza, que continham 150 anos de registros e documentos históricos.

Os aviões de guerra, mísseis, drones, tanques, projéteis de artilharia e canhões navais de Israel pulverizam diariamente Gaza — que tem apenas 32 quilômetros de comprimento e oito de largura — em uma campanha de terra arrasada não vista desde a guerra no Vietnã. Ele lançou 25.000 toneladas de explosivos — equivalente a duas bombas nucleares — em Gaza, com muitos alvos selecionados por Inteligência Artificial. Lança munições não guiadas (“bombas burras”) e bombas de 1 tonelada, “perfuradoras de bunker” em campos de refugiados e centros urbanos densamente povoados, bem como nas chamadas “zonas seguras” — 42% dos palestinos mortos estavam nessas “zonas seguras” onde foram instruídos por Israel a fugir. Mais de 1,7 milhão de palestinos foram deslocados de suas casas, obrigados a buscar refúgio em abrigos superlotados da UNRWA, corredores e pátios de hospitais, escolas, tendas ou ao ar livre no sul de Gaza, muitas vezes vivendo ao lado de poças fétidas de esgoto bruto.

Israel matou pelo menos 32.705 palestinos em Gaza, incluindo 13.000 crianças e 9.000 mulheres. Isso significa que Israel está matando até 187 pessoas por dia, incluindo 75 crianças. Matou 136 jornalistas, muitos – se não a maioria deles – deliberadamente alvejados. Matou 340 médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde — 4% do pessoal de saúde de Gaza. Esses números não refletem o quadro real de mortes, uma vez que apenas são contdos os mortos registrados em necrotérios e hospitais, a maioria dos quais não funcionam mais. O número de mortos, quando se incluem os desaparecidos, é bem superior a 40.000.

Os médicos são obrigados a amputar membros sem anestesia. As pessoas com condições médicas graves — câncer, diabetes, doenças cardíacas, renais — morreram por falta de tratamento ou morrerão em breve. Mais de cem mulheres dão à luz todos os dias, com pouca ou nenhuma assistência médica. Os bortos espontâneos aumentaram em 300%. Mais de 90% dos palestinos em Gaza sofrem de insegurança alimentar grave, com pessoas comendo ração animal e grama. Crianças estão morrendo de fome. Escritores, acadêmicos, cientistas palestinos e seus familiares foram rastreados e assassinados. Mais de 75.000 palestinos foram feridos, muitos dos quais ficarão aleijados para o resto da vida.

“70% das mortes registradas foram de mulheres e crianças,” escreve Francesca Albanese, a Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos no Território Palestino ocupado desde 1967, em seu relatório emitido em 25 de março. “Israel não foi capaz de provar que os restantes 30%, ou seja, os homens adultos, eram combatentes ativos do Hamas — uma condição necessária para que fossem alvejados legalmente. No início de dezembro, os assessores de segurança de Israel afirmaram ter matado “7.000 terroristas” em uma fase da campanha em que menos de 5.000 homens adultos no total haviam sido identificados entre as vítimas, implicando assim que todos os homens adultos mortos eram “terroristas”.

Israel usa truques linguísticos para negar a qualquer pessoa em Gaza o status de civil e a qualquer edifício — incluindo mesquitas, hospitais e escolas — status protegido. Todos os palestinos são rotulados como responsáveis pelo ataque em 7 de outubro ou descartados como escudos humanos para o Hamas. Todas as estruturas são consideradas alvos legítimos por Israel porque são supostamente centros de comando do Hamas ou alegadamente abrigam combatentes do Hamas.

Essas acusações, escreve Albanese, são um “pretexto” usado para justificar “o assassinato de civis sob o manto de uma legalidade aparente, cuja abrangência total expõe intenção genocida”.

Em escala, não vimos um ataque aos palestinos dessa magnitude, mas todas essas medidas — o assassinato de civis, o desapossamento de terras, detenção arbitrária, tortura, desaparecimentos, restrições impostas a cidades e vilarejos palestinos, demolições de casas, revogação de permissões de residência, deportação, destruição da infraestrutura que mantém a sociedade civil, ocupação militar, linguagem desumanizadora, roubo de recursos naturais, especialmente aquíferos — têm há muito tempo definido a campanha de Israel para erradicar os palestinos.

A ocupação e o genocídio não seriam possíveis sem os Estados Unidos, que dão a Israel US$ 3,8 bilhões em assistência militar anualmente e agora estão enviando outros US$ 2,5 bilhões em bombas, incluindo 1.800 bombas de 1 tonelada MK84, 500 bombas de 250 kg. MK82 e aviões de combate. Isso, também, é nosso genocídio.

O genocídio em Gaza é a culminação de um processo. Não é um ato. O genocídio é o desenlace previsível do projeto colonial de assentamento de Israel. Está codificado no DNA do Estado de apartheid de Israel. É onde Israel queria acabar.

Os líderes sionistas são francos sobre seus objetivos.

O ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, após 7 de outubro, anunciou que Gaza não receberia “nenhuma eletricidade, nenhum alimento, nenhuma água, nenhum combustível”. O ministro das relações exteriores de Israel, Israel Katz, disse: “Ajuda humanitária para Gaza? Nenhum interruptor elétrico será ligado, nenhuma hidrante de água será aberta.” Avi Dichter, o ministro da Agricultura, referiu-se ao assalto militar de Israel como “a Nakba de Gaza”, referindo-se à Nakba, ou “catástrofe”, que entre 1947 e 1949, expulsou 750.000 palestinos de suas terras e viu milhares massacrados por milícias sionistas. O membro do Likud da Knesset israelense Revital Gottlieb postou em sua rede social: “Derrubar prédios!! Bombardear sem distinção!!… Arrasar Gaza. Sem misericórdia! Desta vez, não há espaço para misericórdia!” Para não ficar para trás, o ministro do patrimônio Amichai Eliyahu apoiou o uso de armas nucleares em Gaza como “uma das possibilidades”.

A mensagem da liderança israelense é inequívoca. Aniquilar os palestinos da mesma forma que aniquilamos os nativos americanos, os australianos aniquilaram os povos das Primeiras Nações, os alemães aniquilaram os herero na Namíbia, os turcos aniquilaram os armênios e os nazistas aniquilaram os judeus.

Os detalhes são diferentes. O processo é o mesmo.

Não podemos alegar ignorância. Sabemos o que aconteceu com os palestinos. Sabemos o que está acontecendo com os palestinos. Sabemos o que acontecerá com os palestinos.

Mas é mais fácil fingir. Fingir que Israel permitirá a entrada de ajuda humanitária. Fingir que haverá um cessar-fogo. Fingir que os palestinos voltarão para suas casas destruídas em Gaza. Fingir que Gaza será reconstruída. Fingir que a Autoridade Palestina administrará Gaza. Fingir que haverá uma solução de dois Estados. Fingir que não há genocídio.

O genocídio, que os EUA estão financiando e sustentando com envios de armas, diz algo não apenas sobre Israel, mas sobre nós, sobre a civilização ocidental, sobre quem somos como povo, de onde viemos e o que nos define. Diz que toda a nossa moralidade autoexaltada e respeito pelos direitos humanos é uma mentira. Diz que pessoas não brancas, especialmente quando são pobres e vulneráveis, não contam. Diz que suas esperanças, sonhos, dignidade e aspirações por liberdade não têm valor. Diz que garantiremos a dominação global por meio de violência racializada.

Essa mentira — que a civilização ocidental é baseada em “valores” como respeito pelos direitos humanos e pelo Estado de direito — é uma que os palestinos, e todos aqueles no Sul Global, bem como os povos originários americanos e os afro-americanos e latinos, conhecem há séculos. Mas, com o genocídio de Gaza transmitido ao vivo, essa mentira é impossível de sustentar.

Não interrompemos o genocídio de Israel porque somos Israel, infectados pelo supremacismo branco e intoxicados por nossa dominação da riqueza global e o poder de obliterar outros com nossas armas industriais. Lembre-se do colunista do The New York Times, Thomas Friedman, dizendo a Charlie Rose na véspera da guerra no Iraque que os soldados americanos deveriam ir de casa em casa de Basra a Bagdá e dizer aos iraquianos “chupem aqui”! Esse é o verdadeiro credo do império dos EUA.

O mundo fora das fortalezas industrializadas do Norte Global está ciente de que o destino dos palestinos é o destino deles. À medida que a mudança climática ameaça a sobrevivência, à medida que os recursos se tornam escassos, à medida que a migração se torna um imperativo para milhões, à medida que as colheitas agrícolas diminuem, à medida que as áreas costeiras são inundadas, à medida que as secas e incêndios florestais proliferam, à medida que os Estados fracassam, à medida que movimentos de resistência armada surgem para lutar contra seus opressores junto com seus representantes, o genocídio não será uma anomalia. Será a norma. Os vulneráveis e pobres da terra, aqueles que Frantz Fanon chamou de “os deserdados da terra”, serão os próximos palestinos.  

Chris Hedges

Chris Hedges, jornalista e professor, escreveu 11 livros, incluindo "Days of Destruction, Days of Revolt", em parceria com o cartunista Joe Sacco

Mídia adota discurso privatista e depreciativo sobre educação pública

Thaís Rodrigues Marin analisou mais de mil textos sobre ensino básico publicados em jornal paulistano

Adriana Vilar de Menezes (texto), Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti (fotos), Jornal da Unicamp, via Lidiane, do SinproSp (expandir

Ao analisar 1.197 artigos de opinião e 145 editoriais publicados pelo jornal Folha de S.Paulo entre 2005 e 2020, a pesquisadora Thais Rodrigues Marin se surpreendeu: encontrou nos textos uma postura reiterada de desqualificação do sistema brasileiro de educação pública, em ataques que atingiram também os professores dessa rede. A pesquisadora já esperava, por conta do recorte que fez para realizar seu doutorado, na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, deparar-se com essa insistente narrativa privatista. Marin, contudo, não previu o tom dos textos, um dos elementos a confirmar sua conclusão sobre o papel da grande imprensa brasileira na disseminação desse discurso em relação à educação básica no país.

“Embora já soubesse que encontraria falas dizendo que políticas educacionais das quais participam atores não estatais são melhores ou mais eficientes, porque essa já era a hipótese da minha pesquisa, eu me surpreendi com o modo como isso apareceu nos textos. São recorrentes as expressões exageradamente negativas, catastróficas e mesmo grosseiras para caracterizar a educação pública, tais como ‘tragédia’, ‘desastre’, ‘fracasso’ e ‘mediocridade’. Fiquei impressionada, pois não esperava encontrar esse tipo de registro em um dos veículos mais importantes do país, principalmente nos editoriais, porque esses deveriam abordar o debate político de modo mais qualificado e menos espetacularizado.”

Orientada pela professora Theresa Maria de Freitas Adrião, que há mais de 20 anos estuda a privatização da educação e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (Greppe), Marin analisou um volume expressivo de artigos e editoriais publicados ao longo de 16 anos. Seu objetivo: localizar o e dar materialidade ao que a tese qualifica como “discurso da privatização da educação básica”, que adquiriu caráter de senso comum e sobre o qual, até então não havia uma pesquisa aprofundada no país.

Seis narrativas que se repetem

Marin utilizou uma metodologia de análise de conteúdo categorial, com a qual definiu temáticas para classificar os textos, identificando seis diferentes formulações discursivas que se repetiram ao longo do período. Cada categoria corresponde a um tipo de narrativa, direta ou indiretamente, favorável à privatização da educação. A primeira delas – “a mais expressiva”, nas palavras da pesquisadora – é a da desqualificação da educação pública de modo geral no Brasil e a da consequente necessidade de reformá-la. “Esse ideário de crise da má qualidade respalda as iniciativas de reforma da educação, ou reforma empresarial da educação, que temos hoje.”

A pesquisadora Thais Rodrigues Marin: localizando o “discurso da privatização da educação básica”

A segunda narrativa, a do financiamento, defende não faltar recursos para a educação básica, mas faltar eficiência na gestão do Estado. A terceira, a de desqualificação dos professores da escola pública, descreve-os como acomodados, malformados e corporativistas. “Esse discurso coloca o professor como inimigo e nega sua condição de trabalhador.”

A avaliação educacional relacionada a mecanismos de vigilância do trabalho do professor e de mensuração em larga escala configura a quarta narrativa identificada na pesquisa. “Isso é reflexo do modo de funcionamento corporativo e meritocrático, de mensurar o trabalho com métricas, para premiar ou punir. A qualidade da educação passa a significar posições em rankings, e o professor é responsabilizado por esses resultados, desconsiderando-se problemas estruturais que também afetam o processo educativo”, explica Marin.

A narrativa das parcerias educacionais, recorrente nos artigos, surge como a quinta identificada pela pesquisadora. “Isso tem relação direta com a privatização e fica até mais fácil de entender, porque coloca os atores não estatais como supostamente mais capazes para oferecer soluções e diz como eles são importantes para que a política educacional seja de melhor qualidade.”

A sexta e última narrativa descrita pela pesquisadora trata das finalidades educacionais. “Essa narrativa resume-se a colocar na conta da escola a superação das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, defendendo que a suposta má qualidade da educação seria a causa da perpetuação de desigualdades e do arrefecimento da economia. Isso é a teoria do capital humano alinhada ao discurso neoliberal”, afirma Marin.

Endossar, legitimar e naturalizar

As narrativas ajudam a endossar, legitimar e consolidar uma opinião pública favorável aos processos e práticas privatistas, avalia a autora da tese. “Com a repetição, essas narrativas vão se tornando hegemônicas, vão se naturalizando, como se fosse algo dado. Essa é a grande história que se conta sobre a educação básica pública brasileira e que ganha esse caráter de verdade, de prova concreta. Em editoriais, que seriam a voz do próprio jornal, ou ao dar espaço para autores de artigos, a mídia não está só relatando a história. Ela transforma-se em um ator que participa dessa história.”

Para Marin, a maior contribuição da sua pesquisa foi conseguir localizar o discurso privatista nessas narrativas divulgadas pelos meios de comunicação “para poder desconstruir essa ideia e mostrar que esse é um discurso ideológico, que isso não é uma verdade incontestável”. Na disputa política em torno do assunto, a pesquisa realizada na Unicamp ajuda a levantar dados concretos, acredita a pesquisadora. “Porque a disputa política é também discursiva, sobre os modos de se pensar a realidade. A gente não pode esquecer esse caráter ideológico. A linguagem não é neutra nunca, menos ainda ao pautar a agenda política.”

Em sua conclusão, Marin defende que essa disputa não se trava apenas no debate sobre a alocação de recursos ou instrumentos materiais, mas também no embate acerca do conceito de educação pública, em torno de determinar aquilo que é ou não válido no debate educacional.

“A tese é uma importante e inovadora fonte de informação para o entendimento de um fenômeno hoje global. Ela desmistifica o modus operandi de seus defensores: a generalização de narrativas em defesa da privatização da educação que se apoiam em aparentes ‘evidências’”, diz Adrião.

Heranças históricas

A educação escolar no Brasil já nasceu privatizada, e isso por intermédio da Igreja Católica, especificamente a Companhia de Jesus. “Sempre houve um ator não estatal na política educacional brasileira”, pontua Marin.

Os processos de defesa da chamada privatização da educação, no entanto, começaram na década de 1990. Segundo a pesquisadora, o conceito de privatização é um fenômeno contemporâneo no qual se faz a transferência de recursos ou de responsabilidades do Estado para atores não estatais, instituindo políticas moldadas segundo os interesses desses atores.

“Desde os anos 90, o Estado brasileiro vem sofrendo um processo de reestruturação e enxugamento e vem se abrindo a novos atores, que passam a participar também da política educacional”, descreve.

Segundo Marin, sua orientadora identifica entre esses novos atores as corporações transnacionais, os fundos de investimento de risco, a filantropia de risco (institutos, fundações que “são como braços sociais de empresas ou de famílias, que hoje no Brasil são os mais atuantes”) e os grupos de advocacy, redes de empresários e entidades do terceiro setor formadas com o objetivo de influenciar os rumos da política educacional. Marin cita como exemplo dessas entidades a Parceiros da Educação e a Todos Pela Educação.

“Há fundações e institutos, por exemplo, com muito aporte financeiro para atuar na educação. Em algumas situações, com uma capacidade maior do que a de governos locais”, diz a pesquisadora. “No contexto global, a filantropia de risco entende a política, nesse caso a educacional, como um investimento social. Eles querem obter resultados mensuráveis e algum retorno institucional, seja para a imagem da entidade, seja, no limite, na forma de lucro.”

GRUPO MAPEIA ATORES PRIVADOS

“No âmbito da produção científica, a contraposição às narrativas privatistas da educação pode e deve ser feita por meio da realização de pesquisas com densidade teórica e empírica, como a de Thaís Marin”, afirma Adrião. A pesquisa indicou haver um discurso hegemônico sobre a privatização, diz a professora. E esse é o tema central dos trabalhos realizados pelo Greppe, grupo que inclui docentes, pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação e educadores de três universidades públicas: Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A professora Theresa Maria de Freitas Adrião, coordenadora do Greppe: por um “jornalismo mais informado e menos ideológico”

O Greppe dispõe de levantamentos e mapeamentos de todo o Brasil sobre as políticas estaduais de educação e a ingerência de atores privados nessas políticas, especialmente a partir de 2005, depois da Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 – 2001. A partir dessa lei, ficou estabelecido um limite de até 60% dos gastos dos governos estaduais com as folhas salariais, o que comprometeu políticas para a educação pública, favoreceu a transferência de atividades estatais para o setor privado e limitou os investimentos na valorização de profissionais da educação. As pesquisas do Greppe indicam que organizações privadas responsáveis por disseminar o discurso de desqualificação da escola pública influenciam as políticas educacionais das redes estaduais e municipais de ensino, dificultando a construção de uma política educacional focada no ensino público de qualidade.

Segundo a análise de Adrião, nos últimos anos houve um acirramento do reacionarismo. “O que é estatal e tem caráter universal, ou seja, o que é democrático e não discriminatório, como é a concepção de educação pública no Brasil, passou a ser desqualificado.” A docente também acredita ser importante que as universidades e as instituições científicas divulguem suas pesquisas e disputem pautas junto aos meios de comunicação de massa. “É preciso que haja uma ampliação da presença de pesquisadores como fontes para um jornalismo mais informado e menos ideológico”, defende a professora.

Além da formação de pesquisadores, o Greppe também atua junto a entidades da sociedade civil vinculadas à defesa da educação pública e à difusão do conhecimento científico construído com base em pesquisas. Em 2019, o grupo criou a Rede Latino-Americana e Africana de Pesquisadores em Privatização da Educação (Relaappe), entidade que hoje coordena.

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O risco é que a IA perpetue preconceitos de gênero

Entrevista com Eleonra Lamm, IHU (expandir)

Na foto, Eleonara Lamm

A Inteligência Artificial não implica apenas grandes avanços. Ela implica também o aprofundamento das desigualdades e dos preconceitos de gênero e o risco de que, no futuro, uma grande proporção de mulheres fique fora do mercado de trabalho. É o que alerta a advogada Eleonora Lamm, doutora em Bioética e Direito, responsável pelo setor de ciências sociais e humanas da UNESCO para a América Latina e o Caribe. “As Nações Unidas preveem que as mulheres perderão 5 empregos a cada emprego conquistado através da Indústria 4.0, em comparação com a perda de 3 a cada emprego conquistado entre os homens”, alerta Lamm. E jogue fora mais dados: um estudo de 133 sistemas de Inteligência Artificial implantados em diferentes setores econômicos entre 1988 e 2021 revelou que 44% apresentavam preconceitos de gênero e 26%, tanto preconceitos de gênero como raciais.

“A agência de aplicação da lei da IA ​​da União Europeia prevê que até 90% do conteúdo da internet poderá ser criado ou editado pela IA até 2026, o que significa que o impacto do preconceito na IA não crescerá mais”, salienta. Ao mesmo tempo, a presença de mulheres na área da IA ​​é minoritária. Globalmente, apenas 22% dos profissionais de IA são mulheres, contrastando ainda mais com os quase 14% de autoras na área de IA e os 18% que ocupam cargos de palestrantes em conferências de IA. Esse rumo pode ser mudado ou já é inevitável? 

A desigualdade de gênero é replicada no mundo da IA. Os dados são convincentes. O relatório do Instituto Alan Turing, “Onde estão as mulheres?”, destaca que apenas 10 a 15% dos investigadores de aprendizagem automática nas principais empresas tecnológicas são mulheres. Este desequilíbrio estende-se ao mercado de trabalho, onde os recrutadores de empresas tecnológicas no Vale do Silício relatam que o conjunto de candidatos a cargos técnicos em IA e ciência de dados inclui frequentemente menos de 1% de mulheres, diz Lamm, especialista em ética e IA.

A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada por Página|12 em 03-04-2024.


Eis a entrevista.

Dado que a IA já desempenha um papel crucial em diferentes aspectos da nossa vida quotidiana, com uma influência que se espera que aumente no futuro, é importante analisar mais detalhadamente a forma como os preconceitos na IA podem influenciar e exacerbar as desigualdades de gênero. Que exemplos específicos você pode mencionar?

A principal preocupação é o risco de a IA poder perpetuar ou mesmo amplificar os preconceitos e as disparidades de gênero, prejudicando o progresso na igualdade de gênero. Os sistemas de IA aprendem com dados históricos, que podem refletir e perpetuar preconceitos sociais existentes. Por exemplo, se os dados históricos de contratação mostram preconceitos de gênero nos processos de seleção, uma ferramenta de recrutamento alimentada por IA e treinada com base nestes dados pode perpetuar esses preconceitos, recomendando candidatos com base em critérios tendenciosos.

Isso já aconteceu, por exemplo, na Amazon. Os algoritmos podem codificar e amplificar inadvertidamente preconceitos presentes nos dados usados ​​para treiná-los ou nas suposições conscientes ou inconscientes dos desenvolvedores. Por exemplo, um estudo descobriu que modelos linguísticos alimentados por IA treinados em grandes conjuntos de dados da internet podem mostrar preconceitos de gênero na sua geração linguística, muitas vezes associando certas profissões ou funções a gêneros específicos. A sub-representação das mulheres e de outros grupos marginalizados na indústria tecnológica pode levar a preconceitos no desenvolvimento da IA.

As equipes que não têm diversidade podem ignorar ou não abordar adequadamente as preocupações de gênero nos sistemas de IA, perpetuando inadvertidamente preconceitos. Uma plataforma de publicidade alimentada por IA pode mostrar desproporcionalmente anúncios de emprego para cargos com altos salários a utilizadores do sexo masculino com base em tendências históricas – ou linguagem codificada masculina – perpetuando assim o estereótipo de que certas profissões são específicas de gênero. Da mesma forma, robôs de IA e assistentes de voz costumam ser lançados com vozes femininas por padrão, reforçando o preconceito de que o serviço é um recurso feminino.

Que fatores influenciam a reprodução destes preconceitos de gênero?

O preconceito de sexo e gênero é encontrado nos dados com os quais o algoritmo é concebido ou com os quais o programa aprende. A questão é como evitar que este preconceito apareça e, se aparecer, como eliminá-lo. As soluções possíveis advêm essencialmente da própria tecnologia, mas mais profundamente das mudanças culturais que se tornam fundamentais e que inevitavelmente têm impacto na tecnologia.

Agora, a partir da ética da IA ​​também pode e deve contribuir. Por fim, na medida em que o desenho e a aplicação de um sistema baseado em IA ocorrem dentro de um sistema jurídico, o sistema jurídico pode estabelecer medidas aplicáveis ​​ao longo da vida do sistema, bem como adotar uma série de consequências no caso da existência de situações discriminatórias derivadas da existência de preconceito de sexo e gênero devido aos dados com os quais o sistema de IA é tratado.

Como poderiam ser evitados ou eliminados?

A resposta a estes riscos exige medidas proativas, como conjuntos de dados diversos e representativos, transparência e responsabilização algorítmica, equipes diversificadas no desenvolvimento da IA ​​e monitorização e avaliação contínuas dos sistemas de IA quanto a preconceitos. Estes aspectos estão incluídos no capítulo de gênero da Recomendação da UNESCO sobre a Ética da IA, lançada em novembro de 2021, juntamente com um esboço claro de valores e princípios que acompanham as diferentes áreas de ação política. O objetivo desta recomendação é fornecer orientação aos países para responderem aos impactos atuais e potenciais, benéficos e prejudiciais, das diversas aplicações das tecnologias de IA.

Quais são os riscos?

A IA cria o risco de ter um impacto negativo no empoderamento econômico das mulheres, nas diversidades sexuais e de gênero e nas oportunidades do mercado de trabalho, ao conduzir à automatização do trabalho. Uma investigação recente do Fundo Monetário Internacional e do Women's Policy Research Institute concluiu que as mulheres correm um risco significativamente maior de despedimento devido à automatização do trabalho em comparação com os homens.

À medida que mais empregos pouco qualificados são automatizados, ter um nível mais elevado de educação e competências será cada vez mais procurado no mercado de trabalho. A ONU prevê que as mulheres perderão 5 empregos a cada emprego ganho através da Indústria 4.0, em comparação com os homens, que perderão 3 empregos a cada emprego ganho. De acordo com um estudo colaborativo de 29 programas das Nações Unidas, metade dos empregos atuais desaparecerão até 2050.

Por outras palavras, mais de 60% das crianças que ingressam hoje na escola primária poderão acabar por trabalhar em empregos que ainda não existem. Portanto, é essencial que as mulheres e as diversidades sexuais e de gênero não sejam deixadas para trás em termos de novas estratégias de formação para mitigar o impacto da automação na perda de empregos. Nos países latino-americanos, a entrada das mulheres no mercado de trabalho foi um dos fatores mais importantes para o crescimento do emprego nas últimas décadas.

A falta de participação feminina no setor produtivo está literalmente a custar dinheiro às economias da região: a redução desta disparidade de gênero aumentaria o PIB dos países da América Latina e do Caribe em 4%.

Infelizmente, as mulheres ainda escolhem menos carreiras relacionadas com ciência, tecnologia, engenharia e matemática...

Assim é. Além disso, os dados disponíveis mostram que as mulheres fazem uma utilização mais limitada dos dispositivos digitais e da internet, incluindo a participação na gig economy. Este atraso nas competências digitais limita a sua capacidade de obter os benefícios que esta tecnologia oferece. Para realizar com sucesso as transições necessárias para a força de trabalho do futuro, as mulheres e as diversidades sexuais e de gênero precisam de adquirir aptidões e competências tecnológicas adequadas.

É vital que tenham mais influência na criação e utilização da tecnologia. Só desta forma poderemos contribuir para a criação de um futuro igualitário que aborde as preocupações sobre os preconceitos de gênero que se insinuam nas novas tecnologias, por exemplo na concepção de algoritmos de IA.

Você está otimista… ou acha que a IA aprofundará as desigualdades de gênero?

Quero ser otimista em relação à IA, porque sou otimista em relação à vida. Mas estou ciente de que este otimismo depende do quão éticos e responsáveis forem o desenvolvimento e a utilização da IA. Tenho muitos exemplos de boas práticas: a IA pode ajudar a combater o assédio sexual. A empresa de IA NexLP desenvolveu #MeTooBots, que monitora as comunicações entre colegas e detecta bullying e assédio sexual em documentos, e-mails e chats.

A IA pode ajudar na saúde sexual e reprodutiva, como o Bloomlife, que fornece informações médicas valiosas durante o parto. Ou para abordar as desigualdades de gênero, como a Ellevest, que oferece uma plataforma de investimento online concebida por mulheres para mulheres, para combater o analfabetismo financeiro e ajudar a colmatar a disparidade de investimento de gênero.

Globalmente, aproveitar as tecnologias de IA para promover os direitos das mulheres e melhorar o seu acesso às oportunidades requer uma abordagem proativa e holística ao desenvolvimento e implantação da IA ​​que dê prioridade à inclusão, à igualdade de gênero, à responsabilização, à transparência, ao respeito pelos direitos humanos, integrada na concepção e utilização éticas.

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A missa de domingo na Catedral da Sé na cidade do Crato começa pontualmente às 19 horas. Na noite de 6 de fevereiro, cerca de 250 fiéis ocupavam os bancos enquanto aguardavam o padre Raimundo Pedro, que acabou se atrasando. Quando finalmente chegou ao altar, às 19h11, o pároco não precisou se explicar. Pouco antes do começo da missa, um ajudante paroquial deu os primeiros recados da noite e uma pista do motivo da demora: “Temos hoje aqui a presença do juiz Sergio Moro e do senador Eduardo Girão”, disse. O público recebeu o aviso com indiferença. Quase ninguém olhou ao redor tentando localizar os visitantes ilustres.

O padre rezou a missa normalmente, mas, antes da bênção final, achou que devia justificar a presença de Moro e sua comitiva, que se acomodaram nos bancos intermediários, nem na frente nem nos fundos da igreja. Disse que, minutos antes da missa, fora procurado na sacristia pelo filho de um “nobre cidadão cratense”, que estava acompanhado do ex-juiz e de outras autoridades. Houve silêncio. “Nosso costume, como brasileiro, como nordestino, como cearense, é de acolher bem a todos. Sejam bem-vindos”, disse o pároco, convocando os fiéis a bater palmas para os visitantes. O aplauso durou sete segundos.

A visita ao sertão do Cariri cearense foi a primeira investida de Moro em redutos petistas desde que se filiou ao Podemos e lançou-se como candidato presidencial. No Crato, em 2018, o petista Fernando Haddad teve 84,6% dos votos válidos no segundo turno. O petista Camilo Santana concorreu ao governo do Ceará e venceu em primeiro turno, com 93,29%. O prefeito do Crato, outro que foi eleito com folga, é Zé Ailton, também do PT. A comitiva de Moro não tinha nem mesmo um aliado na cidade para organizar a visita. Precisou recorrer ao tucano Raimundo Bezerra Filho, rebento do tal “nobre cidadão cratense” a que se referiu o padre, para fazer as vezes de anfitrião na cidade. 

Apesar do domínio petista, Moro considerava o Crato uma visita indispensável porque a cidade é berço de Padre Cícero. Como tem se apresentado como defensor dos “valores cristãos”, acenando a um só tempo para evangélicos e católicos, Moro contava ainda com mais um bônus. Três dias antes, o presidente Jair Bolsonaro, durante uma live, dissera que Padre Cícero era “de Pernambuco” e, na dúvida sobre sua cidade natal, pediu ajuda a assessores nordestinos presentes, usando uma expressão pejorativa: “Cheio de pau de arara aqui e não sabem em que cidade fica Padre Cícero, pô?”

Moro é um dos brasileiros mais conhecidos do eleitor. Segundo o Datafolha, 94% da população brasileira sabe quem é o ex-juiz da Lava Jato. No entanto, sua intenção de voto, de acordo com a mais recente pesquisa do Ipespe, encomendada pela XP Investimentos, não passa de 8% no país, patamar que se mantém desde janeiro. Pouco depois da visita de Moro ao Ceará, o Ipespe fez sua última sondagem no Nordeste, mas a coincidência não o beneficiou: o ex-juiz cravou 6% de preferência na região, oscilando apenas 1 ponto para cima, dentro da margem de erro.

Com a popularidade de Moro patinando, não é surpreendente que o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), um de seus cabos eleitorais no Nordeste, esteja vendo seu próprio eleitorado minguar. O senador aderiu à campanha do ex-juiz e, desde então, tem observado em suas redes sociais que vem perdendo parte de seus apoiadores, cuja maioria é formada por bolsonaristas. Girão ingressou na política defendendo pautas caras à extrema direita, como o combate ao que os conservadores chamam de “ideologia de gênero”. Em sua primeira tentativa, alcançou o Senado, depois de declarar voto em Bolsonaro. Ele se diz “independente”, sem compromisso com o governo, embora tenha obtido certa notoriedade entre apoiadores do presidente ao insistir diariamente, durante a CPI da Pandemia, que se investigasse também o consórcio do Nordeste (criado por governos de oposição para fazer frente à Covid), e não apenas as suspeitas sobre Bolsonaro. Agradou ainda mais quando se revelou um defensor da cloroquina.  

Como todos os apóstolos da terceira via, Girão acha que o eleitor está insatisfeito com as opções de Lula e de Bolsonaro, e que Moro poderá deslanchar. Argumenta que, quando se candidatou ao Senado, seus números também eram desanimadores, mas ele continuou firme e conseguiu a vaga que, no início, todos diziam que estava destinada a Eunício Oliveira (MDB-CE), então presidente do Senado. A comparação ignora as diferenças brutais entre uma eleição para senador e uma para presidente, mas, acima de tudo, não toca na raiz de um fenômeno negativo: o juiz Sergio Moro chegou a ter 64% de aprovação, no auge da Lava Jato, em 2016. Como ministro da Justiça de Bolsonaro, bateu em 59%. Hoje, como presidenciável, sua intenção de voto não chega a dois dígitos.

Detestado à esquerda, em boa medida pelo seu empenho em denunciar petistas e prender Lula, e hostilizado pelos extremistas de direita, por ter rompido com Bolsonaro, Moro se apresentou como um candidato natural da “terceira via”, o apelido que se dá a tudo que não é Lula nem Bolsonaro. Mas sua candidatura é um paradoxo na origem. Bolsonarista de primeira hora, Moro aderiu ao governo antes da vitória eleitoral, ficou dezesseis meses como ministro e saiu atirando: denunciou que o presidente interferia nos rumos da Polícia Federal para beneficiar sua família e seus amigos. Desde então, virou um ex-bolsonarista, mas nunca chegou a ser um antibolsonarista – como mostra sua campanha, seus aliados e seus eleitores.

Durante os três meses de apuração desta reportagem, Moro não quis dar entrevista à piauí. Não foi por falta de tempo. Nesse período, chegou a dar três entrevistas à Rádio Jovem Pan, cuja linha editorial é favorável ao governo Bolsonaro. Foi o veículo com o qual falou com mais frequência. Em compensação, permitiu que a revista acompanhasse toda a sua agenda pública em cinco cidades – duas do Nordeste, três do Sudeste –, com uma única exceção. Em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, durante uma visita à Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), uma entidade do terceiro setor, Moro pediu que eu deixasse a sala para que conversasse um “assunto sigiloso” com a diretora do local.

Os eleitores de Moro estão em duas categorias. Uma pequena parcela é composta por quem votou branco ou nulo em 2018 porque não queria nem Bolsonaro nem o PT. E uma enorme maioria é formada por quem votou em Bolsonaro e se arrependeu. A campanha do ex-juiz trabalha com dados segundo os quais 90% do seu eleitorado, hoje, é composto de ex-eleitores de Bolsonaro.

No Nordeste, os apoiadores engajados de Moro são pouco numerosos, mas não menos estridentes que os de Bolsonaro. Quando o ex-juiz desembarcou em Juazeiro do Norte usando seu uniforme de campanha – camisa branca, calça jeans azul-marinho da Hugo Boss e um tênis da Lacoste –, não havia militância à sua espera, exceto pelos irmãos gêmeos Cosmo e Damião Silva Lemos, dois senhores aposentados de 68 anos, ex-tucanos, ex-bolsonaristas e hoje filiados ao Podemos. Cosmo e Damião gritavam “Sergio Moro presidente” no aeroporto, quase ininterruptamente, e acompanharam a comitiva até a primeira parada, no Horto do Padre Cícero, onde há uma estátua em homenagem ao religioso. Diante do monumento, quando um jornalista local gravou um áudio dizendo que a visita estava “vazia”, Cosmo e Damião se enfureceram. “Petista! Comunista!”, gritaram, fazendo com que o profissional tivesse de sair do local para poder trabalhar. Ninguém os repreendeu.

No Sudeste, em especial no interior de São Paulo, prevalece a identificação dos eleitores de Moro com as ideias de Bolsonaro. Por isso, o candidato obteve recepção mais calorosa do que no Nordeste, embora tenha trocado a agenda de rua pela agenda de gabinete. Em vez do povo, foi ao empresariado. Moro se sente mais confortável em ambientes controlados. Anda sempre com dois seguranças ao lado. Em São José do Rio Preto, no noroeste paulista, em que Bolsonaro teve 78% dos votos no segundo turno, foi bem recebido. Ao desembarcar na cidade, havia um pequeno grupo de apoiadores no aeroporto. Os empresários do agronegócio, embora ligados ao bolsonarismo, não se negaram a conhecê-lo.

No mesmo dia de sua chegada a Rio Preto, Moro esticou até Catanduva, a 60 km dali, para se encontrar com empresários do setor sucroalcooleiro. Foi recebido para um almoço com cerca de trinta usineiros, em encontro organizado por intermédio de Xico Graziano, consultor de sua campanha, que já integrou governos tucanos e apoiou Bolsonaro. Em sinal de deferência ao convidado, Evandro Gussi, presidente da Única, que faz o lobby do etanol no país e no exterior, viajou da capital paulista a Catanduva – mas teve a cautela de não exagerar na simpatia e se indispor com o governo Bolsonaro.

Moro falou por cerca de uma hora respondendo a perguntas dos usineiros. Disse que, se eleito, fará as reformas econômicas que ninguém fez, elogiou o governo de Michel Temer, “que teve lá seus problemas, mas fez reformas positivas”, e afirmou que a liberdade de Lula é “mau exemplo” e abre espaço para que leis sejam transgredidas, como “invadir propriedade”, um argumento que atinge na veia o agronegócio. Rogério Luchini, da Usina São Domingos, que assistiu à apresentação e fez uma pergunta à qual Moro respondeu com evasivas, diz que não quis pressionar muito o convidado e promete votar nele. Se Moro não for para o segundo turno, escolherá Bolsonaro. “Se ele não estiver, vamos contra o molusco (sic). Não tem outra opção”, avisa.

O pecuarista e ex-ministro de Fernando Collor, Antonio Cabrera, um dos homens mais ricos da região, foi procurado por seu sobrinho, Ben Hur Cabrera, um entusiasta de Moro. Queria que o tio organizasse um encontro de Moro com os pecuaristas de Rio Preto. Cabrera deixou claro que apoia Bolsonaro, mas ajudaria a preparar tudo, desde que não fosse em sua casa, e sim na de sua mãe, Dora, para evitar “desgaste”. Ele também avisou que não poderia ir ao encontro. Os cerca de quinze pecuaristas que compareceram queriam saber o que Moro achava sobre pautas caras ao agronegócio, como a liberação do uso de arma de fogo em propriedades rurais, autorizada por um decreto presidencial em 2019. Moro disse que concordava com a medida, desde que restrita aos donos de terras.

O prefeito da cidade de Rio Preto, o emedebista Edinho Araújo, tampouco se esquivou de uma conversa com o ex-juiz. Compareceu a um evento em sua homenagem organizado pelo Lide, grupo que foi fundado por João Doria, hoje fora da entidade, e que reúne líderes empresariais em torno da defesa da iniciativa privada. Segundo Marcos Scaldelai, presidente da seção local do Lide, o ex-juiz foi convidado a visitar a cidade tão logo sua filiação ao Podemos foi anunciada. Scaldelai explica que os empresários querem escutar o que pessoas “de destaque” na política estão pensando. Temer esteve lá em dezembro passado. Em fevereiro, foi a vez o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, o candidato de Bolsonaro para disputar o governo de São Paulo.

As pessoas “de destaque” de Scaldelai não incluem Lula. “É o perfil do nosso estado, é o perfil do interior de São Paulo. Esquerda o empresário não quer escutar.” A piauí não esteve no jantar, mas o dirigente conta que os presentes, umas duzentas pessoas, ficaram satisfeitos com o ex-juiz. “Acharam que ele deu um salto qualitativo. Evidente que ainda falta massa crítica detalhada. Mas ele mesmo explicou que sua proposta ainda está em construção.” O momento feérico da noite aconteceu quando Moro pediu que levantasse a mão quem apoiava a Lava Jato. Todos de mãos levantadas. Em seguida, pediu que fizesse o mesmo quem achava que Lula era culpado. Todos de mãos levantadas.

Rogerio Gabriel, presidente de uma rede de franquias de educação, é entusiasta de Moro e compareceu ao jantar. Diz que ele moralizou a política e que, embora não tenha muita familiaridade com assuntos econômicos, parece ser inteligente e saberá montar um bom time caso passe para o segundo turno. Gabriel votou em Bolsonaro em 2018, a contragosto, diz ele, pois sua primeira opção era João Amoêdo, candidato do Novo. Mas se animou quando viu sua equipe. “Ele montou um time com [Paulo] Guedes, Moro, Salim Mattar, tinha um projeto claro de privatização”, diz. E relembrou a passagem que lhe pareceu mais relevante do currículo do ministro da Economia: “Além disso, tinha a experiência do Guedes no Chile.” A experiência no Chile foi dar aulas numa universidade que estava sob intervenção militar decretada pela ditadura de Augusto Pinochet. “Aí eu pensei: isso pode funcionar”, conta o empresário, hoje frustrado com a gestão atual. Gabriel diz que Moro e o tucano João Doria são as melhores opções. Mas, caso nenhum deles chegue ao segundo turno, o jeito será votar em Bolsonaro outra vez. “No Lula não voto de jeito nenhum. Vai ter que ser Bolsonaro. E depois ir tomar um chope para esfriar a cabeça…”

“No Sudeste, onde o agronegócio é mais industrializado e os produtores vivem em cidades maiores, é possível que o Moro consiga algum espaço porque Bolsonaro errou demais na condução da pandemia”, diz um aliado do presidente, que conhece bem o agronegócio, e pediu anonimato para não se indispor com o governo. “Mas o produtor rural de botina e chapéu, que é a maior parte do setor no país, esse cara está com Bolsonaro.” Segundo esse aliado, a liberação do uso de arma no campo, o fim da pressão dos movimentos sem-terra, o desmonte da legislação ambiental e o fim das demarcações de terras indígenas são “conquistas” que o setor não está disposto a abandonar. “Há 80% do setor com Bolsonaro não importa o que ele faça. Se ele disser que água não molha, eles vão concordar e acabou.”

Os 423 lugares do Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, estavam quase lotados em 9 de dezembro para receber Sergio Moro, que lançava seu livro Contra o Sistema da Corrupção, de 288 páginas, pelo selo Primeira Pessoa, da editora Sextante. Não se tratava de uma noite de autógrafos comum. Por 95 reais, o apoiador do ex-juiz podia comprar o livro autografado e um ingresso para assistir a um bate-papo entre ele e o jornalista Carlos Nascimento, ex-apresentador do SBT e produtor rural em São Paulo. O lançamento, realizado num reduto histórico da classe artística, provocou protestos. A atriz Ana Beatriz Nogueira cancelou um espetáculo no local. Os atuais gestores do teatro tiveram de vir a público afirmar que, depois de dois anos de pandemia, precisavam sobreviver, não tinham patrocínio e haviam alugado o espaço para a editora.

Na hora marcada, cerca de sessenta pessoas surgiram na entrada do teatro, que fica dentro de um shopping center. Chamaram o pessoal na fila de “fascistas”. “Eles não sabem quem é Sérgio Britto, não sabem nada”, bradava uma manifestante, referindo-se ao consagrado ator e diretor que ajudou a fundar o teatro. Moro entrou pelos fundos. Exemplares do seu livro estavam à venda no teatro, dispostos em frente a um painel de fotografias de peças clássicas encenadas no local. A maioria das imagens era da adaptação de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder, lançada em 1982, em que Fernanda Montenegro interpretava uma estilista que vivia um romance tórrido com uma mulher de classe social inferior, interpretada por Renata Sorrah e, mais tarde, por Christiane Torloni. Na maior fotografia, que servia como pano de fundo para os livros, Torloni estava deitada sobre o palco, com uma perna estendida e outra levemente aberta, enquanto Montenegro se inclinava sobre ela, prenunciando um ato sexual.

O painel destoava do ambiente controlado do evento. Naquela noite, os presentes eram em sua maioria homens brancos, adultos e de meia-idade. Alguns portavam a bandeira do Brasil. Outros, cartazes em homenagem à Lava Jato. Moro iniciou o bate-papo explicando por que decidira escrever a obra. Sugeriu que o lançamento simultâneo do livro e da candidatura presidencial fora uma coincidência. Disse que fazia apenas sessenta dias que decidira voltar ao país – e por dois motivos. “Um é para contar essa história [que está no livro] e o outro é por causa de vocês”, disse, estendendo as mãos para a plateia. Recebeu aplausos. Depois, mencionou que os protestos fora do teatro eram plantados, não espontâneos, mas não indicou quem seriam os plantadores. Tentando explicar por que ingressou no governo Bolsonaro, disse: “Muita gente tinha esperança. Muita gente tinha o sentimento de que havia uma chance de dar certo.”

Moro repetiu seguidas vezes que Lula era culpado e que as condenações estavam sendo derrubadas, não porque ele tenha agido com parcialidade, como decidiu o STF, mas porque o sistema político se beneficiava da corrupção. Arrematou com William Shakespeare. “Corrupção existe em qualquer lugar do mundo. Até mesmo nos países mais íntegros. Até mesmo na Dinamarca. Tem até aquela frase famosa, né? Tem algo de podre no reino da Dinamarca”, disse, referindo-se ao clássico diálogo de Hamlet. O exemplo não foi dos mais precisos, considerando que a corrupção do tipo a que Moro se refere não aparece nem perto do topo da longa lista dos males do Castelo de Elsinore, mas cumpriu o objetivo de reforçar sua imagem de xerife cujo trabalho foi sufocado por interesses inconfessáveis.

Terminado o evento, o público deixou o auditório e postou-se à entrada na esperança de vê-lo partir, mas Moro ficou por cerca de uma hora dentro do teatro recebendo convidados, como o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, e o ator Carlos Vereza, também ele um bolsonarista arrependido. Depois, saiu com alguns membros do Podemos para jantar no hotel Emiliano, em Copacabana. Parecia cansado. Chegara naquela manhã ao Rio, dera uma entrevista para a rádio Tupi, tomara um café na sede do jornal O Globo e encontrara-se com a ex-juíza Denise Frossard e com empresários do setor de combustíveis. Considerou que o dia terminara de forma positiva, com muitas novas filiações à sigla no Rio de Janeiro. “Nosso site caiu. Nosso banco de registros online de filiados está completamente congestionado”, me disse Renata Abreu, a presidente do Podemos, naquela noite.

Sergio Moro decidiu que iria para o governo Bolsonaro durante um churrasco em Curitiba, no dia 23 de outubro de 2018, cinco dias antes do segundo turno. Paulo Guedes voara naquele dia até a capital paranaense para tentar convencê-lo a aceitar o convite. O evento para recepcionar o economista foi no apartamento de um amigo de Moro, Carlos Zucolotto Júnior, considerado um ótimo churrasqueiro. O cardápio da noite foi carneiro. Em seu livro Contra o Sistema da Corrupção, Moro conta que, naquela noite, sinalizou a Guedes que, se Bolsonaro ganhasse, ele aceitaria assumir a pasta da Justiça. Escreveu que sentiu “um misto de entusiasmo pela oportunidade” com “receio” de que sua decisão fosse “mal compreendida” e prejudicasse o trabalho que fizera na Lava Jato. Embora afirme que sempre foi contra as falas misóginas, racistas e homofóbicas, bem como a defesa da ditadura militar e da tortura, amplamente proferidas por Bolsonaro na campanha, Moro não mencionou nada disso como ponto de atenção naquela hora. Disse que consultou as pessoas mais próximas e a maioria recomendou que aceitasse, inclusive sua mulher Rosangela e o amigo Zucolotto Júnior.

Conversei com duas pessoas com quem o ex-juiz se aconselhou nesse período, que falaram sob a condição de manter suas identidades no anonimato. Ambas foram consultadas quando a decisão já estava tomada, embora Moro ainda não tivesse ido ao Rio de Janeiro para dar a resposta afirmativa a Bolsonaro, já então eleito. Ambas o alertaram dos riscos. Uma delas foi procurada por Moro por mensagem de WhatsApp e respondeu que “de maneira alguma” ele deveria aceitar o convite, em razão do perfil autoritário e do histórico do candidato. Moro retrucou que, no ministério, teria mais condições de combater a corrupção sistêmica. O conhecido, que vive nos Estados Unidos, rebateu que essa decisão afetaria de forma definitiva a sua imagem. Não foi ouvido. Desde então, não mais se falaram. “Evitei contato e não quero ter. Ele parecia ser alguém que refletia esse anseio da população de buscar por justiça contra atos de corrupção. Foi um grande desapontamento”, diz o apoiador arrependido.

O outro conhecido ouvido pelo ex-juiz conta que ele acreditava que as falas racistas e misóginas, assim como as ameaças antidemocráticas, não passavam de retórica de campanha. Como réplica, Moro ouviu do interlocutor que o autoritarismo estava crescendo no mundo e líderes autoritários vinham cumprindo suas promessas de restringir a liberdade e minar a estabilidade das instituições democráticas. O ex-juiz respondeu que, enquanto ele estivesse no governo, não haveria cerceamentos. “Ele se achava, de certa forma, um guardião. E acho até que ele foi. Seu desgaste com o Bolsonaro se deu justamente por isso, por tentar blindar o que estava ao seu alcance”, diz o conhecido, que reconhece os excessos da Lava Jato, mas avalia que o resultado foi positivo.

Depois de aceitar o convite de Bolsonaro, Moro convocou uma coletiva de imprensa para o dia 6 de novembro. Pediu que a assessoria de imprensa da Justiça Federal anunciasse a entrevista e usou o auditório da vara. Os servidores estranharam. Avaliavam que Moro estava misturando as coisas ao usar os funcionários e o prédio público para uma agenda pessoal. Na coletiva, começou com um elogio inesquecível a Bolsonaro. “Me pareceu uma pessoa bastante ponderada”, falou. “Eu disse a ele que para integrar governo tem de ter certa convergência. Ainda que não haja concordância absoluta de ideias entre nós, há a possibilidade de um meio-termo.” Na mesma ocasião, disse que sua decisão não tinha qualquer relação com Lula, que ele havia sido preso antes de Bolsonaro despontar nas pesquisas, e que não havia interferido no pleito eleitoral com segundas intenções, ao divulgar a delação do ex-ministro Antonio Palocci, que citava Lula, poucos dias antes do primeiro turno. “Quando se divulga notícia falsa em eleição, é fake news. Quando é verdade, é direito à informação”, rebateu o ex-juiz.

Moro também classifica como “direito à informação” outro episódio cercado de controvérsias, quando, às vésperas da votação da admissão do processo de impeachment de Dilma Rousseff, ele divulgou as interceptações telefônicas do ex-presidente Lula, que seria nomeado ministro da Casa Civil. Os áudios, que o ex-juiz então classificou como prova de crime de obstrução de Justiça, foram coletados ilegalmente e tornados públicos poucas horas depois da interceptação, em 16 de março de 2016. O episódio, que mais tarde o STF considerou uma evidência de parcialidade, ainda revelou que Moro agiu em conluio com o Ministério Público Federal. No seu livro, ele diz que não errou. E que “o importante é querer acertar”.

Até hoje, Moro diz que não se arrepende da adesão ao governo, mas, no livro, faz um mea-culpa ao recordar o ímpeto autoritário de Bolsonaro. “Admito que participar do governo cujo presidente era responsável por declarações desse tipo era controverso. Mas, durante a campanha eleitoral, minha avaliação era de que ele havia moderado o tom”, escreveu. Em plena campanha, o “moderado” Bolsonaro defendeu que policial que mata “com dez ou trinta tiros, cada um, tem que ser condecorado, e não processado”, afirmou que “a polícia brasileira tinha que matar é mais”, falou em “fuzilar a petralhada aqui do Acre”, referiu-se à esquerda dizendo que “essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós”de, no mesmo discurso em que prometeu que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, conclamou: “Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia”e– uma referência ao local em que, sob a ditadura, os presos políticos eram assassinados.

Se defesa da democracia e dos direitos humanos não eram preocupações do ex-juiz, o apoio popular – daqueles que ele considera “o povo” – estava no topo de suas prioridades. No livro, ele diz que notou o entusiasmo na feição das pessoas já no voo de volta do Rio de Janeiro para Curitiba, depois de aceitar a vaga de ministro. “Havia muitas pessoas em êxtase.” Justificou-se dizendo que uma pesquisa de um instituto do Paraná apontara que 82,6% dos entrevistados apoiavam sua ida ao governo, que a Bolsa de Valores havia subido e que o dólar havia caído após sua resposta tornar-se pública.

Em entrevista ao Fantástico, da Globo, depois de aceitar o cargo, Moro disse que percebia “nas pessoas comuns um entusiasmo” e “desejo” de que ele aceitasse o convite. “As pessoas me procuram, me cumprimentam. Para mim, é um sinal de que há uma grande expectativa”, afirmou. Na mesma entrevista, disse que estava assumindo no governo um cargo técnico, não político. “Eu não me vejo num palanque, eu, candidato a qualquer espécie de cargo em eleições, isso não é a minha natureza”, afirmou. Ele dera pelo menos seis declarações públicas, desde 2015, afirmando não ter qualquer interesse em se candidatar. No Rio, no lançamento do livro, ao ser questionado por Carlos Nascimento sobre essas promessas, voltou a recorrer ao “povo”. “Eu estava lá, nos Estados Unidos, no setor privado, e as pessoas me pediam para voltar”, disse.

Uma das pessoas que ficou deliciada com a volta de Moro é a designer de joias paulistana Lydia Sayeg, amiga do ex-juiz e entusiasta de sua candidatura. “O que ele fez foi por amor ao Brasil. Ele é um idealista”, me disse a designer, em uma conversa por telefone, em janeiro. Na entrevista, Sayeg relembrou sua felicidade ao ver que o amigo ingressaria no governo. (Ela diz ser amiga do casal, mas que a amizade é mais íntima com Rosangela do que com o ex-juiz.) “Quando ele virou ministro, eu fiquei tão animada! Torcia muito para que essa união dele com o Bolsonaro desse certo. Acho que o Brasil todo torcia para isso. Todo brasileiro patriota torcia. Essa roubalheira do PT foi muito triste”, diz. A designer argumenta que se não houvesse a “roubalheira do PT”, 600 mil pessoas não teriam morrido vítimas da Covid. Perguntei como havia chegado a essa conclusão. Ela respondeu: “É muito triste você ver um presidente roubar o Brasil do jeito que ele [Lula] fez. Tirar todo o dinheiro da saúde e colocar em países lá fora, levando todo o nosso dinheiro para construir metrô na Venezuela, portos em Angola. Tirou bilhões daqui, onde poderiam ter sido feitos hospitais, que teriam salvado as 600 mil vidas que morreram agora de Covid.” Para a designer, que apoiou a candidatura de Bolsonaro, a corrupção é “assassina”.

No dia 6 de dezembro de 2018, a corrupção “assassina” apareceu nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo. Uma reportagem sobre o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontava a prática da “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Fazia pouco mais de um mês da vitória de Bolsonaro. Em seu livro, Moro reconhece que a situação de ingressar no governo em meio àquele escândalo foi “embaraçosa”, mas disse que ficou satisfeito com a resposta que o presidente deu na época, dizendo que quem estivesse errado, neste caso, pagaria pelo erro. Achou “coerente”.

Semanas depois, no dia 22 de janeiro de 2019, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, Sergio Moro se preparava para entrar em um dos painéis dos quais participaria. Toda a cúpula do Executivo estava lá, inclusive Bolsonaro. Naquele dia, o jornal O Globo publicara uma reportagem mostrando que, entre os servidores do gabinete de Flávio Bolsonaro que sacaram dinheiro para repassá-lo ao então chefe de gabinete Fabrício Queiroz, estavam a mãe e a ex-mulher do ex-policial militar Adriano da Nóbrega, um bandido então foragido, hoje morto, acusado de chefiar um grupo de matadores no Rio. A reportagem unia pela primeira vez os temas peculato e crime organizado ao nome da família Bolsonaro. Em Davos, onde me encontrava para cobrir o evento, abordei Moro, junto com outro colega jornalista, para questioná-lo sobre a descoberta. Ele ficou desconcertado e gaguejou. “Não me cabe comentar sobre isso. Mas o que acontece é que… o que acontece é que as… as instituições estão funcionando… normalmente”, disse.

No Ministério da Justiça, o início de sua gestão trouxe entusiasmo aos servidores, que notaram o empenho do novo ministro. Moro passava mais horas trabalhando do que os antecessores, participava de reuniões técnicas às quais outros ministros da Justiça jamais compareciam e pegava cedo no batente: às oito da manhã já estava despachando. Levou para os cargos de maior confiança servidores com quem já havia trabalhado na 13ª Vara Federal de Curitiba. O clima de trabalho era agradável, embora estafante, em razão de Moro exigir um nível de comprometimento acima do normal, enviando mensagens muito tarde da noite ou durante a madrugada.

Mas então começaram as primeiras desavenças com o governo – sobre o Coaf, sobre o decreto do porte de arma, sobre o seu pacote anticrime – até culminar nas crises com a Polícia Federal, nas quais Bolsonaro, atropelando o ministro, escolheu o superintendente do Rio de Janeiro e, depois, o próprio diretor da instituição. Moro apanhava publicamente de Bolsonaro, mas permanecia no cargo. “Optei pelo silêncio, até porque meu foco era o de preservar a autonomia da Polícia Federal, também desejável para a preservação do estado de direito”, escreveu o ex-juiz no livro. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, em que o presidente, na frente de todos os chefes da Esplanada, disse que trocaria o comando da PF e que, se não pudesse, trocaria o ministro, Moro também permaneceu no cargo. Era cético quanto a contornar a situação, mas havia ainda uma ponta de esperança de que Bolsonaro cederia.

Um técnico diretamente subordinado ao ex-ministro relembra que, embora a situação estivesse tensa, houve, na véspera da saída de Moro, a impressão de que as coisas haviam se resolvido e que talvez ele conseguisse emplacar um nome técnico na direção da PF, e não o escolhido do presidente. “Parecia que ele havia conseguido contornar. Moro disse que, na semana seguinte, reavaliaríamos o cenário”, me contou o servidor. Se isso tivesse acontecido, ele avalia que o ex-ministro não teria deixado a pasta. Naquela noite, porém, Moro e equipe foram surpreendidos por informações de que o Diário Oficial da União traria a exoneração do então diretor da PF, Maurício Valeixo. A mudança feria em cheio a autoridade e a vaidade de Moro. Ele então enviou mensagem à equipe avisando que faria um pronunciamento às onze da manhã do dia seguinte, sexta-feira, 24 de abril de 2020, no auditório do Ministério da Justiça. Terminava ali sua jornada no governo Bolsonaro.

Municiado por informações conspiratórias, Bolsonaro acreditava que a postura de Moro na questão da PF tinha o objetivo de minar o governo para que ele próprio, Moro, colhesse os benefícios políticos. Em janeiro de 2020, a revista Época revelara que Moro vinha analisando pesquisas eleitorais com seu nome. As pesquisas não eram custeadas por ele, e sim por uma gestora de investimentos. Mas ele pedia recortes específicos para analisar seu potencial. As sondagens o apontavam com 15% de intenções de voto. A saída ruidosa de Moro, com acusações ao chefe, só reforçou a percepção dos bolsonaristas de que o ex-ministro era um traidor infiltrado no governo.

Com a demissão, o ex-juiz ficou sem rumo. A amigos, confidenciou que não esperava aquele desfecho e que, quando aceitou o convite de Bolsonaro, planejara ficar oito anos no governo. Depois disso, o STF seria seu caminho natural. Nesse período, surgiu o primeiro convite para ingressar no Podemos. O senador paranaense Alvaro Dias relembra que começou a ser pressionado por correligionários para convidá-lo a se filiar, antes que outros o fizessem. “Eu então mandei uma mensagem para ele dizendo que respeitava o momento, que era de reflexão. Mas que, no dia que achasse adequado discutir uma participação política, nós estaríamos abertos”, diz. Moro agradeceu, mas achava que não era o momento de tamanha exposição.

Por lei, Moro precisava cumprir seis meses de quarentena da advocacia, mas, depois de cinco anos sob os holofotes, não queria voltar ao anonimato. Enquanto elaborava pareceres para escritórios de advocacia e participava de lives, respondia ao inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que, além de investigar as acusações, achou que deveria investigar o acusador. Ele também sabia que, se quisesse trabalhar no setor privado, enfrentaria resistências em empresas com boa relação com o governo. O escritório de advocacia Warde, do advogado Walfrido Jorge Warde Júnior, sondou-o para integrar a banca. O ex-juiz foi desaconselhado a seguir em frente com a conversa por avaliar que sua imagem poderia ser prejudicada, já que o escritório é conhecido por contratar pessoas com bom trânsito no meio político. Moro pensou que poderia ser criticado por conflito de interesses, embora não tenha feito a mesma reflexão ao entrar no governo Bolsonaro. No Warde trabalham nomes como Roberta Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do STF, e Valdir Simão, ex-ministro da Controladoria-Geral da União, ambos sócios, e Leandro Daiello, ex-diretor-geral da Polícia Federal.

Morar no exterior sempre foi um desejo da advogada Rosangela Wolff Moro, mulher de Sergio Moro e mãe de seus dois filhos. Com a pandemia no auge em 2020, encontrar um trabalho fora do Brasil era uma missão difícil, sobretudo para um ex-magistrado que nem sabia como pedir um emprego. O ex-ministro pensou que os Estados Unidos seriam a melhor opção pela familiaridade que tinha com o país e o avanço da vacinação. Com a ajuda de conhecidos, preparou seu currículo e despachou-o para consultorias, como a McKinsey, a PricewaterhouseCoopers e a Ernst & Young, que têm setor de compliance, no qual ele pretendia trabalhar.

Depois de conversas com quatro empresas, recebeu duas propostas: da Alvarez & Marsal, uma consultoria de negócios, e da K2 Integrity, uma firma de investigação empresarial dos fundadores da Kroll, que deixaram a antiga empresa em 2009. A proposta financeira da Alvarez & Marsal era mais vantajosa. Moro topou. Nos dez meses de trabalho, recebeu o equivalente a 3,7 milhões de reais brutos, segundo ele próprio divulgou para provar que não enriquecera nem recebera dinheiro de empresas que condenou como juiz da Lava Jato. A todos os empregadores norte-americanos com quem conversou, Moro afirmou que seu objetivo era fazer uma carreira internacional no setor privado. Foi taxativo ao dizer que não almejava ingressar na política.

Quando entrou na Alvarez & Marsal, no final de novembro de 2020, Moro trabalhou no escritório brasileiro por um mês, em razão das restrições da pandemia, antes de conseguir a liberação para mudar-se. Nesse período, recebeu o convite oficial de filiação ao Podemos. “No final de 2020, voltei a ser cobrado para convidá-lo”, conta Alvaro Dias. “Aí fizemos algo mais formal. Marcamos um encontro e conversamos. Falamos que aquele era um convite para uma participação partidária que poderia evoluir para uma candidatura. Ele respondeu que ainda não tinha uma decisão e precisaria amadurecer a ideia. Também disse que tinha compromissos que o impediam de se manifestar politicamente e pediu um prazo de dez meses. Naquele momento, ele conversava com bastante gente. João Amoêdo, João Doria, Henrique Mandetta, empresários…”, relembra o senador.

Em Washington, aonde chegou em janeiro de 2021, a família Moro alugou uma casa em Bethesda, um distrito de classe média já no estado de Maryland, a cerca de trinta minutos de carro do Centro da capital norte-americana. É um local em que vivem muitos funcionários de organismos multilaterais com escritório em Washington, como o Banco Mundial e o FMI. Moro comprou uma picape Jeep Cherokee de segunda mão e mobiliou a nova casa: um sobrado de três quartos, sala com dois ambientes, sala de jantar, cozinha e porão com lavanderia. O imóvel era confortável. Um incômodo era a falta de lavabo no térreo. Qualquer convidado que precisasse ir ao banheiro tinha que subir à área íntima, ou descer até a lavanderia.

A vida em Washington era pacata em razão da pandemia. O trabalho era remoto a maior parte do tempo, assim como a escola do filho mais novo do ex-juiz. A mais velha ficara em Curitiba, onde cursa o quarto ano de direito. Mesmo morando fora, Moro resistia em sair do debate público no Brasil, posicionando-se constantemente nas redes sociais sobre assuntos relacionados à Lava Jato. Um amigo pondera que, embora o ex-ministro seja introspectivo, ele gostou dos holofotes da Lava Jato e do governo – uma projeção que terminou esfriando com sua ida para os Estados Unidos. “Ele gostou de ser figura pública, se sentiu bem”, relata o amigo, com quem ele se aconselhava nessa época. Outro conhecido, também muito presente no período de Washington, diz que “não é vaidade”, e sim um “compromisso de ser brasileiro”. E afirma: “Ele não estava infeliz nos Estados Unidos, mas também não estava feliz.”

Enquanto suas sentenças na Lava Jato vinham sendo derrubadas, Moro assistia, de longe, à ascensão de Lula nas pesquisas. Em junho do ano passado, quando o STF decidiu, por 7 votos a 4, que o ex-juiz atuara com parcialidade nas condenações ao ex-presidente, Moro aparecia em terceiro lugar na corrida presidencial. Segundo o Ipespe, tinha 7% de intenções de voto, mesmo morando fora do Brasil e longe da política. Moro sentia o golpe das derrotas no Supremo, mas andava envaidecido com as pesquisas que o colocavam à frente de candidatos que vinham se movimentando há mais tempo, como Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB). Contudo, ele havia encolhido bastante. Quando saiu do governo de Bolsonaro, o Ipespe lhe atribuía 18% de intenções de voto.

No segundo semestre do ano passado, Moro abandonou de vez a promessa de não se candidatar e começou a articular sua entrada na política para voltar ao Brasil. Tinha reuniões com Amoêdo, Mandetta, o general Santos Cruz e o tucano João Doria, nas quais se discutia, principalmente, a viabilidade de uma “terceira via”. Em agosto, foi convidado pela Casa das Garças, celeiro de economistas tucanos no Rio, para um seminário político. Quem assistiu ao evento notou uma diferença na forma com que Moro se comunicava. “Ele estava fazendo um esforço visível para deixar de ser monotemático. Quis falar de economia, história, política, Estados Unidos. Veio com elaboração”, reparou um dos organizadores do encontro online.

No final de setembro, Moro avisou o deputado federal paulista Kim Kataguiri, então no DEM, que pretendia filiar-se ao Podemos. “Fizemos uma videoconferência”, diz o deputado, outro bolsonarista arrependido e um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL). “Ele ainda estava nos Estados Unidos. Falou que queria se lançar e queria saber se teria o apoio dos movimentos. Dissemos a ele que iríamos avaliar.” Kataguiri então convidou Moro a participar de um congresso anual do MBL, em novembro. O ex-juiz compareceu, já filiado ao Podemos, e “foi quem mais empolgou a plateia”, diz Kataguiri. Em troca do apoio do MBL, Moro topou apoiar a candidatura ao governo paulista do deputado estadual Arthur do Val, também conhecido como Mamãe Falei e também ex-bolsonarista. Com o aval do ex-juiz, Kataguiri, Do Val e outros membros do MBL aceitaram se filiar ao Podemos.

Em busca de aliados, ainda antes de voltar para o Brasil, Moro procurou os deputados federais Junior Bozzella e Julian Lemos, ambos ex-bolsonaristas e, então, filiados ao PSL. Bozzella, defensor da Lava Jato, relembra: “Ele falou que vinha acompanhando os meus posicionamentos públicos, me agradeceu e disse que iria voltar ao Brasil e se filiar.” Para Bozzella, a presença de Moro é saudável numa corrida presidencial “entre quem é o menos pior”. Na opinião de Julian Lemos, que brigou com Bolsonaro no primeiro ano de governo, Moro tem “estatura moral” para disputar as eleições. Segundo ele, o ex-juiz e ex-ministro disse que estava voltando ao país para evitar a “tragédia de o brasileiro ter de escolher entre Bolsonaro e Lula”.

Nesse período, Moro recorreu a Maria Cristina Pinotti, doutora em economia pela Universidade de São Paulo (USP), que conhecera nos idos de 2016, durante a Lava Jato. De lá para cá, se encontraram “meia dúzia de vezes”, me disse a economista, quando conversamos por chamada de vídeo no início de fevereiro. Moro queria convidá-la para integrar a campanha. Pinotti topou coordenar o plano econômico em conjunto com seu marido, Affonso Celso Pastore, mas disse não ter intenção de se envolver em campanha nem integrar o governo. É apenas, diz ela, uma contribuição “de ideias”. “Pode haver proposta melhor que a nossa. Mas se alguma coisa do que estiver lá fizer sentido e ajudar na discussão, e as reformas lá na frente avançarem, estaremos mais do que recompensados”, diz.

Moro também fez contato com o advogado Joaquim Falcão, com quem mantinha conversas frequentes. “Eu estava aqui em Lisboa na paz”, recorda Falcão, que aceitou coordenar o programa jurídico da candidatura. “Aí o Moro me liga, e eu fiquei entre a paz e a pátria. E optei pela pátria”, disse ele, em conversa por telefone. O ex-juiz reuniu ainda nomes como o economista Renato Fragelli Cardoso, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o advogado Modesto Carvalhosa e o agrônomo Xico Graziano. Trouxe Luciano Timm, ex-membro de sua equipe no Ministério da Justiça, e o advogado Marcelo Knopfelmacher. Para a coordenação-geral da campanha, escalou um amigo de Curitiba, o advogado Luis Felipe Cunha, da área de telecomunicações, que nunca se envolveu em questões eleitorais. Conheceram-se pouco antes da Lava Jato, por meio de Zucolotto Júnior, o amigo do churrasco, de quem Cunha é vizinho.

A cerimônia de filiação de Moro ocorreu em 10 de novembro, em Brasília e, dez dias depois, parecia que sua candidatura voaria em céu de brigadeiro. Uma pesquisa o apontava com 11% de intenções de voto, à frente de Ciro Gomes e João Doria. O número reacendeu conversas sobre a viabilidade da “terceira via” e colocou alguns políticos em estado de alerta. No gabinete do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), réu num processo por corrupção no STF, deputados ouriçados com a novidade diziam que, com Moro, o Podemos passaria a se chamar “Fodemos”. Um senador relembra que, na época, esperava-se em Brasília que Moro “subiria como um foguete”. “Houve essa sensação por causa da barreira de dois dígitos, que ele alcançou, enquanto outros nomes do centro não conseguiam se mover”, relembra. Mas agora “parece que gorou”, diz ele, sem deixar de dar uma cutucada: “Até o Geraldo Alckmin, que todos chamam de picolé de chuchu, tem mais charme que ele.”

Em meio à empolgação da largada, o economista e ex-diretor do Banco Central, Luiz Fernando Figueiredo, decidiu apresentar Moro para uma parcela do PIB num jantar em sua casa, em São Paulo. Entre os presentes, Luis Stuhlberger (Fundo Verde), Roberto Setubal (Itaú Unibanco), Fábio Barbosa (ex-Santander) e Marcelo Marangon (Citi Brazil). Como esperavam que o novo presidenciável só falasse de Lava Jato e corrupção, os convivas gostaram de ouvir menções a reformas econômicas e privatizações, mas queriam mesmo saber se um governo de Moro – o juiz que prendeu e condenou próceres da política – conseguiria dialogar com o Congresso. Nessa hora, Renata Abreu, a presidente do Podemos, tomou a palavra. Disse que vinha conversando com vários partidos e estava surpresa com o número de parlamentares que procuraram o ex-ministro depois do anúncio de sua filiação. Moro completou dizendo que, para montar a base de apoio antes do início do mandato, chamaria “todo mundo” – para não seguir o exemplo do ex-chefe, que chegou ao Executivo isolado e depois entregou o orçamento e a alma ao Centrão. Ninguém perguntou se o PT estava entre o “todo mundo”.

Um dos presentes, que falou sob condição de não ter seu nome revelado para não melindrar os demais, relatou o plano de governabilidade do ex-juiz como “aquela conversa mole de sempre”. Mas, segundo ele, Moro foi melhor do que se esperava, recebeu elogios, embora não seja “impressionante”. “Você não fica encantado. Mas estamos todos tão carentes de opções que o balanço acaba sendo positivo”, resumiu. Um investidor que foi procurado pelo ex-juiz nesse mesmo período corrobora que ele “impressiona pouco” e “não é um grande orador, você não fica hipnotizado”, mas reconhece que ele está tentando se adaptar e é “claramente inteligente”. “Quando o Fernando Henrique sentava para conversar, você saía da conversa se perguntando: ‘Meu Deus, o que é isso?’ Era impressionante. E o Lula consegue capturar de uma maneira incrível. Mas mesmo sem ter essas aptidões, achei a conversa com Moro boa”, diz.

No final de dezembro, o ex-juiz retornou animado aos Estados Unidos para terminar sua mudança, vender o carro e alguns móveis. Voltaria para Curitiba, onde alugara um apartamento de 270 m² no bairro de Juvevê, região abastada da cidade. O imóvel é mais confortável e mais bem localizado do que o apartamento que comprara quando era juiz, de 160 m², na vizinhança de Bacacheri. Acreditava que seria capaz de catalisar os votos de Bolsonaro e da centro-direita contra Lula. No entanto, pela primeira vez, Moro teve motivos para ficar intrigado. Numa reunião organizada pelo marqueteiro do Podemos, Fernando Vieira, ouviu algo que ninguém jamais lhe dissera. Um especialista avisou que seria muito difícil que seu nome avançasse nas pesquisas no curto prazo. Sua rejeição era altíssima (hoje está em 55%, enquanto Lula tem 43% e Bolsonaro, 62%). Moro sabia desses números, mas jamais havia sido informado, de maneira tão clara, de que se tratava de uma barreira difícil de transpor.

Quando seu pai, José Masci de Abreu, foi abatido pelo Alzheimer em 2013, a deputada federal paulista Renata Abreu, advogada e administradora, herdou um partido sem bancada. Desde que assumiu o então PTN, ela teve um único objetivo em mente: atrair parlamentares para a sigla e lançar candidatos com chance de vitória. Em 2014, elegeu-se deputada pela primeira vez e começou a executar seu plano. Atraiu políticos de siglas de centro-direita e, pouco mais tarde, participou das articulações a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Participar, nesse caso, queria dizer uma coisa só: oferecer votos em troca de cargos.

Na noite de 13 de julho de 2016, presenciei uma cena simbólica do trabalho de Abreu. O plenário da Câmara estava esvaziado, e Sandro Mabel, assessor do então presidente Temer, tinha acabado de checar os acordos para aprovar o impeachment, quando foi abordado por Abreu. Numa conversa acalorada, ela cobrava os seus cargos – no caso, na Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cobiçada por seu orçamento de 3 bilhões de reais e capilaridade por todo o país. Mabel enrolava, dizendo que os indicados de Abreu não estavam à altura da qualidade técnica necessária, talvez evitando entregar um mimo tão precioso para uma bancada tão pequena, então com treze deputados. O futuro comprovou o poder de persuasão de Abreu: o PTN emplacou seus indicados, ocupou diretorias e superintendências e, no ano seguinte, capturou inclusive a presidência da Funasa.

Ousada e atenta aos seus interesses, Abreu percebeu a força de movimentos como o MBL no impeachment, mudou o nome de seu partido de PTN para Podemos e desenrolou a bandeira do combate à corrupção, para surfar no prestígio da Lava Jato. Estendeu tapete vermelho para o senador Alvaro Dias entrar no partido, depois de constatar que ele estava isolado no PSDB e já se aproximava de Moro. Deixou a base de apoio ao governo, quando Temer virou alvo da Lava Jato, tendo que amargar a desfiliação de correligionários que queriam se manter no poder, mas achou que estava dando um passo atrás para dar dois à frente. Seu mantra continuava o mesmo: aumentar a bancada do partido do seu pai.

Hoje, a deputada é a principal articuladora política da candidatura de Moro. Conversa com lideranças partidárias, tenta costurar alianças e se empenha em conciliar os interesses do candidato presidencial com os de sua bancada voraz. Desde já, o caixa é um obstáculo. Seu partido, pelo menos até agora, sem alianças formais, terá pouco tempo de tevê para a campanha presidencial (estima-se em dez minutos diários, no máximo) e pouco dinheiro. Calcula-se que Moro terá 17 milhões de reais. Em 2018, Bolsonaro elegeu-se com muito menos, mas eram condições excepcionais. Hoje, os líderes políticos dizem que uma campanha presidencial competitiva custará – no oficial – entre 60 milhões e 100 milhões de reais.

Em janeiro, Moro teve seu primeiro choque de realidade. Contratar equipe, encomendar pesquisas, viajar pelo país em avião particular para conseguir visitar mais cidades em menos tempo tornaram-se luxos que ele não conseguiria custear com a verba designada pelo Podemos. As vacas eram tão magras que, no voo para Juazeiro do Norte, em fevereiro, o ex-juiz não tivera direito sequer ao “assento-conforto”, que se localiza nas primeiras filas, mas, ao ser reconhecido pela comissária, foi reacomodado na frente depois que todos embarcaram. Moro confidenciou a amigos que o partido não tinha estrutura política e financeira para bancar uma campanha presidencial, e que, embora tivesse uma boa relação com Renata Abreu, ela sozinha dificilmente conseguiria costurar uma saída que melhorasse a situação. Estão tentando uma aliança com o União Brasil, que resultou da fusão entre DEM e PSL, mas está difícil: de dez lideranças do novo partido, só três apoiam uma aliança com Moro. Os que se opõem fazem a seguinte pergunta: por que o União Brasil, que tem a maior bancada da Câmara e 1 bilhão de reais do fundo partidário, deveria usar sua dinheirama com um candidato de um dígito de outro partido, em vez de investir nas candidaturas de seus deputados?

Enquanto as conversas patinam, Renata Abreu não dá sinais de preocupação com a corrida solitária do Podemos até aqui. A situação já causa incômodo no círculo de Moro, que anda desconfiado de que Abreu está menos interessada na campanha presidencial e mais interessada em aproveitar a candidatura do ex-juiz para eleger uma boa bancada parlamentar e aumentar sua base de filiados. A deputada refuta. Diz que, quando a campanha começar de verdade, Moro vai deslanchar, pois terá apoio popular. Seu trampolim, diz ela, será a comunidade evangélica, que está insatisfeita com os desmandos de Bolsonaro na pandemia e rejeita votar em Lula em razão das pautas progressistas.

Sem aliança, sem o União Brasil, Abreu anunciou no fim de janeiro que começara a negociar a formação de uma federação com o Cidadania, o antigo PPS, legenda presidida pelo deputado federal Roberto Freire. A federação é o novo nome da coligação, com a diferença de que a aliança precisa durar quatro anos e seus membros devem votar de forma alinhada. Freire não se empolgou. “O Podemos e nós não temos nenhuma identidade do ponto de vista político. É um partido que eu não sei o que pensa, não tem muita capilaridade e estrutura democrática”, disse. “Além disso, não há uma definição [do Podemos] sobre apoiar ou não Bolsonaro. Alguns deles apoiam e aceitam a pauta do governo. O próprio Moro está aí assumindo pautas e agendas próximas do bolsonarismo nos costumes, a exemplo da carta que dirigiu aos evangélicos. O Podemos não vê problema nenhum nisso. Ou seja, não tem nada a ver com a gente.” Em fevereiro, o Cidadania aprovou a criação de uma federação com o PSDB.

Se em 2018 o tempo de tevê e o apoio partidário foram secundários, como provou a vitória de Bolsonaro, agora a perspectiva é outra. “Em 2020, já houve a volta da normalidade na política e a volta da hierarquia das plataformas, com o tempo de tevê retomando importância”, avalia o cientista político Antonio Lavareda. Para ele, Moro tinha chances reais de vencer a eleição presidencial em 2018, mas agora é complicado. “Se quiser alguma chance, Moro vai precisar de tempo de tevê e de recursos. E para que ele consiga uma coligação que proporcione isso, precisará se mostrar competitivo. Despontar na frente se tornou mais difícil neste ano para ele, com o campo da direita muito mais fragmentado que o da esquerda”, avalia.

Sem dinheiro suficiente, Abreu tem recorrido a empresários para que ajudem o partido com doações. Num jantar promovido pela revista gaúcha Voto, em São Paulo, no qual era a convidada de honra, Abreu apelou: “Campanha custa. Inclusive, se vocês quiserem arrumar doadores, a gente está precisando.” Como a verba não é abundante e Moro já não ganha da Alvarez & Marsal para arcar com suas despesas, ele tem recebido um salário de 22 mil reais do Podemos. Além disso, tem mantido uma agenda como palestrante. O site The Intercept revelou que o ex-juiz negociou um contrato com a corretora Ativa Investimentos, do Rio de Janeiro, para dar duas palestras para clientes da empresa, em fevereiro. Recebeu 77 mil reais. A piauí confirmou a informação.

Dar palestras remuneradas não é ilegal. No entanto, quando se pleiteia ou se termina um mandato presidencial, todas as relações privadas precisam ser bem calculadas para não ganhar uma aura de suspeição. Por ironia, durante a Lava Jato, os investigadores foram exaustivos em suspeitar publicamente das palestras remuneradas que Lula concedera, a ponto de levar o juiz Moro a autorizar o bloqueio de bens do ex-presidente. Moro dizia que, no contexto das investigações sobre o caso da Petrobras, o pagamento que Lula recebia pelas palestras gerava “dúvidas sobre a generosidade” das empresas que o contratavam. As investigações não provaram qualquer ilegalidade e acabaram sendo arquivadas pela juíza Gabriela Hardt, substituta de Moro em Curitiba.

Os entraves partidários e financeiros da candidatura de Moro se somaram a outros problemas causados por falta de coordenação, diagnóstico, experiência política e, inclusive, uma boa dose de ingenuidade. Moro não acredita nas pesquisas convencionais que mostram seu desempenho enfraquecido. Avalia que as projeções de vitória de Lula no primeiro turno são tendenciosas e que, ao somar brancos e nulos, há mais eleitor sem candidato do que com candidato. Aconselhado pelo deputado Kim Kataguiri, tem olhado com mais atenção o eleitorado jovem, entre 16 e 34 anos, por achar que essa fatia específica não chegou a conhecer seu trabalho na Lava Jato.

Do alto de seus 26 anos, Kataguiri explica que estudou em detalhes o eleitor jovem na campanha do colega Arthur do Val, o Mamãe Falei, para a Prefeitura de São Paulo, em 2020. “O eleitor jovem, de classe média, do Sudeste, boa parte não sabe o que foi a Lava Jato. No meu caso, alguns me conhecem mais pelo mandato como deputado do que pelos protestos pelo impeachment. Nesses momentos me sinto velho, quando um jovem me diz que ouviu o pai falar de mim. Mas o fato é que a juventude mais à direita ficou órfã e há um espaço a ser explorado ali, que o Moro pode ocupar”, diz ele, que tem reuniões frequentes com o ex-juiz. “Não estou na campanha, mas sou uma espécie de consultor, conselheiro.”

Em sua busca pelo eleitorado jovem de direita, Moro deu uma entrevista de 4 horas e 58 minutos em janeiro para os youtubers Igor Coelho e Bruno Aiub, conhecido como Monark, então apresentador do podcast Flow, do qual foi expulso mais tarde depois de defender a criação de um partido nazista no Brasil. No meio da entrevista, Moro replicou uma notícia segundo a qual a Blackrock, a maior gestora de ativos do mundo, não investiria mais no Brasil enquanto Bolsonaro fosse presidente. A Blackrock já tinha desmentido a informação, mas o ex-ministro não sabia. Um empresário alertou o pessoal de Moro para o erro – que foi interpretado como mais um exemplo da falta de estrutura da campanha, que não tem nem uma equipe para fazer checagem e evitar que o candidato cometa deslizes públicos.

Nas redes sociais, Moro tenta antagonizar com Lula e Bolsonaro, mas, nos bastidores, ele diz que seu principal adversário é outro – o tucano João Doria, que patina na rabeira das pesquisas. Moro acredita que Doria planta informações desabonadoras sobre sua campanha na imprensa com o objetivo de enfraquecê-lo. Nas conversas que teve com Doria no ano passado, o tucano insistia que a centro-direita precisava se unir em torno do nome mais viável. Moro acreditou. Quando se lançou com números superiores aos de Doria nas pesquisas, imaginou que o tucano abraçaria sua candidatura. No dia 13 de janeiro, um grupo de WhatsApp chamado “Ativação Política” veiculou a informação de que Moro poderia abrir mão da candidatura em favor de Doria. Moro correu para responder que era fake news. Não queria demonstrar fraqueza diante dos membros do grupo, que inclui cerca de cem empresários, entre eles, Jorge Gerdau, e alguns políticos, como Michel Temer e Eduardo Leite.

Com tanto desalento ao redor, Moro tentou reagir. No final de janeiro, antes de sair em romaria pelo Sudeste e Nordeste, procurou pessoas próximas ao governador paulista para cobrar a tal estratégia de “união em torno do nome mais viável” – ou seja, o dele, que está em terceiro lugar nas pesquisas. Disse que começara a receber recortes de pesquisas mostrando que voltaria para os dois dígitos e que sua taxa de rejeição estaria recuando. A abordagem não pegou bem porque chegou com o tom peremptório de um juiz em vez da sutileza de um político. Além disso, a expectativa de bons números não se confirmou. Em uma pesquisa posterior, realizada pela CNT/MDA, o ex-juiz apareceu com 6,4% das intenções, tendo sido ultrapassado por Ciro Gomes, com 6,7%. Bolsonaro, de quem Moro pretende roubar votos, avançou quase três pontos, chegando a 28%. O resultado desanimador, somado à escassez de recursos e de alianças, reacendeu conversas de que talvez fosse mais vantajoso para Moro tentar uma vaga no Senado. “Está tudo meio abandonado”, diz um amigo que se envolveu na campanha no princípio, mas hoje está frustrado com o rumo das coisas. “Cada um no partido só pensa em si. Moro não é flexível, confia em quem não deve e desconfia das pessoas erradas.”

Terminada a missa na Catedral da Sé, no Crato, naquele domingo de fevereiro, a comitiva de Moro postou-se na porta da igreja. Alguns cratenses pediram uma foto com o visitante. Erguida em 1745, a igreja fica em frente à principal praça da cidade, um ponto de encontro dos moradores, onde há atividades para as crianças, carrinhos de venda de comida e bebida e um letreiro gigante com a frase “Eu amo o Crato”. A noite estava fresca, o lugar estava movimentado e curiosos passavam por ali questionando-se quem seria o forasteiro. Ao olhar detidamente para Moro, uma moradora finalmente reconheceu o ex-juiz, mas demonstrou sua frustação. “É baixinho, né? Achei que ele era mais alto.” Moro tem 1,75 de altura.

O candidato atendeu aos pedidos de fotos prontamente, mas seu desconforto era visível. Parecia que não queria estar ali. Não fazia gestos expansivos, a testa permanecia franzida e, com metade do rosto atrás da máscara, seu olhar era sério. Mantinha sempre uma mão em um dos bolsos e a outra reta sobre os quadris, em posição meio robotizada. Não abraçou nem tocou quem se aproximava. Andou um pouco pela praça, circulando por zonas menos movimentadas, como um observador distante. Conversou com Fabinho, como se identificou o pipoqueiro, para saber da situação do trabalhador local.

Em seguida, Moro saiu em direção ao próximo compromisso: um jantar no restaurante do Crato Tênis Clube, o principal clube da cidade. Apesar da presença incomum da comitiva, as famílias que jantavam no local, tal como aconteceu na igreja, se mostravam indiferentes à presença dos ilustres. Na única vez em que se levantou da cadeira, Moro tirou fotos com alguns convidados do partido e foi embora. Ficou no local menos de uma hora. Os veteranos de campanha no Nordeste que viram o ex-juiz em ação afirmam que sua falta de traquejo e o jeito engessado fazem lembrar a folclórica antipatia de José Serra, o tucano que percorreu a região em 2002 na disputa contra Lula. Deu no que deu.

1964: matéria da memória (pela lembrança de Carlos Heitor Cony e as boas leituras dos anos de chumbo)

Maior parte da imprensa brasileira apoiou o golpe de 64

Jornais defenderam deposição de João Goulart, presidente democraticamente eleito (Cinismo e canalhice totalitária ainda prevalece nos grandes jornais)

Oscar Pilagallo, Folha (expandir)

Oscar Pilagallo

Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

Link de acesso à matéria original da Folha: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/maior-parte-da-imprensa-brasileira-apoiou-golpe-de-1964.shtml 


A imprensa brasileira, esta Folha inclusive, desempenhou papel relevante na conspiração contra o presidente João Goulart e, em 31 de março de 1964, apoiou com entusiasmo a deflagração do golpe militar, antes mesmo que ele fosse consumado.

Com exceção do "Última Hora" –que nascera em 1951 para apoiar o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e, depois, de seus herdeiros políticos–, os jornais fustigaram com intensidade crescente um governo democraticamente eleito, preparando a opinião pública, durante meses, para a intervenção que rasgava a Constituição do país.

O presidente Castello Branco em visita a São Paulo em 1º de maio de 1964, um mês após o golpe - Última Hora/Folhapress

No Rio de Janeiro, os principais concorrentes locais deixaram de lado as disputas comerciais para se unir num projeto comum.

Em fins de outubro de 1963, cinco meses antes do golpe, entrou no ar a Rede da Democracia, um programa em que as rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi, dos Diários Associados, juntaram esforços para combater o que identificavam como ameaça comunista. O acordo foi costurado pelos próprios donos dos veículos: Nascimento Brito, Roberto Marinho e um representante de Assis Chateaubriand, respectivamente.

A repercussão ultrapassava largamente o alcance das frequências das três rádios fluminenses. O programa era retransmitido em centenas de emissoras espalhadas pelo país e, mais tarde, transcrito nos grandes jornais.

Embora tivessem o mesmo objetivo –derrubar Jango–, os veículos do Rio se diferenciavam pelo alvo da artilharia. Marinho, tendo em vista uma demanda por um canal de TV, evitava a crítica direta ao presidente, com quem mantinha aberto um canal de comunicação. O Globo focava o governo, não o governante, ao contrário dos outros, que personalizavam os ataques na figura de Goulart.

Não por acaso, fuzileiros navais obedientes a um militar fiel a Leonel Brizola –cunhado e apoiador de Jango– invadiram as sedes do JB, Globo e um jornal dos Diários Associados, além da Tribuna da Imprensa, nas primeiras horas do golpe.

Os editoriais resumem a participação dos jornais no golpe. O tradicional Correio da Manhã entrou para a história com os títulos "Basta!" e "Fora!", publicados em 31 de março e 1º de abril. O prestigioso JB celebrou "a vitória da democracia" contra "a implantação de um regime comunista". E o Globo, um vespertino com penetração limitada, festejou na capa no dia 2: "Vive a nação dias gloriosos", escreveu, atribuindo o desfecho da ação militar à "Providência Divina".

O início do golpe, no entanto, foi uma surpresa para a imprensa, assim como para os principais articuladores da ruptura na caserna, como o general Castello Branco. A ação foi precipitada por Olympio Mourão Filho, general que comandava as tropas de Juiz de Fora e não estava entre os protagonistas dos planos para derrubar Jango. Ele deu início às mobilizações na madrugada de 31 de março.

Em São Paulo, o sinal mais nítido de que a imprensa passou a agir conjuntamente para afastar Jango foi a aproximação, às vésperas do golpe, dos arqui-inimigos Assis Chateaubriand e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo.

A diferença na atitude dos principais veículos limitou-se ao nível de engajamento de seus proprietários. Se quase todos franquearam as páginas dos jornais aos propósitos golpistas, houve quem fosse além, abrindo as portas de seus gabinetes aos conspiradores.

Mesquita foi além do apoio editorial do Estadão, então o principal jornal de São Paulo. Em janeiro de 1962, mais de dois anos antes do golpe, recebeu na sede do matutino um general –Orlando Geisel, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel– que o sondou sobre a ideia de instaurar uma ditadura. A resposta é uma carta intitulada "Roteiro da revolução", que exorta os militares a intervir.

Mais tarde, sairia da sala de Mesquita um documento em tudo semelhante a um ato institucional, prevendo até a suspensão temporária de garantias constitucionais.

Quanto à Folha, teve influência relativamente menor –do tamanho de sua importância na época. A empresa que edita o jornal havia sido comprada em 1962 por Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, e os empresários trabalhavam para saná-la financeiramente antes de investir no setor editorial.

No discurso, porém, a Folha não se distinguia da concorrência. Contribuía para a difusão de teses antipopulistas e conclamava as elites à ação coordenada, com um tom cada vez mais alto. O jornal trabalhava com a hipótese de que Jango pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta.

A deposição do presidente contou até com a criação de um jornal popular para fazer contraponto ao Última Hora. Foi o Notícias Populares, que nasceu em outubro de 1963 financiado por Herbert Levy, um político da UDN (União Democrática Nacional), o principal partido de oposição a Goulart. Anos depois, já sem essa função, o NP seria incorporado ao Grupo Folha.

Ao longo das duas décadas de ditadura militar, os veículos sofreram censura, passaram a criticar o governo e, sobretudo após a redemocratização, se penitenciaram por terem apoiado o golpe.

Escolas foram usadas para difundir ideologias durante ditadura militar

Marian Tokamia, Agência Brasil (expandir)

Link para acesso à matéria original da Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2024-04/escolas-foram-usadas-para-ideologia-autoritaria-na-ditadura?utm_source=pocket_reader 

O golpe, a ditadura e o revisionismo acadêmico

O movimento revisionista não se dá no vazio, mas expressa debates políticos de fundo, em especial de quais setores seriam os protagonistas do golpe e quais seriam suas vítimas

Michel Goulart da Silva, A Terra é redonda (expandir)

Nesta segunda-feira, 1º de abril, completam-se sessenta anos do golpe que derrubou o governo João Goulart em 1964. O processo, encabeçado pela cúpula militar e apoiado por empresários e outros setores sociais, abriu as portas para a ditadura que perseguiu e assassinou críticos e opositores até a década de 1980. Contudo, ainda que as ações dos golpistas e dos ditadores sejam bastante evidentes e conhecidas pela sociedade, sempre gerou polêmicas e interpretações, que vão muito além do mero negacionismo desprovido de conteúdo de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Pelo contrário, mesmo no ambiente acadêmico, essas interpretações afetam até mesmo o trabalho dos historiadores.

Esse movimento revisionista não se dá no vazio, mas expressa debates políticos de fundo, em especial de quais setores seriam os protagonistas do golpe e quais seriam suas vítimas. Em particular, existem aquelas interpretações que culpam a esquerda e, por conseguinte, as mobilizações dos trabalhadores pelo golpe, afinal seriam essas mobilizações que teriam forçado a ação da burguesia e do imperialismo.

Expressando essa interpretação, afirmaram Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira que o presidente João Goulart “[…] se aliara a Brizola, Arraes, Prestes e ao movimento sindical mais radical para formar um governo exclusivo das esquerdas. A opção presidencial permitiu que os grupos de oposição ao governo – mesmo os mais moderados e legalistas –, quer civis, quer militares, começassem a suspeitar das verdadeiras intenções de Jango. Receosa e desconfiada, essa oposição cedeu aos apelos da direita golpista, o que reduziu os custos políticos de uma ruptura com as regras democráticas”.[i]

Segundo os dois historiadores, João Goulart teria conseguido, “[…] por razões diversas, entre as quais a ameaça comunista é o destaque, que setores militares e civis, quer os que já estavam conspirando, quer os que não o faziam, se posicionem de forma radical contra o presidente”.[ii]

Contudo, as ações do presidente que teriam causado tanto medo seriam a convocação de uma Constituinte, dependendo da anuência do Congresso Nacional, e as ameaças de uma reforma agrária “na marra”, mediante o pagamento de indenização. Portanto, não havia nada de perigosamente revolucionário nessas medidas, mas reformas que se davam dentro da ordem capitalista burguesa. Observa-se, pelo contrário, que conspiradores de décadas anteriores buscavam fomentar o medo nas classes médias e, a partir disso, ganhar apoio para um golpe.

Outro importante historiador, ainda que mais cuidadoso em sua análise, acaba também por escorregar na interpretação de culpar a esquerda. Carlos Fico, ainda que veja nas Marchas da Família, com Deus pela Liberdade “um componente de manipulação e evidente propaganda anticomunista e contrário a Goulart”, aponta que o movimento “expressou um autêntico sentimento de insatisfação da classe média”.[iii] O historiador reconhece o fato de que as “as propostas de reformas de base não eram radicais, sobretudo a da reforma agrária”, afirmando serem “imprecisas e modestas”. Contudo, ainda que admita isso, aponta que seria necessário “reconhecer que João Goulart não foi habilidoso ao defendê-las”.[iv]

Portanto, novamente aqui se vê um exemplo de considerar a subjetividade individual de João Goulart um fato determinante para o golpe. Nessa interpretação, o fator mais importante não teria sido a propaganda anticomunista, mobilizando as classes médias com as ameaças de ataque à propriedade individual, como casas e apartamentos próprios, nem o fato de a burguesia e o imperialismo verem como negativas as reformas base e por isso organizar parte da sociedade para combatê-las. Na interpretação expressa por Carlos Fico, esses elementos objetivos da realidade parecem fatores determinantes do que a falta de habilidade do presidente.

Daniel Aarão Reis, que foi militante de organização de luta armada na ditadura, entrou nesse debate construindo um argumento diferenciado, ainda que também assumindo uma postura revisionista. Esse historiador busca construir a interpretação de que o golpe não teria sido um fenômeno externo à sociedade, mas expressava elementos políticos e culturais inerentes ao processo, assim justificando sua interpretação de que os movimentos financiados pela burguesia e apoiados pelo imperialismo, como a reacionária Marcha da Família, seriam “amplos movimentos sociais”.[v] Embora formado no marxismo, o historiador deixa de lado em sua análise qualquer perspectiva de que a luta de classes e a necessidade de manutenção da ordem institucional por parte da burguesia pode ter tido relação no apoio a esse suposto “amplo movimento de massas”.[vi]

O historiador também endossa a interpretação de seus colegas, ao afirmar que, desde a campanha pela posse de João Goulart à presidência, os “movimentos e lideranças partidárias das reformas” teriam “evoluído, progressivamente, para uma linha ofensiva em que inclusive se contemplava o recurso à violência revolucionária”.[vii] Para Aarão Reis, o presidente teria resolvido “partir para a ofensiva”, dispondo-se “a liderar um conjunto de grandes comícios para aumentar a pressão pelas reformas”.[viii]

Como destacado antes, essa “ofensiva” de João Goulart e de seus apoiadores nada mais era do que a convocação de uma constituinte, ou seja, a revisão do aparato legal burguês pelas próprias instituições burguesas. Fazia parte dessas ações tão “radicais” de João Goulart “ratificar a legislação sobre a regulamentação da remessa de lucros, já aprovada no Congresso” e “estabelecer o monopólio da importação do petróleo”.[ix] Certamente medidas tão “radicais” deixavam o capitalismo com os dias contados…

Incorporando elementos revisionistas em sua análise, Daniel Aarão Reis faz críticas abertamente à esquerda, pois esta teria assumido durante a transição da ditadura, segundo sua interpretação, um discurso democrático e passado a negar a perspectiva revolucionária que supostamente teria tido no passado. Nesse processo, segundo afirma ironicamente Daniel Aarão Reis, “a sociedade brasileira pôde repudiar a ditadura, reincorporando sua margem esquerda e confortando-se na ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”.[x]

Nem mesmo o marxismo acadêmico escapou dessa forma de revisionismo. O filósofo Leandro Konder afirmou que “o golpismo, entranhado nos costumes e na cultura política da sociedade brasileira, se manifestava também no campo da esquerda”.[xi] Concordando com o revisionismo conservador, Leandro Konder conclui que “a reação contra o golpismo do campo da esquerda resultou no golpe da direita”.[xii]

Essas interpretações se mostram completamente falsas, afinal a defesa da democracia burguesa era majoritária na esquerda em 1964. Com raras exceções, quase todas as organizações defendiam variantes da chamada “revolução por etapas”, apostando na manutenção da ordem capitalista. O PCB, antes do golpe, afirmava: “O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação, gradual, mas incessante, de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando até a realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento econômico e social da nação”.[xiii]

Como consequência dessa avaliação, o partido defendida, poucos anos antes do golpe, a “luta por soluções positivas e imediatas para os problemas do povo e a luta pela formação de um governo nacionalista e democrático”.[xiv] Poucos dias antes do golpe, em março de 1964, o partido ainda defendia “a unidade de todos os patriotas e democratas, a unificação de toas as forças interessadas no progresso do Brasil”.[xv]

Portanto, não é possível afirmar de forma alguma que o PCB tinha, antes do golpe, qualquer perspectiva de subversão da ordem capitalista. Pelo contrário, suas perspectivas não estavam voltadas para a ruptura com o capitalismo. Mesmo depois do golpe, os elementos dessa política do partido não mudaram, continuando a defender, durante a ditadura, a perspectiva de transformações por dentro da ordem capitalista: “A burguesia nacional participa da frente antiditatorial, embora sua oposição ao regime seja limitada. Outros setores das classes dominantes, cujos interesses são construídos pela política do governo ditatorial, podem participar de ações contra o regime e ser úteis à ativação e fortalecimento da frente antiditatorial”.[xvi]

Mesmo entre as organizações defensoras da luta armada a perspectiva estratégica não era diferente. Entre outros, Marighela, mesmo depois de deixar o PCB, defendia a estratégia de unidade com a burguesia, defendendo, em 1966, “[…] a necessidade de nossa aliança com a burguesia nacional, levando em conta não somente tudo o que dela nos aproxima, quando se trata de objetivos comuns na defesa de interesses nacionais, mas também tudo o que dela nos separa em questões de classe, tática, métodos, ideologia e programa”.[xvii]

Em junho do mesmo ano, o PCdoB, que pouco depois organizou a Guerrilha do Araguaia, afirmava na mesma perspectiva de colaboração com a burguesia: “Está colocada na ordem do dia a necessidade de organizar a mais ampla união patriótica que, sob o lema da independência, progresso e liberdade, possa aglutinar em um impetuoso movimento nacional as forças populares e as correntes democráticas”.[xviii]

Portanto, ainda que falassem em revolução ou em socialismo, a luta do PCB e das organizações oriundas desse partido passava necessariamente por desenvolver o capitalismo e as instituições e, talvez, somente numa sociedade futura, chegar ao socialismo.

Por outro lado, para o pacifismo genérico, que dá a base da perspectiva teórica dos historiadores revisionistas, para os quais qualquer forma de violência seria “golpista” ou “revolucionária”, o uso do método da luta armada seria algo “radical”. Mas, qualquer análise dos documentos da maior parte das organizações da luta armada mostra que, ao se isolarem da ação das massas trabalhadoras organizadas, esses grupos se mostravam impotentes diante da ditadura. Além disso, seu programa também era uma variante da “revolução por etapas”.

Para uma análise adequada, cabe colocar em seu contexto o golpe de 1964. No período anterior ao golpe, observa-se o embate entre setores burgueses em torno de perspectivas distintas em torno da relação com o imperialismo. João Goulart e seu partido, o PTB, a despeito de todas as suas ambiguidades e dos limites políticos do trabalhismo e de seus aliados, como os comunistas, defendiam a perspectiva de um desenvolvimento capitalista autônomo em relação ao imperialismo. Outros segmentos, por sua vez, colocavam no horizonte a perspectiva do aprofundamento da relação com o imperialismo.

Essa tensão não se dava apenas nas esferas das disputas institucionais, mas também no interior da sociedade. Por um lado, setores da burguesia se viam preocupados com a possibilidade de nacionalização de suas empresas ou mesmo a aplicação de políticas que poderiam criar empecilhos em sua relação com parceiros financeiros comerciais e financeiros estrangeiros. Por outro, os trabalhadores viam nas limitadas reformas propostas pelo governo – urbana, bancária, universitária, entre outras – a possibilidade de melhoria de suas condições de vida.

Portanto, para além das diferenças de interesses entre segmentos da burguesia, a luta de classes se colocava de forma explícita, tendo episódios de enfrentamento aberto, como a greve geral de 1962 ou, de forma indireta, a Campanha da Legalidade em defesa da posse de João Goulart, em 1961.

Portanto, diferente das décadas anteriores, em que Getúlio Vargas conseguiu exercer um papel bonapartistas, se colocando acima das classes, João Goulart não o conseguiu. Os militares, com o golpe de 1964, assumiram esse papel bonapartista, buscando acabar com o processo de polarização, ou seja, esmagar as mobilizações dos trabalhadores no sentido da aplicação do projeto da burguesia.

Perseguindo e desmantelando as organizações de esquerda, os militares, representando os interesses da burguesia mais afinada com o imperialismo, levaram a cabo um projeto de estruturação do Estado, aplicando inclusive versões deturpadas das reformas de base, como as mudanças na CLT em 1966 e a reforma universitária em 1968. Essas medidas, ao mesmo tempo em que aprofundaram o processo de industrialização e de urbanização do Brasil, foram responsáveis pela ampliação das desigualdades e da concentração de renda e pelo atrelamento de forma ainda mais profunda da burguesia nativa aos interesses do imperialismo.

As interpretações revisionistas, ao procurar atribuir à esquerda um papel revolucionário que ela majoritariamente não tinha no contexto do golpe e mesmo da ditadura, ignoram o fato de que havia um processo anterior ao golpe da burguesia em tentar barrar ao máximo a conquista de direitos dos trabalhadores ou de garantir o avanço de suas mobilizações. Neste caso, a própria CLT, ao controlar os sindicatos, foi uma peça central na tentativa de controlar as ações das organizações dos trabalhadores. Outro aspecto passava pelo fato de o PCB, principal organização dos trabalhadores no período, estar na ilegalidade. E, ainda, cabe destacar os golpes ou tentativas de golpe ocorridas nos períodos anteriores, como as tensões envolvendo a eleição de 1956.

Portanto, o que se tem como fato é que houve tentativas de bloquear as ações dos trabalhadores e de suas organizações, no sentido de manter a estabilidade social e política nas décadas anteriores. Nesse processo, o operariado, que se consolidou enquanto classe, não poderia reivindicar mais do que as migalhas que a industrialização em processo garantia como direitos.

Portanto, ao ver os trabalhadores organizados e mobilizados ou mesmo as organizações voltando a ter um esboço de vida pública, a burguesia se percebeu acuada e trouxe para a retórica das disputas políticas o fantasma do anticomunismo. Contudo, não estava no horizonte das esquerdas qualquer subversão da ordem, mas o desenvolvimento econômico e a ampliação de direitos dentro da ordem capitalista.

Naquele contexto, se essas direções que frearam as mobilizações fossem superadas pelas próprias massas, poderia se abrir uma situação revolucionária, que colocaria em risco a ordem burguesa, mas, a despeito das ações dos trabalhadores, suas direções não iam para além do programa das “reformas de base”. Esse elemento mostra que, apesar de ter derrubado João Goulart, em última instância, o golpe foi travado contra os trabalhadores e seu potencial de mobilização, caso as direções reformistas não conseguissem controlar as mobilizações em curso.

Em sua correta análise, os trotskistas afirmavam, ainda durante a ditadura: “A burguesia, apavorada diante do movimento de massas, que se radicalizou antes de 1964, escapando das mãos dos pelegos, conseguiu unir suas forças, para promover contra João Goulart o golpe que, em última instância, era dirigido contra as massas”.[xix] Nesse sentido, coerente com fatos e sem distorcer as posições defendidas pela esquerda no contexto de 1964, pode-se afirmar: “Na visão dos protagonistas do golpe, a crescente mobilização política e o avanço da consciência ideológica dos setores populares e dos trabalhadores, que se acentuava na conjuntura, poderiam implicar o questionamento do sistema político e da ordem econômico e social que, a rigor, deveriam permanecer sob o estrito controle e domínio das classes possuidoras e proprietárias”.[xx]

Com isso, fica claro quem foi o responsável pelo golpe e qual foi o papel das principais organizações da esquerda. As interpretações revisionistas, que acabam por ganhar grande influência na historiografia acadêmica, e que escondem o papel bonapartista dos militares, não permitem compreender a permanência dos elementos de repressão que ainda persistem no ordenamento constitucional construído na nova República.

Além disso, apontam para uma narrativa de defesa da democracia, que teria sido atacada tanto pelos militares, como pela esquerda, o que leva a acreditar que salvadores democratas entre civis e militares teriam cumprido um papel no retorno da democracia. Essa é a narrativa que garante a manutenção da ordem capitalista e a defesa das instituições burguesas no presente.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] Jorge Ferreira & Angela de Castro Gomes. 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 240.

[ii] Jorge Ferreira & Angela de Castro Gomes. 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 243.

[iii] Carlos Fico. O golpe de 1964. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 64.

[iv] Carlos Fico. O golpe de 1964. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 67.

[v] Daniel Aarão Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 7.

[vi] Daniel Aarão Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 135.

[vii] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 28-29.

[viii] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 30.

[ix] Daniel Aarão Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 39-40.

[x] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 9.

[xi] Leandro Konder. Vaca fardada. Margem Esquerda, nº 3, maio 2004, p. 49.

[xii] Leandro Konder. Vaca fardada. Margem Esquerda, nº 3, maio 2004, p. 50.

[xiii] Declaração sobre a política do PCB (março de 1958). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p 192.

[xiv] Resolução política dos comunistas (dezembro de 1962). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p. 254.

[xv] Por um governo que faça as reformas de base (06.03.1964). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p. 266.

[xvi] VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73.

[xvii] Carlos Marighella. A crise brasileira. In: Caminhos da revolução Brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 239-40.

[xviii] PCdoB. União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jair Ferreira de Sá (Org.). Imagens da revolução. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 84.

[xix] Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jair Ferreira de Sá (Orgs.). Imagens da revolução. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 392.

[xx] Caio Navarro de Toledo. 1964: golpismo e democracia. Crítica Marxista, nº 19, outubro 2004, p. 42.

# Celso Furtado e a quartelada há 60 anos

Na ocasião dos 40 anos do golpe, dois meses antes de morrer, o economista brasileiro refletiu sobre os anos de chumbo. Para ele, o Nordeste sofreu os efeitos mais nefastos, com a interrupção de reformas sociais, que desafiavam o poder dos latifundiários

(Outras Palavras)

# A relação da Alemanha com a ditadura

Trabalho apresentado à Comissão (Nacional da Verdade) concluiu que mais da metade das 16 empresas alemãs instaladas no Brasil em 1971 engajaram-se diretamente com a ditadura, incluindo Volkswagen, Siemens, Krupp e Telefunken

(DW)

# O que foi a Operação Brother Sam?

Washington planejou enviar apoio aéreo e naval aos militares brasileiros. Por US$ 2,3 milhões, movimentação foi claro sinal do interesse americano em buscar alinhamento do Brasil na Guerra Fria (ao custo da democracia e dos direitos humanos)

(DW)

# A Casa Branca no Planalto verde-oliva

Insistir no debate sobre o cenário transnacional é o melhor caminho para entender, além do dia 31 de março, ou do 1º de abril, os 21 anos que se seguiram: como o Chile de Allende, nos anos 70, o Brasil tornou-se peça fundamental no jogo pesado da Guerra Fria

(Le Monde)

Ao mesmo tempo em que propagava o mito da democracia racial, regime militar enquadrava como crime de segurança nacional as ações que denunciavam o racismo contra a população negra

(DW)

Nos 60 anos do golpe, especialistas analisam as iniciativas para estabelecer a memória e a responsabilização das atrocidades do regime militar e o apoio que ele ainda encontra na sociedade

(DW)

# Acesse aqui o conteúdo integral da GIZ  e o vídeo com o debate sobre o impacto do golpe de 64 na universidade

Revista GIZ , número 2, abril de 2024

Estudo e discussão de questões políticas, culturais e profissionais que envolvem o trabalho de Professoras e Professores em todos os níveis de ensino

Os disfarces da direita

Fortalecer o crime, corromper polícias e lotar cadeias: as ideias dos governadores do Sul e Sudeste para a segurança. Baseados em achismos e cálculo eleitoral, governadores querem propostas que, além de ridículas, já mostraram que não funcionam

João Filho, Intercept (expandir)

NA SEMANA EM que os brasileiros souberam que o crime organizado e o estado brasileiro atuaram em conjunto para matar Marielle Franco, governadores do Sul e do Sudeste foram à Brasília para apresentar ao governo federal e ao Congresso um conjunto de propostas para a área da segurança pública. 

Enganou-se quem achou que teríamos novas propostas para reformar as polícias e o sistema carcerário e aumentos de investimentos em inteligência e prevenção. Muito pelo contrário. Absolutamente todos os itens propostos pelos governadores estão norteados pela velha lógica de sempre: a repressão, o punitivismo e o fortalecimento de um estado policialesco. 

Trata-se da mesma fórmula que vem fracassando há décadas e que nos trouxe ao atual estado de calamidade na segurança pública. Não há uma ideia sequer que leve em conta, por exemplo, que as polícias estão contaminadas pelo crime organizado. 

Para emprestar um verniz moderno e civilizado para um pacote de ideias velhas e apodrecidas, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, foi o escalado para explicar as quatro principais propostas. No Twitter, ele apresentou um resumo delas. 

Vejamos a primeira: “queremos o fim do prende e solta. Estamos propondo uma revisão nos requisitos da legislação para concessão de liberdade provisória em audiências de custódia no caso de crimes graves e quando há reincidência”. Não há nenhum dado científico que embase essa proposta. Pelo contrário, os números mostram que mais se prende do que se solta em audiências de custódia. 

Cecília Olliveira, jornalista do Intercept Brasil e fundadora do Instituto Fogo Cruzado, comentou: “Só 35% dos homicídios são investigados. Dava pra começar uma nova política de segurança com essa ideia: elucidando crimes. Aí talvez a gente soubesse se o ‘prende e solta’ é msm o problema. Se prisão fosse solução, viveríamos na Suíça. Temos a 3ª maior população carcerária do mundo”. 

O que não falta no Brasil é gente sendo encarcerada. Em 2000, o país tinha mais de 232 mil presos. Hoje, 24 anos depois, esse número aumentou em quase 400%. Qual foi o resultado dessa política? A expansão e o fortalecimento do crime organizado, que fez do sistema carcerário uma espécie de categoria de base em que se recruta novos talentos para o time.

A segunda proposta: “atualizar a legislação sobre os requisitos para abordagens. Queremos reforçar aos policiais a prerrogativa de realizar abordagens conforme circunstâncias suspeitas. E também deixar expresso na legislação que é vedada a atuação com base em preconceitos”. 

A ideia é contraditória e ridícula. Para o professor de Processo Penal e Direitos Humanos, Caio Paiva, “autorizar a polícia a se valer indistintamente da suspeita e do tirocínio não combina com proibir preconceito na abordagem”. Ora, a abordagem com base em preconceito já é vedada pela legislação, mas isso nunca foi um empecilho para que jovens pretos e pobres da periferia fossem parados na rua apenas por serem jovens pretos e pobres de periferia. Na prática, a proposta só reforça o direito do policial abordar qualquer um, mesmo que não haja suspeita fundada. Nada de novo no front.

A terceira proposta: “permitir acesso pelas forças policiais às informações de monitoramento eletrônico independente de autorização judicial, para melhorar a integração, qualificar a atuação policial e as investigações”. É o liberou-geral para os policiais investigarem ao seu bel-prazer. 

A proposta prevê maior liberdade de investigação para uma corporação que está em boa parte contaminada por bandidos. Não é difícil imaginar o que faria Rivaldo Barbosa — o delegado que ajudou a planejar o assassinato de Marielle— sem precisar de autorização judicial para monitorar seus inimigos. Os outros Rivaldos Barbosas espalhados pelo país também fariam o diabo com essa carta branca. O crime organizado agradece aos governadores.

A quarta proposta é o cúmulo do ridículo: “tornar qualificado o crime de homicídio quando for praticado por ou a mando de organização criminosa”. Os assassinatos cometidos pelo crime organizado já são considerados hediondos em praticamente todos os casos. A proposta simplesmente ignora o código penal, mas dialoga bem com uma população embriagada pelo populismo punitivo como solução. 

Como se vê, os governadores não têm a mínima ideia do que estão falando. Eles encontraram uma forma de se eximir de suas responsabilidades e jogar a bucha no colo do Judiciário e do Legislativo. 

As propostas estão baseadas na mesma cartilha enxuga-gelo que adotamos nos anos 1980, que ajudou a lotar as cadeias de pretos e pobres, fortalecer o crime organizado e corromper as polícias. De lá pra cá, o crime organizado tomou conta de todos os estados do país e se internacionalizou. Hoje as facções estão infiltradas em prefeituras, câmaras municipais, financiam candidatos e nomeiam secretários. Nenhuma das propostas apresentadas fere essa estrutura criminal – muito pelo contrário.

Essas ideias populistas caem com facilidade no gosto de uma população que foi educada por professores como Datena, Alborghetti e Ratinho.

Estudiosos da áreas da segurança pública não foram consultados pelos governadores. As propostas são vazias, inócuas e baseadas no mais puro negacionismo científico, mas soam bem aos ouvidos de boa parte dos eleitores que têm a segurança pública no topo das suas preocupações

Baseado em achismos e cálculo eleitoral, essas ideias populistas caem com facilidade no gosto de uma população que foi educada nas últimas décadas por professores como Datena, Alborghetti e Ratinho. Os programas policiais sensacionalistas martelaram durante décadas na cabeça da população a máxima “bandido bom é bandido morto” — o que contribuiu para banalizar os crimes cometidos pela polícia e pavimentar o caminho para ascensão do bolsonarismo. 

Os governadores sulistas e sudestinos, todos homens brancos de direita, não propuseram nenhuma medida que qualifique a investigação policial para prender os grandes líderes das organizações criminosas, que muitas vezes moram em condomínios de luxo. Pelo contrário, insistem em pesar a mão do estado sobre a cabeça de peixe pequenos do crime nas ruas das periferias. Esse é o museu de grandes novidades que foi apresentado ao país nesta semana. Ainda que alguns vistam sapatênis e camisa polo, como Eduardo Leite, todos eles preferem fugir das evidências e continuar bebendo confortavelmente o puro suco do bolsonarismo. 

Agarram-se no velho populismo penal e dobram a aposta no pânico moral em busca de votos em um ano de eleição. Convenhamos, não podíamos esperar nada diferente de uma direita tradicionalmente oportunista e que está ávida pelo espólio eleitoral de Bolsonaro.

Ensino Médio: concliliação com o atraso pode destruir a educação pública

As mães, pais e trabalhadores em geral sabem que as escolas estão piores com o Novo Ensino Médio

Isis Mustafá, Opera Mundi (expandir)

Opinião

O Congresso Nacional atua dia e noite para manter as maldades dos governos golpistas de Temer e Bolsonaro impostas ao povo, além de, sempre que possível, aprofundar a destruição dos direitos. 

Esse objetivo está expresso na decisão de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, de nomear ninguém menos que Mendonça Filho (União) para ser o relator do Projeto de Lei 5230/2023 do Governo Federal, que versa sobre a Política Nacional de Ensino Médio. Esse deputado foi ministro da Educação do governo Temer e participou da elaboração da Reforma do Ensino Médio em 2017, que foi aprovada na canetada, através de Medida Provisória. Essa nomeação, que parece mais uma piada de péssimo gosto, escancara o desdém do Congresso com a educação brasileira.

Assim, em 20 de março, a Câmara dos Deputados aprovou o relatório substitutivo de Mendonça ao PL 5230/2023. O texto final inclui o aumento de 1800 para 2400 horas de disciplinas obrigatórias na formação geral básica. Um grande avanço, já que se tratava de um aspecto fundamental da batalha contra a Reforma. Mas mantém praticamente todos os outros retrocessos da Reforma do Ensino Médio. 

O que assistimos no plenário, na realidade, foi o Ministério da Educação forjando uma vitória do governo ao fazer um acordo com Mendonça para avançar na pauta das 2400 horas, abrindo mão de todo resto.

Revogar o NEM é a luta mais forte da educação

Quando implementada, em 2022, a Reforma fez seus efeitos serem sentidos imediatamente pelos estudantes e professores: redução da carga horária das disciplinas fundamentais, presença de empresas privadas nas escolas públicas, horas e horas de aulas jogadas no lixo com disciplinas que servem apenas para alienar a juventude. O descontentamento é geral. 

Não à toa, o movimento estudantil chamou manifestações para exigir a revogação completa do chamado “Novo” Ensino Médio, ao lado dos trabalhadores e sindicatos da educação. Para Isabella Gandolfi, diretora da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), ir às ruas foi fundamental para que “a voz dos estudantes fosse ouvida em dois sentidos: tanto para pressionar o governo a não dar continuidade na implementação da reforma, como para mostrar à sociedade os verdadeiros impactos do NEM, que estava sendo vendido como a solução aos problemas da educação pública.”

O presidente Lula argumentou que não revogaria a Reforma sem ter algo para colocar no lugar, porque o Ensino Médio antes também era muito ruim. Corajosamente, a Campanha Nacional pela Educação produziu então um projeto de lei substitutivo à Reforma (PL 2.601/2023) que foi amplamente discutido com educadores, entidades estudantis e parlamentares que defendem a educação. 

Ainda que a decisão do Governo Federal tenha sido apresentar um PL alternativo (5230/23), o fundamental foi que as mobilizações populares obrigaram que o tema fosse tratado com a urgência que merecia, e não cair na poço do esquecimento, como outras exigências da classe trabalhadora (reforma da previdência e trabalhista, interventores nas universidades, etc). 

Só acaba quando termina: próximos passos da luta pela revogação 

O Coletivo Em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, ligado à Campanha Nacional pela Educação, expressou em nota pública que não se deve comemorar a versão final do texto, porque ele contém aspectos que continuam promovendo a desigualdade e baixa qualidade no ensino. 

São eles, segundo o Coletivo: 

Esses e outros pontos de destruição da educação pública a partir da Reforma podem ser consultados no vasto material produzido pela Campanha Nacional pela Educação.

O texto ainda vai para votação no Senado. Mas sabemos que não é possível depositar todas as esperanças da educação em parlamentares que são, em sua maioria, reacionários e devotos do capital financeiro. Como vimos nos últimos anos, a luta dos estudantes e educadores ainda tem chances de fazer com que a reforma seja completamente revogada, especialmente porque as mães, pais e trabalhadores em geral sabem que as escolas estão piores com o NEM. Com essa força e esperança, estamos construindo grandes manifestações de rua no próximo dia 9 de abril, aprovado pelas entidades estudantis como data nacional de luta em defesa da educação brasileira. 

Flávio Dino ainda usou o voto para criticar o golpe de 1964, que ele chamou de “período abominável”. “O Estado de Direito foi destroçado pelo uso ilegítimo da força”, escreveu. “São páginas, em larga medida, superadas na nossa história. Contudo, ainda subsistem ecos desse passado que teima em não passar, o que prova que não é tão passado como aparenta ser.”

...e do domingo

Flávio Dino dá o 3o voto no STF contra poder "moderador" das Forças Armadas: "Função militar é subalterna", diz ministro em voto que acompanha os juizes Fux e Barroso. "O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela sobernia popular" (leia Fausto Macedo, no Estadão)

leituras do sábado...

# 60 anos do golpe de 64 # chacinas de Tarcísio podem levá-lo a perder o cargo # Bolsonaro sem passaporte não tem para onde ir, exceto para a cadeia # Israel volta à cena de seus crimes em Gaza...para matar mais palestinos # Verdades e mentiras sobre a eleição na Venezuela # Poder Moderador dos militares é bugiganga golpista. 

# "Quis apresentar ditadura e cultura brasileira aos franceses"

Mathias Lehmann conta como foi produzir Chumbo (DW)

# Que sejam punidos os arrancadores de unhas

Documento da Aeronáutica denuncia tortura dos opositores do golpe (Estadão)

60 anos esta noite

Lula não entendeu que não lembrar do golpe de 64 pemite que ele aconteça de novo

Ao não tratar com clareza sobre o tema, presidente abre as portas para novas tentativas de ruptura da democracia. Pedro Doria, Estadão (expandir)

O golpe de 1964 não é passado. Não é um ponto distante na história que olhamos com enfado escolar. 

A ditadura está ainda e viva e pulsando, hoje, no Brasil. Está nas ruas. 

Não faz nem dois anos, quatro generais de Exército e um almirante de Esquadra se sentiram confortáveis

o suficiente para planejar um novo golpe militar. Um golpe que impedisse que o candidato eleito se tornasse presidente

Pois aquele presidente, o nosso atual presidente, inacreditavelmente decidiu que o governo não deve lembrar do golpe.

Lula não entendeu nada.

No auge da crise argentina, não se viu movimentação nas Forças Armadas do país. 

Os militares tampouco se mexeram quando o Chile encheu de gente nas ruas em protestos violentos. Não é por acidente. 

O general Jorge Rafael Videla morreu com diarreia, no vaso sanitário de sua cela e não há general argentino que não saiba disso. 

Os chilenos viram o general Augusto Pinochet passar seus últimos anos fugindo dum mandado de prisão. Nós escolhemos, ativamente, não lembrar. Vivemos hoje as consequências disso.

O que argentinos e chilenos fizeram foi um exercício ativo de lembrança. 

Da Praça de Maio sempre com suas mães, hoje já bisavós, com o lenço branco. Do Museu da Memória que toda criança chilena visita em Santiago. A lembrança do que foi a ditadura é um esforço cívico e um dever do Estado.

Aqui, todo 31 de março é a mesma coisa. 

Passamos semanas discutindo se os quartéis vão celebrar a instauração da ditadura. 

Ainda hoje as Forças Armadas não tratam o que fizeram pelo que foi: golpe. A ruptura da Constituição. A interrupção da Democracia e a instauração de uma ditadura.

Se um general pode elogiar um golpe, se pode discutir a interpretação da história, é porque o Estado

concorda que há debate. As Forças são do Estado. E chegamos ao ponto em que o presidente da República que foi vítima duma nova tentativa de golpe escolhe não lembrar.

A escolha de não lembrar, a escolha de não tratar com clareza a coisa pelo seu nome, é o que faz acontecer de novo. 

Como aconteceu.

Esta é minha última coluna. Por ora. Não é a primeira vez que encerro um ciclo nas páginas do jornal, torço para 

que não seja a última. Calhou de acontecer justamente nos 60 anos do golpe. 

Este jornal, O Estado de S. Paulo, tem uma história heroica de resistência a ditaduras. 

Não só a última, dos atos institucionais e seus generais, mas também a do Estado Novo. Também a de Floriano. 

Este jornal nunca teve medo de acusar presidentes autoritários nos períodos democráticos, 

como Artur Bernardes ou Jair Bolsonaro. Quase um século e meio passado de sua fundação, 

este é um jornal que consistentemente pode dizer que trabalhou pela Democracia Liberal. 

Não é pouco. Ter o nome escrito com regularidade em suas páginas é motivo de orgulho para qualquer jornalista. 

Então, a meus colegas, e a vocês leitores, fica não um adeus. Só um até logo ;-)

60 anos esta noite

Não é história, é presente. O Estado construído por traumas não deve temer suas mazelas

Lula, depois de tudo pelo que passou - perseguido e preso durante a ditadura -, representa o governo com traumas recentes em mexer em feridas da ditadura militar. Marcelo Rubens Paiva, Estadão (expandir)

Minha vida, infelizmente, sempre foi com mais transtornos do que planejei. 

Quando pensei que encerrava meu ciclo de textos em que tragédias pessoais e familiares estavam na premissa, 

me vejo novamente no topo de um vulcão. Queria escrever sobre o novo sofá de quatro lugares reclinável do 

Palácio da Alvorada. Os ocupantes têm de votar sobre quantos graus o encosto deve ficar?

Mas Lula... Ele representa o governo com traumas recentes em mexer em feridas da ditadura militar

Porém, o Estado é construído pelos traumas e tem o dever de relembrar suas mazelas, não temer.

Dilma abriu o debate do que aconteceu e de quem foram os agentes de crimes cometidos durante os anos de chumbo. 

Os anteriores, Tancredo, Sarney, Collor, FHC e Lula, homens, governaram pisando em ovos, sob o pacto invisível de não desagradar a setores que, na República, demonstraram não ter pudor em apontar a espada ou o canhão para derrubar um governo constitucional.

Lula, surpreendentemente, depois de tudo pelo que passou, logo ele, perseguido e preso durante a ditadura, 

não recebeu em seu terceiro mandato a Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos

enrolou para recriá-la, determinou que órgãos do governo silenciassem sobre os 60 anos do Golpe de 64 

e engavetou um projeto do seu ex-ministro da Justiça, Flávio Dino, o Museu da Verdade.

O presidente diz que a ditadura “faz parte da história”. Manifestantes pedindo intervenção militar, com cartazes 

escritos AI-5, camisetas com o rosto do torturador Brilhante Ustra, ou a frase “Ustra Vive”, não são história. 

A dor e o sofrimento de quem teve um familiar torturado, morto, desaparecido não são história. 

Autoridades públicas exaltando a repressão do regime militar, inclusive a tortura, a censura de livros, exposições, 

perseguição e morte de jornalistas, como Dom Phillips, não são história.

Os abusos da PM paulista na operação na Baixada Santista, o caso Amarildo, Marielle e Anderson, a absolvição de militares 

que mataram o músico Evaldo, a herança de uma sociedade escravocrata, o genocídio indígena, não são história, 

mas efeitos da impunidade do passado, de uma sociedade violenta e da falta de memória e covardia de quem deveria liderar.

A tentativa do golpe de 8 de janeiro não teria acontecido se não varrêssemos para debaixo do tapete a tragédia brasileira. Não é apenas por conta de militares legalistas que o Brasil tem uma democracia resguardada, é pelo passado de que ainda não nos esquecemos, inclusive a Comissão Nacional da Verdade, mas que futuras gerações podem achar que é história.

Quem é Vicktor Orbán, o fascista húngaro que quer asilar o fascista brasileiro Jair Bolsonaro?

Estudo de uma ultradireita peculiar: sem criar um Estado policial nem cancelar eleições, premiê húngaro submeteu sistema político-eleitoral, Judiciário e mídia – até asfixiar a oposição. Por que alguns sonham com a exportação do modelo?

Glauco Faria, Outras Palavras (expandir)

Milhares de pessoas protestaram em Budapeste nesta terça-feira (26), em uma área próxima ao Parlamento. Pediam a renúncia do primeiro-ministro Viktor Orbán e de seu procurador-geral. A manifestação foi organizada após a divulgação de um áudio feito por um ex-funcionário e ex-aliado do governo, Péter Margyar, em um diálogo com sua esposa e ex-ministra da Justiça, Judit Varga, apontando para uma tentativa de adulteração de documentos para acobertar um caso de corrupção envolvendo Pál Vílner, ex-secretário de Estado do Ministério da Justiça.

As manifestações são incomuns na Hungria atual, país em cuja embaixada Jair Bolsonaro se hospedou entre os dias 12 e 14 fevereiro e para o qual, suspeita-se, poderia pedir asilo político caso avancem os processos que podem condená-lo à prisão. Mas o que haveria por trás desta preferência húngara do ex-presidente? E por que Orbán desponta, nos últimos meses, como alguém relevante, na caterva de líderes da “nova” ultradireita?

A história começa em 2010. Ao longo dos últimos 14 anos, Viktor Orbán construiu uma espécie de “fascismo soft”, para usar a expressão de Zack Beauchamp, repórter sênior do Vox. “A oposição não foi esmagada – mas não consegue respirar”, relata o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring (confira entrevista concedida por ele ao Outras Palavras). Um conjunto de mudanças institucionais fechou o regime, submetendo o sistema eleitoral, o Judiciário e a mídia ao controle autoritário do primeiro-ministro e de seu partido, o Fidesz. Uma atividade intensa nas redes sociais, com ampla divulgação de fake news, ampliou este controle e laços especiais da presidência com certos empresários garantiram o financiamento do esquema – em troca de favores.

Como resultado, Orbán conseguiu formatar um modelo autoritário com aparência aparentemente legal, algo que não é exatamente novo e que vem se tornando tendência em diversas partes do mundo. Um sistema que, embora sem recorrer a um Estado policial, “visa acabar com a dissidência e assumir o controle de todos os aspectos importantes da vida política e social”, segundo Beauchamp. É este governante que troca elogios com Bolsonaro e talvez o inspire. Vale conhecer ponto por ponto o sistema político que ele construiu.

Virando à (extrema) direita

Nem sempre Viktor Orbán esteve no espectro da extrema direita, diferentemente de outras lideranças do campo que chegaram ao poder nos últimos anos. Em 1998, quando foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, governou como um conservador relativamente convencional, postura que mudou após o Fidesz perder as eleições de 2002 para uma aliança comandada pelo Partido Socialista.

Assim como acontece com extremistas derrotados em diversos lugares, Orbán e seus seguidores nunca aceitaram a derrota de 2002 como legítima, acusando seus oponentes de fraude eleitoral. Em entrevistas, atribuiu ainda sua derrota aos meios de comunicação e à influência do capital internacional. “Orbán mudou visivelmente depois de 2002”, conta a ex-companheira de militância do primeiro-ministro húngaro, Zsuzsanna Szelényi, em Tainted Democracy. Após o resultado, foi criada uma rede de grupos de campanha (chamados “cívicos”) para promover os ideais do Fidesz, particularmente sobre questões de identidade nacional e religiosa.

“Depois de também perder a eleição subsequente em 2006, Orbán deixou de lado seus colegas mais moderados. Quando o governo liderado pelos socialistas após a eleição de 2006 cometeu um erro político – um discurso do primeiro-ministro vazou, no qual ele admitiu que o partido mentiu durante a campanha sobre a situação da economia – Orbán lançou um ataque político agressivo para removê-lo do poder”, lembra Szelényi em artigo publicado em 2015. “Ele polarizou o discurso público, retratando a coalizão do governo liberal de esquerda como o adversário da nação e promoveu agitação para mobilizar constantemente as ruas.” Embora seus esforços para remover a coalizão governista do poder não tenham tido sucesso àquela altura, o governo foi obrigado a ir para a defensiva.

Seguindo a mesma toada, ao realizar um discurso em 2009 em uma reunião a portas fechadas, Orbán anunciou a necessidade de “estabilidade política” na Hungria, pedindo a criação de um “campo político central” que governaria o país por até 20 anos, suprimindo na prática o bipartidarismo dominante até então.

Controle da mídia

“O primeiro movimento que o Fidesz fez após a vitória eleitoral em 2010 foi adotar a legislação da mídia. Naquela época, Orbán disse que essa medida era uma ‘correção’ para o viés esquerdista na mídia do país. As disposições legais então recém-adotadas, vagas e ambíguas, exigindo, entre outras coisas, que o conteúdo da mídia fosse ‘equilibrado’ e não incitasse o ódio ‘contra qualquer maioria’, visando a intimidação de jornalistas independentes”, contava, em 2017, o diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade (CMDS) da Escola de Políticas Públicas (SPP)da Central European University, Marius Dragomir.

Mas a estratégia era mais ampla e contava com a participação de empresários próximos de Orbán. Algumas fusões de grupos de comunicação foram negadas pelo Conselho de Mídia, enquanto outras eram estimuladas pelo governo, de acordo com o grau de “amizade” dos interessados com o Fidesz. Em agosto de 2017, os últimos cinco jornais independentes que haviam na Hungria foram comprados por oligarcas aliados do governo.

À época, a ONG Repórteres Sem Fronteiras criticou as negociações. “Essas últimas aquisições de apoiadores do partido no poder são mais uma confirmação do desejo do governo de controlar a mídia”, pontuava a entidade. “Este golpe para a independência da imprensa regional é o mais perturbador no período que antecede as eleições parlamentares.” Eleições estas vencidas pelo Fidesz.

Em 2018, no entanto, o plano deliberado de promover a concentração de mídia pró-governo atingiu seu ápice quando os investidores favoráveis a Orbán “doaram” 467 meios de comunicação, muitos dos quais originalmente adquiridos com empréstimos de bancos estatais, para a Central European Press and Media Foundation (Kesma), sob controle efetivo do governo. Isso facilitou a gestão financeira e o controle de conteúdo em relação aos meios de comunicação pró-governo. A formação da holding em um único dia foi tão bizarra que obrigou o governo a emitir um decreto classificando tais transações como de “importância estratégica nacional”, evitando qualquer questionamento em relação à lei da concorrência.

A publicidade estatal também foi direcionada de forma a sufocar os independentes. A emissora pró-governo TV2 recebeu 67% da publicidade estatal no setor de televisão, no ano de 2018, enquanto a independente RTL Klub, de alcance similar, recebeu apenas 1%, segundo relatório divulgado em 2019.

Mudando as regras do jogo

Uma reforma eleitoral promovida após a vitória do Fidesz em 2010 praticamente inviabilizou a vitória da oposição em vários locais do país. Na Hungria, os parlamentares são eleitos em sistema distrital misto e o partido refez os desenhos dos distritos adotando o chamado gerrymandering, comum em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, que realizam o chamado redistritamento após a divulgação dos censos. Muitas vezes governadores adaptam os territórios para favorecer o partido no poder, mas se nos EUA há duas legendas em disputa, o redesenho húngaro foi dominado unicamente pelos interesses de Orbán.

No sistema húngaro são dados dois votos, um para um representante do seu círculo eleitoral de origem e outro para um partido. Em 2014, após as mudanças, o Fidesz obteve 45% dos votos mas levou dois terços dos assentos, enquanto outros três partidos conseguiram 51% e ficaram com um terço. A legislação nova deu mais assentos no Parlamento aos círculos eleitorais (106) do que àqueles eleitos por lista (93). Isso deu mais peso aos distritos remodelados, ajudando na formação de um resultado absolutamente desproporcional em favor do partido governista, que teve 45% dos votos nos círculos eleitorais individuais em 2014 e ainda assim obteve 88% dos assentos.

Em uma análise publicada depois dos resultados daquela eleição, o economista Paul Krugman dissecou os dados e concluiu que a “maioria absoluta” conquistada então “veio de uma variedade de truques legais contidos nas leis que foram escritas pelo Fidesz, para o Fidesz”.

Ainda havia mais alterações sob medida para favorecer os que estavam e ainda estão no poder. “Outra mudança complicada feita pelo Fidesz foi dar dupla cidadania aos húngaros étnicos que nunca viveram na Hungria. Com a nova Constituição de Orbán, cerca de 600 mil húngaros étnicos que são altamente favoráveis à direita receberam o direito de voto, ao mesmo tempo em que foi muito mais difícil para os cidadãos húngaros que vivem no exterior participarem das eleições”, explicou a secretária do Tribunal Constitucional Federal Alemão e editora associada do Verfassungsblog, Anna von Notz, em artigo publicado após a terceira vitória do partido governista húngaro em 2018.

Ela pontua que a mudança mais impressionante foi a chamada “compensação vencedora”. Em sistemas eleitorais mistos, muitas vezes um voto para um único candidato que perde o distrito é usado para complementar os totais na lista do partido. No caso húngaro, foi criado um sistema do avesso. Além de ganhar o mandato individual, os votos excedentes em relação àquilo que o candidato precisava para ganhar vão para a lista. Ou seja, o partido que venceu o distrito (que, como vimos foi redesenhado em favor do Fidesz) ganha mais votos no cálculo da lista partidária.

“A fraude eleitoral pode não acontecer apenas no dia da eleição. Nas autocracias modernas, assim como as ferramentas da repressão são muito mais sofisticadas do que nas ditaduras clássicas, as formas de manipular a eleição não consistem apenas em falsificar os resultados. A situação eleitoral é pré-organizada para produzir o resultado que os incumbentes querem: é isso que é uma eleição manipulada”, apontam os pesquisadores Bálint Magyar e Bálint Madlovics, do Instituto de Democracia CEU, em seu relatório sobre as eleições húngaras de 2022.

Justiça de mãos atadas

Sistemas de Justiça em geral costumam ser alvo de partidos e regimes de extrema direita. Buscando ampliar seu raio de ação sem qualquer constrangimento legal, o objetivo é cercear a ação do Judiciário ou mesmo dominá-lo. Foi o que aconteceu na Polônia sob o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que promoveu, entre outras reformas no setor, normas dando ao Legislativo o poder de nomear integrantes do Conselho Nacional do Judiciário, órgão de supervisão dos magistrados, assim como a prerrogativa de escolher e destituir presidentes do Supremo Tribunal.

Na Hungria, o modelo de nomeação de juízes constitucionais, que incluía tanto o governo quanto a oposição, foi substituído por um novo processo assegurando que a vontade do partido no poder iria prevalecer. A mudança foi feita logo em 2010, quando Orbán assumiu, e foi aprovado ainda um aumento no número de titulares do Tribunal Constitucional, que passou de 11 para 15. Outra alteração se deu na escolha do presidente da Corte, que antes era definida por seus próprios integrantes e passou a ser feita por uma maioria de dois terços no Parlamento.

Com a redução do limite para aposentadoria compulsória de 70 para 62 anos, em 2013, o Fidesz já tinha a maioria dos membros do Tribunal. “É revelador, por exemplo, que dos 26 casos iniciados pela oposição e decididos entre 2014 e 2020, o Tribunal Constitucional constatou violações parciais da Constituição em apenas 2 casos, enquanto todas as outras moções foram completamente mal sucedidas”, aponta o pesquisador de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas e especialista sênior em Estado de Direito da União das Liberdades Civis para a Europa, Viktor Z. Kazai, em artigo.

Kazai destaca ainda que, nos últimos sete anos e meio, a presidência da Corte ficou nas mãos de Tamás Sulyok, hoje presidente do país escolhido pelo Parlamento, após a renúncia de Katalin Novak, evidenciando a ligação política entre o Fidesz e o magistrado. “E é um sinal claro da falta de independência e autonomia do Tribunal o fato de este ter quase invariavelmente decidido a favor dos partidos governantes em casos politicamente sensíveis.”

Inúmeras outras mudanças foram feitas para ampliar o domínio do governo sobre o Judiciário. Em 2018, o Parlamento aprovou um projeto dando ao ministro da Justiça a palavra final sobre a nomeação, promoção e salário dos juízes. Por conta destas iniciativas, instituições da União Europeia implementaram processos contra o governo húngaro que bloquearam recursos para o país, existindo até mesmo a possibilidade de a Hungria perder seus direitos de voto na UE.

Sob pressão, Orbán promoveu em 2023 novas reformas buscando atender parte das demandas do bloco em relação à independência do sistema de Justiça. Mesmo consideradas insuficientes, as alterações fizeram com que a Comissão Europeia desbloqueasse em janeiro 10,2 bilhões de euros do Fundo de Coesão, destinado a ajudar os países a manter sua infraestrutura nos padrões da União Europeia. Trata-se de uma ajuda fundamental para a Hungria, que terminou o ano de 2023 com uma inflação de 17% e perspectiva de contração do PIB de 0,8%.

Modelo exportação?

Nos discursos do Fidesz e de seu líder Viktor Orbán, por conta das restrições e dos processos em curso sobre o governo húngaro, o inimigo de ocasião hoje é a União Europeia. Mas, como em todo espectro da extrema direita, este é um papel que muda conforme os ventos políticos. Os comunistas já foram os inimigos principais, assim como os social-democratas, ONGs, George Soros, imigrantes… A estratégia clássica utilizada para manter sua base mobilizada.

As redes sociais na Hungria também são um instrumento importante para difundir o discurso de ódio e fake news. A organização Human Rights Watch entrevistou especialistas em privacidade e proteção de dados, integridade eleitoral e campanhas políticas, além de empresas envolvidas em campanhas baseadas em dados para analisar a campanha eleitoral de 2022. Segundo eles, as plataformas de mídia social desempenharam um papel importante, embora complexo, nas eleições de 2022.

“Por um lado, os anúncios políticos online criaram novas oportunidades para as campanhas da oposição chegarem aos eleitores num ambiente onde estes estão em grande parte excluídos dos espaços publicitários tradicionais. Por outro lado, uma vez que as leis nacionais que regulam os limites de despesas de campanha não estão sendo aplicadas aos anúncios online, a disponibilidade de publicidade no Facebook, em particular, beneficiou tremendamente o Fidesz, que com os seus recursos descomunais gastou mais do que a oposição”, diz a entidade.

A investigação também descobriu algo grave, a coleta de dados por parte do governo para uso político-eleitoral. “A Human Rights Watch descobriu que o governo reaproveitou os dados coletados de pessoas que se inscreveram para a vacina contra a covid-19, solicitaram benefícios fiscais ou se registraram para ser membros de uma associação profissional, para espalhar as mensagens de campanha do Fidesz. Por exemplo, as pessoas que enviaram seus dados pessoais a um site administrado pelo governo para se registrar para a vacina contra a covid-19 receberam mensagens políticas destinadas a influenciar as eleições em apoio ao partido no poder.”

O modelo Orbán conseguiu até agora ser vitorioso com essa mescla de mobilização permanente em defesa de valores tradicionais, medidas autoritárias e de controle que minam qualquer oposição, conseguindo chegar a uma parcela da população empobrecida pela adoção de medidas neoliberais e privatizantes na primeira década dos anos 2000.

“O Fidesz formou um pequeno grupo de capitalistas próximos do governo, ao mesmo tempo que prossegue com uma política muito antissindical”, disse ao Le Monde o economista da Universidade de Viena Joachim Becker. Como o capital quase nunca se importa com o grau de democracia de um país, Orbán conseguiu atrair investimentos da Audi, BMW e Opel, que criaram fábricas no país, gerando empregos importante no contexto húngaro pós-crise de 2008.

“Uma das partes mais desconcertantes de observar o fascismo húngaro soft de perto é que é fácil imaginar o modelo sendo exportado. Enquanto o regime de Orbán surgiu da história e da cultura política únicas da Hungria, seu manual para repressão sutil poderia, em teoria, ser administrado em qualquer país democrático cujos líderes tenham tido o suficiente da oposição política”, pontua Zack Beauchamp. Evitar a exportação do “modelo Orbán” para o resto do mundo implica em discutir os mecanismos da democracia e o que ela oferece à boa parte do excluídos social e economicamente, hoje seduzidos pelas promessas e soluções simples dos extremistas.

Glauco Faria

Glauco Faria é jornalista do Outras Palavras. É ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual. Co-autor do livro Bernie Sanders: A Revolução Política Além do Voto (Editora Letramento). Leia outros artigos no Substack (https://glaucofaria.substack.com/)

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