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O que há de novo? Vida que segue...

Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata, por um lado, de preservar a herança histórica da unidade nacional e, por outro, de continuar a construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. O Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa sociedade mais justa e preservar sua independência política (Celso Furtado)

# Críticas descabidas (A Terra é redonda)

Acordei hoje com vontade de defender o ministro Fernando Haddad. Não me ocorre sempre. Por diferenças de temperamento, fundamentalmente. A meu modesto juízo, Fernando Haddad peca por um espírito excessivamente conciliatório. Preocupado, às vezes um tanto demais, em atender a plutocracia local e o sistema financeiro, o ministro da Fazenda pode cometer enganos (Paulo Nogueira Batista Jr)

Por que não deveríamos (ter privatizado) nossa água

Apenas de um ponto de vista de administração pública, a privatização da Sabesp é danosa e nem falamos em outros elementos cruciais deste processo, como a qualidade da água e outros aspectos da privatização que estão sendo destacados na imprensa, como a falta de concorrência e a venda abaixo do preço de mercado (Leia Daniela Constanzo, Boitempo)

Uma cena final parecida com um Spielberg dos anos 80

Paris: a diversidade cultural e uma certa narrativa da História

Pois então...
O desafio da cerimônia de abertura das Olimpíadas continua sendo - como em edições passadas - o da performance cênica e musical que retrate o poder absoluto que um evento dessa dimensão permite ao Estado que o promove. O resultado em Paris parece dar razão ao comentário de Jamil Chade (leia aqui): a diversidade como matriz do simbolismo que cercou toda a cerimônia e o isolamento discursivo da perspectiva fascista que sempre quer se apoderar das manifestações massivas. A única exceção parece ter sido a exagerada grandiosidade e pretensão da Pira Olímpica - como se a narrativa da festa pudesse ser a versão definitiva da História (J.S.Faro)

26 de julho: 71 anos do assalto ao Quartel Moncada

O socialismo em Cuba e os eventos de 1953. Matéria publicada no Brasil de Fato em 2023 por ocasião dos 70 anos do movimento que culminou o amadurecimento da revolução de maior impacto anti-imperialista na América Latina (# leia mais)

São Paulo: Eleições 2024

Sakamoto: Marta faz Boulos subir 10 pontos no 2o turno e Mello sangra Nunes
Quando os eleitores são informados de que Marta Suplicy (PT) será candidata a vice-prefeita de Guilherme Boulos (PSOL), a intenção de votos no segundo turno da chapa passa de 36% para 46%. Enquanto isso, ao ser informado de que o coronel Ricardo Mello (PL), apontado por Jair Bolsonaro, será o vice de Ricardo Nunes (MDB), a intenção de votos da chapa cai de 43% para 36% (# leia mais)

 A complexidade dos ícones que nos identificam. Quem somos nós, os brasileiros? Ou a pausterização global torna essa dúvida sem sentido?

Bordadeiras rebatem críticas ao uniforme do Brasil nas Olimpíadas

Pois então...
Nosso cacoete colonizado pode estar por trás dessa aversão ao registro da autenticidade do nacional, do popular, dos ícones do decolonial? Ou a crítica ao artesanato das artesãs do RN rejeita o exotismo tropical que nos condena à periferia da modernidade? Qual é a imagem que fazemos de nós mesmos? Ela nos redime e emancipa ou nos constrange e envergonha?

# Leia a matéria do G1

Crescimento: seis décadas de ilusões

Ideia de que o aumento do PIB é o objetivo central da Economia remonta aos anos 1950. Deformou conceitos de Keynes. E, depois de multiplicar a desigualdade e minar a democracia, terminou em… estagnação. Como revertê-la agora? Ann Pettifor, Outras Palavras (acesse)

Este ensaio faz parte de uma série de artigos, editada por Stewart Patrick e originada do Grupo de Trabalho Carnegie sobre Reimaginar a Governança Econômica Global.

“Crescimento” é um termo usado por economistas que têm em vista uma atividade econômica ampliada: um aumento no investimento, emprego, bens e serviços. Também é usado, de forma pejorativa, por ambientalistas convencidos de que a expansão interminável da atividade econômica em um mundo com recursos finitos é insustentável. Eles empregam mais comumente seu antônimo, “decrescimento” – como em The Future Is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism [“O futuro é decrescimento: Um guia para um mundo além do capitalismo”]. O uso e a evolução de “crescimento” e sua ligação com o PIB representam uma etapa importante no surgimento do sistema atual de governança econômica global, baseado nas expectativas de “crescimento” contínuo, por sua vez facilitado pela desregulamentação financeira e mobilidade de capital. Tal “crescimento”, no contexto do capitalismo financeirizado, levou a desequilíbrios ecológicos, sociais e econômicos que ameaçam provocar colapso sistêmico.

Os fluxos globais de liquidez, consequência do desenvolvimento do sistema financeiro, são canalizados em grande parte por instituições financeiras não bancárias, também conhecidas como “bancos-sombra” [shadow banks]. Segundo o Conselho de Estabilidade Financeira, o valor total dos ativos financeiros detidos pelos bancos-sombra em 2022 totalizou 217 trilhões de dólares – mais que o dobro do PIB mundial. Por definição, essas instituições operam além do alcance da democracia regulatória, embora estejam vinculadas aos bancos centrais do mundo. Suas atividades impactam a formulação de políticas econômicas pelos Estado e representam riscos sistêmicos para a economia mundial.

Para reimaginar a governança econômica global, precisamos voltar no tempo e examinar o surgimento de um sistema de “não governança” econômica global, ou um “não sistema”, para citar o economista colombiano José Antonio Ocampo. Uma “não governança” que levou à criação do sistema bancário sombra e a desequilíbrios financeiros e econômicos globais desestabilizadores.

As Origens do “Crescimento” e da Desregulamentação

A história começa com o economista britânico John Maynard Keynes. Na década de 1930, Keynes desempenhou um papel muito maior na criação e construção das contas nacionais do Reino Unido (e, por fim, do mundo) do que geralmente se reconhece. Fez isso não com o propósito de contabilidade, mas para avaliar o nível existente de renda em relação ao nível potencial, sob certas condições políticas.

O valor do que então era conhecido como “renda nacional”, e que veio a ser definido por Simon Kuznets como “PIB”, era de menor interesse para Keynes. Como explica Geoff Tily, Keynes considerava a criação desta conta como um meio para um fim, não um fim em si mesmo. “As contas nacionais foram desenvolvidas para apoiar a política: resolver a crise do desemprego da Grande Depressão e ajudar no uso pleno dos recursos nacionais para a condução da Segunda Guerra Mundial.” É importante reconhecer, continua Tily, que

essas iniciativas teóricas e práticas visavam ao emprego ampliado, e em seguida pleno, dos recursos; e à plena extensão da produção nacional – muito mais do que ao crescimento da atividade. Nesta fase, não havia noção, por parte dos formuladores de políticas, de que o nível de atividade poderia ser estimulado de maneira sistemática ou uniforme de ano para ano; a intenção era alcançar mudanças de nível pontuais. Não há dúvida de que eles foram bem-sucedidos nesse objetivo e em sustentar esses ganhos na era dourada do pós-guerra.

A Revolução do “Crescimento”

Essa abordagem das contas nacionais mudou radicalmente no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. No Reino Unido, vários economistas profissionais – entre eles, Sir Samuel Brittan, colunista proeminente do Financial Timesdefenderam um novo conceito de “crescimento” contínuo e se definiram como “os homens do crescimento” [the growthmen]. Foi uma abordagem que mudou o caráter da política ao longo da era pós-guerra. Abandonando o objetivo de fixar o nível de emprego e de produção em níveis sustentáveis, os governos passariam a estabelecer uma meta sistemática e improvável: perseguir o crescimento. Ninguém parece ter parado para considerar se o crescimento – calculado como a taxa de variação de uma função contínua – era uma maneira significativa ou válida de interpretar as mudanças no tamanho das economias ao longo do tempo, escreve Tily.

Em paralelo, a política econômica passou a enfatizar cada vez mais as abordagens a partir da produção [supply-side approaches]e, na prática, um compromisso com a desregulamentação da atividade econômica. Isso é exemplificado pelo Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que adotou, em 12 de setembro de 1961, um “Código para a Liberalização dos Movimentos de Capital”. Esse código, uma estrutura para a remoção progressiva de barreiras aos fluxos de capital entre países, presumivelmente foi projetado para viabilizar o que Tily chama de “ambição ridícula de crescimento rápido e incessante, independentemente da capacidade do mercado de trabalho”.

Em outubro de 1961, a OCDE realizou uma conferência sobre “Crescimento Econômico e Investimento em Educação” no Brookings Institution em Washington. Encorajada por economistas “clássicos” e desanimada com os níveis de atividade econômica – que eram altos, mas sustentáveis – a OCDE propôs impulsionar drasticamente as economias do Reino Unido e de outros países. Na época, o Reino Unido estava na feliz situação de assegurar pleno emprego. Nas palavras do então primeiro-ministro Harold Macmillan, os britânicos “nunca tiveram uma situação tão boa”. Em 17 de novembro de 1961, a OCDE concordou com uma meta de crescimento de 50% para o Reino Unido de 1960 a 1970. Equivalia a 4,1% ao ano. Na época, a taxa de desemprego britânica era de 1,2%.

O resultado destas metas excessivamente ambiciosas era totalmente previsível – uma época de inflação desenfreada nos anos 1970, seguida por períodos de excessos financeiros e crises recorrentes. A culpa por essa inflação tem sido atribuída, injustamente, a Keynes e ao movimento trabalhista. Na verdade, a tentativa de alcançar uma meta de crescimento muito implausível, em condições de quase pleno emprego, levou à desconstrução do legado de Keynes: a “idade de ouro” do capitalismo de 1945 a 1971. Acima de tudo, levou ao desmantelamento do sistema de governança econômica global gerida, que fora estabelecido na conferência de Bretton Woods, em 1944.

A questão Governança Econômica Global

Na introdução de seu livro Who Governs the Globe? [“Quem governa o mundo?”], Deborah Avant, Martha Finnemore e Susan Sell argumentam que o termo técnico “governança” obscurece o papel desempenhado pelos que dirigem de fato do mundo. Tais abstrações absolvem de sua responsabilidade indivíduos e instituições poderosas, incluindo atores não estatais. Além disso, como elas explicam,

As estruturas estatais não dão conta (…) da governança real existente no mundo hoje. Apenas uma pequena fração da atividade de governança global envolve representantes do Estado negociando apenas entre si (…) Globalização, desregulamentação, privatização e mudança tecnológica capacitaram atores não estatais. Grande parte da literatura sobre governança global a equipara, implícita ou explicitamente, à provisão de bens públicos globais… [Na verdade,] os resultados da governança frequentemente estão desconectados tanto do público quanto do bem. A inação global sobre as mudanças climáticas, a falta de acesso às vacinas contra HIV/AIDS e COVID são exemplos proeminentes. O colapso financeiro global de 2007–09 é outro.

A ausência de governança pelos Estados na economia global levou a um sistema econômico internacional que, na prática, é governado não por autoridades públicas (ou seja, democráticas), mas privadas – mesmo quando instituições públicas financiadas pelos contribuintes desempenham o papel de subsidiar, reduzir riscos e resgatar instituições financeiras privadas.

Graças à mobilidade do capital, atores privados no sistema financeiro internacional exercem influência indevida sobre políticas vitais para a estabilidade econômica dos Estados, incluindo taxas de câmbio, taxas de juros e fluxos globais de investimento, capital e comércio. Essa perda de autoridade pública sobre as economias global e doméstica levou à desilusão com a democracia. Acima de tudo, gerou níveis obscenos de desigualdade dentro e entre os Estados. Essa desigualdade, como Michael Pettis e Matthew C. Klein ilustram em seu livro Trade Wars Are Class Wars [“Guerras comerciais são guerras de classe”]ajudou a criar desequilíbrios nas contas comerciais e de capital entre os Estados.

O modelo econômico global que surgiu da revolução do crescimento dos anos 1960 volta as economias não para a esfera doméstica – mas para os mercados de capitais internacionais desregulados e as exportações. A orientação para exportação de economias como a da Alemanha e a China aumenta a renda do 1% mais rico – os proprietários e acionistas de corporações orientadas para exportação. As rendas dos 99% restantes – os salários dos trabalhadores na economia doméstica – são deprimidas. A Fundação British Resolution calcula que, após quinze anos de estagnação, as rendas no Reino Unido estão em média £230 [R$ 1700] abaixo de antes da crise financeira global de 2007–2009. O Congresso dos Sindicatos [Trade Unions Congess] argumenta que os trabalhadores suportaram o mais longo aperto salarial desde as guerras napoleônicas, no início do século XIX.

No entanto, o problema é: o 1% mais rico não gasta toda a sua renda. Há limites para o número de superiates, jatos particulares e propriedades luxuosas que seus integrantes podem comprar. Em contraste, os 99% gastam toda a sua renda—usando-a para manter seu teto, comprar comida, proteger sua saúde e enviar seus filhos para a escola. No entanto, como as rendas caíram em termos reais, as populações passaram a carecer do poder de compra necessário para adquirir tudo o que é produzido pela economia orientada para exportação. Não é que o poder de compra da sociedade esteja buscando bens e serviços escassos; há, ao contrário, muitos bens e serviços disponíveis, disputando o pequeno poder de compra das maiorias. Esse desequilíbrio levou a altos níveis de dívida privada, à medida que os 99% tomam dinheiro emprestado para habitação, saúde e alimentação, ao mesmo tempo em que as empresas (que não conseguem vender tudo o que produzem) tomam empréstimos para compensar a queda nas vendas.

As consequências são o oposto da teoria econômica convencional: superprodução, altos níveis de dívida privada e rendas em queda. A experiência mostrou que todos esses elementos levam a crises financeiras globais.

O que precisa ser feito?

As políticas de Keynes para níveis estáveis de produção e emprego exigiam um sistema econômico global que apoiasse a formulação de políticas domésticas – em vez de se opor a elas. Ao preparar o Tesouro Britânico para a conferência de Bretton Woods, Keynes explicou à Câmara dos Lordes em 1944 que sua “principal tarefa nos últimos vinte anos” tinha sido garantir que

no futuro, o valor externo da libra esterlina estará conforme a seu valor interno, estabelecido por nossas próprias políticas domésticas, e não o contrário. Em segundo lugar, pretendemos conservar o controle sobre nossa taxa de juros doméstica, para que possamos mantê-la tão baixa quanto convier aos nossos próprios propósitos, sem interferência do fluxo e refluxo dos movimentos internacionais de capital ou voos de dinheiro especulativo. Em terceiro lugar, embora pretendamos prevenir a inflação em casa, não aceitaremos a deflação ditada por influências externas. Em outras palavras, rejeitamos os instrumentos de taxa bancária e contração de crédito operando através do aumento do desemprego como um meio de forçar nossa economia doméstica a se alinhar com fatores externos.

Keynes assumiu que um sistema monetário voltado principalmente aos interesses das finanças e da riqueza se opunha a níveis estáveis de produção e emprego doméstico e, em última análise, a relações comerciais e financeiras equilibradas entre Estados. Dado o entendimento científico atual sobre os recursos finitos da Terra, é evidente que um sistema econômico global baseado em juros compostos sucessivamente acumulados e em concentração de capital também se opõe a um clima e ecossistema estáveis. A crença na viabilidade e continuidade de tal sistema é utópica. Dada a crise ambiental, as populações que se defrentam com condições climáticas cada vez mais duras e com quebras de colheitas e de geração energética terão que transformar urgentemente o “não sistema” mundial, para estabilizar as economias domésticas.

A estabilidade econômica global exigirá a restauração do equilíbrio ao sistema comercial internacional e a reorientação das economias. Ao invés de dirigidas para o sistema financeiro global, elas precisarão priorizar aos interesses econômicos domésticos, em particular os da maioria: os 99%. Em outras palavras, a economia global precisa ser levada para longe dos interesses da riqueza globalizada e em direção aos interesses dos trabalhadores na economia doméstica. Devemos novamente construir uma economia para o trabalho—especialmente o trabalho de restaurar o equilíbrio ao ecossistema—e não para a riqueza.

Se queremos manter a aposta na democracia e afastar a ameaça das forças autoritárias, as sociedades devem cooperar para ajudar a restaurar a autoridade pública, democrática e responsável sobre a economia global e doméstica. Essa transformação só pode ser alcançada se a comunidade internacional trabalhar em solidariedade para restringir e gerenciar os fluxos globais de capital e comércio. Para isso será necessária uma nova forma de governança econômica global, baseada na cooperação e coordenação internacional—e em atividade econômica equilibrada e sustentável.

Um dos modos de fomentar a solidariedade internacional é desmantelando o sistema financeiro com mobilidade de capital irrestrita, baseado em uma moeda de reserva hegemônica—um sistema tão prejudicial aos cidadãos do hegemon quanto a muitos outros Estados, como argumenta Michael Pettis. E é essencial para qualquer movimento rumo a “um mundo além do capitalismo” abandonar o sistema que turbinou a globalização: o mito do “crescimento”, visto como variação de uma função contínua.   

ANN PETTIFOR

Ann Pettifor é uma economista política, autora e oradora pública sobre o sistema econômico e financeiro global, sobre dinheiro, política monetária e sobre a economia do Reino Unido. Seu último livro, The Production of Money (Verso 2017) explica a natureza do dinheiro e do sistema monetário. Ela é um dos poucos economistas que previu a crise econômica de 2008. No final da década de 1990, ela liderou uma campanha, a Jubilee 2000, que como parte de um movimento internacional resultou no cancelamento de aproximadamente US $ 100 bilhões em dívidas dos países mais pobres. Atualmente, é diretora do PRIME (Policy Research in Macroeconomics), uma rede de economistas que promove a teoria e as políticas monetárias de Keynes e que enfocam o papel do setor financeiro na economia.

Tarcísio de Freitas já é, no segundo ano de seu governo, um administrador recordista nos prejuízos que provoca em todas as áreas de atuação do estado

São Paulo perde R$ 4 bilhões ao vender Sabesp sem concorrência e ações mais baratas

(...) o governo de São Paulo perdeu R$ 4 bilhões com a venda de 32% da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Segundo Kennedy Alencar, a Companhia foi vendida por preço abaixo do mercado. Quem ganhou vai depender ainda de um tempinho para saber. Mas, claramente, o estado de São Paulo perde na largada R$ 4 bilhões: as ações foram vendidas por 22% a menos que o preço de mercado. As ações do último pregão fecharam R$ 87. A empresa foi entregue a um único sócio, agora estratégico, por R$ 67. 

# Assista Kennedy Alencar no Análise da Notícia (Uol) # Tragédia para o interesse público (247) # Perda bilionária (GGN) # Tarcísio pode ter 'vendido' Sabesp para aventureiros donos de empresa de "fundo de quintal" (adapt Folha) # Para Nassif é "negociata" (247) # Alemanha privatizou e voltou atrás (Uol) # Zaratini: "um fracasso" (Carta Maior) # O que os moradores de Cametá pensam da empresa que "levou" a Sabesp (leia na postagem abaixo)

Revolta de moradores prejudicados pela inexperiência absoluta da mesma empresa que 'ganhou' a Sabesp de Tarcísio (ninguém sabe direito como)

Moradores de Cametá protestam contra Equatorial, a empresa que 'comprou' a Sabesp

# Leia a matéria no Dol, do Pará


"Trazemos ampla experiência em infraestrutura", diz CEO da Equatorial


Companhia opera principalmente na distribuição de energia e tem pouca atuação no setor de saneamento. # Leia a matéria no Uol

Entenda a maracutaia de Tarcísio: "Conflito de interesses: Equatorial é do mesmo grupo que adquiriu a Cemar e a Eletrobrás e repetiu as mesmas manobras para a venda" (Leia Patrícia Faermann no GNN)

Pesquisa EUA: Kamala Harris 44%; Trump, 42%

Provável candidata democrata à Casa Branca nas eleições de novembro afirma que escolha dos eleitores será "entre o caos e a liberdade". Leia mais: G1, 247, CNN. Outras notícias no clippling do site: acesse

Hamas, Fatah e outros grupos palestinos assinam acordo de união nacional

Em Pequim, 14 organizações palestinas, incluindo o Hamas e Fatah, assinaram um acordo de “união nacional” nesta terça-feira (23/07) com intuito de incluir todas as forças dentro da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e formar um governo conjunto na Faixa de Gaza após o fim da guerra de Israel no enclave (# leia no Opera Mundi)

O apagão digital

A catástrofe algoritmica e a 'nuvem do apagão'. Sérgio Amadeu da Silveira em A Terra é redonda

A sociologia da modernidade produziu um conjunto de reflexões que precisam ser aprofundadas, principalmente nestes tempos de espraiamento das ondas reacionárias que convivem e se alimentam da ascensão de tecnologias que se propõe mediadoras de todas as atividades humanas. O sociólogo Ulrich Beck em Sociedade do risco, publicado na Alemanha em 1986, alertava que os riscos e as incertezas haviam se tornado centrais nas sociedades modernas embaladas pelo progresso tecnológico e industrial (continue a leitura)

1.

Ulrich Beck já apontava que tais riscos seriam cada vez mais invisíveis e sua percepção seria conformada pelas instituições científicas e pela mídia. A dinâmica do risco seria incorporada e a busca constante por responsáveis e culpados pelos desastres nos conduziria para certa política sustentada pela gestão de riscos.

A percepção de Ulrich Beck não poderia ser mais realista, uma vez que as tecnologias digitais dominaram a economia e grandes empresas que as controlam e comandam o seu desenvolvimento impuseram um estilo de gestão de riscos. O filósofo Yuk Hui abriu seu texto Algorithmic catastrophe – the revenge of contingency, de 2020, as catástrofes tecnológicas não são simplemente falhas materiais, mas são falhas da razão. Inspirando-se em Paul Virilio, Yuk Hui pensa os sistemas tecnológicos contemporâneos como portadores de catástrofes e de técnicas de mitigação das próprias tragédias que suas dinâmicas e finalidades geram.

As catástrofes são inevitáveis pela própria natureza das tecnologias de automação e automatização. Nossos sistemas caminham para o uso crescente de soluções de inteligência maquínica baseadas em estatística e probabilidade convertidos em sistemas algorítmicos que operam a partir de um gigantesco poder computacional gerando modelos que são utilizados para automatizar atividades e o risco das mesmas.

Norbert Wiener, no texto Some moral and technical consequences of automation, publicado em maio de 1960 na revista Science, declarou que se as máquinas poderiam desenvolver estratégias imprevistas, uma vez que portavam algoritmos de aprendizado o que nem sempre poderia ser compreendido e acompanhado por seus programadores.

2.

O que aconteceu no dia 18 e 19 de julho de 2024 é exemplo de uma catástrofe algorítmica. O sistema de gestão de risco, mais precisamente de mitigação de ataques cibernéticos falhou. Uma incorreção na atualização de software da empresa de segurança cibernética CrowdStrike que é aplicada no sistema operacional da Microsoft gerou o que a imprensa mundial nomeou de apagão cibernético ou digital. Uma mensagem da Microsoft no antigo Twitter, atual X, dizia: “Estamos cientes de um problema com os PCs em nuvem do Windows 365 causado por uma atualização recente do software CrowdStrike Falcon Sensor”.

Todo sistema digital incorpora de alguma forma a tentativa de detecção e de contenção de erro, falha, ataque, ou seja, de riscos e incidentes. Por isso, existem outros sistemas algorítmicos que atuam o tempo todo para analisar falhas, erros e ataques. Antivírus são um exemplo de atuação preventiva para proteger um sistema de envio de arquivos maliciosos que podem destruir informações e até encriptar base de dados para a obtenção de resgate pelos criminosos que detenham a chave para decifrar as informações. Curiosamente, o problema ocorrido e chamado de “apagão” se deu quando o sistema de proteção ou de prevenção de ataques acabou promovendo um ataque ao sistema de deveria defender.

Anthony Giddens e Ulrich Beck escreveram que na modernidade tardia, os riscos são, em grande parte, produzidos pela própria sociedade, principalmente pela tecnologia, industrialização e globalização. Todavia já estamos há muito tempo na modernidade tardia, estamos em um sistema capitalista em putrefação. O sonho do capitalista é distópico e busca substituir ao extremo o trabalho humano pelos sistemas automatizados com o objetivo de reduzir custos e aumentar a qualidade e a precisão dos serviços e produtos com a elevação da produtividade.

Assim, no capitalismo contemporâneo as grandes empresas de tecnologia avançam na coleta incessante de dados para aprimorar a extração de padrões dos processos humanos, sociais e maquínicos. Mas, esse sonho tem consequências sociotécnicas não previsíveis e não controláveis.

É importante destacar aqui que os riscos se amalgamam com objetivos que os ampliam, entre os quais, está a busca pelo domínio do mercado promovida pelos oligopólios digitais, as chamadas Big Techs. Já na primeira década do século XXI, o modelo de negócios baseado na chamada computação em nuvem se alastrou acelerando a concentração de poder computacional, de armazenamento de dados, e consequentemente, ampliando a concentração econômica.

Como é o negócio de nuvem? O que significa a frase “meus dados estão na nuvem”? Nuvem é uma metáfora para o negócio de armazenamento e processamento de dados e sistemas que estão localizados em data centers que são acessados remotamente pela internet. Como diz a piada “nuvem é o computador dos outros”.

Algumas poucas empresas se especializaram e acabaram dominando o negócio de provimento de nuvem. A Amazon Web Server e a Microsoft Azure, em 2021, detinham 60% do mercado mundial de nuvem que ofereciam a infraestrutura como serviço. O que isso quer dizer. Que diversas empresas, instituições, governos substituíram suas próprias infraestruturas de processamento e armazenamento de dados locais por contratos para que a Amazon e a Microsoft “cuidassem” e “alugassem” espaço de armazenamento de dados e serviços computacionais.

Os custos de contratação da nuvem para as empresas e governos eram convidativos. Isso levou a um crescimento gigantesco desse mercado. A consequência foi mais concentração econômica.

Segundo o Gartner Group, a concentração no mercado de Infraestrutura de nuvem como serviço (IaaS) era a seguinte em 2023: a Amazon detinha 39%, a Microsoft 23 %, o Google 8,2%, o Alibaba 7,9%, a Huawei 4,3%. Essas cinco empresas dominavam 82,4% do mercado global de nuvem. Além disso, esse cenário está se agravando devido ao treinamento dos grandes modelos de linguagem, o LLMs, que necessitam de muitos computadores disponíveis com altíssima capacidade de processamento ou poder computacional. Portanto, a Inteligência Artificial Generativa baseada na extração de padrões de grande quantidade de dados está contribuindo para a concentração de poder computacional que implica em poder econômico.

3.

No dia do apagão, muitas empresas foram acessar seus aplicativos e sistemas na nuvem da Microsoft e deram de cara com a famosa tela azul, ou seja, o sistema operacional não conseguia funcionar. Muitas pessoas que tinham o Microsoft 365 também tiveram o acesso aos seus arquivos bloqueados. O Microsoft 365 é como um serviço de assinatura que dá aos usuários o acesso ao pacote Office e demais serviços pela internet, em vez de instalá-los localmente em suas próprias máquinas.

Isso significa que os dados e arquivos dos usuários são armazenados na nuvem da Microsoft, permitindo que eles acessem seus documentos e informações de qualquer lugar com uma conexão à internet. Exceto quando a própria empresa que oferece o serviço tenha uma falha, um ataque ou promova um bloqueio, intencional ou não.

O apagão demonstrou o poder gigantesco que possui um mediador das relações digitais e um operador de tratamento de dados como a Microsoft. Sem dúvida, a falha não intencional gerou o apagão. Mas, fica evidente que a Microsoft tem o poder de bloquear o acesso de empresas e instituições a seus próprios dados localizados nos seus data centers, bem distante da nossa jurisdição e de nossa capacidade de acesso físico.

Temos aí um problema de soberania digital. Os dirigentes do Estado brasileiro precisam avaliar os riscos de continuar hospedando seus dados estratégicos e usando softwares de uso cotidiano em infraestruturas fora do nosso país. Nossas universidades precisam debater se não seria fundamental manter os dados de sua comunicação e de suas pesquisas em infraestruturas instaladas em nosso país, em nossa jurisdição e submetidas aos nossos comitês de ética. A autonomia necessária ao desenvolvimento cada vez mais passa pela soberania digital.

*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Autor, entre outros livros, de Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal (Autonomia Literária). [https://amzn.to/3ZZjDfb]

Referências


BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. The reinvention of politics: Towards a theory of reflexive modernization. Staford University Press, 1994.

BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010.

GARTNER Says Worldwide IaaS Public Cloud Services Revenue Grew 16.2% in 2023

STAMFORD, Conn., July 22, 2024. Link: https://www.gartner.com/en/newsroom/press-releases/2024-07-22-gartner-says-worldwide-iaas-public-cloud-services-revenue-grew-16-point-2-percent-in-2023

HUI, Yuk. Algorithmic catastrophe. The revenge of contingency. Parrhesia: A Journal of Critical Philosophy, n. 34, 2020.

WIENER, Norbert. Some Moral and Technical Consequences of Automation: As machines learn they may develop unforeseen strategies at rates that baffle their programmers. Science, v. 131, n. 3410, p. 1355-1358, 1960.

Intermitências

Um capitalismo parasitário e especializado em criar pobreza às custas da espoliação do trabalho

Proletários da plataforma

Por trás do hype capitaneado por big techs existe uma cadeia de trabalho opaca e abusiva. Essa série revela as entranhas e os impactos do mercado de inteligência artificial no Brasil.Como a indústria de IA lucra criando uma nova classe trabalhadora sem direitos no Brasil. Tatiana Dias e Sofia Schurig. # Acesse aqui este e outros capítulos da série do Intercept

Eleições nos EUA: o cavalo de pau democrata na corrida pela Casa Branca

(clipping do site: acesse aqui)

# Lua de Mel entre Milei e mercado acabou

Investidores não querem saber de desvalorização do peso (Folha)

Da crise americana ao vazio hegemônico

Declínio dos EUA ameaça a ordem liberal. China emerge; porém, não aspira ao papel de Washington. Neste vácuo, haverá riscos, mas também cenário favorável ao Sul Global (Outras Palavras)

O que há de novo?

Lula: Boulos eleito é garantia de que extrema direita não vai voltar

Lançamento da candidatura de Guilherme Boulos (deputado federal pelo PSOL e cabeça da chapa progressista na eleição municipal de outubro) ocorre em momento de crescimento da popularidade de Lula em todo o Brasil, especialmente em São Paulo. Programa de atuação apresentado à sociedade representa trincheira de luta contra interesses privados que querem continuar destruindo a cidade através de fantoches bolsonaristas. Acompanhe o noticiário postado abaixo. 

PSOL oficializa candidatura de Boulos

# Com Lula e Marta Suplicy no palco, candidato apresentou seu programa de governo voltado para a amplição dos serviços sociais, erradicação do abandono em que vive a população sem teto e melhora da qualidade da vida destroçada pela especulação empresarial em todos os setores (leia no G1).

Leia também: # Como foi o evento de lançamento da chapa Boulos-Marta (Uol) # Pesquisa indica forte apoio a Lula entre eleitores paulistanos (247) # Paraná Pesquisa: empate técnico entre Boulos e Nunes persiste, mas selvageria fascista pulveriza votos da extrema direita (adapt Carta Maior) # Armas e homeschooling afastam evangélicos de SP do bolsonarismo (Folha)

Acesse Dossiê Eleições 2024

A partir desta edição do site,  páginas exclusivas sobre os problemas de São Paulo e sobre a ameaça que os partidos neofascistas representam para a cidade

Bandidos de Deus

Após expulsar praticantes de religiões afro-brasileiras, traficantes evangélicos passam a perseguir também os católicos. 

# Leia Maurício Thuswohl na Carta Capital 

Imprensa propaga discurso enganoso ao associar pentecostalismo a tráfico de drogas

# Leia a matéria no site Bereia

Magali Cunha

Quando matérias e análises sobre evangélicos são reféns de preconceitos

Magali Cunha, especial para o site 

Doutora em Ciências da Comunicação,  pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia - Informação e Checagem de Notícias [em ambientes digitais religiosos]. 

A cena pública brasileira, nas primeiras duas décadas do século 21, foi muito alterada dado o protagonismo alcançado pelas religiões. O enfraquecimento da hegemonia do Catolicismo Romano, o crescimento numérico, geográfico, cultural e político dos evangélicos e as demandas por liberdade religiosa dos grupos afrorreligiosos não apenas impuseram novas pautas como tornaram explícito o lugar das religiões nos diversos modos de vida que formam o Brasil. Porém, foi o lugar que passou a ser ocupado pelo segmento evangélico, o que mais passou a chamar a atenção e a desafiar debates, compreensões, análises e a cobertura da imprensa (continue a leitura)

Isto se deu pelas transformações culturais experimentadas, na virada do século 20 para o 21, com a explosão gospel (presença nas mídias que media produção musical, mercado de bens e serviços e entretenimento religiosos) e a intensificação da presença na política (consolidação de espaço no Legislativo, ampliação de atuação no Executivo e ocupação do Judiciário). O ápice da visibilidade do segmento cristão evangélico foi alcançado com a aliança entre a extrema-direita em consolidação no país e uma significativa parcela das lideranças de corporações evangélicas (em parceria com setores ultraconservadores católicos, espíritas e judaicos) que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018.

A pequena atenção, até então dispensada ao grupo religioso que mais se expandiu no Brasil, segundo os dados dos dois últimos censos populacionais, apesar dos muitos estudos e análises por acadêmicos especialistas das ciências humanas e sociais, se tornou um desafio assumido pela imprensa e por analistas da cultura e da política. E ele passou a se dar entre erros crassos e esforços que merecem louvor.

Considerados, primeiro, os esforços, vale ressaltar o desafio assumido por duas mulheres jornalistas, Andrea Dip e Anna Virgínia Balloussier, que ocuparam o espaço de jornalistas especializados em religião, existente até meados da primeira década dos anos 2000, e depois, lamentavelmente, extinto. Dip e Balloussier assumiram, com primor, as pautas que lhe foram confiadas por editores e não só se especializaram na cobertura sobre o segmento evangélico, com a apresentação de matérias dignas e densas, como produziram relevantes livros-reportagem, com foco na dimensão política, em 2018 e 2024, respectivamente, com base no conhecimento que acumularam.

Já os erros, na forma de tratar a destacada visibilidade de evangélicos, tanto por jornalistas quanto por analistas, foram se acumulando, com: (1) a abordagem do segmento como “os” evangélicos, transparecendo uma homogeneidade neste grupo, historicamente, tão diverso; (2) o credenciamento de alguns poucos líderes midiáticos alçados a porta-vozes do segmento, o que não cabe nesse contexto; (3) ignorância sobre as diferentes ramificações confessionais a ponto de serem registrados erros nos nomes das igrejas e de ramificações; (4) exposição de incompreensão sobre as diferentes teologias e tendências ideológicas históricas, com privilégio de espaço à corrente conservadora.

Avalio que boa parte destes erros se dá por descuido com a apuração e a pesquisa, e pela predominância de práticas jornalísticas “de buscas de internet”. São poucos os redatores buscam especialistas que desafiam o tema com diferentes pontos de vista e questionamentos. Em muitas matérias, observa-se a palavra de pesquisadores usada para confirmar o que se já considera de antemão na construção das notícias e das análises.

É aqui que chegamos ao que penso ser o ponto crucial desta discussão que é o imaginário de jornalistas e analistas. Tratei sobre isto em artigo publicado na revista E-Compós, em 2016, quando avaliei a forma como os diferentes grupos religiosos são representados em matérias de mídias noticiosas do Brasil. O estudo mostra que o noticiário enfatiza o Catolicismo Romano institucionalizado, alimentado pelo imaginário social de “verdadeira e válida religião”. Por meio de uma análise de conteúdo foi possível identificar, a partir de um levantamento das matérias que trataram do tema “religião”, durante o ano de 2014, como uma noção exclusivista de religião é construída no País a partir do noticiário.

Minha análise se ateve aos discursos contidos nas matérias estudadas. No entanto, em 2020, uma importante pesquisa aprofundou o tema, com dados oriundos das próprias redações. Os pesquisadores Jacques Mick e Kevin Furtado, produziram investigação sobre o perfil religioso de jornalistas e identificaram três diferenças marcantes nas redações: a) presença mais significativa de não praticantes e ateus; b) participação significativamente menor de católicos e evangélicos; c) maior expressividade de espíritas (kardecistas) e praticantes de religiões de origem africana. O texto mostra que essas diferenças, entre outros fatores, podem explicar fenômenos como a relativa desatenção da cobertura jornalística sobre evangélicos e as abordagens em geral positivas que o Espiritismo (Kardecista) recebe nas mídias.

Este imaginário de religião dominante, “a” verdadeira, faz com que pessoas, entre elas jornalistas, olhem para a visibilidade do segmento evangélico em busca de confirmação da série de noções construídas, na sua educação formal e informal, e pelas mídias, nos próprios programas religiosos, no jornalismo, nas novelas, em programas de entretenimento.  Entre elas estão: evangélicos são ignorantes, alienados e fazem o que o pastor manda; pastores evangélicos enriquecem à custa da exploração das ofertas em dinheiro para as igrejas (dízimos); as igrejas neopentecostais querem tomar o poder político do Brasil; os políticos evangélicos são corruptos e fisiológicos; evangélicos são conservadores e se tornaram “bolsonaristas” facilmente; evangélicos controlam a sexualidade das pessoas, mas pastores são devassos.

Estas noções foram construídas desde a primeira bancada evangélica em 1986 e ganharam ápice com a ascensão do que passou a ser denominado “bolsonarismo” – o processo eleitoral que levou Jair Bolsonaro ao poder, as alianças para sustentação do governo, os desdobramentos pós-derrota em 2022. Neste período recente, estas ideias foram intensificadas com quatro “novas descobertas”, que se tornaram pautas de jornalistas e analistas: o “poder neopentecostal”, teologia do domínio, abuso sexual por lideranças igrejas e a emergência de “traficantes evangélicos e do “narcopentecostalismo”.

O tom da quase totalidade das abordagens, seja de grandes mídias de notícias e de mídias alternativas alinhadas à esquerda, é negativo aos evangélicos, o que reforça e/ou estimula publicações e comentários em mídias sociais que colocam o segmento e sua expressão de fé cristã, imaginariamente concebida como descredenciada, errada, e, portanto, uma ameaça ao Brasil.

A cada caso que surge, relacionado a estas “descobertas”, novas matérias e pautas de programas de análises e entrevistas são veiculadas, com seleção de especialistas com pontos de vistas que corroborem o tom negativo (a busca do “viés de confirmação”, a tendência humana em buscar informações que se adequem às suas crenças prévias, como explica a Psicologia).  

Ocorre que as “descobertas” não são fenômenos novos, atuais, como se quer fazer crer, como parte da busca “dos evangélicos” de “dominar do Brasil” e “transformá-lo numa teocracia”. São situações antigas, algumas delas também vivenciadas por outros grupos religiosos. Vejamos a seguir.

1.         O poder neopentecostal

Pelo que consta em matérias, análises e comentários de mídias sociais, “os neopentecostais” ajudaram a construir o bolsonarismo e têm um projeto de poder político teocrático. Quem são estes grupos? De quem se está falando? Não temos resposta nas matérias. No máximo um ou outro nome de pastor midiático e de político da Bancada Evangélica no Congresso Nacional. É uma clássica expressão de teoria da conspiração que não encontra assento em dados ou teorias, apenas em histórias, casos, exemplos, coletados das próprias mídias.

Vale lembrar que a categoria “neopentecostalismo” surgiu na academia para dar conta do fenômeno dos novos pentecostalismos, consolidados nos anos 1990, ou seja, há mais de 30 anos. Portanto, este “neo” (novo) já não cabe mais há algum tempo e muitos outros fenômenos já foram identificados. Sem contar que aquelas características dos anos 90 podem ser identificadas em outras tradições cristãs, inclusive a Católica Romana, e não são verificadas em várias das novas igrejas surgidas em comunidades diversas Brasil afora.

Importante registrar também que no primeiro e no segundo escalões do governo Bolsonaro não havia “neopentecostais” (se acionadas a classificação de igrejas dos anos 90), mas maioria de presbiterianos, batistas, entre outros evangélicos tradicionais, católicos e alguns pentecostais. O ministro “terrivelmente evangélico” indicado para o Supremo Tribunal Federal, por Jair Bolsonaro, é um pastor presbiteriano  (tradicional, portanto), e, no Congresso Nacional, o poder da chamada Bancada Evangélica está na mão de “assembleianos” (pentecostais clássicos).

Além destes elementos, o silêncio da cobertura de mídias sobre o lugar do Catolicismo Romano nas matérias sobre religião e política nas campanhas eleitorais, no Congresso Nacional e no Poder Judiciário precisa ser também ressaltado.

Hoje é mais correto nos referirmos a “pentecostalismos”, pois são diversas as igrejas, os grupos e as teologias relacionadas a esta ramificação evangélica que nasceu raiar do século 20 nos Estados Unidos e na primeira década dele no Brasil. Há grandes e ricas igrejas, na forma de corporações evangélicas pentecostais, porém uma grande parte das comunidades pentecostais são médias e pequenas, com poucos recursos financeiros, presentes em localidades centrais e periféricas do Brasil afora.

2.         Teologia do Domínio

É uma abordagem teológica geralmente atribuída a evangélicos do fundamentalismo estadunidense, nos anos 1970, que relacionaram a ideologia da leitura dominionista da Bíblia (Deus concede domínio sobre a Terra, a partir do Gênesis) à dimensão política. Portanto, não foi criada pela Igreja Universal do Reino de Deus e nem é propriedade “neopentecostal”, como aparece em algumas menções nas mídias brasileiras. Há estudos que até relacionam as raízes do dominionismo ao Integralismo Católico Romano, que é um movimento mais antigo.

A Teologia do Domínio está alinhada a campanhas ultraconservadoras nos Estados Unidos, alimentou os grupos que atuaram no processo eleitoral que elegeu presidente Donald Trump, em 2016, e Jair Bolsonaro, no Brasil, em 2018. Ela tem sido base para alguns grupos evangélicos que têm projeto de ocupação da política relacionados ao chamado neocalvinismo.

Apesar do imaginário construído entre evangélicos no Brasil, desde a chegada dos primeiros missionários estadunidenses, no século 19, de o país ter um presidente e políticos evangélicos para implantar que houvesse governo sob os valores cristãos, a Teologia do Domínio não predomina no segmento. Há outras teologias e tendências pastorais apregoadas e desenvolvidas por evangélicos, uma vez que são tão diversos. Pelo viés dos fundamentalismos, podemos citar as Teologias da Prosperidade, da Confissão Positiva, da Retribuição, da Determinação. Pelo viés progressista, há as Teologias da Libertação, da Missão Integral, Ecumênica, Pública, Feminista, Negra, Ecoteologia.

Algumas publicações tentam abrir um caminho para esta compreensão mais plural, porém, é possível observar que o imaginário do herói, comum às pessoas e à cobertura política pela imprensa, é acionado  quando se ancora abordagens mais plurais em poucas figuras, como a do deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), da Igreja Batista do Caminho. A atuação dele tem sido, de fato, relevante como contracomunicação àquela imposta por personagens do campo político evangélico ultraconservador no Congresso Nacional. Porém, a ênfase acaba recaindo na imagem do deputado como “o modelo de evangélico” em contraposição ao que se toma como padrão, com desprezo a outras lideranças (inclusive mulheres e pessoas sem vinculação partidária) e vivências presentes no cotidiano de muitas comunidades.

Abuso sexual por lideranças evangélicas

Há muitas situações, são fatos. Porém, deve ser sempre recordada a extensa lista de situações que envolvem casos de abuso sexual em outros grupos religiosos, como no Catolicismo Romano, em religiões de Tradição Africana e no Espiritismo Kardecista. O que precisa ser reconhecido é que, em todas estas circunstâncias, há líderes religiosos homens que abusam de sua posição de poder, e devem ser criminalmente punidos, como deve ocorrer com situações afins em outros espaços sociais, como as diversas instituições públicas e privadas.

Traficantes evangélicos e narcopentecostalismo

A presença de igrejas evangélicas nas periferias das grandes cidades do Brasil é histórica, e, com ela, a relação com poderes paralelos, criminosos, por questão de sobrevivência. A partir dos anos 1990 apareceu a figura dos “traficantes evangélicos”, líderes do tráfico de drogas no Rio de Janeiro que passaram a se identificar como evangélicos, seja por adesão a uma determinada igreja ou por afinidade, muitas vezes, na qualidade de filhos de pessoas evangélicas. O caso mais expressivo foi a inauguração do Complexo de Israel, uma região da cidade do Rio, dominada por um traficante apelidado “Peixão”, que teria se tornado evangélico e abraçado a simbologia de Israel, do Antigo Testamento da Bíblia.

Estes traficantes passaram a exercer uma espécie de controle religioso sobre os territórios sob seu comando, com a proibição de cultos de terreiros de Tradição Africana, e até mesmo a concorrência católica romana. Há pesquisas acadêmicas, de algumas décadas, sobre o fenômeno. Uma das pioneiras é a da professora da Universidade Federal Fluminense Christina Vital. Em 2023 foi publicado o livro “Traficantes evangélicos”, de Viviane Costa, com foco em pesquisa sobre o Complexo de Israel. O assunto passou a ser explorado recentemente, na trilha “das descobertas” sobre os evangélicos, em tanta evidência no espaço público, porém é tema é antigo.

Vale ressaltar que a afinidade religiosa de criminosos deve ser tomada como uma situação comum, e se considerar a existência de traficantes, e outras figuras que vivem na ilegalidade, que são católicos, candomblecistas, umbandistas. O documentário produzido pela Globoplay em 2023, “Vale o Escrito”, deixa bem clara a adesão, já registrada em matérias jornalísticas, de donos de bancas de jogo do bicho (“bicheiros”) com o Catolicismo Romano e a Umbanda.  

Sobre a exploração do termo “narcopentecostalismo” no noticiário, ele é incorreto. Não há dados empíricos que comprovem a existência de uma religião fundamentada na ação criminosa ou de ações criminosas fundamentadas em ensinamentos religiosos, de maneira a conceber uma nova crença ou doutrina que consolide ambos os universos. Sobre isto, a pioneira dos estudos sobre o tema Christina Vital, quando ouvida por diferentes veículos de mídia, não tem a avaliação crítica das abordagens registrada, como declarou ao Coletivo Bereia, dias atrás: “Vemos pessoas que estão no crime e se aproximam de religiões, não só evangélicas, mas com isso não podemos dizer que há uma teologia criminal específica, que haja uma igreja de traficantes, para traficantes, propagando valores criminosos, violentos e o uso de drogas  à luz da Bíblia ou de qualquer livro sagrado. Estes termos atendem mais a um anseio sensacionalista de uma mídia e de pesquisadores mal-intencionados ou não tão bem informados”. 

Avalio que, este conjunto de “descobertas” atende a um anseio sensacionalista (repito a expressão de Christina Vital) antievangélicos, gerado pelo imaginário de jornalistas e de setores políticos conservadores e progressistas. Seja o imaginário que despreza o lugar da religião na vida das pessoas das diferentes fés, e a elas atribui a ideia de alienação e de exploração das lideranças (financeira, polícia e sexual); seja o imaginário que desqualifica a fé evangélica com base na noção de “religião verdadeira”, atribuída, neste caso, não só por pessoas religiosas, ao Catolicismo Romano e ao Espiritismo Kardecista, que tem alinhamentos com ele.

A construção de material jornalístico, de analistas de mídias e de comentaristas de mídias sociais sobre este tema, tem buscado vieses de confirmação das noções geradas por este imaginário, por meio da seleção de temas e de quem fala sobre eles, e na falta de apuração devida para estas pautas.

Tomo como exemplo que, das dez matérias publicadas pelo Coletivo Bereia na primeira quinzena de julho de 2024, quatro foram conteúdos desinformativos sobre religião publicados pela grande imprensa, especificamente sobre o segmento cristão evangélico. Bereia já checou material de mídias de notícias credenciadas anteriormente, mas não com esta intensidade e frequência.

Esta postura chegou ao ponto de um dos grandes jornais ter tomado como verdade uma postagem satírica de “venda de terrenos no céu” e a transformado em notícia. Além disso, houve sensacionalismo com a declaração de um pastor sobre oração e milagres, em podcast, e com o equivocado tema do “Narcopentecostalismo”, o que se somou ao desconhecimento sobre as Assembleias de Deus, nas matérias sobre a vaia ao ex-deputado Eduardo Cunha, em evento no Maracanãzinho.

É escasso o conteúdo que expõe quem, de fato, são os evangélicos, com a pluralidade de perfis tão diversos e variados significados atribuídos à experiência com a fé, que construiu a memória desse grupo no Brasil, que passa por contribuições significativas à educação do país e pela cruel perseguição da ditadura militar. Levar em conta esta pluralidade em matérias e análises é superar simplificações com a compreensão de que ninguém é só religioso na vida, portanto, ninguém é só evangélico, como o Intercept Brasil se abriu para publicar, em artigo que produzi com Lívia Reis.

Observa-se que a busca pelo “viés de confirmação” leva ao desprezo de dados empíricos sobre evangélicos, há tempos desenvolvidos por acadêmicos reconhecidos e, mais recentemente confirmados por institutos de pesquisa. Entre eles estão o perfil mais católico dos participantes do comício de Jair Bolsonaro, em São Paulo, em fevereiro passado; a rejeição do PL do Aborto (1904/2024); e os dados sobre o perfil do eleitorado evangélico em São Paulo (contra armas e homeschooling, por exemplo, e contra pastor indicar voto).

Pautas críticas, pelas mídias, sobre qualquer grupo social, são muito importantes em um Estado Democrático de Direito, e devem ser feitas com pesquisa e apuração responsáveis, com atenção aos processos determinados por imaginários exclusivistas e seus vieses de confirmação, que moldam preconceitos. A exploração de pautas com base em sensacionalismo referente a grupos em evidência na cena pública, tende a incorrer em erros e produzir desinformação. No caso dos evangélicos, como descrito aqui, pelo teor distorcido e impreciso que tem predominado, conteúdos têm instigado e sustentado julgamentos negativos sobre o segmento. Isto serve para alimentar intolerância religiosa – basta ler os comentários das chamadas de matérias nas mídias sociais. É possível, aos produtores de notícias e análises, corrigir este rumo!

Relatório da OCDE mostra que brasileiros são os piores em identificar notícias falsas


Fábio Cozman comenta o estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico que investigou a acurácia das pessoas na identificação de fake news e como isso se relaciona com IA e mídias sociais

# Leia no Jornal da USP

Cavalo de pau na eleição dos EUA: Kamala reorganiza expectativas contra Trump e pode virar o jogo

# Quem é Kamala Harris (DW) # Democratas criam fato político para virar eleição (Uol) # Kamala na ofensiva (Uol)

... pode ser o desmonte da prepotência republicana

Pois então...

Rapidamente, ainda lendo a notícia (já aguardada) da desistênca de Biden às eleições presidenciais nos EUA, troquei algumas ideias com o jornalista Francisco Bicudo, assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSp). Fran (ou Chico), como é carinhosamente conhecido, sempre cauteloso, não esconde uma certa animação com a mudança no rumo político com a indicação de Kamala Harris para substituir Biden na cabeça da chapa democrata. "Com o Biden, diz Fran, a derrota seria certa. E acachapante, provavelmente. A Kamala - se for ela mesmo - é uma aposta de risco, porque não foi preparada para a tarefa nos últimos quatro anos. Mas é uma aposta que representa o fato político novo, que chacoalha e embaralha as peças no tabuleiro e que abre uma fresta de frescor de esperança e possibilidade de vitória, ainda que mínima".
Bicudo vê ainda em Kamala um capital político e simbólico bastante positivo: "Mulher e negra, mais jovem, ela vai resgatar um eleitorado que foi decisivo para derrotar o Trump em 2020. Cria dificuldades para a própria campanha republicana, que estava todinha montada para bater na senilidade do Biden. Por fim, reposiciona a disputa por narrativas: a pauta principal agora passa a ser a candidatura democrata, deixando para segundo plano o atentado contra o fascista. Continua sendo difícil vencer Trump, mas Kamala anima o jogo e pode inverter a expectativa de uma vitória garantida da extrema direita". Penso da mesma forma...
J.S.Faro

Presidente argentino já busca oportunidades para atuar em outros países caso não seja reeleito ou precise deixar o país (TV GGN)

O ato grotesco escatológico que o argentino fingiu entender, ainda foi acolhido por governadoires de estado (Muniz Sodré, Folha)

Antologia das férias X (final)

Em campanha pessoal na oferta de seus serviços a quem mais lhe for conveniente (e de costas para a sociedade que não o elegeu), Roberto Campos Neto encontrou-se 52 vezes com Bolsonaro e apenas uma vez com Lula...

O Banco Central e a democracia

Os bancos centrais assumiram, no período da financeirização, pós-1980, um papel crucial e quase exclusivo na gestão da política econômica, magnificando o impacto de suas ações na economia e sociedade. A desregulação radical dos mercados financeiros paradoxalmente exacerbou as ações dos bancos centrais, sobretudo na correção dos distúrbios decorrentes das operações desses mercados. Nesse contexto, é quase incompreensível que o debate sobre esta instituição seja, ainda hoje, marcado pelas propostas de ampliação da independência e não da sua democratização.

# Na contramão das bobagens concebidas pela Folha, Estadão e O Globo, leia Ricardo Carneiro, Carta Capital 

Quem dominará a economia do conhecimento?

Produção material já não reina absoluta. Conectados, rentismo e Big Techs voltam-se à captura de riqueza imaterial. Como isso alarga as desigualdades globais? Quais as táticas da captura digital? Como freá-la antes de que engula democracias?

# Leia Ladislau Dowbor, Outras Palavras

Derrite protege policiais sob suspeita

Sem alarde, sem comunicado à imprensa e sem divulgação no Diário Oficial, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mudou as regras sobre o afastamento de policiais suspeitos de cometer crimes. Um boletim interno ao qual a piauí teve acesso acabou com o poder dos comandantes regionais de afastar e pedir investigação contra militares envolvidos em ocorrências graves.

# Leia João Batista Jr, Piauí

Violência doméstica: Nunes pode se complicar ainda  mais

PSOL pede investigação sobre afirmação do prefeito de que Boletim de Ocorrência da esposa foi forjado. Bancada Feminista afirma que declaração pode ser entendida como 'denunciação caluniosa'.

# Leia Fábio Zanini, Painel da Folha

MP e Defensoria pedem suspensão do programa das escolas militares em SP

Os promotores sustentam que a lei, proposta por Tarcísio e aprovada pela Assembleia Legislativa, institui uma modalidade de ensino não prevista na Constituição. Apontam ainda que a rápida tramitação da proposta foi marcada por inconstitucionalidades (leia Ana Luiza Basílio, Carta Capital) 

AGU pede ao STF suspensão da privatização da Sabesp; Barroso nega liminar

# A manifestação foi encaminhada ao STF (Supremo Tribunal Federal) no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo PT. As razões da recusa do presidente do STF em atender ao pedido (matérias da Folha)

Eleições de outubro, São Paulo

Por que voto em Boulos

Não escapa ninguém: à esquerda de Nunes, Fauzi Hamuche, dono da Axel, a empresa beneficiada. Nas pontas, os execráveis Fábio Wajngarten e Bolsonaro

Empresa de amigo de Ricardo Nunes é beneficiada com desapropriação de prédio em SP

A prefeitura de São Paulo vai pagar cerca de R$ 20 milhões pela desapropriação de cinco imóveis no centro da cidade, sendo um deles da empresa de um amigo do prefeito Ricardo Nunes (MDB)

# Leia a matéria da Pública

Apenas duas empresas vão receber pelos próximos 20 anos R$ 78 bilhões

Sob suspeita, Nunes assina contrato milionário com empresas de lixo

Escolha feita sem licitação aumenta a precariedade de serviço essencial para a cidade e mantém prefeito sob a suspeita de conluio com o cartel do lixo que se formou em São Paulo. 

# Leia a matéria da Folha

Paraquedista da FAB denunciou plano que pretendia explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, em 1968

94 anos de Sérgio Macaco: o capitão que evitou um banho de sangue na ditadura

Há 94 anos nascia Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, alcunhado Sérgio Macaco, paraquedista da Força Aérea Brasileira e partícipe da resistência contra a ditadura militar (1964-1985). Sérgio Macaco se notabilizou por ter se negado a obedecer a ordem de seus superiores para explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro — ideia aventada como parte de uma operação de bandeira falsa que visava justificar o expurgo violento da oposição. A coragem de Sérgio ao se recusar a executar o plano e denunciar seus superiores neutralizou a operação e salvou milhares de vidas.

Entre as personalidades que deveriam ser assassinadas nesses “voos da morte” estavam Juscelino Kubitschek, Dom Hélder Câmara, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, Francisco Teixeira, Mário Covas, Carlos Lacerda, Jânio Quadros e vários outros...

# Leia a matéria no Opera Mundi

Pensatas

Brasil pode perder um Uruguai de floresta se Congresso aprovar PL do desmatamento


Enquanto o Rio Grande do Sul ainda lida com a tragédia climática, parlamentares discutem dezenas de projetos de lei que enfraquecem a proteção ambiental. Bernardo Esteves, Piauí (acesse)

 A Amazônia pode perder quase 18 milhões de hectares de floresta, uma área equivalente à do Uruguai (17,6 milhões de hectares), se o Congresso aprovar o projeto de lei 3334/2023, que ampliará a área que donos de fazendas na Amazônia podem desmatar em suas propriedades.

Apresentado pelo senador Jaime Bagattoli (PL-RO), o projeto propõe reduzir a reserva legal, como é chamada a área que precisa ser mantida intacta pelos produtores rurais. Nas regiões de floresta da Amazônia, a reserva legal pode representar até 80% do total da propriedade, fração que Bagattoli quer reduzir para 50%. Se toda a área liberada para corte de fato vier abaixo, isso lançaria na atmosfera uma quantidade de carbono cinco vezes maior do que as emissões líquidas do Brasil em 2022, o que inviabilizaria o compromisso que o país assumiu no Acordo de Paris, que busca minimizar os impactos do aquecimento global.

A meta do Brasil é chegar em 2030 emitindo o equivalente a 1,2 bilhão de toneladas de CO2 por ano; só a derrubada dos 18 milhões de hectares que ficariam desprotegidos com a aprovação do PL do desmatamento lançaria na atmosfera o equivalente a 8,7 bilhões de toneladas de CO2. Se o carbono de toda essa massa verde for parar na atmosfera, vai contribuir para elevar ainda mais a temperatura da terra e do oceano e estimular a ocorrência de eventos extremos como as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul. 

Além disso, o projeto de lei proposto por Jaime Bagattoli desobrigaria proprietários rurais da Amazônia de restaurar 6,2 milhões de hectares – uma área maior que a da Paraíba. Somada com a área que seria liberada para desmatamento, a aprovação do projeto colocaria em risco uma área de mais de 24 milhões de hectares – maior que a de Rondônia – que teriam que estar cobertos por vegetação nativa de acordo com a legislação atual.

O cálculo foi feito a pedido da piauí pelo engenheiro florestal Tasso Azevedo, usando a base de dados compilada pelo Mapbiomas, uma iniciativa que reúne centros de pesquisa, organizações ambientalistas e startups para monitorar a cobertura e o uso da terra em todo o Brasil. Azevedo, que é coordenador-geral do Mapbiomas, lembrou que o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento até 2030. “Uma medida como essa criaria uma contradição com as políticas e com as metas de clima do Brasil”, afirmou.

O PL 3334 chegou a ser pautado para ser votado na sessão de 8 de maio na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, quando Porto Alegre e centenas de cidades gaúchas estavam debaixo d’água. O relator Marcio Bittar (União-AC) apresentou uma licença médica e o PL foi tirado da pauta, poupando os senadores de votarem um projeto que estimularia o desmatamento da Amazônia em meio ao desastre climático mais extenso no tempo e no espaço já ocorrido no Brasil. 

A tragédia segue em curso, e é improvável que o projeto volte à pauta da CCJ enquanto as águas não baixarem. Mas ele pode ser posto em votação a qualquer momento. Se o parecer de Bittar for aprovado, o projeto de lei será analisado na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Se passar pelas duas comissões, o projeto segue para a Câmara, sem que precise ser votado pelo plenário do Senado. Precisará ainda ser sancionada pelo presidente Lula.

Para além de todo o carbono despejado na atmosfera, a abertura de milhões de hectares da Amazônia para o desmatamento poderia precipitar a chegada do ponto de não retorno desse bioma. Esse é o patamar a partir do qual a floresta atingirá um patamar de degradação além do qual ela será incapaz de gerar as chuvas que garantem a sua própria sobrevivência, mas também aquelas que são levadas pelos chamados rios voadores (massas de ar carregadas de vapor d’água) ao resto do continente, contribuindo para irrigar a maior parte da agricultura brasileira.

A existência do ponto de não retorno foi postulada por estudos de modelagem climática feitos a partir dos anos 1990. Os modelos mostravam que esse ponto poderia ser atingido quando o desmatamento chegasse a 20% ou 25% da Amazônia – o total derrubado já está quase lá, se aproximando da marca de um quinto do bioma original derrubado. Tasso Azevedo notou que a área de 24 milhões de hectares que o PL 3334 tomaria da floresta corresponde a mais de 7% do bioma. “Isso significaria ultrapassar o ponto de ruptura e colocar em risco a própria integridade da Amazônia”, afirmou.  

Pesquisas feitas em campo, contudo, constataram que a floresta já está mostrando sinais de perda de resiliência. Um estudo publicado em fevereiro deste ano pelo grupo da matemática e meteorologista Marina Hirota, da Universidade Federal de Santa Catarina, mostrou que uma área que equivale de 10% a 47% da floresta amazônica está sob a ameaça de atingir um ponto de transição irreversível até 2050. Outro estudo, publicado no fim de maio, mostrou que pouco mais de um terço da floresta está mostrando mais dificuldade para se recuperar de secas como a de 2023, um ano de El Niño que teve uma temporada intensa de queimadas. Para os autores, que incluem cientistas europeus e do Brasil, incluindo Hirota, essa constatação é um indicador precoce de que essas áreas podem estar se aproximando do ponto de colapso.

A maioria esmagadora da população brasileira enxerga algum tipo de associação entre a crise climática e as enchentes no Rio Grande do Sul. Essa relação é direta para 64% das 2 mil pessoas ouvidas pelo instituto Quaest no começo de maio, e parcial para 30% dos entrevistados. “Os brasileiros sabem fazer a conexão, a questão é se os seus representantes políticos estão preocupados com as mudanças climáticas”, disse a advogada Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, uma coalizão de ONGs ambientalistas. “A mensagem que eles passam desde sempre é que não conseguem ou não querem entender a conexão entre desmatamento, aumento de emissões e eventos extremos, ou pelo menos não fazem isso publicamente, porque a essa altura do campeonato já devem saber.” Para Araújo, os ruralistas que defendem o avanço do agronegócio sobre a floresta estão dando um tiro no pé. “Eles priorizam uma visão imediatista de ganho a curtíssimo prazo que vai afetar profundamente o setor.”

O agronegócio está sentindo diretamente o prejuízo das quebras de safra por extremos climáticos. No caso das enchentes no Rio Grande do Sul, as perdas projetadas para o setor passam de 3,3 bilhões de reais. Se a temperatura subir 3°C até 2050, a produção agrícola brasileira pode cair até 50%, conforme estimativa citada num estudo produzido pela Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, para projetar o futuro da agricultura brasileira.

A obrigatoriedade de preservar parte da vegetação nativa das propriedades rurais nasceu da constatação de que essas áreas são fundamentais para conservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, além de regularem o clima, protegerem os cursos d’água e contribuírem para a formação das chuvas. Essa ideia está inscrita na legislação brasileira desde 1934, quando o país teve seu primeiro código florestal. A proteção naquele momento era de 25% dos imóveis rurais, mas essa proporção foi aumentando ao longo do tempo na Amazônia.

A proteção de 80% que incomoda os ruralistas foi introduzida em 1996 por uma medida provisória do então presidente Fernando Henrique Cardoso, após seu governo registrar a pior taxa de desmatamento da história – só em 1995, a Amazônia perdeu uma área maior que a do estado de Alagoas. A reserva legal de 80% no bioma foi consolidada com a aprovação do Código Florestal em 2012, após anos de discussões que opuseram ruralistas e ambientalistas.

Suely Araújo, que acompanhou a discussão de perto como consultora legislativa na Câmara para assuntos ambientais, disse que o tamanho da reserva legal foi definido após muita discussão. “Mas os ruralistas estão sempre tentando piorar uma lei com a qual eles haviam concordado”, afirmou. Araújo chamou a atenção para uma ironia. “Os ruralistas foram os vitoriosos na discussão do Código Florestal, mas hoje quem defende essa lei são os ambientalistas”, afirmou.

O PL em discussão no Senado não é o primeiro e nem o único a tentar flexibilizar a reserva legal. Em 2019, Marcio Bittar (que estava então no MDB) apresentou, junto com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), um projeto de lei que ia ainda mais longe e propunha simplesmente extinguir a reserva legal – e, com ela, a obrigação de proteger qualquer fração da vegetação nativa dos imóveis rurais. A argumentação usada no projeto se amparava nos argumentos de Evaristo de Miranda, o agrônomo negacionista da crise climática que inspirou as políticas ambientais do governo de Jair Bolsonaro. A proposta foi retirada pelos próprios autores, mas a discussão pública motivada por ela ajudou a naturalizar a ideia de que a reserva legal representa um obstáculo injusto para os produtores rurais – um argumento que ignora os imensos prejuízos que o agronegócio brasileiro terá devido a eventos extremos como as enchentes gaúchas.

Os ruralistas enxergam os 80% de reserva legal como um ônus injusto aos proprietários de terra na Amazônia. Mas a verdade é que esse percentual se aplica a menos de um quarto dos imóveis rurais da Amazônia, conforme mostrou um levantamento conduzido pelo engenheiro ambiental Heron Martins a pedido da piauí. Martins explica que a proteção de 80% corresponde a apenas um de seis casos previstos no Código Florestal para os imóveis rurais da Amazônia. Na prática, apenas 22,75% das propriedades são obrigadas a obedecer a esse percentual mais restritivo de reserva legal. “A exceção virou regra na Amazônia quando se fala em reserva legal”, disse Martins, que atua como analista do Center for Climate Crime Analysis.

O engenheiro ambiental lembra que, mesmo com todas as exceções previstas no Código Florestal, a reserva legal não tem sido observada pelos produtores rurais. De acordo com um levantamento do Observatório do Código Florestal, uma rede de organizações que monitoram a implementação dessa lei, o déficit de reserva legal na Amazônia – ou seja, as áreas que deveriam estar preservadas conforme a lei, mas foram derrubadas – chega a 9,7 milhões de hectares.

Uma das exceções previstas no Código se aplica aos imóveis situados em estados que tiverem mais de 65% de seu território ocupado por unidades de conservação ou terras indígenas, dentre outras condições. Nesse caso, o estado passa a ter a prerrogativa de reduzir a reserva legal para até 50%. Atualmente, apenas os estados de Amapá e Roraima se enquadram nessas condições. O que o PL 3334 propõe é baixar o sarrafo para o qual essa exceção seria permitida: a regra passaria a valer para os estados com pelo menos 50% de suas áreas ocupadas por unidades de conservação de domínio público, por terras indígenas homologadas ou por áreas de domínio das Forças Armadas.

O PL 3334 em discussão no Senado representa um “retrocesso socioambiental significativo”, conforme a conclusão de uma nota técnica assinada por Heron Martins e pela ecóloga Ima Vieira, do Museu Paraense Emilio Goeldi. A aprovação do projeto de lei em plena crise climática “só agravaria o quadro de degradação ambiental e vulnerabilidade climática na Amazônia”, na avaliação dos pesquisadores.

O cálculo do impacto do PL 3334 feito por Tasso Azevedo a pedido da piauí levou em conta o cadastro ambiental rural (CAR), instrumento pelo qual cada proprietário de terras informa ao governo as coordenadas de seu imóvel e a área em que fica a reserva legal. A estimativa levou em conta como o projeto de lei afetaria a reserva legal em cada um dos 7,5 milhões de imóveis com cadastro no CAR. De acordo com a análise, a aprovação do projeto de lei afetaria o tamanho da reserva legal nas propriedades rurais do Amazonas e do Pará, as duas maiores unidades da federação.

Mas Azevedo alertou que a projeção envolve uma dose considerável de incerteza, já que há muitos casos de sobreposição na área dos imóveis inscritos no CAR, que é um cadastro de natureza autodeclaratória. A equipe responsável pelo cálculo fez ajustes e correções dos dados para contornar os casos de superposição.

O senador Jaime Bagattoli propôs o PL 3334 com o intuito de “incentivar o desenvolvimento dos municípios amazônicos”. No entanto, uma série de estudos feitos na Amazônia ao longo dos últimos vinte anos mostram que a prosperidade gerada pelo desmatamento num primeiro momento é temporária e costuma ser seguida por uma piora no IDH, na renda per capita, na taxa de alfabetização e na expectativa de vida das áreas afetadas, dentre outros indicadores. “Nos últimos vinte anos a gente tem produzido trabalhos que mostram que o desmatamento não é necessário para aumentar a produção agropecuária da Amazônia”, disse à piauí o agrônomo Adalberto Veríssimo, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Eles mostram ainda que o que move o desmatamento não é a necessidade de expandir a produção, mas a necessidade de especulação e a grilagem de terras.”

Já foram desmatados pelo menos 84 milhões de hectares da Amazônia, uma área maior que os territórios de Minas Gerais e São Paulo juntos. De acordo com o relatório O paradoxo amazônico, lançado em 2022 por Veríssimo e outros dois colegas, seria possível ampliar a produção agropecuária brasileira ocupando uma área menor do que a que já foi desmatada, desde que se melhorasse a produtividade da pecuária, que é muito baixa na Amazônia. Ainda assim, sobraria uma área de cerca de 37 milhões de hectares – uma área maior que a de Mato Grosso do Sul – que poderia ser destinada para o reflorestamento ou para cultivos agroflorestais. “Não há justificativa econômica para expandir novos desmatamentos na região”, disse o agrônomo.

O estudo O paradoxo amazônico mostra ainda que a maior parte dos empregos gerados na Amazônia está nas cidades, em atividades sem relação com o agronegócio ou com a economia da floresta. “Não há justificativa para se achar que o desmatamento vai gerar mais emprego”, disse Veríssimo. “O desmatamento não se justifica do ponto de vista social e econômico, e muito menos do ponto de vista ambiental e geopolítico.”

A piauí procurou o senador Jaime Bagattoli para ouvi-lo a respeito dos impactos do PL 3334 sobre o clima, a floresta e o agronegócio brasileiro, mas o parlamentar não quis dar entrevista.

A mesma falsa premissa de que o desmatamento levará ao desenvolvimento parece estar por trás de outros projetos de lei que propõem enfraquecer a proteção legal ao meio ambiente e que se encontram em diferentes fases de tramitação nas duas casas do Congresso. Um levantamento feito pelo Observatório do Clima elencou 25 projetos de lei e três propostas de emenda constitucional que integram o que eles chamaram de “pacote da destruição”.

A começar pelo PL 364/2019, que foi aprovado em março pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O projeto propõe eliminar a proteção a toda a vegetação não florestal, incluindo 48 milhões de hectares de campos nativos no Pantanal, no Pampa e no Cerrado – uma área maior que a de Rondônia e Roraima juntos. Outro projeto que gela a espinha dos ambientalistas é o PL 2159/2021, que está atualmente no Senado. O projeto revê as normas para licenciamento ambiental e amplia a possibilidade de os empreendedores fazerem o licenciamento automático, sem análise prévia por autoridades ambientais. “Você aperta um botão e a licença ambiental sai impressa, sem estudo de impacto ambiental, quanto menos de impacto climático”, alertou Suely Araújo.

Para a ambientalista, a existência de dezenas de projetos que podem trazer retrocesso ambiental mostra que os parlamentares, em sua maioria, enxergam as normas de proteção ambiental como entrave e que, na prática, acabam agindo como negacionistas do clima. “É inadmissível essa postura do Congresso Nacional em plena crise climática”, afirmou Araújo.

Outro projeto que consta na lista dos ambientalistas é o PL 2168/2021, que afrouxa a proteção sobre as áreas de preservação permanente (APPs) que haviam sido estipuladas pelo Código Florestal. O projeto permite o desmatamento das APPs para a instalação de infraestrutura de irrigação e pode aumentar a escassez hídrica em várias regiões. O advogado Marcelo Elvira, do Observatório do Código Florestal, notou que, diferentemente do PL 3334, o PL 2168 continua sendo pautado para apreciação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mesmo com as enchentes do Rio Grande do Sul. “É simbólico que ele não tenha sido tirado da pauta nesse momento”, afirmou o advogado.

Elvira notou que a posição do Congresso vai na contramão do protagonismo que o Brasil pretende assumir na discussão climática internacional. O clima é uma pauta central da presidência do Brasil no G20, que se reúne este ano no Rio de Janeiro, e Belém vai receber no ano que vem a COP30, na primeira vez em que uma Conferência do Clima da ONU será sediada na Amazônia. “Ao propor afrouxar a legislação ambiental, o Parlamento está completamente dissociado dessa agenda ambiental e climática”, disse o advogado.

Bernardo Esteves

Repórter da piauí, é apresentador do podcast A Terra é Redonda (Mesmo) e autor dos livros Admirável novo mundo: uma história da ocupação humana nas Américas (Companhia das Letras) e Domingo É Dia de Ciência (Azougue Editorial)

Comissão do Congresso que fiscaliza inteligência enviou R$ 1,7 bilhão para militares e Abin

Desse total, mais de R$ 60 milhões foram para ações militares sigilosas. Sofia Schurig, Pública (acesse)

A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional, encarregada de supervisionar o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), destinou mais de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares para militares e para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) desde 2015. Cerca de 70% desse total foi direcionado para projetos de cibersegurança, defesa de fronteiras e apoio a eventos, beneficiando os comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, além de ações de caráter sigiloso.

A criação do Sisbin e, consequentemente, da Abin foi formalizada em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A lei assinada por FHC exigia também a criação de um grupo no Congresso Nacional, formado por líderes da minoria e da maioria, como forma de fiscalização das atividades de inteligência no país. No entanto, a CCAI, estabelecida apenas em 2013, tem atuação limitada em termos de fiscalização.

A CCAI passou por uma redução significativa nas audiências públicas e um aumento na aprovação de emendas parlamentares ao longo dos anos. Segundo a Agência Pública apurou, desde 2016 a alocação de verbas aumentou e a fiscalização pública diminuiu – os requerimentos de parlamentares solicitando convocações de servidores da Abin para explicarem denúncias de monitoramento de sindicatos se tornaram raros.

Foi em 2015 que surgiram as primeiras emendas parlamentares. As emendas servem como ferramenta para recompor orçamento de pastas que costumam ter suas verbas congeladas ao longo do ano. Das emendas propostas, R$ 10 milhões foram destinados para ações sigilosas do Comando da Marinha. Outros R$ 60 milhões foram para a Abin e R$ 50 milhões, para o Exército e a Aeronáutica, com o objetivo de desenvolver sistemas tecnológicos e apoiar a realização de grandes eventos. Ao todo, foram R$ 120 milhões em emendas no ano.

POR QUE ISSO IMPORTA?

As emendas da comissão do Congresso que foi criada para fiscalizar atividades de inteligência têm sido usadas para aumentar a verba de ações sem transparência pública.

Em 2016, o Brasil presenciou a recriação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um impeachment presidencial e o pedido de demissão do então chefe da Abin Wilson Roberto Trezza. Apesar do tumulto, as atuações da CCAI não seguiram o padrão dos seus três primeiros anos. O grupo realizou apenas três audiências públicas, nenhuma delas deliberando sobre as ameaças de ataques terroristas para a Olimpíada no Rio de Janeiro que haviam sido identificadas pela Abin, nem sobre o protocolo de reconhecimento facial e monitoramento de redes sociais elaborado pela agência para o evento internacional.

Duas das reuniões foram conversas com o recém-nomeado chefe do GSI por Michel Temer, uma delas para a deliberação sobre a Política Nacional de Inteligência (PNI). Promulgada por Temer, a diretriz era uma exigência da lei assinada por FHC nos anos 1990. Ainda em 2016, a CCAI aprovou emendas parlamentares num total de R$ 161 milhões.

Entre essas emendas, o Comando do Exército (CEX) recebeu R$ 70 milhões para a implantação de um Sistema de Defesa Cibernética para a Defesa Nacional. A Marinha foi beneficiada com R$ 1 milhão para ações de caráter sigiloso, enquanto a Abin recebeu R$ 10 milhões destinados a ações de inteligência. O Departamento de Polícia Federal (DPF) foi contemplado com R$ 80 milhões para o aprimoramento institucional.

Entre os anos restantes da gestão de Temer (2017 e 2018), a CCAI foi presidida pelo senador e ex-presidente da República Fernando Collor. A comissão, no entanto, não apresentou nenhum requerimento, fez uma reunião por ano e aprovou, ao todo, sete emendas parlamentares. Muitas para ações de caráter sigiloso.

Apenas ao CEX foram destinados R$ 140 milhões para a criação de um sistema de cibersegurança militar. Para ações de caráter sigiloso, foram R$ 20 milhões para a Aeronáutica e outros R$ 8,6 milhões para a Marinha. Outros R$ 120 milhões em emendas para orçamento adicional foram aprovados para a Abin.

Aprovação de emendas seguiu em alta durante governo Bolsonaro

A aprovação deliberada de emendas – paralela à falta de audiências públicas – continuou em 2019, quando Jair Bolsonaro tomou posse. Foi nesse ano que, pela primeira vez, a ex-deputada federal Joice Hasselmann depôs na Câmara dos Deputados, na CPMI das Fake News, e falou sobre uma “Abin Paralela”, organizada pelo vereador carioca e filho do ex-presidente Carlos Bolsonaro. A CCAI, contudo, não investigou as acusações em audiências públicas, pelo que consta nos relatórios de atividades.

Essas denúncias apenas foram ouvidas pela comissão no ano passado, quando se provaram verídicas, sendo reportado ainda que a Abin comprara um software para rastrear a localização de alvos predeterminados. A única reunião realizada pelo grupo em 2019 teve como foco apenas a aprovação de mais de R$ 180 milhões em emendas parlamentares. Para a Aeronáutica, foram destinados R$ 39 milhões para aquisição e desenvolvimento de foguetes, além de outros R$ 6 milhões para atividades sigilosas. A comissão alocou R$ 70 milhões para o CEX implementar um Sistema de Defesa Cibernética para a Defesa Nacional.

Mais R$ 11 milhões foram direcionados para a instalação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron). A Marinha recebeu um adicional de R$ 6,5 milhões para operações confidenciais. O destaque fica para o maior montante já aprovado em emendas pela CCAI para a Abin: R$ 100 milhões.

A CCAI não tem um relatório de atividades para o primeiro ano de pandemia. No entanto, em 2020, os senadores Jaques Wagner (PT-BA) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), junto ao deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), protocolaram vinte requerimentos diferentes solicitando a convocação do general Augusto Heleno, então ministro do GSI, e de Alexandre Ramagem, na época diretor-geral da Abin.

Boa parte dos requerimentos dos três parlamentares em 2020 foi negada, e a única audiência pública que viria a ser realizada em 19 de março foi cancelada. Não houve relatório de atividades – nem aprovação de emendas parlamentares. Os requerimentos aceitos foram atendidos apenas no ano seguinte, em 2021. Uma das audiências com Augusto Heleno foi secreta. Estiveram presentes Aécio Neves (PSDB-MG), Diego Andrade (PSD-MG), Claudio Cajado (PP-BA) e Augusto Coutinho (Republicanos-PE), indicado pela Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN), que atua muitas vezes ao lado da CCAI.

Uma das reuniões tratou do MCN 9/2020, uma Mensagem ao Congresso Nacional enviada diretamente pelo presidente da República para apreciação ou deliberação sobre um certo tema. Nesse caso, a mensagem se referia à apreciação da Política de Defesa Nacional, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa Nacional. As três diretrizes precisavam ser analisadas e passar pela relatoria da CCAI antes de serem aprovadas. As análises da comissão sobre as propostas foram publicadas no Diário do Congresso Nacional (DCN) em 15 de dezembro de 2021, assinadas pelo então presidente da comissão Aécio Neves e com relatoria do deputado Claudio Cajado.

Nas conclusões e observações finais, os parlamentares tomam como referência orçamentária a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e citam outros países da América do Sul que investiram mais do percentual do PIB em gastos militares, como a Colômbia e o Equador. “Tendo em vista o reduzido percentual do PIB brasileiro destinado à Defesa Nacional, particularmente em face da projeção geoestratégica do nosso país, mesmo em face das adversidades econômicas por que passa o Brasil, há de se considerar a possibilidade do aumento desse percentual, de forma gradativa, na base de um incremento anual de 0,1%, durante seis anos, até alcançarmos o patamar de 2%. Paralelamente, que haja um aumento na dotação orçamentária das Forças Armadas exclusivamente para investimento e custeio dos respectivos equipamentos.”

Ainda em 2021, foram três deliberações para aprovação de emendas para o Planejamento Orçamentário Anual (PLOA) do ano seguinte. Com isso, foram enviados R$ 1,2 milhão para a Aeronáutica em ações de caráter sigiloso e R$ 2 milhões para “aprestamento de forças” do Fundo Naval, além de R$ 189 milhões para o Sisfron, do CEX. Outra reunião aprovou uma complementação às emendas anteriores, destinando R$ 15 milhões para a Abin.

Em 2022, último da gestão de Jair Bolsonaro, o Exército recebeu R$ 424 milhões da CCAI, o maior valor já enviado pela comissão para um único órgão. Para a Abin, foram R$ 40 milhões. As ações de caráter sigiloso da Aeronáutica também continuaram sendo bancadas, com R$ 2 milhões enviados.

Em 2020, CCAI decidiu aumentar gradualmente o percentual destinado às Forças Armadas

O relatório de atividades de 2022 menciona, brevemente, as tratativas da CCAI sobre as invasões aos prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. Um dos requerimentos e ofícios enviados foi ao ministro do GSI, general G. Dias, pedindo explicações sobre a atuação do órgão. A comissão recebeu um relatório classificado como reservado, cujo prazo de sigilo é de até cinco anos.

A CCAI afirmou acreditar que “as informações encaminhadas e classificadas como reservadas devem ser de conhecimento público, uma vez que se referem a fatos pretéritos e não representam qualquer ameaça à sociedade ou ao Estado brasileiro”, e pediu que fosse deliberado um pedido de desclassificação do documento enviado pelo GSI. Um requerimento sobre o assunto foi elaborado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC) e aprovado em maio do ano passado. Outro pedido feito por Amin para desclassificação de documentos com prazo vencido da Abin e do GSI foi negado.

Um dos requerimentos aprovados pela CCAI em 2023 exigia “o envio de cópias de todos os comunicados, relatórios de inteligência, briefings, consciência situacional e relatórios semanais produzidos, recebidos ou replicados” pela Abin na última década “que tenham como tema principal, complementar ou acessório a atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) – nacionais ou internacionais – em solo brasileiro.”

O autor do requerimento é Alexandre Ramagem (PL-RJ), que participou de audiência pública da CCAI enquanto diretor-geral da Abin. Na época, a oposição ao governo Lula avançava com a CPI das ONGs como estratégia política.

Outro pedido feito pelo deputado federal pedia à agência “o envio de cópias de todos os comunicados, alertas, relatórios de inteligência, briefings, consciência situacional, relatórios semanais e alertas emitidos, recebidos ou replicados” nos últimos dez anos sobre a atuação do Movimento Via Campesina, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ramagem retirou o requerimento da pauta da comissão.

Ainda que a fiscalização das atividades da Abin e dos órgãos que compõem o Sisbin tenha aumentado, a comissão aprovou milhões de reais em emendas orçamentárias outra vez. Foram R$ 10,7 milhões para ações de caráter sigiloso para a Aeronáutica, R$ 35 milhões para Abin com o propósito de servir às ações de inteligência, R$ 200 milhões para fiscalização da navegação aquaviária pelo Fundo Naval do Ministério da Defesa e outros R$ 20 milhões para o sistema de defesa cibernética do Exército.

Em 2024, sob a presidência de Renan Calheiros (MDB-AL), a CCAI teve apenas dois requerimentos, apresentados pelo senador Espiridião Amin, enviados em 6 de fevereiro. O primeiro convida Alessandro Moretti, ex-diretor adjunto da Abin, a comparecer à comissão. Ele deveria esclarecer uma reportagem da revista Veja que afirma que Moretti apresentou a altos membros do governo, em reunião na Casa Civil, um relatório de inteligência da Abin responsabilizando o GSI e o Ministério da Justiça pelas invasões na Praça dos Três Poderes.

Já o segundo detalha duas demandas específicas sobre a mesma reportagem, requisitando que o ex-diretor adjunto forneça “informações acerca da reunião citada na matéria, bem como sua data, participantes, registros e demais informações sobre a mesma”, além de uma “remessa imediata do Relatório de Inteligência citado na matéria, e/ou remessa de qualquer outro documento, formalizado ou não, produzido pela ABIN, que tenha pertinência temática com a matéria jornalística supracitada”.

Reportagem da Pública apontou paralisação das atividades da CCAI em 2024. Embora sejam parte do serviço público do Legislativo, Bruno Morassutti, diretor de advocacy da Fiquem Sabendo e membro do Conselho de Transparência, Integridade e Combate à Corrupção (CITCC) da Controladoria-Geral da União (CGU), explicou à Pública que, embora todas as votações e reuniões do Congresso Nacional devam ser transparentes, algumas sessões de caráter sigiloso podem ter uma exceção. “A Comissão de Atividades de Inteligência, ela também tem, pela própria definição, acesso a informações de segurança nacional. Caso não tenha ocorrido, isso é preocupante […] porque demonstra não haver um controle efetivo sobre as atividades de inteligência pelo Congresso Nacional.”

Existem comissões que destinam recursos para a própria área em que elas atuam, então faz sentido que a CCAI destine, ainda que como recurso para ações de caráter sigiloso, emendas parlamentares para o Sisbin. “Digamos que precisamos de um sistema melhor para ter um controle de informações sigilosas que estão sendo produzidas e transferidas pelos órgãos, compartilhadas entre os órgãos. Faria sentido que a comissão destinasse recursos para isso. […] Faz sentido. Agora, se esse recurso está sendo gasto de outra forma, para eventualmente aparelhar, aparelhar no sentido de dar equipamentos, materiais, ajudar na contratação de questões, esse investimento pode fazer pouco sentido, a depender, se a gente for olhar só sob a ótica de controle de atividades”, apontou Morassutti.

As emendas parlamentares são formas pelas quais o Congresso Nacional influencia e direciona recursos públicos dentro de determinada parte do orçamento, explica Morassutti. Em muitos casos, aponta Morassutti, não há uma definição muito clara sobre onde esse recurso pode ou não ser utilizado. O especialista vê como grande problema a falta de transparência para acompanhar as atividades de controle e fiscalização. “Quando a gente está destinando dinheiro de emenda sobre o assunto, acaba que a gente tem menos informação do que a gente costuma ter. E isso é um ponto que acaba prejudicando, efetivamente, saber se a gente está aqui aprimorando a transparência da administração pública ou se a gente está prejudicando a transparência.”

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Pública solicitou ao CEX informações sobre o estado atual do sistema nacional de cibersegurança. A reportagem pediu acesso ao cronograma de execução e plano de trabalho do programa, além de cópias das despesas realizadas até o momento, contratos, licitações, número de profissionais e empresas envolvidas, suas atribuições e as medidas de segurança, como controle de acesso, proteção de dados e gestão de riscos. O CEX respondeu: “O SIC-EB informa que, até o presente momento, não foi possível consolidar as informações sobre o seu pleito”.

Via LAI, a reportagem também questionou a Abin se parte ou a totalidade dos valores enviados pela CCAI em emendas parlamentares havia sido utilizada em atividades de contrainteligência no Brasil. A contrainteligência é descrita pela própria Abin como “atividade que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a inteligência adversa e as ações que constituam ameaça à salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado”. A agência declarou que não pode fornecer detalhes sobre os valores e atividades de contrainteligência devido à sensibilidade dessas informações, conforme as leis n.º 9.883/1999 e n.º 12.527/2011, e que a divulgação poderia comprometer o funcionamento do órgão e sua estratégia.

“O Brasil tem um histórico do ‘inimigo interno’ muito forte, que é o povo – dependendo dos movimentos sociais, dependendo da população, o crime, de maneira geral, mas a gente sabe que é dirigido para a população negra, pobre, periférica”, disse o pesquisador e coordenador de projetos do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (Ip.rec) Pedro Amaral. “A Abin não foge dessa divisão, de alguma forma.”  

“Do meu ponto de vista como estudioso, mas também como soldado civil organizado, acho preocupante o gasto ser sigiloso. Não preciso saber exatamente como vai ser usado, ou que ferramenta vai ser comprada, ou como vai ser usado aquele custo. Entre esse sigilo quase total que a gente tem e o sigilo operacional necessário, a operação segura do serviço de inteligência, mas de contrainteligência também.”

A Pública questionou Amaral se as emendas de caráter sigiloso podem ser voltadas para equipamentos aos militares. “Sabemos que tem muito equipamento sendo comprado sigilosamente. Porque também isso faz parte da ideia de que não é só nesse conflito informacional. O setor de inteligência está no conflito informacional, que é, basicamente, saber mais do outro do que o outro sabe de mim – X tem que saber mais de Y do que Y sabe de X. Isso inclui, inclusive, não só saber o que X sabe, mas como X sabe –, ou seja, os métodos empregados para conhecer, para coletar determinadas ferramentas para lidar com esse conflito informacional.”

Amaral concorda que é compreensível manter sigilosos os gastos e recursos, mas pontua, assim como Morassutti, que a falta de transparência com as emendas parlamentares da CCAI dificulta saber como essas ferramentas estão sendo utilizadas. “A gente tem o sigilo de um lado e não tem, por exemplo, um mecanismo para autorizar a operação. Então, não sabemos quais ferramentas são compradas e como o dinheiro está sendo gasto de maneira geral, mas acredito que as ferramentas entram muito no foco, porque o Estado brasileiro não tem tanta capacidade de desenvolvê-las, especialmente as de inclusão cibernética.”

A reportagem questionou também se, como membro da sociedade civil, Amaral tinha conhecimento de visitas, audiências ou reuniões realizadas por empresas que vendem equipamentos e programas militares ou de inteligência com parlamentares que integram a CCAI. Dúvidas sobre a influência dessa indústria brasileira começaram a surgir após o senador Eduardo Gomes (PL-TO), relator da comissão que regulará a inteligência artificial no Brasil, apresentar um texto preliminar para o PL 2.338 que permitia armas autônomas com controle humano em território brasileiro, bem como sistemas de reconhecimento facial – conhecidos também como identificação biométrica – em locais públicos para autoridades de segurança pública.

Carlos Zarattini, que é membro da CCAI no biênio 2023/2024 e hoje integra a CREDN, lidera um projeto de resolução que pretende reformular as atividades da comissão e recebeu apoio de 80 deputados. Se aprovado, o texto expandirá o escopo da comissão para incluir a supervisão completa da execução orçamentária e financeira da Abin, permitindo o monitoramento das despesas sigilosas e a convocação de autoridades para prestar esclarecimentos sobre assuntos relacionados à inteligência e contrainteligência. O projeto exige também relatórios periódicos sobre os gastos da Abin e detalhes completos sobre suas operações, independentemente do nível de sigilo. Ele aguarda despacho desde novembro de 2023.

# Link para  acesso à matéria da Pública

Edição: Bruno Fonseca


Antologia das férias IX 

Bolsonaristas em apuros... 

Constrangidos pela rejeição que sofrem aonde quer que estejam, Milei e Bolsonaro tentam evitar a si mesmos no encontro da extrema direita realizado no Brasil

Milei e Bolsonaro: dois perdidos na noite suja de Camboriú


Crônica político-cultural no encontro da ultradireita latina. Como a inacreditável medalha dos três is, entregue pelo “capitão” ao argentino, expõe as diferenças entre ambos. E por que uma irmandade dos ressentidos apara as arestas.


Leia Alberto Luiz Schneider e Damian Kraus (Outras Palavras)

# Florestan Fernandes (1920-1995)

Reflexões e apelos de Florestan Fernandes continuam atuais

“Voltamos as costas à organização da revolução e auxiliamos a contrarrevolução, uns mais, outros menos, uns conscientemente, outros sem ter consciência disso”. 

# Leia Milton Rondó (Carta Capital)

# Walter Benjamin (1892-1940)

A escrita subversiva de Walter Benjamin

Rua de mão única, uma das obras mais significativas da literatura de vanguarda alemã, é relançada pela Editora 34. A edição conta ainda com textos de Asja Lacis e resenhas de Siegfried Kracauer, Ernst Bloch e Theodor W. Adorno. 

# Leia Raíssa Araújo Pacheco (Outras Palavras)

A queda de Ícaro e o desastre do capitalismo

Todas as mitologias das culturas da terra nos alertam sobre a hybris: não podemos ser como deuses, porque pereceremos por causa disso. Na tradição grega, a hybris ou hubris é um termo que se refere à arrogância desmesurada, à falta de respeito pelos deuses e pela natureza. De modo que, a hybris na versão capitalista pode ser rastreada em narrativas míticas que apresentam personagens ou situações que refletem a busca desenfreada de poder, riqueza e sucesso, sem considerar as consequências morais ou sociais de suas ações”

# Leia Gil-Manuel Hernández i Marti (IHU)

Antologia das férias VIII

Força simbólica da imagem de Trump torna-se 'obra aberta' à hipótese de que 'atentado' foi evento de campanha

Matéria do Jornal Nacional exibida em 15 de julho revela rigor interpretativo de excelente qualidade a partir da composição semiótica daquele que é o principal registro do suposto atentado a Donald Trump. A foto, no entanto, é mais que isso: seu poder de síntese em associação política com os fatos (ver abaixo) que cercaram o incidente mostra uma forte sincronia com o discurso que dá sustentação ideológica à campanha da extema direita - um discurso que agora ganha maior impulso global, inclusive no Brasil 

O labirinto político europeu

Não há mais direita na Europa (nem extrema, nem de centro) do que a direita liberal, “extrema” quando é necessário, “democrática” quando é suficiente. Gilberto Lopes, A Terra é redonda (acesse)

1.

Comecemos pelo início: o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Europeia em 1957, inspirado nas ideias de um dos seus arquitetos, Jean Monnet. Um personagem polêmico, como veremos, novelesco, procedente do mundo financeiro, afirma o professor José A. Estévez Araújo, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Barcelona, comentando o livro do historiador britânico Perry Anderson, “O novo velho mundo”, um estudo histórico sobre a origem, evolução e perspectivas da União Europeia. Este elegante homenzinho de Charente, Monnet “foi um aventureiro internacional de primeira ordem, que fez malabarismos financeiros e políticos através de uma série de apostas espetaculares”, diz José A. Estévez.

Naquele momento, afirma, havia um consenso em torno das políticas keynesianas de pleno emprego e uma maior preocupação com a questão social. Era a época da Guerra Fria. Monnet devia seu poder e influência ao apoio dos Estados Unidos, que na época estavam interessados numa Europa Ocidental forte que pudesse fazer frente à União Soviética.

Para Perry Anderson, contudo, o cenário era um pouco diferente. Para ele, Monnet estava “notavelmente livre das fixações da Guerra Fria”. “Ele queria uma Europa unida que servisse de equilíbrio entre os Estados Unidos e a Rússia”.

2.

Em todo o caso, as políticas keynesianas do tempo da Guerra Fria deram lugar a outras, sobretudo após a assinatura do chamado “Ato Único”, em 1986. Este documento implementou, em nível europeu, as políticas de desregulamentação dos mercados que Margaret Thatcher tinha aplicado anos antes na Inglaterra.

Em 1986, o mundo socialista do leste europeu já estava em colapso, incapaz de pagar suas dívidas com os bancos ocidentais. O fluxo de petrodólares, que alimentava as economias dos países da Europa do Leste, tinha sido cortado, desencadeando uma crise que resultaria, em poucos anos, no colapso de seu sistema e no fim da Guerra Fria.

O colapso dos acordos de Bretton Woods, com a desvinculação do valor do dólar norte-americano do ouro em 1973, obrigou a Comunidade Europeia a buscar mecanismos que garantissem uma certa estabilidade do valor de suas moedas. Em 1979, entrou em vigor o Sistema Monetário Europeu. Em 1988, o Conselho Europeu decidiu promover estudos para a criação de uma moeda única: o euro.

Armava-se o labirinto em que o Ocidente europeu se encontraria encurralado. A criação da moeda única previa a independência dos bancos centrais em relação aos governos. O objetivo era evitar que estes pudessem financiar o déficit público, alterar as taxas de câmbio ou as taxas de juro. O fim do fluxo de capitais baratos, fornecidos pelos bancos do norte, colocou as economias dos países endividados do sul da Europa nas mãos do mercado financeiro.

Mas, acima de tudo, as instituições financeiras internacionais condicionavam os novos empréstimos a políticas de ajuste estrutural e às políticas neoliberais de privatização. Em vigor desde novembro de 1993, o Tratado de Maastricht impedia-os de recuperar competitividade por meio da desvalorização. A Grécia foi o exemplo mais dramático quando, em 2009, após uma década de endividamento especulativo, ficou evidente que não conseguiria cumprir seus compromissos financeiros, principalmente com os bancos alemães e franceses.

Tal como tinham feito com os países da Europa do Leste, coube-lhes agora impor programas de austeridade draconianos à periferia do sul e garantir aos bancos a recuperação dos empréstimos comprometidos. Com Wolfgang Schäuble – ministro das finanças do governo de Angela Merkel – à frente, e um bloco de países menores – incluindo a Holanda, cujo primeiro-ministro, Mark Rutte, aspira agora ao cargo de secretário-geral da OTAN – , impuseram à Grécia um programa que reduziu o país a uma condição de dependência que faz lembrar a bancarrota austríaca de 1922, que deu asas ao fascismo.

3.

A unificação alemã em 1990 e o colapso do socialismo no leste tiveram um grande impacto na economia europeia. Como nos lembra o professor José A. Estévez, a reunificação alemã criou uma massa de trabalhadores qualificados sem emprego, resultado do desmantelamento das indústrias da Alemanha do Leste. Entre 1998 e 2006, durante sete anos consecutivos, os salários reais diminuíram na Alemanha.

O euro entrou em circulação em 2002, estabelecendo critérios de convergência impostos pela Alemanha e por alguns aliados do norte europeu aos países da zona do euro. Eram regras que limitavam a dívida pública, os déficits orçamentários e a inflação, mas não regulavam a política fiscal, nem promoviam uma política de convergência real entre os países, nem a criação de uma dívida pública europeia. A ampliação para o leste (seria mais exato chamá-la de “colonização”, diz José A. Estévez) permitiu deslocar unidades de produção para esses países, que tinham uma mão de obra qualificada e um nível salarial muito inferior ao da Alemanha.

A moeda única, a redução dos salários e a contenção da inflação abaixo da média europeia tornaram muito difícil aos países periféricos serem competitivos em relação aos produtos alemães. Assim, a economia alemã, em vez de atuar como a “locomotiva” da economia europeia, tornou-se seu “vagão de carga”. Quando a recuperação chegou em 2006, a Alemanha era o principal exportador da União Europeia e pôde, a partir daí, exercer seu domínio na Europa.

4.

A OTAN começava a ganhar corpo. Seus objetivos, tal como definidos em 1949 pelo seu primeiro secretário-geral, o general inglês (de origem indiana) Lord Hastings Ismay, eram manter os russos fora, os Estados Unidos dentro e os alemães embaixo. Ismay não diz “soviéticos”, diz “russos fora”; nem “nazistas embaixo”, mas “alemães embaixo”.

Não foram bem sucedidos. Impedir o surgimento de uma potência europeia que desafiasse seus interesses era uma preocupação essencial da política externa britânica em meados do século passado. Essa potência era, evidentemente, a Alemanha. Se essa aspiração pudesse ter sentido após a Segunda Guerra Mundial, deixou de ser realista 75 anos depois.

O que emergiu do processo de integração europeia – do qual os britânicos acabaram se retirando – foi uma Europa à medida da Alemanha.[i] Seus laços com a Rússia, particularmente através do fornecimento de energia barata, acabaram destruindo os objetivos enunciados por Lord Ismay. Das três propostas, apenas uma permanecia vigente: “Estados Unidos dentro” (e mesmo essa, como sabemos, enfrenta novas ameaças numa eventual administração de Donald Trump).

Não era essa a intenção da OTAN. Para evitar que a economia alemã ficasse permanentemente dependente do abastecimento estratégico de energia russa, forças especiais, nunca devidamente identificadas, estouraram os gasodutos Nord Stream I e II no mar Báltico. Tudo parecia estar de novo no bom caminho… Todos continuavam presos no labirinto.

Perry Anderson fala da “ansiedade da classe política francesa em não se separar dos projetos alemães dentro da União”, o que faz lembrar “a adesão desesperada da Grã-Bretanha ao papel de ajudante de campo dos Estados Unidos”. Dois regimes – o alemão e o francês – que tentavam “trazer o resto da Europa para o curral de seus planos de estabilização”, mas que, mesmo naquele momento (2012), não pareciam muito duradouros, como de fato não foram (sobretudo o francês, quando Sarkozy perdeu as eleições para o socialista François Hollande. Merkel durou um pouco mais, até 2021). Mas – diria Perry Anderson, de forma incisiva – é outra questão se o regresso da social-democracia ao poder em Paris e Berlim afetaria muito o desenvolvimento da crise. Ou os ajudaria a sair do labirinto…

5.

A ideia da OTAN era manter “os russos fora”. Mas em novembro de 1990, com a Alemanha recém-unificada, a Europa assinou a “Carta de Paris” com a Rússia, cujas primeiras palavras afirmavam que a Europa estava “libertando-se da herança do passado”. “A era da confrontação e da divisão da Europa terminou”. Trinta e quatro anos depois, é evidente que nada disto era verdade.

Mas não foi a Rússia que levou suas tropas para as fronteiras polonesas, alemãs, finlandesas ou as dos países bálticos. Foram os Estados Unidos que trouxeram suas armas e soldados, a 15.000 quilômetros de distância, até as fronteiras russas. Foram os países europeus que se deslocaram para o leste, mais de 1500 quilômetros, uma cortina de ferro que pretendiam estender desde o mar de Barents, na fronteira norueguesa, até o mar Negro, na fronteira ucraniana.

O avanço da OTAN em direção às fronteiras russas não era uma provocação? Têm razão aqueles que negam que a invasão da Ucrânia pelas tropas russas foi uma resposta a essa provocação? O que fizeram os Estados Unidos quando a União Soviética tentou instalar armas nucleares em Cuba? Isso não foi uma resposta a uma provocação?

Em 2007, Vladimir Putin referiu-se ao cenário mundial num importante discurso na Conferência de Segurança de Munique. Falou dos riscos de um mundo unipolar, de sua preocupação com o desmantelamento da rede de tratados destinados a impedir a proliferação de armas nucleares e da intenção dos Estados Unidos de instalar um sistema de defesa antimíssil na Europa. Criticou a decisão da Europa de não ratificar o tratado sobre as forças armadas convencionais e alertou para a decisão da OTAN de expandir suas forças para o leste, a qual não tinha nada a ver com sua modernização ou com a garantia da segurança da Europa.

Ao contrário, afirmou, “representa uma provocação grave que reduz o nível de confiança mútua”. O Ocidente não respondeu a nenhuma destas preocupações. Não é preciso ser um apoiador de Moscou para compreender o que estava em jogo e o que, 15 anos depois, explodiu na fronteira ucraniana e conduziu à crise atual.

Os russos viram novamente as tropas aproximarem-se de suas fronteiras… (nos anos 40, a invasão alemã tinha-lhes custado milhões de mortos). Com que objetivos se aproximavam estas novas tropas? A única explicação possível é a defesa de seus interesses políticos e econômicos, do labirinto cuidadosamente construído nos últimos 75 anos.

Como se pode ler no site do Royal United Services Institute (RUSI), “o mais antigo think tank do Reino Unido sobre segurança e defesa” (como eles mesmos se apresentam), a confrontação entre a Rússia e o Ocidente não é apenas sobre a segurança da Ucrânia; é sobre todo o emaranhado estratégico construído após a Guerra Fria, sobre as tentativas da Rússia de dividir o continente em novas esferas de influência, “algo que os europeus passaram três décadas tentando evitar”.

Uma arquitetura baseada nos mesmos interesses que deram origem à guerra em 1939. Ou o ministro Schäuble representava algum outro interesse quando esmagou os gregos, com o apoio de seus colegas europeus, sobretudo em defesa dos bancos alemães (e franceses)?

6.

Gostaria de sugerir que não há mais direita na Europa (nem extrema, nem de centro) do que esta direita liberal, “extrema” quando é necessário (lembremo-nos de Pinochet), “democrática” quando é suficiente, hoje organizada para a guerra contra a Rússia, como nos lembra o Royal United Services Institute (RUSI).

Gostaria de sugerir que, hoje, a definição mais exata desta direita é a que empurra a cortina de ferro para as fronteiras russas, que tenta impedir que alguém escape do labirinto, um processo que conduziu a uma confrontação inevitável, de natureza global.

Se é assim, não há nada à direita da presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen (social-cristã tal como Schäuble); nem do polonês Donald Tusk; nem da ministra alemã das relações exteriores, a “verde” Annalena Baerbock; nem de Biden, nem de Sunak. Nem dos “Populares”, o maior grupo político do Parlamento Europeu. São – todos eles – representantes de uma direita que está sempre pronta para o extremo.

Parece-me que as posições islamofóbicas, anti-imigrantes, anti-LGBTI, antiaborto, etc., não definem nem a direita nem a esquerda. Nestes grupos há pessoas de ambos os lados, mesmo que sejam mais de um lado do que de outro. Como já disse um dia, se o mundo civilizado não atar as mãos destes selvagens (que já conduziram o mundo a duas grandes guerras), eles nos conduzirão a uma terceira, da qual falam como se essa pudesse ser outra coisa que não uma guerra nuclear.

Quanto à esquerda, perdida em seu caminho, presa no labirinto, não encontrou uma saída. Perdeu a capacidade “de representar o descontentamento com o capitalismo”, dizia o sociólogo Wolfgang Streeck, autor do livro Como o capitalismo vai acabar. Como uma parte desta “esquerda” desistiu desta tarefa, perdeu a confiança das pessoas e acabou reduzida a cotas marginais do eleitorado. Isso deixa um grande espaço para a direita. Por isso, votam em Le Pen, ou em Macron, que “corta as despesas sociais porque faz o que a Alemanha lhe pede”.

Na França, convocadas eleições antecipadas, a esquerda  apresenta um programa de unidade para enfrentar a “extrema direita”. Sob o título “Promover a diplomacia francesa a serviço da paz”, propõe uma guerra contra a Rússia em termos ainda mais ferozes do que os alcançados pela própria Ucrânia em sua recente reunião na Suíça. Propõe-se a “fazer fracassar a guerra de agressão de Vladimir Putin e assegurar que ele seja responsabilizado por seus crimes diante da justiça internacional”.

Nenhuma palavra sobre uma solução política, sobre atender a reiterada preocupação russa sobre sua segurança, ameaçada pelo avanço da OTAN; a que fazem referência, por exemplo, os governos do Brasil e da China. “O que mais desestabilizou a Europa foi a expansão da OTAN”, disse o assessor do presidente Lula, Celso Amorim, em agosto do ano passado. Mais recentemente, em maio, apresentou, juntamente com o chefe da política externa chinesa, Wang Yi, uma proposta de seis pontos para a negociação de um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia.

Nada disto interessa à “Nova Frente Popular” francesa, que se propõe “defender sem falta a soberania e a liberdade do povo ucraniano e a integridade de suas fronteiras, entregando as armas necessárias…” A guerra! Um tema que, como sugerimos, faz hoje a diferença entre uma direita que faz lembrar a mesma direita que já nos conduziu a duas guerras mundiais, e o mundo civilizado, que tenta encontrar uma forma de atar as mãos destes selvagens.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Nota

[i] Sobre o papel da Alemanha na crise do euro e o desequilíbrio na zona do euro, a bibliografia é abundante. Sugiro algumas leituras: Quinn Slobodian. “We all live in Germany’s world”. Foreign Policy, 26 março 2021; Juan Torres López. “Europa no funciona y Alemania juega con fuego”. Diario Público, 27 marzo 2021; Adam Tooze. “Germany’s unsustainable growth: austerity now, stagnation later”, Foreign Affairs, v. 91, n. 5 (set./out. 2012), pp. 23-30; Wolfgang Streeck “El imperio europeo se hunde”. Entrevista feita por Miguel Mora, diretor do CTXT. Publicada por CTXT em 13 março 2019.


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Raymundo Faoro revistado: Donos do poder ampliam captura do Estado com bilhões de reais em vantagens 

Bruno Carazza atualiza clássico de Raymundo Faoro sobre ganhos de grupos de interesse no Orçamento. Por Fernando Canzian, Folha (acesse)


Em entrevista, o economista Bruno Carazza comenta seu novo livro, "O País dos Privilégios", em que parte do clássico de Raymundo Faoro para expor como grupos poderosos, "os donos do poder", aprofundaram nas últimas décadas seus mecanismos de extrair rendimentos e privilégios do Estado, em prejuízo da sociedade como um todo. Carazza também elenca as carreiras públicas com maior barganha sobre remunerações e as alternativas para interromper esse processo de produção de iniquidades em série (Link de acesso à matéria original.

Quase sete décadas após o lançamento do clássico "Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro", do jurista Raymundo Faoro (1925-2003), o economista e doutor em direito Bruno Carazza expõe em novo livro como o desenvolvimento do Brasil aprofundou a captura do Estado por grupos de interesse cada vez mais poderosos.

Em conjunto ou separadamente, eles promovem uma verdadeira corrida com o objetivo de obter maiores rendimentos e vantagens da máquina pública, sempre às custas da sociedade.

Em uma espécie de manual didático e bem documentado intitulado "O País dos Privilégios - Volume 1: Os Novos e Velhos Donos do Poder", Carazza esmiúça como magistrados, políticos e advogados públicos, entre outros, se movimentaram nos últimos anos para obter rendimentos acima do teto constitucional, de R$ 44.008,52 atualmente, entre outras benesses.

O economista Bruno Carazza, que lança o livro "O Pais dos Privilégios"), na livraria Travessa, no bairro de Pinheiros, em São Paulo - Adriano Vizoni/Adriano Vizoni/Folhapress

A obra é a primeira de um conjunto de três volumes, nos quais o autor pretende explorar, além da elite estatal, as vantagens recebidas pelas classes empresariais e os benefícios tributários para os mais ricos.

O primeiro livro traz desde marchinhas de Carnaval e declarações nada edificantes de magistrados em causa própria a exemplos prosaicos —como benefícios recebidos pelo Instituto Inhotim e pela atriz Regina Duarte, filha de militar— para frisar como a captura do Orçamento por grupos de interesse alongou seus tentáculos.

A obra conta ainda com a experiência do próprio autor, que atuou por 20 anos em vários órgãos do governo federal, para um mergulho na máquina de promover iniquidades em que se converteu o setor público brasileiro.

Na introdução do livro, você cita o jurista Raymundo Faoro, autor do clássico "Os Donos do Poder", de 1958, em que ele demonstra como o patrimonialismo português se enraizou no Brasil. Quase sete décadas depois, com o desenvolvimento do país, o fenômeno tomou proporções gigantescas.

A tese original do Faoro é um trabalho monumental de ir contando a história de todo o desenvolvimento, desde a unificação do reino em Portugal, a expansão marítima, chegando aqui ao Brasil e, posteriormente, com a Independência e a Proclamação da República. Faoro aponta que tem uma característica básica desse processo de desenvolvimento, de que somos o resultado de um capitalismo politicamente orientado.

Desde o início, a expansão marítima de Portugal foi concebida como uma espécie de parceria público-privada, em que a coroa portuguesa concedia a uma elite empreendedora uma série de monopólios, concessões e direitos de exclusividade sobre aquilo que extraíssem. Primeiro na África, depois na Ásia e finalmente no Brasil.

Esses grupos econômicos de Portugal se beneficiavam em troca de um pagamento de impostos e de taxas para financiar a coroa. Essa parceria público-privada se deu por meio de uma classe aristocrática no início, que eles chamam de intermediários, que é todo um aparato estatal que foi construído à época, envolvendo militares, juízes e fiscais da coroa que fariam a administração desse empreendimento.

Com o passar do tempo, essa classe intermediária, esses donos do poder, na visão do Faoro, foram tomando as rédeas da condução do processo, que vai se adaptando ao longo da história. Ele funciona muito bem com o colonialismo português, mas quando a coroa vem para o Brasil em 1808, isso é reproduzido aqui. Continua com a Independência e, depois, com a Proclamação da República [1889], chegando até o século 20.

A análise dele vai até o Estado Novo do Getúlio Vargas [1937-1945], mostrando que esse processo vai se tornando uma elite burocrática, da estrutura do Estado, que tem esse papel muito grande de gerenciar o Estado. Ao mesmo tempo em que você continua com uma classe empreendedora, de empresários que continuam dependentes desses favores do Estado.

Partindo dessa visão do Faoro, também presente em teorias mais modernas da ciência política e da economia, vislumbrei que isso explica muito do Brasil de hoje. Veio dessa ideia tentar mapear e condensar como funciona esse mecanismo de extração de privilégios.

Isso tem origens no nosso passado ibérico, mas não se extingue com a modernização do Brasil nem com a redemocratização. Pelo contrário, é algo que inclusive se reproduz e, em alguns casos, aprofunda essa distribuição de privilégios para grupos especiais no Brasil.

No capítulo "Privilegiados de toga", você demonstra que nada menos que 93% dos magistrados tiveram rendimento médio mensal acima dos subsídios dos ministros do SFT em 2023 [R$ 44.008,52 hoje], que deveriam ser o teto do funcionalismo. O total chegou a R$ 8,1 bilhões no ano passado —e a quase R$ 40 bilhões desde 2018. A magistratura brasileira também é cara em comparações internacionais. Quais são as principais brechas que permitem isso?

A atividade da magistratura é essencial. É quem decide causas muito relevantes para a vida das pessoas. E esses processos, em muitos casos, têm repercussões significativas. É por isso que a Constituição garante aos juízes uma série de direitos para preservar sua independência. Ela estabelece que o cargo de juiz é vitalício, salvo em exceções muito bem descritas.

Eles não podem ser demitidos e o rendimento não é passível de ser reduzido por alguma decisão do presidente da República ou de governador. Eles também não podem ser transferidos sem motivações claras. São defesas que a Constituição concedeu para preservar sua independência.

Mas a Constituição coloca uma contrapartida. Todos os Poderes, nos níveis da federação, não podem receber mais do que o ministro do STF. A Constituição optou por estabelecer isso como teto remuneratório de todo o funcionalismo e da magistratura.

Mas vemos constantemente o caso de juízes que receberam centenas de milhares de reais em determinado ano. Analisando os dados, percebe-se que existe no Judiciário uma máquina sistemática de criação de benefícios que burlam o teto constitucional, que são chamados, de modo jocoso, de penduricalhos.

Isso funciona por meio de uma série de decisões judiciais, ou mesmo administrativas, em que tribunais de todo o país acabam concedendo benefícios a seus membros. Se um Tribunal de Justiça de um estado cria um auxílio para a formação do magistrado, uma espécie de auxílio livro, outros tribunais requerem a equiparação desse benefício. E assim por diante.

A grande sacada dos magistrados foi classificar que são benefícios de natureza indenizatória, e não remuneração, para que fiquem fora do teto. Isso gera uma transferência de renda, porque são recursos orçamentários que vão para essas categorias, em valores bilionários.

Isso também é decorrência de uma peculiaridade pelo fato de a Constituição estabelecer independência e autonomia orçamentária para o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. O Judiciário não está sujeito aos contingenciamentos que o Executivo faz.

Não há controle, porque os juízes são, em muitos casos, a última palavra sobre decisões no país. Quando tivemos a reforma do Judiciário, havia a ideia de que o Conselho Nacional de Justiça, assim como o Conselho Nacional do Ministério Público, fossem órgãos de controle externo dessa atividade. Mas, ao longo da tramitação da reforma, essas carreiras se articularam e fizeram pressão. Hoje, o Conselho Nacional de Justiça é composto, em sua maioria, por integrantes da magistratura.

O Tesouro Nacional publicou no início do ano estudo mostrando que o Judiciário brasileiro custa 1,6% do PIB, enquanto a média dos países emergentes é 0,5%; os países avançados gastam 0,3%. Há uma distorção grave no Judiciário brasileiro.

Em "Os privilegiados de terno e gravata", você descreve uma corrida ao topo. Uma vez instituído o teto do funcionalismo (2003), praticamente todos os estamentos do setor público passaram a se mobilizar para alcançá-lo, ou superá-lo. E o Brasil se torna o "país dos concursos", com gente atrás de benefícios. Como se dá essa corrida e o que ela já conquistou para seus participantes?

O Brasil tem um corpo de servidores públicos bem selecionado, preparado e remunerado. Mas que gerou distorções. Ter se tornado o "país dos concursos" tem muito a ver com o pós Constituição de 1988. Carreiras dos Três Poderes foram ganhando cada vez mais status e influência. E acabaram se descolando não só do rendimento médio da população e dos ganhos do setor privado, mas dentro do próprio funcionalismo.

São as carreiras judiciais, a advocacia pública, os procuradores da Fazenda Nacional, carreiras fiscais, do Trabalho e uma série de outras. Depois, os delegados da Polícia Federal, os diplomatas, os analistas do Banco Central, os auditores do Tesouro Nacional.

Recentemente, essas carreiras mais poderosas, além de tentarem se aproximar do teto, vêm tentando criar seus próprios penduricalhos. Lógico que no Executivo é mais difícil, porque o ajuste fiscal se dá sobre ele, mas elas vão tentando brechas para turbinar os rendimentos, porque estão mirando o teto e o extra-teto auferidos às carreiras do Judiciário e do Ministério Público.

Há distinções na máquina pública. Se observarmos o percurso pós Constituição de 1988, o total de servidores federais não cresceu. Houve uma expansão modesta dos estaduais e um salto nos municipais, atendendo ao aumento de tarefas repassadas às prefeituras, especialmente em saúde e educação. Mas são justamente esses servidores, na linha de frente com a população, os com menores remunerações. O que explica isso? Seria o fato de estarem mais distantes de quem controla o Orçamento?

Um ponto interessante a ser destacado é que, apesar da expansão em estados e prefeituras, o Brasil não tem mais servidores do que a média dos outros países. Cerca de 12% da força de trabalho brasileira é de servidores públicos, civis e militares. Nos três níveis. Nos EUA, são 15%. Na média dos países avançados, algo em torno de 18%.

O problema não é o número de servidores, mas a folha salarial em proporção do PIB. No Brasil equivale a 13%, ante 7% nos EUA, e entre 8% a 11% na Europa. Temos comparativamente menos servidores, mas eles custam mais caro aos cofres públicos. E se paga menos nos municípios do que nos estados, e mais na União, em que os membros do Executivo ganham menos que no Legislativo, que recebem menos do que no Judiciário.

Essa distorção é explicada pelo poder de pressão, articulação e influência dessas carreiras, que prestam assessoria e atuam diretamente com os chefes dos Três Poderes. Elas acabam extraindo para si benefícios que os servidores em contato direto com a população não conseguem obter.

Outro aspecto impressionante é como os advogados públicos se apropriaram, em ações judiciais entre o Estado e os entes privados, dos chamados honorários de sucumbência [parcela de 10% a 20% do valor de uma ação paga ao advogado vitorioso]. São contabilizados R$ 8,5 bilhões nos últimos sete anos, valor que antes entrava para os cofres públicos. Como se deu essa mudança?

A lógica do honorário de sucumbência é antiga no direito e se propunha a indenizar a parte vencedora em uma ação. Prevê que, se você ganha uma ação, o perdedor que fez você mobilizar recursos para se defender teria que indenizá-lo com o pagamento das despesas que você teve para entrar no processo.

Por um bom tempo isso funcionou. Mas aí entra essa máquina de articulação de defesas de benefícios próprios. A classe da advocacia privada, por meio da OAB, aprovou nos anos 1990 uma regra que mudou essa lógica e determinou que esses honorários de sucumbência fossem pagos para o advogado da parte.

Criou-se um privilégio para uma classe, e os semelhantes pressionaram para ter equiparação, como entidades representativas dos advogados públicos, tanto da União quanto dos estados e municípios. Assim, um valor pago à parte vencedora que antes era destinado aos cofres públicos passou a ser pago aos advogados públicos da mesma maneira que aos advogados privados.

Mas o advogado público tem uma série de prerrogativas, benefícios e direitos que o advogado privado não tem, pois é ele que paga pela estrutura de seu escritório. O público, não. O público tem estabilidade [na função]. Se o advogado privado perde a ação, ele não recebe, uma situação que não acontece com o advogado público, que tem rendimento assegurado, hoje na casa de R$ 20 mil a R$ 30 mil.

A ideia da apropriação desses honorários foi vendida como um incentivo à produtividade dos advogados públicos. Mas não faz sentido. Pois o valor conquistado é dividido igualmente entre todos os advogados. Não importa se ele é dedicado, criativo, eficiente; ou se ele é um advogado que faz tarefas meramente burocráticas. A distribuição dos honorários é equânime.


Você também trata no livro das benesses recebidas pelos militares e da ineficiência do Superior Tribunal Militar, na comparação com as demais instâncias do Judiciário. Poderia dar alguns exemplos de como isso ocorre?

A carreira militar sempre teve muito poder, principalmente depois da Proclamação da República. Todos os grandes ciclos da política brasileira tiveram os militares como um dos pilares. E esse poder foi usado para garantir um status diferenciado, de várias formas.

Um dos exemplos é o regime previdenciário muito mais favorecido. Um caso emblemático é o das filhas de militares que tinham direito à pensão dos pais, mesmo se casassem. O caso da atriz Regina Duarte ilustra isso. Ela é filha de um militar, que faleceu. Ela e seus irmãos tiveram direito à pensão. Para os trabalhadores do INSS, isso se extingue aos 18 ou 21 anos, o que não acontecia com filhas dos militares.

Isso mudou numa reforma feita pelo Fernando Henrique [Cardoso] no fim da década de 1990, mas é algo que ainda vale para quem já tinha o benefício. Mesmo assim, na comparação com o INSS e a Previdência dos servidores civis, a dos militares é a que paga o maior benefício médio.

Já a Justiça Militar é algo que não existe em praticamente nenhum outro país. É um resquício do período de Portugal e do Império. Essa justiça também é composta, em sua maior parte, por egressos das Forças Armadas. Isso acaba colaborando para que, em processos criminais, haja um certo corporativismo nas decisões. Muitas vezes, militares não são punidos com todo o rigor da lei, o que gera uma sensação de impunidade para a sociedade. É um ramo de justiça muito caro, pelo volume de processos que julga.

O movimento mais recente é o de como os congressistas em Brasília conquistaram bilhões de reais do Orçamento com emendas, para além dos vencimentos básicos de R$ 44 mil que recebem mensalmente e das cotas de até R$ 51,4 mil para custear suas atividades. No caso das emendas, com a pulverização de bilhões de reais entre os deputados, há também uma enorme perda de eficiência na adoção de políticas públicas estruturadas, não?

As emendas complementam um kit de vantagens que os políticos, principalmente no Legislativo, têm, para além da cota parlamentar e dos recursos dos fundos partidário e eleitoral. Isso gera uma série de distorções. A primeira é o desequilíbrio do jogo, porque se o parlamentar tem acesso a alguns milhões de reais do orçamento público para aplicar segundo sua indicação, é óbvio que vai usar isso em benefício próprio para fins eleitoreiros.

Isso distorce a competição, que já é distorcida pelo próprio exercício do mandato, combinado com os valores dos recursos do fundão eleitoral. Com as emendas, eles têm maiores chances de ser reeleitos e se perpetuar no poder. É uma barreira para a oxigenação da política.

Mas a distorção mais grave talvez esteja mesmo na eficiência do gasto público. Além de não haver transparência na aplicação dos recursos, há muita possibilidade de desvios, algo que nem o fim do orçamento secreto resolveu. Esses recursos são pulverizados na mão dos parlamentares, sendo distribuídos para suas bases eleitorais. Isso torna muito mais difícil a fiscalização pelos órgãos de controle, pela sociedade e pela imprensa, o que favorece casos de corrupção.

Quais alternativas a sociedade tem para interromper esse processo geral, quando os donos do poder são justamente aqueles que o controlam?

Há uma agenda em que podemos avançar. Uma primeira medida, que não precisaria nem de mudança constitucional, é que se recupere a autoridade do teto remuneratório no serviço público.

Para isso, seria necessário um posicionamento do STF de simplesmente dizer que todos esses penduricalhos não são indenizatórios, mas remuneratórios. Bastaria uma interpretação do Supremo para acabar com a farra de criação de penduricalhos, que nada mais são do que aumentos salariais.

Um segundo ponto seria repensar o poder que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público têm de deliberar administrativamente sobre os rendimentos dos seus membros. Isso só faria sentido se eles fossem efetivamente um órgão de controle externo, com membros exclusivamente de fora da carreira, indicados pela sociedade civil.

Precisamos também desmistificar a discussão sobre reforma administrativa no Brasil. Ela está muito centrada na questão da estabilidade do serviço público e de reduzir o tamanho do Estado. Os números indicam que não temos excesso de servidores públicos. Mas precisamos repensar a estrutura das carreiras e enxugar seu número.

Seria preciso, nos três níveis de Poder, uma estrutura o mais unificada possível de carreira, pensando em um salário de entrada mais baixo e um salário de saída, de topo, que vai ser alcançado ao longo dos anos, mediante avaliações periódicas de desempenho, qualificação e métricas de entregas para a sociedade.

É preciso rediscutir os pilares, e não necessariamente o tamanho do Estado. Avaliar os incentivos presentes no Estado para que possamos cumprir esse objetivo. Para que tenhamos servidores motivados, focados no exercício de suas atribuições, nas entregas para a sociedade. E não servidores que dedicam boa parte de sua energia para extrair benefícios em detrimento dos demais, em prejuízo da sociedade como um todo.


BRUNO CARAZZA, 46

Mestre em economia pela UnB e doutor em direito pela UFMG. Servidor público de carreira (licenciado), trabalhou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e em diversos órgãos do Ministério da Fazenda. Autor, entre outros, do livro "Dinheiro, Eleições e Poder: As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro" (Companhia das Letras, 2018).

O PAÍS DOS PRIVILÉGIOS – VOLUME 1: OS NOVOS E VELHOS DONOS DO PODER

Antologia das férias VII (atualizações: )

A fabricação da mentira

Quem acredita nessa farsa?

eleições de outubro, São Paulo

Por que voto em Boulos

Matéria do Jornal Nacional exibida em 12 de julho mostra a realidade social da capital paulista; uma verdadeira tragédia para a qual em raros momentos da sua história a Prefeitura apresentou e implementou projetos para tentar corrigir o descalabro do favorecimento dos interesses privados sobre a sociedade. Em nome da reversão do que tem sido feito pelos grupos reacionários e obscurantistas que tentam se manter no poder, meu candidato é Boulos. Assista aqui a  reportagem do JN

41 anos de maturidade política: chegou a hora da representação parlamentar

Núcleo duro do PT turbina projeto eleitoral do MST


Aliados de peso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participaram nesta quinta-feira (11/7) do último dia da plenária nacional das pré-candidaturas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

O encontro é uma iniciativa inédita do MST para organizar e qualificar as pré-candidaturas de acampados, assentados e simpatizantes, que, como mostrou o Painel, podem chegar a até 700 em 2024, entre postulantes aos cargos de vereadores, vice-prefeitos e prefeitos (leia na Folha)

Conspiração, corrupção e morte...

Evidências do aparelho criminoso que Bolsonaro e seus apoiadores montaram no interior do governo têm as dimensões de uma determinação doentia, como se seus protagonistas imaginassem ter se apropriado da História para fazer dela o que bem entendessem. As denúncias postadas abaixo indicam que a conspiração até agora não deu certo, mas... continua ativa.

# Agentes da "Abin paralela" de Bolsonaro discutiram 'tiro na cabeça' de Alexandre de Moraes (247) # A blindagem de Flávio Bolsonaro (Carta Capital) # Abin de Bolsonaro espionou Lira, ministros, jornalistas... (Carta Capital)

Leituras imperdíveis na Folha de hoje (12/7): # "Abin paralela" atuou contra Judiciário, Congresso e eleições # Mônica Bergamo, um dos alvos da Abin de Bolsonaro, comenta o avanço das investigações # Abin atuava em todos os setores e em todas as ramificações do bolsonarismo.

É possível derrotar o bolsonarismo em São Paulo?


A última pesquisa DataFolha, realizada nos primeiros dias de julho, não trouxe variações importantes sobre os humores populares, até porque 55% da população ainda não decidiu em quem poderia votar. As eleições para prefeito não atraíram até agora a atenção da maioria absoluta. A principal novidade da campanha foi a confirmação do ex-comandante da Rota (tropa de elite da PM-SP), coronel Ricardo Mello Araújo como vice de Ricardo Nunes e o alinhamento com o bolsonarismo. 

# Leia Valério Arcary (A Terra é redonda) Leia também Marina Verenicz (Carta Capital)

Novo Ensino Médio: Veta Lula!

Arthur Lira impôs sem debate algum projeto que torna a escola segregadora e aberta às fundações privadas. Ministro da Educação e líder do governo curvaram-se. Presidente tem chance de mostrar por quê foi eleito. Luis Felipe Miguel, Outras Palavras (acesse)

Um golpe de Arthur Lira permitiu que (...) a Câmara dos Deputados aprovasse o “Novo Ensino Médio” (NEM) tal como desenhado pelo bolsonarista Mendonça Filho, hoje relator do projeto e antes – vocês lembram? – truculento ministro da Educação no governo ilegítimo de Michel Temer.

A resistência de estudantes, professores e administradores escolares tinha obtido algumas vitórias no Senado. A meu ver, ainda insuficientes, mas, pelo menos, tornavam o NEM menos pior, sobretudo garantindo carga maior para o conteúdo disciplinar obrigatório.

Mendonça Filho descartou as principais dessas mudanças e seu relatório foi aprovado por votação simbólica.

O mais triste: a manobra de Lira recebeu o apoio do líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE). O MEC de Camilo Santana já tinha, há muito tempo, optado por lavar as mãos.

Atravessado por representantes das fundações empresariais, de costas para estudantes, profissionais e especialistas engajados, o MEC tem fracassado na tarefa de garantir uma educação pública igualitária e de qualidade.

O “Novo Ensino Médio” foi um dos retrocessos impostos pelo golpe de 2016. A gente sabe que direitos trabalhistas foram perdidos, a economia foi desnacionalizada e as políticas sociais do Estado foram asfixiadas (com o teto de gastos), tudo aprovado a toque de caixa, sem discussão com a sociedade ou mesmo no Congresso. Com a educação foi pior ainda – a mudança veio por meio de medida provisória, baixada por Temer em 2016 e convertida em lei em 2017.

Apesar de toda a propaganda, o “Novo Ensino Médio” logo mostrou que é: precarização do ensino dos mais pobres.

Sob o pretexto de dar “flexibilidade” aos estudantes, o “Novo Ensino Médio” esvazia a formação básica de quem é submetido a ele. História do Brasil, por exemplo, não existe mais. De maneira geral, disciplinas voltadas à formação do senso crítico e da cidadania ativa foram extirpadas.

Em seu lugar entram conteúdos relacionados a “empreendedorismo” e “marketing”. A reforma se exibe como perfeitamente alinhada ao espírito do neoliberalismo.

A anunciada “flexibilidade” é uma balela, já que a esmagadora maioria das escolas não oferece quase nenhuma alternativa de “percursos formativos”. Na prática, a educação é segregada, oferecendo aos filhos da classe trabalhadora uma formação “adequada” às posições subalternas que eles estão destinados a exercer – e reservando aos herdeiros das elites horizontes mais alargados.

Um colunista da Veja, na época, foi sincero: tratava-se de restaurar “a fórmula tradicional de uma formação profissional para os pobres e uma educação clássica para as elites”.

As mudanças introduzidas agora minoram muito pouco os problemas do projeto.

O fato de que Lira julgou necessária essa manobra golpista mostra como, para a direita, a reforma é prioridade.

Barrá-la e inaugurar uma discussão ampla e democrática sobre o tema – que ensino médio queremos, para formar cidadãos para que país – também devia ser prioridade para a esquerda.

O MEC está rendido, mas Lula tem mais uma chance de mostrar que ouve os profissionais da educação e os estudantes. Que não a perca.


* Publicado inicialmente no GGN

Novo Ensino Médio: Câmara rejeita mudanças do Senado, incorpora sugestões de Mendonça Filho e cai na armadilha de Lira

# Entenda o que muda e a reação contra a proposta aprovada pelos Deputados (Patrícia Faerman, GGN)

# Daniel Cara critica Novo Ensino Médio e denuncia manobra de Lira (Diário do Centro do Mundo)

França: depois da grande vitória

Jacobin,  via Outras Palavras


Nada há de inevitável no avanço da ultradireita, mostram os resultados. Com programa claro e unidade surpreendente, Nova Frente Popular salvou o país. Mas Marine Le Pen conserva força, Macron busca sacar uma nova carta da manga... e é chamado de "mau perdedor"

As muitas vidas de Frantz Fanon

Numa biografia magistral, emergem o revolucionário, o pensador anticolonial, o psiquiatra rebelde. E surgem com mais nitidez a relação com a psicanálise, a dissidência política após a vitória e a visão nuançada sobre o papel da violência. Arvin Alaigh, Dissent Magazine, via Outras Palavras (acesse)

Resenha de:
The Rebel’s Clinic: The Revolutionary Lives of Frantz Fanon
Por Adam Shatz
Farrar, Straus e Giroux, 2024, 464 pp.

A estatura de Frantz Fanon cresceu no final da década de 1950, à medida que ele atravessava o emergente Terceiro Mundo, conquistando apoio para a causa nacionalista argelina. Como membro da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido que travava uma guerra de independência contra os governantes coloniais franceses da Argélia, Fanon tinha um elenco assombroso de responsabilidades: oferecia tratamento psiquiátrico aos combatentes da FLN; ajudou a produzir o jornal oficial do partido; deu palestras sobre filosofia e história para soldados no front; e viajou por todo o continente africano como embaixador formal do governo provisório argelino no exílio, angariando capital político e financeiro para o movimento revolucionário.

Tal destaque resultou num risco enorme. À medida que Fanon ascendia na hierarquia da FLN, as forças francesas colocaram-no na mira. Em 1959, La Main Rouge, um esquadrão da morte paramilitar anti-FLN financiado pela espionagem francesa, seguiu-o até Roma, onde tinha viajado para receber tratamento médico após um acidente de carro em Marrocos. Pouco antes de um agente da FLN ir buscar Fanon no aeroporto, uma bomba detonou sob seu carro, matando uma criança próxima. Ao saber que seu paradeiro havia sido divulgado em uma reportagem sobre a explosão, Fanon exigiu mudar de quarto no hospital e escapou por pouco de um assassino armado que invadiu o aposento original. Após viver essa situação difícil, deixou Roma e voltou para Túnis, onde estava exilado.

Os inimigos de Fanon não estavam apenas nas forças coloniais francesas; ele também encontrou adversários dentro da própria FLN, uma organização marcada por lutas internas pelo poder. Crítico silencioso da liderança, ele poderia muito bem ter emergido como alvo dos expurgos pós-revolução, que levaram à expulsão de dezenas de militantes do partido e à morte de muitos outros. Mas morreu de leucemia aos 36 anos, meses antes de a Argélia conquistar a sua independência, em 1962. Um dos atos finais da sua vida truncada foi ditar à sua secretária, já no leito de morte, o que se tornaria seu trabalho mais influente. Os Condenados da Terra, apontado por Stuart Hall como a “Bíblia da descolonização”, diagnosticou as condições políticas, sociais e psicológicas do domínio colonial com um grau de clareza e força nunca visto até a sua publicação – ou desde então. Também defendeu o uso da violência revolucionária pelos colonizados contra os seus opressores coloniais, um aspecto do seu trabalho que recebeu atenção desproporcional e foi despido de todas as suas nuances.

Nos anos que se seguiram à sua morte, Os Condenados elevou Fanon ao panteão dos luminares anticoloniais. Movimentos nacionalistas radicais em toda a África, Ásia e América do Sul defenderam a obra, assim como o Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos. Nas décadas de 1980 e 1990, o seu trabalho foi abraçado pela academia, onde a teoria da cultura e o pós-estruturalismo inscreveram o seu corpus em debates muitas vezes esotéricos e politicamente inertes. Enquanto isso, ativistas corretamente empenhados em evitar as tentativas de desfiguração de sua política revolucionária lutavam entre si para decidir qual Fanon era o autêntico. Na busca por definir “o” Fanon, porém, corremos o risco de perder o que o tornou tão extraordinário. Fanon não tinha identidade única. Ele passou a vida em movimento perpétuo – física, intelectual e politicamente.

Das numerosas biografias em inglês que narram a vida e a obra de Fanon, The Rebel’s Clinic: The Revolutionary Lives of Frantz Fanon, de Adam Shatz, é talvez a mais rica intelectualmente. Shatz, um dos grandes ensaístas do nosso tempo, apresenta uma figura imperfeita e brilhante – uma figura que compromete o mito predominante de Fanon como um apologista unidimensional da violência. Shatz fez, por mais de duas décadas, reportagens da França e do Norte da África, escrevendo sobre os legados persistentes do domínio colonial. Tem vasto domínio dos múltiplos contextos intelectuais e políticos que moldaram Fanon, incluindo o movimento Négritude, a filosofia francófona e o meio literário do pós-guerra, as fissuras que dividiram a FLN durante a revolução e os crescentes movimentos clínicos que substituíram a psiquiatria francesa ortodoxa.

A admiração de Shatz pelo seu tema é evidente, mas ele evita cuidadosamente o impulso hagiográfico que impulsiona grande parte dos estudos sobre Fanon. Examina a abordagem desconfortável e, às vezes contraditória, de Fanon sobre a violência revolucionária; revela dimensões mais profundas das dívidas de Fanon para com escritoras como Suzanne Césaire e Simone de Beauvoir; e avalia criticamente a aparente rejeição de Freud por Fanon, iluminando os numerosos legados que ele recebeu do fundador da psicanálise. No processo, Shatz dá vida a Fanon, incitando-nos a pensar ao lado dele para dar sentido ao nosso mundo atual.

* * *

O corpo de Fanon jaz num cemitério de mártires no leste da Argélia. Embora tenha morrido como argelino honorário, ele nasceu a milhares de quilômetros de distância, na pequena ilha caribenha da Martinica. Foi aqui que habitou pela primeira vez a hierarquia racial que estruturava a sociedade colonial, embora demorasse anos para desenvolver uma compreensão mais profunda da condição colonizada. Dois episódios ajudaram a fornecer esta consciência: o encontro com o racismo, por parte dos europeus brancos durante a Segunda Guerra Mundial, na qual lutou como membro das Forças Francesas Livres, e as suas experiências subsequentes como estudante de medicina em Lyon, no final da década de 1940. Seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, é um amplo estudo sobre a alienação social dos negros colonizados e suas manifestações na política, literatura, filosofia e psicanálise. O livro começou como sua dissertação médica, até que seu departamento rejeitou o tópico (ele finalmente apresentou uma dissertação respeitosa, porém rigorosa, sobre a ataxia de Friedreich, uma doença neurodegenerativa).

Após sua residência e um curto período praticando psiquiatria na Martinica e na França, Fanon recebeu um posto clínico na Argélia em 1953, em Blida-Joinville, o maior centro psiquiátrico do país. Já politizado, juntou-se secretamente à FLN dois anos depois de se mudar para o país. Fanon tratou os policiais e militares franceses ocupantes em sua atividade clínica oficial durante o dia e os combatentes da resistência da FLN à noite.

Ao contrário de David Macey, autor da última grande biografia de Fanon há mais de duas décadas, Shatz oferece um exame robusto da carreira de Fanon como psiquiatra, um aspecto de sua vida que recebeu atenção renovada desde a publicação de dezenas de seus escritos psiquiátricos em 2015. Shatz explora a relação tênue, mas formativa, de Fanon com a psicanálise. As noções de inconsciente, repressão e estágio de espelho de Lacan informaram suas concepções da subjetividade negra e colonial, e ainda assim ele argumentou que as ideias psicanalíticas centradas nas estruturas familiares europeias, como o complexo de Édipo, não poderiam ser aplicadas acriticamente ao sujeito argelino. (Ele também manteve um interesse pessoal: “Assim que eu terminar esta revolução argelina”, disse ele à sua secretária, “farei uma análise”.) Como chefe da Blida-Joinville, ele se esforçou para reformar a abordagem terapêutica da clínica. Experimentou a psicoterapia institucional, uma forma radical de institucionalização que visava devolver a subjetividade aos pacientes, confundindo as fronteiras entre a sociedade e o hospital.

Para Shatz, o trabalho psiquiátrico de Fanon está no centro do seu projeto político. Foi a manifestação mais prática da sua ambição de restaurar a agência de sujeitos fundamentalmente alienados. Nas sociedades colonizadas, tal como nos hospitais psiquiátricos, a liberdade exigia o desenvolvimento da consciência através da criação ativa de novas estruturas sociais, políticas e psíquicas. Para Fanon, esta capacidade de liberdade era crítica – o que o distinguiu de segmentos do meio intelectual francês do pós-guerra que, sob o feitiço do surrealismo, romantizaram a loucura como uma força “visionária” ou libertadora. “Para um descendente de escravos numa antiga colônia açucareira”, escreve Shatz, “era impossível confundir a condição de desintegração mental e física com a emancipação de uma ordem social opressiva”.

* * *

No final da vida, Fanon encontrava-se cada vez mais desiludido com a FLN. Ele havia sido inspirado pela promessa de um movimento revolucionário que pudesse cultivar uma nação alicerçada numa consciência social libertadora. Mas agora via um partido invadido por militares míopes e ideologicamente desequilibrados, ansiosos por mobilizar o chauvinismo étnico-religioso para forjar uma identidade argelina que excluísse as minorias étnicas e religiosas. Com base nestas experiências, Fanon previu nos Condenados da Terra que a maioria dos movimentos de independência nacional terminaria com uma consolidação do poder político pelas elites nativas, cujos impulsos de auto-enriquecimento calcificariam as divisões sociais e económicas da era colonial. Entretanto, as potências neocoloniais, como as corporações transnacionais, continuariam a saquear as nações anteriormente colonizadas. Contra este futuro sombrio, era fundamental construir a solidariedade internacionalista – para Fanon, isto significava um projeto pan-africano – capaz de libertar as nações recentemente independentes das estruturas de poder do velho mundo.

Ao contrário de alguns pensadores pós-coloniais, Fanon nunca rejeitou a modernidade ocidental per se. Em vez disso, como escreveu nos Condenados, procurou transcendê-la criando uma consciência universal enraizada num “novo humanismo”. Este projeto radical, que exigia “procurar noutro lugar além da Europa” em busca de inspiração para “inventar um homem completo”, continuou a ser o seu objetivo até ao fim da vida. A consciência nacional pós-colonial foi um canal para esse fim. É difícil dizer o que isso significou concretamente para um novo Estado-Nação.

Fanon fez algumas recomendações explícitas para uma sociedade pós-colonial, incluindo a redistribuição da riqueza, a fim de solapar o poder da burguesia nativa e das classes dominantes. Mas nunca forneceu modelos granulares de construção de instituições políticas, nem discutiu detalhadamente a mecânica da governação. Como escreveu Edward Said em Cultura e Imperialismo, Fanon não apresenta “uma receita para fazer uma transição após a descolonização”. Ainda assim, podemos esboçar os contornos de uma nação pós-colonial reordenada segundo as linhas fanonianas: uma sociedade emancipada, democrática, pluralista e coletivista, sintonizada com as necessidades de reparação psíquica e comprometida com o desmantelamento das hierarquias coloniais.

Esta visão ambiciosa foi em grande parte ofuscada pelo envolvimento controverso de Fanon com a questão da violência. O prefácio de Jean-Paul Sartre a Condenados, que exalta a virtude da ação violenta, acabou ofuscando e descaracterizando a posição mais matizada de Fanon. Alguns leitores consideraram a violência revolucionária como expressão suprema da agência e da autodeterminação e, por extensão, o único vetor importante através do qual o compromisso revolucionário de Fanon pode ser avaliado. Ao fazê-lo, sustentam que qualquer ato de violência dos oprimidos contra os seus opressores é (moral ou politicamente) santificado. Para Shatz, Fanon tem uma relação mais complexa com a violência, que é parcialmente ofuscada pelo problema da tradução. Por exemplo, em algumas versões em inglês de Condenados, a frase “la violence désintoxique” aparece como “a violência é uma força de limpeza”, algo distante do sentido de “desintoxicar”. A implicação da frase em francês é que a condição colonial induz uma espécie de estupor, que a violência pode servir para desfazer, despertando os colonizados. Esses tipos de equívocos podem parecer menores, mas moldaram desproporcionalmente a forma como nos lembramos hoje de Fanon.

Duas semanas depois de 7 de outubro, Shatz escreveu um ensaio na London Review of Books refletindo sobre a violência em Israel e em Gaza. Grande parte do artigo refletia sobriamente sobre o sofrimento causado pela ocupação israelense e oferecia um prognóstico sombrio do derramamento de sangue que os habitantes de Gaza estavam na iminência de sofrer. Shatz também mirou alguns membros da esquerda “descolonial”, que “parecem quase fascinados pela violência do Hamas e caracterizam-na como uma forma de justiça anticolonial do tipo defendido por Fanon”. O ensaio desencadeou um debate acirrado e produtivo sobre como os defensores da liberdade palestina deveriam envolver-se no uso da violência.

Assim como em The Rebel’s Clinic , Shatz procurou contrariar leituras simplistas de Fanon apresentando uma figura mais multidimensional. Como partidário da FLN, Fanon apoiou ativamente táticas violentas. Ao mesmo tempo, como psiquiatra, preocupava-se com as feridas psíquicas e sociais persistentes que a violência poderia causar. Fanon termina Condenados da Terra com estudos de caso de argelinos e franceses que sofreram de doenças mentais induzidas pela guerra. “A impressão esmagadora deixada pelos estudos de caso de Fanon. . . é que os efeitos desintoxicantes da violência são, na melhor das hipóteses, efêmeros”, escreve Shatz. A violência é semelhante à terapia de choque – e tal como a terapia de choque por si só não pode curar um paciente (e pode causar novos danos), a violência por si só não pode gerar uma sociedade justa. Contra a tendência de transformar Fanon num ícone de resistência violenta e nada mais, Shatz apresenta o retrato de um homem cuja posição evoluiu à medida que lutava com as questões mais urgentes na busca pela libertação.   

Arvin Alaigh

Escritor, ativista e estudante de doutorado na Universidade de Cambridge.


Aqui os manicômios começaram a morrer

Há 45 anos, o psiquiatra italiano Franco Basaglia foi levado a um dos piores hospícios do país, em Barbacena (MG). Lá, este inferno foi vencido de forma pioneira. Jairo Toledo, o diretor que liderou a mudança, conta como tudo se deu

# Leia Guilherne Arruda (Outras Palavras)

Saúde privada: poder, captura e rédea solta

Sete Irmãs dominam a medicina de negócios no Brasil. Quem são. Como estão presentes na teia que controla a economia do país – e quais seus laços com fundos e corporações globais. Por que o Estado precisa reduzir drasticamente seu poder

# Eduardo M. Rodrigues e Ladislau Dowbor, Outra Saúde

Antologia das férias VI

# Novo desenvolvimentismo
Considerações de Bresser-Pereira sobre seu mais recente livro (A Terra é redonda)

# A sociologia é um esporte de combate
Comentário de Afrânio Catani sobre o filme de Pierre Carles sobre o sociólogo francês Pierre Bourdieu (ATR)

# Socialismo: idealização e realidade
Fernando Nogueira da Costa: o que é prioritário no combate a desigualdade? (ATR)

Privatização da Sabesp é tragédia anunciada

Processo que vem sendo conduzido sob a batuta de Tarcísio de Freitas é o pior possível

# Leia Camila Rocha, na Folha

As câmaras da dupla Tarcísio/Derrite

# Perseguição, morte e parada no posto de gasolina. O que revelam as câmeras corporais de três dos quatro homens na viatura da Força Tática que encurralaram dois adolescentes de moto até uma batida letal e sumiram sem prestar socorro. Leia João Batista Jr, na Piauí

Pois então...

Estou encantado (enchanté) com a vitória da democracia na França. Participei dia desses de uma acalorada troca de ideias em torno da inevitabilidade do avanço da extrema direita no mundo todo. Agora me parece que esse determinismo fatalista - a julgar pelo que ocorreu na Inglaterra, no México, aqui mesmo em várias circunstâncias e, ontem, na França - só tem como fundamento uma certa incompreensão sobre a dinâmica dos conflitos e tensões que o capitalismo gera o tempo todo e contra o qual só não pode prevalecer a resignação. Então, sem querer me estender nessa chatice de argumentação, nada na História "está escrito nas estrelas". Animem-se! Vamos esvaziar todas as nuvens carregadas que o fascismo traz consigo, cada uma a seu tempo... Vive la France!

# A estratégia que levou à vitória da esquerda francesa sobre a extrema direita (Folha) # As esquerdas se uniram e venceram (A Terra é redonda) # Vencedor da eleição francesa, Mélenchon pede mobilização popular e aumento de salário mínimo por decreto (247) # Impasse político: Macron não quer entregar o poder (247) 

Nossas definições de masculinidade fazem os homens sentirem que fracassaram


A também primatóloga explora em seu último livro a evolução da paternidade e sua relação com uma masculinidade tóxica que “leva à destruição”: “O fato de que os homens manifestem seus sentimentos através do cuidado lhes faz muito bem e não deveria ser uma ofensa, mas o é para muitos”. Sarah Blaffer, IHU

A entrevista é de Sergio Ferrer, publicada por El Diario, 01-07-2024. A tradução é do Cepat (acesse)

O ser humano é um animal muito raro em termos de sexo e reprodução quando comparado a outros primatas e mamíferos. Na lista de excentricidades está o fato de que os machos do Homo sapiens cuidam cada vez mais de seus filhotes. Sarah Blaffer Hrdy (Estados Unidos, 1946) é uma antropóloga e primatóloga conhecida por seus livros sobre a evolução das mulheres, das mães e dos cuidados compartilhados. Em seu último livro Father Time: A natural History of Men and Babies (que, no próximo ano, será publicado em espanhol pela Captain Swing) ela se concentra nos homens para quebrar preconceitos biológicos e sociais sobre o papel que desempenham na criação dos filhos.

A tese de Blaffer Hrdy resume-se no fato de que as duras condições de vida dos nossos antepassados forçaram todo o grupo a se dedicar aos cuidados, inclusive os homens. Mais tarde, o aparecimento dos Estados e do patriarcado dividiu os papéis de gênero e, com eles, o cuidado. Somente os avanços da modernidade (do feminismo à mamadeira) trouxeram à tona algumas características de nossa espécie que estavam escondidas há muito tempo. Sua conclusão pode não parecer surpreendente hoje: nada em nossa biologia impede que os homens sejam capazes de cuidar dos pequenos tão bem quanto suas companheiras.

Nota: a língua inglesa permite fazer uma diferenciação entre fathers e parents, mas ambas as palavras são traduzidas para o espanhol [e o português] como “pais”. Para maior clareza, nesta entrevista o termo “pais” referir-se-á sempre ao plural de “pai”, salvo indicação em contrário para esclarecer que também inclui as mães.

Eis a entrevista


São os mamíferos e primatas “bons” pais?

Cinco porcento dos mamíferos são bons pais, mas a maioria não é. Em relação aos símios, somos grandes exceções: alguns macacos como os saguis, micos e lêmures têm muito cuidado paterno, mas isso não é visto em nenhum dos grandes símios dos quais fazemos parte. Chimpanzés, bonobos, orangotangos e gorilas são parentes muito próximos e os machos não se importam com filhotes pequenos.

Há casos, como o de um chimpanzé macho adulto num zoológico que adotou um órfão que estava quase prestes a desmamar, mas são exceções. Acontece que os circuitos neuronais existem, as inclinações existem, mas as condições para que despertem são muito raras. Na natureza, não creio que um chimpanzé macho teria acesso ao bebê de uma mãe, porque são muito protetoras com seus recém-nascidos.


Como surgiu uma exceção como a nossa?

Tudo começou com a evolução dos mamíferos, porque a fertilização interna significa que os machos não podem ter certeza da sua paternidade. Os primatas ainda menos: desde que existe o infanticídio, as fêmeas acasalam com muitos machos para manipular as informações sobre a paternidade. Assim, a evolução selecionou os machos de primatas para ficarem perto das fêmeas após o acasalamento, algo incomum para os mamíferos. Não era para cuidar dos pequenos, mas para protegê-los de serem mortos por outro macho e para salvaguardar o seu acesso à fêmea. A partir daí tem a ver com o tempo e a proximidade íntima que passam com os bebês desde o nascimento, e que parece ativar antigos potenciais [do cérebro orientado para o cuidado paterno].

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Tudo começou antes da nossa espécie?

Existem circuitos neuronais e moléculas, ancestrais da ocitocina e da prolactina, por exemplo, que já estavam presentes nos peixes. O hormônio da lactação já existia nos peixes muito antes da evolução dos mamíferos, há mais de 400 milhões de anos. Temos esses genes dentro de nós, fósseis herdados de nossos ancestrais vertebrados. O cuidado parental em peixes nem sempre existe, mas quando existe é sempre masculino. São os machos que protegem o ninho, os ovos e os filhotes, e os circuitos para isso parecem ser persistentes. A mãe natureza, minha metáfora pessoal para a seleção natural, é muito econômica. Guarda esses ingredientes na despensa e se precisar deles depois vai lá pegá-los. Se existirem condições que afetem o sucesso reprodutivo e a sobrevivência, essas características serão favorecidas pela evolução.


A ‘mãe natureza’ tinha os ingredientes. Por que os nossos antepassados humanos tinham necessidade deles?

Nossa espécie tem uma maturação muito lenta, com crias muito caras que demoram muito para se defenderem sozinhas. Não teríamos sobrevivido no Pleistoceno se as mães não tivessem tido muita ajuda. Antes, presumia-se que isso vinha do pai, a hipótese do homem caçador. O problema é que os etnólogos que trabalharam com pessoas como os hadza demonstraram que um pai sozinho não pode fornecer carne suficiente para manter vivos um bebê e a mãe. Tinha que haver partilha e mais de um homem caçando.

A maior parte das calorias provavelmente veio de alimentos vegetais coletados pelas mulheres. Necessitava-se de uma grande variedade de alomães [membros do grupo que não são a mãe e que podem ser homens ou mulheres] além das mães, e os pais ajudavam quando estavam presentes. Essa criação com os outros era essencial. Hoje, muitos filhos de caçadores-coletores crescem em comunidades onde seus pais não estão presentes e são alimentados da mesma forma que todos os outros.


A criação humana não é tarefa nem de um nem de dois?

Em Mothers and Others [2009] apresentei a ideia de que os seres humanos eram criadores cooperativos, porque as mães deviam ter tido ajuda para manter os seus bebês vivos. Eu era conservadora e disse que tudo começou no Pleistoceno, com o Homo erectus. Há cerca de 1,8 milhão de anos, começávamos a desmamar os bebês mais cedo e as mães tornavam-se muito mais dependentes dos outros, mas na realidade todos dependiam mais dos outros. Partilhar a comida foi uma mudança radical na evolução humana junto com a linguagem.

Já escrevi muito sobre quanto apoio as mães precisam, porque é muito difícil para uma mulher cuidar de um bebê completamente sozinha, mas acho que não ressaltei o suficiente quanto apoio os pais precisam. Até eles precisam de muita ajuda, e também de um aval social. Ninguém deveria ter de cuidar de um bebê sozinho 24 horas por dia.

A necessidade da criação cooperativa fez com que todos nós evoluíssemos para sermos cuidadores?

Penso que a maioria dos humanos, talvez todos, tem um substrato aloparental no cérebro que nos torna receptivos aos bebês. Os homens que estão em proximidade íntima e prolongada atingem um ponto crítico que estimula essas áreas cerebrais antigas.

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No livro especulo que a decisão de cuidar – ou não – é tomada no córtex pré-frontal do cérebro do homem. É uma porção muito nova que evoluiu na última metade do Pleistoceno, quando começou o cuidado cooperativo. Acho que o córtex pré-frontal e a criação cooperativa evoluíram juntos.

No entanto, um estudo de 2014 sobre casais de homens homossexuais que cuidavam de bebês desde o nascimento, sem nenhuma mulher envolvida, revelou que o que estava acontecendo nos seus cérebros não ocorria apenas no córtex frontal: também envolvia áreas cerebrais muito antigas, profundamente envolvidas no cuidado materno, como o sistema límbico, o hipotálamo e as amígdalas.

No livro, você argumenta que mudanças socioculturais, como o patriarcado, distanciaram os homens e os bebês porque os Estados precisavam de soldados e mães. O feminismo moderno contribuiu para trazer à tona a nossa biologia oculta?

As mães sempre trabalharam, mas antes não recebiam uma remuneração significativa, mas à medida que o mundo mudou e elas começaram a contribuir significativamente para a economia familiar, os homens reconheceram que precisavam dos seus rendimentos. Queriam ajudar mais, as ideologias estavam mudando, as rígidas normas de gênero estavam afrouxando e os homens podiam expressar sentimentos de cuidado para com os outros com um pouco mais de facilidade, sem serem desprezados.

A sociedade estava mudando de uma forma que possibilitava aos homens passar mais tempo perto das crianças, uma coisa às vezes até necessária. Quando os homens passam mais tempo próximos e cuidando dos bebês, este potencial ancestral que não tinha sido expresso ao longo da evolução, mas que agora está sendo exposto pela primeira vez em centenas de milhões de anos, é despertado e ativado. É algo que me impressiona.

Os desenvolvimentos tecnológicos também contribuíram, juntamente com as mudanças históricas, ideológicas, socioeconômicas e educacionais, para os direitos e a influência das mulheres. O leite já foi essencial para a sobrevivência, mas isso mudou com as mamadeiras com bicos de borracha e as melhorias na fórmula do leite. Além disso, temos extratores [de leite], então não há mais necessidade de ter a mãe por perto.

No entanto, não sei se isso acontece na Espanha, mas está certamente acontecendo no meu país: há um enorme retrocesso em relação aos direitos das mulheres, especialmente contra os direitos reprodutivos. E devo dizer que esta história termina quando as mulheres perdem a autonomia reprodutiva.

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O que você quer dizer com “esta história termina”?

Se as mulheres já não conseguem controlar quando dão à luz, pensa no quanto isso afeta o seu acesso à educação, o seu desenvolvimento profissional e a sua capacidade de trabalhar fora de casa. De repente, uma mulher que quer sustentar a sua família só pode fazê-lo, mais uma vez, com o apoio masculino, porque ela sozinha não pode fazê-lo. [Controlar quando dão à luz] foi uma grande mudança, e se houver uma guerra toda a ênfase recai sobre a necessidade de guerreiros do sexo masculino para proteger o povo. Temos uma congressista nos Estados Unidos que diz que precisamos de mais masculinidade tóxica, e não menos, porque precisamos de guerreiros ferozes.

Vemos essa busca masculina por status, de querer ser dominante, o macho alfa, nos homens. Trump, Putin e Netanyahu preocupam-se com o seu status e com a possibilidade de permanecerem fora da prisão. Eles têm impulsos sexualmente selecionados descontrolados. É uma masculinidade nostálgica.


Como lutar contra esses impulsos que também têm um fundo biológico?

Somos humanos, passamos por períodos em que éramos muito dependentes dos outros e nos preocupávamos com a nossa reputação: é aqui que entra em jogo a seleção social, à qual estranhamente os humanos são suscetíveis porque se preocupam com o que os outros pensam deles. Esta é uma proteção contra os impulsos sexualmente selecionados desenfreados, que podem levar à destruição do seu grupo.

No livro menciono uma espécie de macaco em que a cada 27 meses entra um novo macho, expulsa o morador e mata todos os bebês. Se isso acontecer com frequência suficiente, esses grupos desaparecem. Se um destes líderes, desesperado por status acima de tudo, iniciar uma guerra nuclear ou não se importar com as mudanças climáticas, isso poderá levar à destruição da sua própria posteridade. Se a seleção sexual estiver no comando, tudo o que importa é o seu status pessoal. Precisamos que as pessoas se preocupem com o mundo que oferecerão aos seus herdeiros.


É por isso que você diz no livro que as crianças estão em melhor situação em sociedades onde as mulheres têm mais poder?

Se tivermos sociedades em que os homens estão mais envolvidos com as crianças, eles também se preocupam, mudam as suas prioridades, tornam-se mais maternais. Não creio que os homens sejam o problema; o problema é a seleção sexual irrestrita. Os homens têm dentro de si o potencial para cuidar, só precisa ser exercitado. Isto cria “ambientes mais agradáveis”, um termo para peixes, aves e espécies em que as fêmeas selecionam os parceiros com base na sua utilidade para a prole, resultando numa maior sobrevivência da prole. Tweet

Os bonobos machos também brigam, mas nunca matam ninguém e não existe infanticídio, são muito menos agressivos e violentos. Os chimpanzés às vezes tentam eliminar o grupo vizinho, e algumas sociedades humanas também o fazem e estão fazendo isso neste exato momento.


Que conselho daria a um futuro pai?

Ah, o meu principal conselho seria para os legisladores: precisamos de uma licença parental mais longa, horários de trabalho mais flexíveis e mais apoio, tanto para as mães como para os pais e para aqueles que os ajudam. O velho debate sobre se é melhor o cuidado em creche ou o maternal estava muito errado, porque sempre evoluímos como uma espécie com cuidado maternal, o que faz com que nossos filhos sejam mais empáticos e mais capazes de se comunicar. Há muitas evidências de que o bom cuidado prestado por outras pessoas é altamente benéfico para o desenvolvimento infantil.

Em vez do velho debate, hoje a questão é simplesmente pagar por essas coisas e fazer com que os governos reconheçam que isso é benéfico. Relatórios de empresas de consultoria mostram que seus resultados melhoram se seus funcionários estiverem mais satisfeitos com a vida familiar e com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Um estudo da Harvard Business School diz que mesmo os homens muito ricos querem passar mais tempo com as suas famílias. É uma coisa geracional e é incrível a rapidez com que as coisas mudaram ao longo da minha vida. Mudaram não apenas as oportunidades das mulheres, mas também as dos homens.

Um dos estudos mais famosos que você cita no livro é aquele que mostra que os níveis de testosterona caem com a paternidade. Esses estudos são comunicados de forma excessivamente negativa, com certo sarcasmo?

Um estudo longitudinal muito bem realizado analisou os mesmos homens desde o nascimento, durante a infância, durante a puberdade, antes do casamento, depois do casamento e depois de ter um filho. Foi quando a testosterona caiu. Na sociedade ocidental há tanta ênfase na genitália masculina... às vezes os homens comparam seus órgãos genitais. Portanto, a ideia de que a testosterona diminui depois que os homens passam muito tempo com os bebês, embora não permaneça sempre baixa mas depois suba, incomoda alguns homens. Isto tem a ver com as nossas definições de masculinidade: se a definimos como ser uma pessoa boa e amorosa, o problema desaparece.


A masculinidade também precisa ser redefinida? Tweet

Nossas definições de masculinidade, de que os homens devem ser fortes e emocionalmente seguros e dominantes e nunca podem mostrar fraqueza, prestam um péssimo serviço aos homens. Quando olhamos para os dados nos EUA sobre as “mortes por desespero”, overdoses e suicídio, três em cada cinco são homens. Muitos homens de meia-idade estão tão zangados e magoados que sentem que perderam o seu propósito. Tinham a ideia de que deviam ser o provedor da família, o que nunca foi possível: não foi assim no Pleistoceno e não é hoje. Não é possível que um estilo de vida de classe média possa ser sustentado por um único homem, mas sentem que fracassaram e que uma mulher tomou o seu emprego.

O fato de que os homens manifestem seus sentimentos por meio do cuidado e terem uma nova fonte de satisfação e propósito em suas vidas lhes faz muito bem. Não deveria ser uma fonte de queixa, mas é para muitos e tem a ver com as nossas definições muito tendenciosas e unilaterais de masculinidade.

No livro você menciona o conceito de “paternidade múltipla” que algumas culturas possuem, em que alguns homens consideram como seus filhos aqueles que sabem que não são seus filhos. Estamos muito obcecados com genes?

Não creio que isso [a obsessão pelos genes] tenha servido para alguma coisa. Foram encontradas dezenas de tribos na América do Sul com essas crenças, depois se viu a mesma coisa na África Central. É muito mais comum do que se pensava, e há muitas razões para isso, como quando os recursos são escassos e a mãe precisa de mais ajuda. Tweet

Também reduz a tensão dentro do grupo, não que o ciúme sexual desapareça, mas o modera: se algo acontecer comigo, meus filhos serão mais bem cuidados. A essa altura [os pais não biológicos] já passaram algum tempo com esses bebês e passaram a amá-los. Há 11 milhões de crianças nos Estados Unidos vivendo como enteadas e muitas estão bem. Um estudo realizado na Alemanha mostrou que alguns padrastos que passam muito tempo com estas crianças investem nelas quase tanto como o pai [biológico].

Como será o pai do futuro? Aonde essa evolução nos levará?

É muito difícil e não há provas de que isso vá acontecer, mas poderíamos evoluir para cuidados masculinos obrigatórios se o fizéssemos o suficiente e isso afetasse a sobrevivência infantil. Dependerá de onde os homens veem o seu interesse próprio alinhado, mas não creio que tenhamos esse tempo. Vejo ameaças como as mudanças climáticas. Se houver uma guerra, todas as apostas na criação dos filhos serão canceladas. E quem se importará? Já estamos numa crise de cuidados, é óbvio que não há cuidados suficientes e há muitas crianças abandonadas no mundo. E haverá ainda mais. Se, porventura, as guerras na Ucrânia e em Gaza acabarem, haverá muitos órfãos.

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O 7×1, que completa uma década neste mês de julho, é o acontecimento cultural mais importante do primeiro quarto do século no Brasil (continue a leitura)

Ocorrido no campo decisivo do futebol, onde o país fincou as raízes de sua identidade a partir dos anos 1930, fez muito mais do que chocar as 58 mil pessoas presentes no Mineirão, as 428 milhões que assistiram ao vivo do mundo inteiro e as incontáveis que travaram contato com as imagens nos dias que se seguiram

A derrota espetacular, vivida no contexto das manifestações de 2013 e dos protestos contra a realização da Copa do Mundo, trouxe complexos nacionais à superfície, inspirou uma torrente inesgotável de memes e fez morada permanente em nosso imaginário coletivo. Tornou-se o segundo resultado futebolístico, além do frustrante 0x0, a ter um significado geral na língua portuguesa

Passados dez anos, convém examinar esse acontecimento com mais atenção do que aquela que lhe foi dedicada até o momento. José Miguel Wisnik, autor do livro definitivo sobre o futebol brasileiro, Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008), publicou apenas uma coluna de jornal sobre o 7×1, em O Globo, quatro dias após o jogo, onde se refere ao acontecimento como “catástrofe” (“ainda é 1950, só que sem a mesma inocência trágica”) e vê no colapso da seleção brasileira o fantasma de dom Sebastião, o jovem rei português que desapareceu na África após perder a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, durante a qual se diz que ele ficou sem ação, paralisado. “O sebastianismo doentio”, escreveu Wisnik, “é a crença na volta da entidade Futebol Brasileiro, como se este estivesse sempre pronto a encarnar. (…) Polarizado pelo passado e por um futuro de miragem, o presente contém o buraco negro em que colapsa inconscientemente a seleção, quando fracassa o seu papel messiânico”.

Nuno Ramos, autor do ensaio Os suplicantes: aspectos trágicos do futebol, nos dedicou um pouco mais, algumas páginas na piauí de agosto de 2014. É um texto com boas observações sobre a campanha do Brasil na Copa, mas que acaba trilhando o caminho que Wisnik já havia indicado. Se saiu na piauí de agosto, de toda forma, é porque foi finalizado em julho. As reflexões de Nuno Ramos e José Miguel Wisnik sobre o 7×1, em suma, foram escritas poucos dias após o jogo.  

Os bons comentários, nos anos seguintes, vieram de onde seria mesmo de se esperar. Para Tostão, segundo Wisnik o mais literário de nossos críticos esportivos, o resultado foi o mais espetacular da história do futebol. Os professores Marcelino Rodrigues da Silva e Elcio Cornelsen, que comandam desde 2010 um importante núcleo de estudos dedicado ao futebol na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escreveram respectivamente sobre o impacto do 7×1 na imagem que fazemos de nós como país e a cobertura na mídia alemã da Copa de 2014, retratada como Um conto de fadas de verão, título do artigo de Cornelsen. Sérgio Rodrigues, autor do melhor romance brasileiro sobre futebol, O drible (2013), colocou o 7×1 no centro de sua retrospectiva da década na Folha de S.Paulo. Mas ninguém parece ter levado a cabo o programa indicado por Wisnik em Veneno remédio: “prestar a atenção no jogo como um todo, como uma partitura, como uma trama onde cada detalhe diz algo sobre o conjunto, como um texto cifrado e cheio de enigmas”, adotando diante de uma partida de futebol “um procedimento de leitura do jogo que corresponde ao melhor estilo de um crítico literário”. 

Analisar um jogo de futebol com procedimentos e categorias da crítica literária talvez soe como um projeto disparatado. Para o leitor de Veneno remédio, no entanto, a sugestão feita na página 401 parece menos uma extravagância do que um desdobramento natural das quatrocentas páginas anteriores. O livro é, ao fim e ao cabo, uma obra de crítica literária aplicada ao futebol. A análise do jogo de futebol como livro, no entanto, é um programa a se desenvolver. Wisnik não esboça uma metodologia ou indica procedimentos críticos, que ficam, então, por ser inventados. É o que venho tentando episodicamente ao longo dos últimos anos, movido pela crença, amplamente amparada em Veneno remédio, de que os detalhes do jogo entre Brasil e Alemanha dizem algo não somente “sobre o conjunto” da partida, mas também, junto com o conjunto, sobre o nosso país e seu momento histórico. 

Se a forma romance vem encontrando dificuldades para expressar a era dos eventos climáticos extremos, como sugere o escritor indiano Amitav Ghosh em um livro recém-lançado no Brasil, quem sabe um jogo de futebol não terá sido a inesperada obra-prima literária capaz de revelar algo sobre nosso tempo.

A afinidade entre futebol e literatura não é um devaneio de críticos literários. Christian Bromberger, antropólogo que estudou as rivalidades e identidades torcedoras em cidades da França, da Itália e do Irã, afirmou que uma grande partida de futebol é “um evento exemplar que condensa e teatraliza, à maneira da ficção lúdica e dramática, os valores fundamentais que moldam nossas sociedades”. No Brasil, também no campo da antropologia, Arlei Sander Damo definiu o jogo de futebol como um complexo de relações “que a cada mudança de posição constituem uma trama, um enredo”, e as ações dos jogadores como “processos sociais e simbólicos que podem ser tomadas como narrativas em primeira mão”. 

E se é mesmo possível interpretar uma partida de futebol como literatura, o impulso inicial terá partido de um cineasta, Pier Paolo Pasolini, para quem o futebol era um “sistema de signos não verbal” nos moldes da pintura, do cinema ou da moda. O curto e nada rigoroso ensaio Il calcio “è” un linguaggio con i suoi poeti e prosatori (o futebol “é” uma linguagem com seus poetas e prosadores), que o italiano publicou em 1971 sob o impacto da final da Copa de 1970, é onde aparecem pela primeira vez as noções de prosa e poesia para se referir a procedimentos e estilos de jogo no futebol.

Para Pasolini, as “palavras futebolísticas” eram “formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada”, através da combinação de fonemas. Suas variações eram potencialmente infinitas, mas era possível discernir de forma geral entre um futebol europeu em prosa, fosse ele realista como o dos ingleses ou estetizante como o dos italianos, e um futebol sul-americano em poesia, cujo melhor exemplo seria o brasileiro. Wisnik, que aponta o texto de Pasolini como a motivação inicial para que considerasse escrever sobre futebol, resume assim: “Futebol em prosa significava, para ele, jogo coletivamente articulado, buscando o resultado por meio da sucessão linear e determinada de passes triangulados”, enquanto “o futebol poético suporia dribles e toques de efeito, ao mesmo tempo gratuitos e eficazes, capazes de criar espaços por caminhos não lineares”. 

  

Ao falar em prosa e poesia em 1971, Pasolini alçava o futebol a objeto da semiologia então em voga e estabelecia um novo arcabouço conceitual para tratá-lo como expressão cultural. Nove Copas do Mundo depois, Wisnik partiu do dualismo de Pasolini para apresentar o futebol como uma batalha “que admite o épico, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico”, capaz de comportar “múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e (…) de absorver e de expressar culturas.”

Essa capacidade de absorver e expressar culturas será a característica decisiva para o triunfo global do futebol como esporte popular. Será, também, a que lhe permitirá tornar-se um campo fundamental da experiência brasileira a partir da década de 1930. O futebol brasileiro é, afinal, uma invenção modernista, e em dois sentidos. Primeiro dentro de campo, na medida em que a maneira de jogar futebol que vai se consolidando no Brasil a partir da década de 1920 tem todas as características da antropofagia defendida por Oswald de Andrade em 1928: as camadas populares brasileiras se apropriam da invenção inglesa e lhe imprimem uma configuração original – devoram-na e a regurgitam em forma superior. Mas o futebol brasileiro também é uma invenção modernista em sentido propriamente literário, uma vez que os escritores responsáveis pela imbricação entre futebol e identidade nacional, principalmente Gilberto Freyre e Mário Filho, são representantes do que Antonio Candido chamou de “projeto ideológico” do Modernismo dos anos 1930 – surgido durante o primeiro governo de Getúlio Vargas com a ambição de unificar o país, em contraste mas também em continuidade com o “projeto estético” da década anterior.

No clássico ensaio Literatura e Cultura de 1900 a 1945, publicado em duas partes entre 1953 e 1955, Candido atribui ao Modernismo uma “adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice”. São os mesmos elementos destacados pelos autores que reivindicarão o futebol como fator de identidade nacional. O esporte inventado na Inglaterra participa tanto do momento estético quanto do momento ideológico do Modernismo brasileiro: primeiro propriamente como jogo, investido da paixão popular e dentro do qual começa a se desenvolver um estilo brasileiro a partir da aceitação de jogadores negros e mulatos na década de 1920 (processo descrito por Mário Filho em O negro no futebol brasileiro); depois através de sua elaboração literária por Gilberto Freyre e Mário Filho nos anos 1930. O futebol de poesia de Pasolini é a versão tricampeã do mundo do futebol dionisíaco anunciado por Freyre em 1938, que exprimia “o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro” presente “em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil”.

Com o tricampeonato mundial, conquistado em 1970, o Brasil realiza no esporte mais popular do planeta a façanha que Antonio Candido atribuíra ao Modernismo: “inaugura um novo momento na dialética do universal e do particular, inscrevendo-se neste com força e até arrogância, por meio de armas tomadas a princípio daquele”. A partir daquele ano, em que Pelé se consagrou como rei, o futebol brasileiro oscilará também dialeticamente entre o universal e o particular, entre os modelos e inovações europeus e a identidade local, com resultados diversos e também complexos, onde nem a vitória nem a derrota, como aliás é próprio do futebol, são capazes de resolver as questões que levantam.

Wisnik afirma que o futebol brasileiro consolidou uma linguagem, um repertório próprio, e que não se tratará mais, a partir da conquista no México em 1970, “de descobrir e afirmar as suas bases, mas de recriar-se ou perder-se em função delas, dentro do quadro das grandes transformações pelas quais passará o futebol a partir dos anos 70”. As derrotas tecnocráticas de 1974, 1978 e 1990, a tragédia da seleção utópica de 1982 e seu prolongamento em 1986, o título incaracterístico de 1994 e a tentativa fracassada de repeti-lo em 2010 (com um time defensivo liderado por Dunga, primeiro capitão, depois técnico), a síntese de 2002 e as atuações catatônicas de 1998 e 2006 diante da França de Zinedine Zidane: todas as Copas do Mundo desde 1970 se inscrevem na tentativa do futebol brasileiro de acertar as contas com seu passado mítico. Wisnik e o psicanalista Tales Ab’Sáber, este em artigos publicados na Folha de S. Paulo em 2002 e 2006, são os cronistas do futebol brasileiro como índice dos nossos sonhos e também dos nossos fracassos como país.

Universidade Yale, Estados Unidos, abril de 1994. O Brasil não vence a Copa do Mundo desde o tricampeonato em 1970. Um mês antes de a seleção brasileira desembarcar no país para conquistar o tetra, Roberto Schwarz apresenta pela primeira vez seu ensaio Fim de século. Fazia já alguns anos que os escritos e conferências de Schwarz sobre o Brasil eram influenciados pelo alemão Robert Kurz e seu O colapso da modernização, publicado na Alemanha em setembro de 1991. Desde a década anterior, afirmou Schwarz em Yale, já estava claro que no chamado terceiro mundo “o nacionalismo desenvolvimentista se havia tornado uma ideia vazia, ou melhor, uma ideia para a qual não havia dinheiro”, uma vez que, nas novas condições tecnológicas, para o Brasil e outras nações com características similares, “as inversões necessárias para completar a industrialização e a integração social do país se haviam tornado tão astronômicas quanto inalcançáveis”. A modernização brasileira, portanto, colapsara.

O futebol brasileiro, original e triunfante, fora uma espécie de fiador dessa modernização, além de um sucedâneo da própria literatura na formação e elaboração do país. Daí o futebol ter se tornado, como apontou Wisnik, “uma via incontornável para se pensar as formas paradoxais de inserção do Brasil no mundo contemporâneo”, ou “a maneira privilegiada pela qual a nação ritualiza um acerto de contas consigo mesma (…), do qual as Copas do Mundo se tornaram, a cada quatro anos, a cena principal”. 

O que a derrota de 2014 revela, portanto, sobre a inserção do Brasil no mundo contemporâneo? Isaiah Berlin atribui ao obscuro filósofo alemão Johann Georg Hamann a crença de que Deus fala conosco através da história. Se a história fala conosco através do futebol, como parecem crer Wisnik, Ab’Sáber e outros, o que diabos Deus quis nos dizer com o 7×1? Será essa a esfinge que vem nos devorando à espera de que a decifremos? 

Símbolo da desilusão com o Brasil, o colapso do 7×1 parece ser também síntese e sintoma de processos anteriores, de longa duração: o impasse da modernização brasileira após as crises do petróleo e a terceira revolução industrial, lentamente assimilado desde a década de 1980 até sua eclosão como revolta popular em 2013; e o consequente fracasso da nossa industrialização, que resultou no fim da esperança de um futuro grandioso, substituída pela reprimarização da economia e a contenção de danos como horizonte político. 

Mas não foi só isso. Tales Ab’Sáber apontou, em seus artigos, para um processo correlato no campo simbólico: o desencantamento da seleção e do futebol brasileiros a partir do que podemos chamar de uma derrota civilizatória na Copa do Mundo de 1982.

Escrevendo em maio de 2002, às vésperas da conquista do penta, Ab’Sáber se referiu à seleção brasileira de 1982 como um “objeto mágico de nosso desejo perdido de uma civilização local” e classificou a reação à derrota frente à Itália como um ataque cruel dirigido a nós mesmos. A “demanda de eficácia sem espírito que passou a tomar conta de nosso futebol” correspondia, segundo ele, à “mesma eficácia sem valores humanos ou sociais que tomou de assalto a nossa política e a nossa cultura nos últimos dez anos”. E o “horror maior” denunciado pela história da seleção brasileira de 1982, por fim, faz lembrar os textos de Schwarz da década de 1990: o fato de que “mesmo que façamos tudo certo não atingiremos a vitória, reservada aos detentores da ordem econômica deste mundo”.

A crítica do 7×1 é uma tarefa tanto estética quanto politicamente relevante, para a qual este aniversário parece um bom ponto de partida. Uma década soa como a distância mínima a partir da qual avaliar os grandes acontecimentos políticos e culturais. Para fazê-lo, é preciso olhar para a campanha do Brasil até as semifinais, como fez Nuno Ramos na piauí, mas também para os lances da partida (cenas), seu encadeamento na trama geral do jogo (enredo), os estilos exibidos em campo (linguagem), as atuações dos jogadores (personagens principais e secundários), textos jornalísticos e ensaísticos sobre o jogo (fortuna crítica) e a narração da partida na Rede Globo, canal de tevê com a maior audiência no país (recepção).

O cenário parece um bom começo. Se o Maracanã, maior estádio do planeta na época da primeira Copa do Mundo disputada no Brasil, foi em 1950 “a arena ideal para o balanceio fragoroso entre a ambição de grandeza máxima e a impotência infantilizada” do povo brasileiro, como escreve Wisnik em Veneno remédio, o que se pode dizer do Mineirão, palco do 7×1, inaugurado em 1965 na planejada Belo Horizonte como o mais moderno estádio do país? Diz-se que os engenheiros responsáveis pela construção do Mineirão fizeram um raio X no estádio carioca, sua referência evidente, em busca de deficiências a serem evitadas. Não puderam deixar de reproduzir, ao que parece, a vocação para sediar derrotas traumáticas do Brasil.

Os personagens principais: o goleiro Júlio César, protelando a aposentadoria na desconhecida liga canadense de futebol, e seus sete gols sofridos; o zagueiro David Luiz, destaque do Brasil na Copa do Mundo, e seu surto voluntarista que leva ao que o jornalista inglês Tim Vickery classificou como a pior atuação de um jogador de alto nível em um jogo de grande importância em todos os tempos; e o técnico Luiz Felipe Scolari, campeão em 2002, cujas aparições estupefatas agora simbolizam o próprio fracasso da modernização brasileira. 

Há também alguns protagonistas ausentes: o contundido Neymar, principal jogador daquela equipe, com uma vértebra quebrada por uma joelhada na partida anterior, e o suspenso Thiago Silva, capitão do time, cujo pranto diante de uma decisão por pênaltis uma semana antes permanece desconcertante. Além deles, podemos acrescentar outros dois: Paulo Henrique Ganso, o parceiro e antípoda de Neymar em seus primeiros anos como profissional, jogador cerebral, elegante e radicalmente associativo, cuja carreira aquém das expectativas simboliza o ocaso da figura organizadora do camisa 10; e Robinho, principal jogador brasileiro na Copa do Mundo anterior, disputada na África do Sul, cuja trajetória, de resgatador do “verdadeiro futebol brasileiro” a condenado por estupro na Itália, acabou se tornando um comentário perverso sobre as esperanças e fracassos do Brasil no primeiro quarto do século XXI.

Um goleiro e um zagueiro em ação, um técnico à beira do campo, um craque ferido, um capitão suspenso. Mais onze alemães e nove brasileiros. O jogo vai começar. Durante a execução dos hinos nacionais, três protagonistas estão ligados de maneira curiosa: Júlio César e David Luiz seguram, em atitude inédita, o uniforme do lesionado Neymar, exibindo para as câmeras o nome e o número do craque ausente. Eles cantam a plenos pulmões o hino brasileiro. Diante do desaparecimento da figura do camisa 10 como “totalizador do time”, que Tostão foi o primeiro a notar – ou, nas palavras de Wisnik, o “declínio do papel eminentemente dialético do meia-armador” –, é fascinante que o capitão e o jogador mais experiente da seleção tenham portado como estandarte, a minutos da maior humilhação do futebol brasileiro, a camisa 10 de uma figura ausente. No último lance, no apagar das luzes, o único gol brasileiro será marcado justamente por Oscar, o verdadeiro meia-armador do time (a camisa 10 é o índice de uma função mas também um símbolo de status, e Neymar a usava não por ser o organizador, mas por ser a estrela da seleção), que deveria pensar e dialetizar o jogo, conferir um sentido e uma síntese à equipe, do que obviamente não foi capaz.

Para analisar a partida proponho dividi-la em sete atos de 15 minutos cada um. No primeiro, em que a Alemanha consegue abrir o placar após falha de marcação numa cobrança de escanteio, temos ainda um jogo mais ou menos convencional de Copa do Mundo. No segundo ato a história acontece: implosão psíquica, quatro gols em seis minutos e com meia hora de jogo a seleção mais tradicional do futebol perde uma semifinal de Copa do Mundo por 5×0 jogando em casa. Franco Moretti vê o romance europeu do século XIX como uma mistura de “bifurcações” e “enchimentos”, sendo estes a inovação que permitiu à literatura acompanhar o ritmo da vida. O futebol, surgido no mesmo século XIX, é o esporte dos enchimentos por excelência, feito de tempos mortos e especulações que só ocasionalmente se bifurcam em chances de gol. Naqueles seis minutos, porém, as bifurcações se sucedem de forma vertiginosa e então, quando cessa a avalanche, só resta matar o tempo até que os heróis humilhados possam deixar o palco.

O terceiro ato, então, é o mais comovente. Em todos os outros esportes com bola ou há um intervalo entre os pontos, cuja duração não é limitada (vôlei e tênis são exemplos), ou o cronômetro é interrompido com frequência, tanto de forma automática quanto por solicitação de atletas ou treinadores (basquete e futebol americano são exemplos). Já o jogo de futebol, “um pouco como o mar, está rugindo à nossa frente – uma vez posto em movimento, não deve ser interrompido”. As aspas são de Nuno Ramos, que afirma que muitos dos “aspectos propriamente trágicos” do futebol “vêm desta literalidade de tempo e espaço, desta contiguidade com a vida”. A tragicidade do 7×1 aparece com força, portanto, nesses 15 minutos de contiguidade entre o quinto gol da Alemanha e o fim do primeiro tempo. 

“O apito final”, escreve Ramos já nas primeiras linhas de Os suplicantes, “estabiliza violentamente aquilo que, no transcorrer do jogo, parece um rio catastrófico de mil possibilidades”. Além do apito final, somente o fim do primeiro tempo pode parar o cronômetro e o “rio catastrófico”. Ele liberta os jogadores e ao mesmo tempo consuma a tragédia. Embora falte ao jogo o caráter heroico que facilitaria sua inclusão no universo do “trágico”, observação pertinente que agradeço a Elcio Cornelsen, acredito haver sim uma dimensão trágica no 7×1. O herói é o próprio futebol brasileiro com seu passado mítico.

O 7×1 é uma tragédia apressada, contemporânea, onde a fúria do destino não é sequer capaz de esperar o último ato. Zeus volta o olhar para Belo Horizonte e vê o Brasil jogando uma semifinal de Copa do Mundo em crise política, econômica e social, com jogadores e futebol medíocres, enfrentando a melhor seleção do torneio. Apenas vinte minutos e o Brasil já perde por 1×0, seremos eliminados, será mais um jogo normal de Copa. Mas Zeus acha que o Brasil não devia sequer ter chegado até essa fase. Foi coisa de Poseidon aquela vitória nos pênaltis contra o Chile. E ele resolve, por isso, nos dar uma lição. 

“O instante traumático e a catástrofe súbita estão no horizonte do provável, se uma superioridade numérica inequívoca não vier a dissipá-la”, escreve Wisnik citando Ramos e pensando nas derrotas tardias ou injustas, quando o gol “abate-se como um nocaute que surpreende à traição uma equipe que vinha de martelar incessantemente a posição adversária”. O 7×1, em sua excepcionalidade, é um caso atípico onde o “instante traumático” é antes uma sucessão de instantes traumáticos, e a “superioridade numérica inequívoca” é o resultado da “catástrofe súbita” em vez de dissipar sua possibilidade.

Os próximos 15 minutos são os do intervalo. Relatos reunidos pela ESPN Brasil no aniversário de seis anos do 7×1 dão conta de que os jogadores se negavam a aceitar a derrota, enquanto o técnico Luiz Felipe Scolari procurava chamá-los à realidade. Ao mesmo tempo, milhões de telespectadores assistiam a propagandas que manifestavam apoio e confiança na seleção brasileira, que a essa altura, para desespero dos departamentos de marketing, perdia por 5×0 uma semifinal de Copa. Uma música do Itaú, muito repetida durante e no período anterior ao torneio, exortava o Brasil a “mostrar sua força”. E na peça de maior repercussão, produzida pela Sadia, crianças pediam que os jogadores “jogassem pra elas” já que nunca haviam visto o país vencer uma Copa.

Aproveitemos para colocar em foco a transmissão da partida. Além de fornecer uma camada discursiva ao jogo, o relato de Galvão Bueno merece atenção por ter se tornado, para os brasileiros, um elemento inseparável da memória do 7×1. No aniversário de um ano da derrota, em 8 de julho de 2015, o Globo Esporte colocou no ar a Galvãoteca do 7×1, acervo online com as frases mais marcantes do narrador durante a transmissão.

Na narração de Galvão, duas frases se tornaram emblemáticas. Virou passeio, proferida no momento do quarto gol alemão, se destaca pela concisão perfeita ao resumir em duas palavras o sentimento geral do espectador da partida. Mas e lá vêm eles de novo, soando poucos segundos depois, na iminência do quinto gol, é a que parece mais rica em significados. Quem são eles, para além dos jogadores alemães que de fato se precipitavam avidamente em direção à área brasileira? Os europeus de novo, uma nova colonização? A recondução do Brasil, agora no futebol, a seu lugar subalterno de destino? É o que parece sugerir Elcio Cornelsen ao lembrar a estadia da seleção alemã na vila de Santo André, que pertence ao município baiano de Santa Cruz Cabrália: “num revival simbólico de Cabral, os ‘conquistadores’ alemães chegavam a 8 de junho de 2014 para ‘descobrir’ o Brasil a partir de seu ponto inicial, Santa Cruz Cabrália, na costa Sul do estado da Bahia.” Cornelsen conta ainda que “a imprensa alemã deu amplo destaque ao contato que os ‘conquistadores’ tiveram com os índios”; e lembra que “a dança que os jogadores aprenderam com os pataxós foi reproduzida por eles durante as comemorações após a vitória contra a seleção da Argentina (…) ainda no gramado do Maracanã”.

Que “eles” sejam os europeus, que “lá vêm de novo” colonizando o Brasil ou ao menos devolvendo-nos ao polo atrasado de alguma ordem global, é hipótese de todo compatível com a interpretação do 7×1 como figuração do colapso da modernização brasileira descrito por Roberto Schwarz. Em linhas gerais: décadas de industrialização haviam sido em vão e a integração nacional era agora uma hipótese improvável, pois chegamos atrasados e não tínhamos mais como acompanhar a evolução tecnológica dos países ricos. A superação do subdesenvolvimento, de todo modo, sempre fora uma miragem. Pois bem: a Alemanha se tornou a maior potência econômica europeia no intervalo entre os textos de Schwarz e a Copa de 2014; à seleção brasileira faltou sobretudo integração em Belo Horizonte, ou coesão, outra palavra frequente do crítico, com os alemães avançando pelo mesmo “lugar de um vazio” que Tales Ab’Sáber identificou na seleção de 1982; e a situação pós-catastrófica dos jogadores brasileiros após o quinto gol alemão, batalhando sem esperança como os trabalhadores urbanos onde a modernização colapsou, não deixa de lembrar a dos “sujeitos monetários sem dinheiro” de que fala Robert Kurz. A dinâmica da seleção brasileira em Belo Horizonte, resumindo, foi a mesma desagregação que sucede a falência do desenvolvimentismo no Brasil.

Mas peço licença para juntar à hipótese dos europeus uma outra, complementar. Recuamos pouco mais de um milênio e então a Europa sequer foi nomeada, a América sequer foi imaginada e os alemães já não são os portugueses, com quem aliás nunca se pareceram, mas bárbaros germânicos invadindo uma Roma decadente. Os arianos de semblante calmo, enfrentando o Brasil com camiseta idêntica à do clube brasileiro de maior torcida, são de repente bárbaros dentro da muralha do Mineirão. Seria o 7×1 o nosso saque dos visigodos? O fim prefigurado de um império corroído e vazio por dentro, preservado apenas enquanto sua ficção fosse conveniente aos invasores? Era esse o país que emergira da revolução digital, da reprimarização da economia nacional e por fim, decisivamente, das manifestações de 2013? 

O 7×1, então, aponta o futuro? Para seguir na pista de Edward Gibbon, cujo Declínio e queda do império romano responsabiliza silenciosamente o cristianismo pela ruína do Império, podemos nos perguntar: seria o neopentecostalismo de David Luiz, que durante a Copa pregava abstinência sexual em suas redes sociais, e de cada vez mais brasileiros, no futebol, na sociedade e na política, o vírus que acelerou a deterioração da Nova República e do futebol que nos dera um lugar no mundo?

Sérgio Rodrigues escreveu que a “segunda etapa foi disputada em ritmo de farsa, com os alemães preocupados em não humilhar demais os desarvorados anfitriões – o que, claro, só os humilhava mais”. O Brasil volta do intervalo atacando com um ímpeto novo, decidido a diminuir a vantagem para sonhar, quem sabe, com a maior virada da história do futebol. Nos primeiros 15 minutos do segundo tempo, aliás amplamente esquecidos, cria uma sequência impressionante de oportunidades claras de gol, impedidas por movimentos às vezes espetaculares do grande goleiro alemão Manuel Neuer.

No trecho seguinte, entre os 15 e os 30 minutos, o ímpeto brasileiro arrefece e a Alemanha chega naturalmente a seu sexto gol. Por fim, entre os 30 e os 45 do segundo tempo, vem o sétimo. O oitavo fica por um triz: no último minuto, o meia alemão Mesut Özil aparece sozinho diante de Júlio César, mas erra o chute, e o Brasil, na sequência, marca seu único gol. Caio Prado Júnior, lembra Wisnik, defende na Formação do Brasil contemporâneo “que o ‘Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe’ no ‘quadro imenso’ da mundialização dos mercados como empreitada da Europa sobre a América, a África e Ásia”. O gol brasileiro, nosso último gesto no torneio que trouxe europeus, americanos, africanos e asiáticos a nossas terras, parece confirmar essa afirmação ao nos transformar, no terreno onde a utopia modernista da vantagem brasileira mais prosperou, em um pequeno detalhe no placar.

Depois do gol de Oscar, o jogo termina. Os repórteres entram em campo, e quem serão os entrevistados senão Júlio César e David Luiz? O goleiro reconhece o grande futebol alemão, fala em “apagão” após o primeiro gol, deixa “um beijo no coração de cada brasileiro” e cita sua falha na Copa de 2010, que trocaria de bom grado pelos sete gols que sofreu. O zagueiro-atacante, em meio às lágrimas que acabaram se tornando a imagem do 7×1, diz que só queria poder dar alegria ao seu povo, pede desculpas a todos os brasileiros, afirma ter aprendido “a ser homem em todos os momentos” e traz à consciência nacional a definitiva formulação “quatro gols em seis minutos”, estranhamente não enunciada ao longo de toda a transmissão da Globo. O espetáculo termina.

O que ficou? Para a seleção brasileira, uma assombração pairando sobre sua participação em Copas. Nas duas edições que sucederam 2014 o Brasil foi eliminado nas quartas de final por adversários sem tradição, ficando, portanto, a uma vitória de voltar às semifinais de onde saiu desfigurado. Melhor assim? A derrota de 2022, com o empate croata saindo nos minutos finais da prorrogação após a equipe brasileira se lançar desnecessária e atabalhoadamente ao ataque, parece pedir uma interpretação psicanalítica na tradição dos artigos de Tales Ab’Sáber. 

Marcelino Rodrigues da Silva escreveu, em agosto de 2014, que após o 7×1 nós rapidamente “passamos da apreensão ao susto, do susto à tragédia e da tragédia à comédia, que se espalhou rapidamente pelo mundo virtual”, onde o “tsunami humorístico que se seguiu à derrota brasileira teve o condão de lavar nossa alma e nos deixar livres de qualquer trauma, de qualquer peso na consciência ou na memória”. Sérgio Rodrigues também lembrou a “saraivada imediata de memes e piadas” e afirmou que “o Mineiraço foi comédia-pastelão” em comparação à tragédia de 1950. Será? 

Silva afirmou, em seu artigo, que as interpretações na “velha chave do atraso e do subdesenvolvimento” haviam prevalecido, com a culpa atribuída “às estruturas arcaicas que governam o futebol brasileiro e, de resto, toda a nossa sociedade”. O texto então termina com uma inesperada hipótese otimista: “Chegou a hora, enfim, de renegociarmos a imagem que fazemos de nós mesmos, no futebol e em outros campos. O mito populista do Brasil malandro, do Brasil do samba, do carnaval e do futebol, talvez já não nos represente mais com a mesma eficácia. A oportunidade histórica de reconstruir o passado e fazer brilhar nele uma promessa de futuro está novamente aberta”.

A oportunidade se abriu, como sabemos, para o movimento que se transformará no bolsonarismo. É na ressaca do 7×1, com o futebol brasileiro humilhado e o país supostamente achando graça, que a direita mobilizada pelo impeachment, uma nova força social conservadora e bastante avessa ao samba, ao carnaval ou à malandragem, adota justamente a camisa da seleção brasileira de futebol como traje. Apoiadores de Jair Bolsonaro sairão às ruas de amarelo durante a campanha eleitoral de 2018, depois em apoio a ele durante seus quatro anos de mandato e por fim, espetacularmente, em 8 de janeiro de 2023. Para Gregório Duvivier, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 2021, “o maior vexame da seleção fez com que a extrema direita abraçasse seu figurino e dissesse: esse Brasil sou eu, e seu uniforme será meu manto. (…) Sete gols? Eu acho é pouco. Então aplaude a volta da fome, celebra a inflação, cultua o incêndio, espalha o vírus, boicota a vacina e ri dos enlutados”. 

Descontado o tom jocoso, a hipótese de uma espécie de gozo na destruição ligando o 7×1 ao 8/1 através da camisa amarela da seleção soa plausível. As próprias grafias, aliás, sugerem contiguidade: números subsequentes, um símbolo mediando, o número um mantido à direita. 7×1, 8/1, e que algum deus nos proteja do que o colapso da modernização brasileira estiver preparando para o número nove.

Pedro Arantes, Fernando Frias e Maria Luiza Menezes parecem reconhecer, no recém-lançado A rebelião dos manés, a continuidade entre os eventos de Belo Horizonte e os de Brasília ao afirmar que “a entrada em campo para o quebra-quebra fora das quatro linhas já estava condenada ao fracasso, ou a novo 7×1”. Os três autores talvez lembrem que o mais malandro dos nossos craques, a cuja comparação com Macunaíma Wisnik dedicou vinte páginas de Veneno remédio, era conhecido como mané, e que o principal estádio de Brasília, transformado no segundo maior do país para a Copa, chama-se justamente Mané Garrincha. Mas o trecho citado serve também para introduzir um último tema: o uso metafórico da expressão “7 a 1”, que se tornou desde 2014 uma constante em conversas pessoais e todo tipo de discurso que ocupa a esfera pública no Brasil. “Fruto de aberração futebolística, expressão passou a evocar ruína do orgulho nacional”, afirmou Sérgio Rodrigues na Folha, acrescentando que o 7×1 tornou-se “um ponto destacado na fraseologia da década” e “não vai embora nunca mais”.

O site colaborativo Dicionário inFormal tem hoje um verbete dedicado ao 7×1. A primeira definição: “Semifinal entre Brasil vs. Alemanha disputada no dia 8 de julho de 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte, durante a Copa do Mundo FIFA de 2014”. E a segunda: “Por conta da humilhação e surpresa do placar, a expressão virou um meme e gíria que significa humilhação ou obstáculo”. Chama atenção, aqui, a palavra obstáculo, distante da grandiloquência e dramaticidade associadas ao 7×1. Ela ecoa, por outro lado, a existência do outro e o obstáculo intransponível que a evolução tecnológica de países como a Alemanha teria representado, segundo o brasileiro Roberto Schwarz na esteira do alemão Robert Kurz, para a modernização de países periféricos como o Brasil. 

Mas para quem acredita que “o futebol vem antes e depois das artes”, participando “da força que as gerou ao mesmo tempo em que é o último dos seus avatares”, como Wisnik, as palavras mais relevantes sobre o 7×1 talvez sejam as de Marcelino Rodrigues da Silva: “O futebol, de uma forma que ninguém esperava, havia dado uma mostra estupenda de vigor, de capacidade de oferecer um espetáculo imprevisível, emocionante e dramático.” Para o bem ou para o mal, o 7×1 é nosso. Passada uma década, que críticos mais competentes comecem a interpretar nossa obra-prima.

Pedro Lerner

É mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, especialista em Política e Sociedade pelo IESP/UERJ e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH/USP com o projeto Eles de novo: o 7x1 e o Brasil

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Estado, direito e desenvolvimento

Considerações sobre a aula magna de Silvio Almeida. Erick Chiconelli Gomes,  A Terra é redonda (acesse)

A aula magna de Silvio Almeida Estado, Direito e Desenvolvimento no Pensamento Social Brasileiro proferida na Escola da Advocacia Geral da União oferece um terreno fértil para uma análise historiográfica que considera a interação entre a experiência vivida e as estruturas econômicas e culturais. Ao examinar as contribuições de Silvio Almeida, é possível identificar como suas reflexões sobre desenvolvimento econômico, ideologia e cultura dialogam com uma tradição historiográfica que valoriza a agência das classes trabalhadoras e marginalizadas, assim como a importância das lutas cotidianas na construção da história.

Silvio Almeida começa sua aula ressaltando a centralidade da economia política no desenvolvimento. Ele argumenta que a espinha dorsal das dinâmicas de prosperidade está enraizada na capacidade de estabelecer uma dinâmica econômica que permita uma espiral de prosperidade. Essa visão contrasta com a abordagem neoliberal que reduz a economia a uma série de técnicas desprovidas de contexto social e político.

Em vez disso, Silvio Almeida insiste que o desenvolvimento econômico deve incorporar uma dimensão ideológica e cultural robusta. Esse ponto de vista reconhece que a economia não é meramente um conjunto de gráficos e tabelas, mas uma construção social que envolve desejos e possibilidades que ainda não se realizaram.

A citação de Celso Furtado por Silvio Almeida, que define o desenvolvimento como uma “fantasia organizada”, reforça a ideia de que a cultura é um campo de disputa onde as classes sociais articulam suas resistências e constroem significados alternativos. Para Celso Furtado, assim como para Silvio Almeida, o desenvolvimento nacional exige a criação de um projeto que não apenas melhore as condições materiais, mas também inspire uma visão cultural e ideológica de um Brasil novo e próspero. Esse projeto nacional, ao incorporar as dimensões subjetivas da existência, transforma-se em uma luta contra as estruturas de poder estabelecidas.

Walter Benjamin, outro autor citado por Silvio Almeida, oferece uma perspectiva crucial sobre a disputa pelo passado. Ele argumenta que o passado não é um objeto fixo, mas está em constante disputa, sendo ressignificado continuamente. Silvio Almeida utiliza essa noção para enfatizar que o processo de desenvolvimento envolve não apenas a criação de novas condições materiais, mas também a reinterpretação das histórias e memórias que formam a identidade nacional. Ao reconhecer e honrar os heróis e heroínas do passado, Almeida sugere que estamos construindo um futuro que respeita e incorpora as lutas históricas das classes marginalizadas.

A dimensão ideológica, discutida por Silvio Almeida através das ideias de Louis Althusser, é apresentada como uma prática material essencial para o desenvolvimento. Althusser vê a ideologia como uma estrutura que molda as condições subjetivas da existência, influenciando diretamente as práticas sociais e econômicas. Silvio Almeida, ao afirmar que a ideologia é central para o desenvolvimento, reforça a importância de criar tanto as condições objetivas quanto subjetivas necessárias para uma espiral de prosperidade. A ideologia, portanto, não é apenas um reflexo das condições materiais, mas uma força ativa que pode transformar essas condições.

Além disso, Silvio Almeida aborda a questão da subordinação internacional do Brasil, destacando a necessidade de uma atitude rebelde contra o papel subordinado que as grandes potências reservam ao país. Ele argumenta que desenvolver o Brasil significa recusar esse papel e afirmar uma postura de igualdade no cenário internacional. Essa visão crítica da geopolítica e das relações internacionais ressoa com a ideia de que a verdadeira emancipação econômica e social só pode ser alcançada através da autodeterminação e da resistência às forças hegemônicas.

Antonio Gramsci, com seu conceito de “pessimismo da razão e otimismo da vontade”, oferece uma visão estratégica para as lutas sociais e políticas. Gramsci argumenta que, apesar das dificuldades e das barreiras estruturais, é essencial manter a esperança e a determinação na luta por um desenvolvimento justo e inclusivo. Silvio Almeida, ao enfatizar a importância das políticas públicas e da mobilização social, ressoa com a perspectiva de Gramsci, sublinhando a necessidade de uma abordagem proativa e esperançosa no enfrentamento das desigualdades.

Implicações históricas e teóricas

A influência de José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o Patriarca da Independência do Brasil, é também fundamental na construção de um projeto nacional. Alberto Torres, em seu pensamento social, dialoga com as ideias de Bonifácio ao defender a necessidade de um desenvolvimento autônomo e soberano para o Brasil. Silvio Almeida, ao valorizar as raízes históricas do pensamento brasileiro, destaca a continuidade dessas ideias na luta por um desenvolvimento que respeite as especificidades e as potencialidades do país.

Roberto Schwarz, com seu ensaio “As Ideias Fora do Lugar”, oferece uma crítica perspicaz sobre a importação de conceitos estrangeiros para o Brasil sem a devida contextualização. Schwarz argumenta que muitas ideias importadas não se adequam à realidade brasileira, criando uma dissonância cultural e social. Silvio Almeida, ao enfatizar a necessidade de desenvolver teorias e práticas que reflitam a realidade local, ressoa com a crítica de Roberto Schwarz, defendendo um desenvolvimento que seja autenticamente brasileiro.

Leda Paulani, com suas análises sobre economia política, supervisionou Silvio Almeida em seu segundo pós-doutorado, influenciando significativamente seu pensamento. Paulani destaca a importância de uma abordagem crítica e interdisciplinar para entender as complexas interações entre economia e sociedade. Silvio Almeida, ao integrar essas perspectivas, reforça a necessidade de uma análise crítica que leve em conta as diversas dimensões do desenvolvimento.

Alessandro Travian, ao estudar a obra de Celso Furtado, destaca a riqueza teórica do desenvolvimento econômico no Brasil. Furtado, com suas análises sobre a formação econômica do Brasil, oferece uma compreensão profunda das estruturas econômicas e sociais que moldam o país. Silvio Almeida, ao dialogar com Travian e Furtado, enfatiza a importância de um desenvolvimento que seja ao mesmo tempo econômico e social, integrando as diversas dimensões da realidade brasileira.

Desenvolvimento e a a questão inorgânica

Maria Odília Teixeira, com sua obra Impasses do Inorgânico, oferece uma análise crítica das contradições e impasses do desenvolvimento capitalista no Brasil. Maria Odília Teixeira argumenta que o desenvolvimento inorgânico caracteriza-se por uma modernização que não integra de forma sustentável as estruturas sociais existentes, gerando uma série de impasses que dificultam o progresso econômico e social. Esse desenvolvimento desarticulado resulta em uma sociedade fragmentada, onde os benefícios do progresso não são igualmente distribuídos.

Silvio Almeida, ao abordar a necessidade de um desenvolvimento inclusivo e sustentável, ecoa as preocupações de Maria Odília Teixeira. Ele destaca a importância de criar um projeto nacional que não apenas promova o crescimento econômico, mas também enfrente as desigualdades estruturais. Essa visão se alinha com a crítica de Maria Odília Teixeira à modernização desorganizada, reforçando a necessidade de políticas públicas que integrem as dimensões sociais e econômicas de maneira coesa.

A perspectiva histórica e social

Emília Viotti da Costa, em sua análise histórica das estruturas sociais brasileiras, oferece insights valiosos sobre as raízes das desigualdades que ainda persistem. Sua obra Da Senzala à Colônia examina a transição da escravidão para a sociedade moderna, revelando como as estruturas de poder e opressão se perpetuam ao longo do tempo. Silvio Almeida, ao discutir a importância de políticas públicas que promovam a equidade racial e social, dialoga com a análise de Viotti da Costa, reconhecendo que o desenvolvimento verdadeiro deve abordar e reparar as injustiças históricas.

Guerreiro Ramos, com sua crítica às teorias importadas e a necessidade de uma sociologia genuinamente brasileira, também influencia a visão de Silvio Almeida. Guerreiro Ramos argumenta que o Brasil precisa desenvolver suas próprias teorias e práticas que reflitam a realidade local, em vez de adotar modelos estrangeiros que não se adequam ao contexto brasileiro. Silvio Almeida, ao enfatizar a necessidade de uma abordagem de desenvolvimento que leve em conta as especificidades culturais e sociais do Brasil, reflete a crítica de Guerreiro Ramos à dependência intelectual.

Estrutura de classes e movimentos sociais

Florestan Fernandes, um dos maiores sociólogos brasileiros, contribui significativamente para a compreensão das relações de classe e dos movimentos sociais no Brasil. Florestan Fernandes argumenta que a superação das desigualdades estruturais só pode ocorrer através de uma mobilização social consciente e organizada. Silvio Almeida, ao discutir a importância da participação ativa das classes marginalizadas no processo de desenvolvimento, ecoa as ideias de Florestan Fernandes sobre a necessidade de uma transformação social profunda e estruturada.

Gilberto Bercovici, com suas análises sobre direito econômico e desenvolvimento, complementa essa visão ao destacar a importância de uma estrutura jurídica que suporte e promova políticas de desenvolvimento inclusivas. Gilberto Bercovici argumenta que o direito econômico deve ser utilizado como uma ferramenta para regular e direcionar o desenvolvimento econômico de maneira que beneficie a sociedade como um todo. Silvio Almeida, ao discutir a importância das reformas jurídicas para o desenvolvimento, integra a perspectiva de Gilberto Bercovici, reforçando a necessidade de um arcabouço legal que promova a justiça social.

Cultura e identidade nacional

Além das contribuições teóricas, Silvio Almeida enfatiza a importância da cultura e da identidade nacional no processo de desenvolvimento. A valorização da cultura popular e das manifestações culturais brasileiras é vista como essencial para a construção de um projeto nacional inclusivo. Isso se alinha com a visão de Florestan Fernandes sobre a importância de uma identidade cultural forte para a mobilização social. Silvio Almeida argumenta que o desenvolvimento não pode ser apenas econômico; deve também envolver a construção de uma identidade nacional que inspire orgulho e unidade.

Eric Hobsbawm, com seu conceito de “invenção das tradições”, argumenta que a história e as tradições são constantemente reinterpretadas para servir aos interesses presentes. Silvio Almeida, ao discutir a importância da cultura e da identidade nacional, ressoa com a perspectiva de Hobsbawm, destacando a necessidade de valorizar e reinterpretar as tradições brasileiras de maneira que promovam um desenvolvimento inclusivo e sustentável.

John Holloway, em sua crítica ao keynesianismo como uma “perigosa ilusão”, argumenta que as políticas keynesianas, embora bem-intencionadas, muitas vezes reforçam as estruturas de poder existentes. Silvio Almeida, ao discutir a importância de políticas públicas que promovam a equidade social, ressoa com a crítica de John Holloway, defendendo uma abordagem que vá além das soluções superficiais e enfrente as raízes estruturais das desigualdades.

Sérgio Miceli e Lúcia Lippi, com suas análises sobre a cultura e a sociedade brasileira, oferecem definições que ajudam a entender as complexas interações entre diferentes esferas da vida social. Almeida, ao utilizar essas definições, enfatiza a importância de uma análise que leve em conta as diversas dimensões da realidade brasileira, integrando aspectos culturais, sociais e econômicos.

David Harvey, com suas análises sobre o capitalismo e a geografia, oferece uma compreensão crítica das dinâmicas espaciais do desenvolvimento. Silvio Almeida, ao dialogar com David Harvey, destaca a importância de entender como as estruturas espaciais e econômicas se interrelacionam, influenciando as possibilidades de desenvolvimento.

Michel Aglietta e Suzanne de Brunhoff, com suas análises sobre a violência da moeda e a economia política, respectivamente, oferecem uma compreensão profunda das dinâmicas econômicas globais. Almeida, ao dialogar com esses autores, destaca a importância de uma análise crítica das estruturas econômicas globais e suas implicações para o desenvolvimento nacional.

Robert Boyer e Alain Lipietz, com suas teorias sobre a regulação e as crises do capitalismo, oferecem uma compreensão crítica das dinâmicas econômicas contemporâneas. Silvio Almeida, ao integrar essas perspectivas, enfatiza a importância de uma abordagem crítica que leve em conta as crises e as transformações do capitalismo global.

Bob Jessop, com suas análises sobre o estado e a regulação, oferece uma compreensão crítica das dinâmicas políticas e econômicas. Almeida, ao dialogar com Bob Jessop, destaca a importância de entender o papel do estado nas dinâmicas de desenvolvimento, defendendo uma abordagem que promova a justiça social e a equidade.

Relações entre história e estrutura social

Silvio Almeida também cita Jacob Gorender e Ciro Flamarion Cardoso, reforçando a importância de entender a história do Brasil através das lentes das lutas sociais e das dinâmicas de poder. Jacob Gorender, com sua análise marxista da formação social brasileira, destaca como as estruturas de classe e as relações de produção moldaram a sociedade brasileira. Sua obra O Escravismo Colonial é essencial para entender as bases econômicas e sociais que continuam a influenciar as desigualdades no Brasil. Ao integrar a análise de Jacob Gorender, Silvio Almeida aponta para a necessidade de enfrentar essas raízes históricas para construir um desenvolvimento verdadeiramente inclusivo.

Ciro Flamarion Cardoso, por sua vez, oferece uma abordagem historiográfica que enfatiza a importância das estruturas sociais e econômicas no entendimento da história. Sua análise detalhada das formações sociais na América Latina fornece uma compreensão profunda das interações entre economia, sociedade e cultura. Ao dialogar com Cardoso, Almeida reforça a ideia de que o desenvolvimento deve ser analisado não apenas em termos econômicos, mas também considerando as complexas interações sociais que moldam as possibilidades de mudança.

As análises de Jacob Gorender e Emília Viotti da Costa convergem ao destacar as raízes históricas das desigualdades sociais e econômicas no Brasil. Jacob Gorender, com sua abordagem marxista, identifica como as estruturas coloniais e escravistas perpetuaram um sistema de exploração que continua a moldar a sociedade brasileira contemporânea.

Emília Viotti da Costa complementa essa visão ao explorar as transições históricas e as continuidades das opressões sociais, destacando que as mudanças nas formas de trabalho e de organização social são fundamentais para entender a persistência das desigualdades. Almeida, ao integrar essas perspectivas, enfatiza a importância de uma abordagem histórica para o desenvolvimento, que reconheça e confronte as raízes profundas das desigualdades.

Além disso, a abordagem de Cardoso sobre as formações sociais na América Latina, quando vista em conjunto com a análise de Viotti da Costa, revela a importância de compreender o desenvolvimento em um contexto regional mais amplo. Cardoso destaca as particularidades das dinâmicas econômicas e sociais na América Latina, enfatizando as interações entre diferentes países e regiões. Viotti da Costa, ao focar nas transições internas do Brasil, proporciona uma visão detalhada das estruturas de poder locais. Silvio Almeida, ao dialogar com ambos, sublinha que o desenvolvimento brasileiro deve ser analisado não apenas dentro de suas fronteiras, mas também em relação às dinâmicas regionais e globais, reconhecendo a interdependência das lutas sociais e econômicas.

Lúcio Kowarick, citado por Silvio Almeida, contribui significativamente para a compreensão das questões urbanas e da marginalização social no Brasil. Sua obra A Espoliação Urbana destaca como a urbanização no Brasil resultou em processos de exclusão e marginalização das classes populares. Lúcio Kowarick analisa a formação de favelas e a precarização das condições de vida urbana como resultados das políticas econômicas e de desenvolvimento que ignoram as necessidades das classes trabalhadoras.

Integrando essa perspectiva, Silvio Almeida enfatiza que um verdadeiro desenvolvimento deve abordar essas desigualdades urbanas e promover políticas que incluam as vozes e as necessidades das populações marginalizadas.

No contexto das políticas públicas, Silvio Almeida é enfático ao afirmar que quem se opõe ao financiamento do sistema único de saúde adota uma postura racista. Essa declaração vincula diretamente a luta por políticas públicas justas com a luta contra as desigualdades raciais e sociais. A saúde pública, como um direito fundamental, é um campo de batalha onde se manifestam as tensões entre diferentes visões de desenvolvimento e justiça social. Ao prefaciar a nova edição de Geografia da Fome de Josué de Castro, Silvio Almeida reintegra a questão da fome no debate nacional, destacando que enfrentar a fome é essencial para um Brasil insubmisso e próspero.

Conclusão

A aula de Silvio Almeida se volta para a importância da cultura no desenvolvimento nacional. Ele argumenta que a cultura popular brasileira deve ser valorizada e integrada no projeto de desenvolvimento. Essa visão reconhece que o desenvolvimento não é apenas uma questão de políticas econômicas, mas de construção de uma identidade cultural que inspire orgulho e unidade nacional. As manifestações culturais, como o samba e o carnaval, são elementos vitais da vida brasileira que devem ser respeitados e celebrados como parte do processo de desenvolvimento.

Silvio Almeida discute a importância das estratégias institucionais para o desenvolvimento. Ele ressalta que o desenvolvimento não é um acidente natural, mas o resultado de ações deliberadas no campo da política e do direito. A dinâmica institucional é crucial para estabelecer as condições para uma espiral de prosperidade. Isso inclui não apenas políticas econômicas, mas também reformas jurídicas que garantam a justiça e a equidade. Silvio Almeida defende uma abordagem integrada que reconhece a interdependência entre economia, política e cultura.

Para complementar a análise apresentada na aula magna de Silvio Almeida “Estado, Direito e Desenvolvimento no Pensamento Social Brasileiro” é necessário abordar, dentro de uma perspectiva thompsoniana, a importância da cultura política das classes trabalhadoras e suas formas de resistência. Edward P. Thompson enfatiza que as experiências vividas das classes marginalizadas e suas práticas culturais cotidianas são cruciais para a formação da consciência de classe e para a resistência contra as estruturas de poder dominantes.

Nesse sentido, Silvio Almeida poderia ter aprofundado a discussão sobre como as tradições, festividades populares e formas de organização comunitária não apenas refletem, mas moldam as lutas sociais e a construção de um projeto de desenvolvimento inclusivo. A ausência dessa perspectiva limita a compreensão completa das dinâmicas sociais e culturais que sustentam as mobilizações e resistências no Brasil, impedindo uma análise mais rica e integral das forças que impulsionam a transformação social.

A aula magna de Silvio Almeida oferece uma visão integrada e multifacetada do desenvolvimento no Brasil. Ao dialogar com pensadores como Maria Odília Teixeira, Emília Viotti da Costa, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes e Gilberto Bercovici, entre outros expoentes, Silvio Almeida constrói uma narrativa que valoriza a interseção entre economia, direito e cultura.

Essa abordagem reconhece as complexidades sociais e econômicas do Brasil e propõe um caminho para um desenvolvimento que seja ao mesmo tempo inclusivo e sustentável. Essa visão crítica e integradora é essencial para entender os desafios e as possibilidades do desenvolvimento no Brasil contemporâneo, proporcionando um caminho para um futuro mais justo e próspero.

Além disso, é importante destacar a contribuição de Alysson Mascaro, que em sua obra sobre a sociologia do Brasil, complementa essa discussão ao oferecer uma análise profunda das estruturas jurídicas e sociais do país. Alysson Mascaro enfatiza a necessidade de uma compreensão crítica das relações de poder e das dinâmicas sociais que moldam a realidade brasileira. Ao integrar essa perspectiva, A Silvio lmeida reforça a importância de uma abordagem que não apenas promova o desenvolvimento econômico, mas também a transformação social e a justiça.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

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João Saldanha (1917-1990)

João Sem Medo, 107 anos 

Atuante nas lutas operárias nos anos 50, se consagrou como comentarista esportivo e foi técnico da Seleção Brasileira, garantindo a classificação para a Copa de 1970. 

# A vida e a luta de Saldanha (Opera Mundi) # João Sem Medo e o golpe no futebol (Jacobina) # O futebol e o jogo da vida (Vermelho) # Quem foi o comunista que enfrentou Médici e comandou a seleção brasileira quase até o tri em 1970? (Ecoa, Uol)

Antologia das férias III

Indícios de que presidente do Banco Central atua em favor de seus próprios interesses são fortes... e devem ser investigados

Nem é preciso levar em conta esse deslize ético que Roberto Campos Neto cometeu ao se oferecer ao 'governador' Tarcísio de Freitas para um ministério (caso este último seja eleito em 2026) para que o modo alerta se acenda. É só observar os movimentos do Banco Central sobre as taxas de juros e o câmbio do dólar para se perceber que Campos Neto, hoje, assumidamente, um militante bolsonarista e um opositor de Lula, está fazendo de tudo quando age, menos levando em conta os interesses nacionais, se é que não está tirando vantagens pessoais do descalabro em que se transformou sua gestão. As matérias abaixo falam sobre todas essas suspeitas e alimentam ainda mais a convicção de que o Banco Central nem é um órgão técnico e nem pode ter qualquer tipo de autonomia que o deixe fora do controle do governo (J.S.Faro)

Manutenção da Selic elevada impõe custo aos tomadores de crédito e ganho aos detentores de capital

Campos Neto informou banqueiros que não irá intervir no câmbio, abrindo caminho para especulação que fortalece o dólar

Objetivo é provocar desvalorização, estimular inflação e forçar nova alta dos juros

Após sabotagem de Campos Neto, dólar vai a R$5,70

# Banco Central poderia usar reservas internacionais para conter a alta da moeda norte-americana, mas não o fez, provocando efeitos perversos sobre a economia brasileira (247)

# Lula: Alta do dólar é "jogo especulativo" contra o real (RBA)

O modelo social-democrata

A social-democracia se baseia em um sistema econômico misto por combinar elementos de mercado com uma ampla rede de proteção social e intervenção estatal. Fernando Nogueira da Costa

A social-democracia não exige necessariamente a estatização completa dos meios de produção, como é comum em sistemas socialistas mais radicais. Em vez disso, a social-democracia se baseia em um sistema econômico misto por combinar elementos de mercado com uma ampla rede de proteção social e intervenção estatal para garantir o bem-estar da população (acesse)

Entre algumas características do modelo social-democrata, em relação à propriedade dos meios de produção, encontram-se as seguintes.

Constitui uma economia mista, porque respeita a propriedade privada como um avanço social diante da exclusiva posse da riqueza, seja da nobreza na Era das Monarquias Absolutista, seja do Estado na Era do Mercantilismo. A maioria dos meios de produção permanece nas mãos de empresas privadas e elas operam com base no lucro e na competição de mercado.

Entretanto, o governo desempenha um papel ativo na regulação da economia, implementando políticas para corrigir falhas de mercado, promover a igualdade de oportunidades e proteger os direitos dos trabalhadores e consumidores.

Há uma estatização seletiva. Em alguns países, setores considerados estratégicos para o interesse público, como energia, transporte, saúde e educação, são parcial ou plenamente estatizados para garantir acesso universal e equitativo a esses serviços.

O Estado mantém participação acionária ou controle majoritário em empresas públicas prestadoras de serviços essenciais ou detentoras de monopólios estratégicos como a extração e a comercialização de petróleo. Mas também podem existir empresas privadas concorrentes nesses setores.

O mais característico da social-democracia é promover uma ampla rede de proteção social. Inclui seguro-desemprego, saúde pública, educação gratuita, aposentadoria e outros benefícios sociais financiados pelo Estado de Bem-Estar.

Políticas trabalhistas, como salário mínimo, limites de horas de trabalho, licenças parentais e proteção contra demissões injustas são estabelecidas. Protegem os direitos dos trabalhadores e garantem condições de trabalho dignas.

Há regulação do mercado de trabalho e redistribuição de renda via política fiscal. Impostos progressivos são aplicados nas faixas de renda mais elevadas, para financiar programas sociais e reduzir a desigualdade de renda, garantindo uma distribuição mais equitativa da riqueza e oportunidades.

A Autoridade Monetária implementa regulamentações para controlar o sistema financeiro. Previne abusos, garante a estabilidade econômica e o acesso ao crédito para indivíduos e empresas.

Embora a social-democracia possa envolver alguma estatização seletiva de setores estratégicos e uma forte intervenção estatal na economia, ela não faz a estatização completa dos meios de produção como fazem os Estado autodenominados de socialistas. Em vez disso, a social-democracia busca um equilíbrio entre o mercado e o Estado, com o objetivo de garantir o bem-estar da população, promover a igualdade de oportunidades e mitigar as desigualdades sociais e econômicas.

É importante observar: embora as ditas Revoluções Socialistas tenham tido participação popular, as conquistas sociais não foram tão intensas como nos países nórdicos com socialdemocracia. Claro, é necessário “dar o desconto” pelo diferencial crucial entre os tamanhos das populações, embora a de Cuba se assemelhe à da Suécia. Mas a Europa é melhor vizinha diante os Estados Unidos…

A Revolução Russa (1917) foi impulsionada por protestos de operários e a deserção de soldados do exército czarista. Conselhos de trabalhadores, soldados e camponeses foram estabelecidos em Sovietes e desempenharam um papel crucial na organização da revolução. Os camponeses participaram ativamente nas redistribuições de terras e nas revoltas locais contra os proprietários de terras. Ao fim e ao cabo, predominou a nomenclatura do PC da URSS.

O Exército Popular de Libertação na Revolução Chinesa (1949) foi composto majoritariamente por camponeses, liderados pelo Partido Comunista Chinês. Mobilizaram o apoio camponês através da redistribuição de terras e da luta contra os senhores feudais. Depois, passaram por fome e mortandade.

O Movimento 26 de Julho da Revolução Cubana (1959) incluía estudantes, trabalhadores e camponeses. Todos se juntaram às guerrilhas lideradas por Fidel Castro e Che Guevara. Após a revolução, políticas de alfabetização e redistribuição de terras mobilizaram o apoio popular. Hoje, todos passam fome, exceto os militares da ex-FAR (Forças Armadas Revolucionárias), dominantes da economia.

“As FAR fazem parte da estrutura de poder de Cuba, constituindo um pilar central da estabilidade e continuidade do governo dito socialista. A Revolução Cubana não produziu um governo democrático no qual os conselhos de trabalhadores, camponeses e combatentes fizessem parte das decisões políticas. Ao contrário, criou um Estado burocrático, centralizado e controlador, sufocando as liberdades populares por meio de repressão e exílio, em nome do dogma do socialismo”.

Laura Tedesco e Rut Diamint, autoras dessa sentença em “Forças Armadas Cubanas: Os Negócios são a Pátria”, capítulo do livro Entre a Utopia e o Cansaço: Pensar Cuba na Atualidade (2024), não a caracterizam como uma ditadura militar só porque a forte concentração de poder está registrada no Partido Comunista.

Isto apesar de comentarem: “o país é a pior versão de esquerda das ditaduras militares latino-americanas”. O controle social em Cuba é capilar, detalhado em cada quarteirão, através dos Comitês de Defesa da Revolução, fundados em 1960, onde militantes do oficialismo denunciam imediatamente quaisquer dissidências.

Com a perda do monopólio da informação pelo governo, graças às redes sociais (embora com acesso à internet muito precário), as novas gerações crescidas em regime de escassez, criticam a oligarquia burocrático-militar governante do país. Tem condições de vida distantes do restante do povo.

As FAR controlam o turismo, o mercado de câmbio, o transporte aéreo e a mineração. O GAESA (Grupo de Administración Empresarial S.A.), dirigido por um general (ex-genro de Raúl Castro, irmão de Fidel), tem mais de 800 negócios, responsáveis por mais da metade da receita do país, grande parte desses recursos investida no paraíso fiscal do Panamá para fugir do embargo estadunidense. Estima-se as FAR controlarem 844 empresas, entre as quais, as de turismo, comércio, lojas arrecadadoras de divisas estrangeiras, comunicações e produção agropecuária.

Em outro capítulo, “Por que irromperam protestos em Cuba”, Jessica Dominguez Delgado informa: “a situação econômica precária de um número cada vez maior de pessoas, a dolarização da economia e o difícil acesso a alimentos e produtos de primeira necessidade – comercializados desde o fim de 2019 em moedas estrangeiras – aumentaram as desigualdades e foram alguns dos principais motivos do mal-estar cívico em 2021”.

Apesar de todo o esforço de comunicação para desacreditar as ações dissidentes como “contrarrevolucionárias”, a carestia (alimentar e de energia elétrica) e a censura aos jovens críticos criaram um terreno fértil em condições naturais para uma convulsão social. “Embora o governo cubano não reconheça sua legitimidade e prefira falar de ‘um golpe promovido e orquestrado pelos Estados Unidos’, ele tem a responsabilidade pelas causas acumuladas provocadoras dos protestos”.

A formalização do câmbio paralelo para compra de dólares não estancou a desvalorização do peso no mercado e provocou uma hiperinflação em Cuba desde o fim do sistema bi monetário (peso e dólar) no início de 2021. Praticamente todas as mercadorias do consumo cotidiano tiveram subida de preços em torno de 1.200%. O salário-mínimo, alçado a 2.100 pesos pela reforma econômica, equivalente em 2021 a 87,5 dólares, passou a valer com o novo câmbio apenas 17,5 dólares. Logo, a população cubana com renda em moeda nacional empobreceu, perdendo drasticamente poder de compra.

A crise alimentar e econômica em Cuba agravou-se ao ser forçada a realização do consumo pago em divisas estrangeiras e com mercado paralelo superprecificado. Para obtenção de dólares e remetê-los às famílias, há emigração massiva para o exterior, principalmente de jovens e mulheres para os Estados Unidos, com desagregação dos núcleos familiares. Afinal, ficar na ilha significa passar fome, perder horas do dia em filas e sofrer longos apagões de energia. Dizem: basta!

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]

Antologia das férias II

Boulos ganha com folga na zona leste, maior colégio eleitoral de São Paulo

Na região, que compreende os bairros de Itaquera, São Mateus, Cidade Tiradentes, Guaianases e Itaim Paulista, o deputado federal tem 36% dos votos, ante 22% do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), seu principal adversário na disputa. A diferença é de 14 pontos percentuais (leia mais)

Eleições na França: análises, desafios, perspectivas (atualizações)

A Liberdade guiando o  povo, de Eugène Delacroix, 1830

# O olhar do expatriado argelino # Extrema direita vence primeiro turno, mas esquerda cresce # Guerra, Mercosul e Clima, os setores mais afetados caso a vitória neofascista se confirme # Le Pen # Cenário incerto # Ultima cartada de Macron # Macron pede unidade # Nova crise do euro e da UE (acesse aqui)

Antologia das férias I

# Postagem transcrita (sem autorização) do blog de Wilson Ferreira

A maldição dos pastores

Pregação evangélica, coaching e crime financeiro em O vendedor de ilusões: o caso Geração Zoe

(...) a Sociologia deveria ter a mesma preocupação da Medicina: diagnosticar patologias e procurar remédios para a cura (acesse)

Link para a postagem original em Cinegnose

Se o demônio existe, ele está na intersecção desses mundos: a pregação evangélica combinada com técnicas de vendas e coaching “ontológico”. O argentino Maximiliano Cositorto conseguiu isso e criou um dos maiores golpes recentes de “Esquema Ponzi”: a plataforma financeira Geração Zoe, uma espécie de Matrix financeira em que os trader lidavam com número irreais, gerando lucro imaginários exorbitantes. O documentário argentino Netflix “O Vendedor de Ilusões: O  Caso Geração Zoe” (2024) narra a ascensão e queda de um negócio que prometia ganhos estratosféricos e transformação pessoal coaching. Hoje Cositorto está preso e se diz vítima do sistema que o teria sabotado. Seguindo a pista deixada por Durkheim sobre a função social dos crimes, podemos compreender porque entidades reguladoras parecem fazer vistas grossas ao surgimento desses esquemas. Por contraste, ajuda a ocultar que na verdade toda a financeirização do capitalismo já é um gigantesco Esquema Ponzi.

Se a sociedade funciona de forma semelhante ao corpo humano, com seus vários órgãos e cada um cumprindo a sua função em relação ao todo, então a Sociologia deveria ter a mesma preocupação da Medicina: diagnosticar patologias e procurar remédios para a cura.

Assim pensava aquele que é considerado o pai da Sociologia, o francês Emile Durkheim (1858-1917). E entre todo o remédios que o estudioso francês procurava, o mais paradoxal era o crime. Para ele, o crime cumpria uma função no corpo social – ele provocaria e estimularia uma reação no corpo social: estimularia o sentimento coletivo que sustentaria a conformidade às normas.

O que então Durkheim pensaria dos crimes de Leonardo Cositorto: pastor das finanças, encantador de cobras do mercado financeiro, coach “ontológico” (seja o diabo que isso significa), o homem que enganou centenas de milhares de incautos em diferentes lugares do mundo com apenas três letras: Zoe.  

O documentário Netflix O Vendedor de Ilusões: O Caso da Geração Zoe (2024), detalha minuciosamente e cronologicamente a criação, ascensão e queda de uma ambiciosa plataforma financeira que explodiu na cara tanto dos seus criadores quanto para seus clientes, pessoas comuns que sonharam com a tranformação das suas vidas com o lucro rápido e acordaram no centro de um escândalo financeiro de proporções internacionais.

Certamente Durkheim veria um fato social que reforçaria a ideia de que “o crime não compensa” – reforçando a conformidade das pessoas com o sistema financeiro legal. Da mesma forma como, no campo do jornalismo, a fake news, por oposição, reforçaria o “jornalismo profisional”, supostamente imune às mentiras porque é “profissional”.

Em abril de 2022, Leonardo Cositorto, criador e cérebro da Geração Zoe, foi preso na República Dominicana pela Interpol. O CEO da organização estava fugitivo da Justiça desde meados de fevereiro. Hoje espera o julgamento em um presídio em Córdoba, Argentina. 

Assim, fechou um capítulo que tinha começado apenas cinco anos antes, quando um novo esquema de negócios prometia dividendos exorbitantes em dólares, a partir da contribuição de uma determinada soma de dinheiro de incautos “investidores”.

O documentário descreve um perfil de um homem cujo pai era um editor que faliu e o colocou para vender livros de porta em porta, tornando-se um hábil vendedor e profundo conhecedor empírico da natureza humana. Daí para virar um pastor evangélico e, a evolução natural nesse meio, tornar-se um “coach ontológico”, encontrou a convergência natural: o encontro da fé religiosa com a fé do negócio dos investimento financeiros. 

Com a pitada de algo que vai além da fé: a crença mágica ou fetichista de que a energia do pensamento de um líder somado com a ambição do cliente gerariam riquezas extraordinárias. Apenas com a força da atitude certa, positiva – daí o termo “ontológico”: se é a linguagem e o penamento que no definem, então a realidade erá aquilo que nós quisermos que seja.

O escândalo e as manchetes em letra garrafais dos jornais argentinos levaram ao espanto: como tanta gente foi enganada por uma empresa irregular que nem estava registrada na Comisão de Valores argentina? Como acreditaram em lucro tão fácil?

Durkheim tem razão em uma coisa: o sensacionalismo midiático criminal legitima o próprio campo do mercado financeiro, pela operação semiótica de contraste – é como se alertasse: “procure sempre profissionais responsáveis”. Assim como aqueles alertas em comerciai de bebidas alcoólica: “beba com moderação” – o alcoólatra é o crime que legitima o mercado etílico, sempre por contraste.

Mas Durkheim acredita que a verdade é o corpo social, o todo. Mas e se o sistema financeiro legal for da mesma natureza de golpes de pequenos escroques como Cositorto? A única diferença seria que o mercado financeiro global é grande demais para quebrar... ou ser deixado para quebrar. 

Porque sempre pode contar com o socorro das injeções de liquidez públicas. Socializando perdas e privatizando o ganhos.

O Documentário

“São coisas que só poderiam acontecer na Argentina ou num país sul-americano qualquer”, poderia alguém dizer. Mas o que O Vendedor de Ilusões nos descreve é o notório golpe do tipo piramidal, conhecido como “Esquema de Ponzi”, executado por um grupo de espertalhões. Um tipo de golpe que conta na sua história com gente da credibilidade filantrópica de Mernie Madoff que, nos EUA, elevou ao estado da arte o esquema criado por Charles Ponzi, em Chicago, na década de 1920 – por décadas Madoff enganou milhares de clientes em Wall Street, provocando prejuízos de bilhões de dólares.

Tudo começou paradoxalmente na cidade próspera (o que contradiz a ideia de que onde há golpe, há desespero) de Villa Maria, Córdoba, que caiu nas influências da Geração Zoe de Cositorto. Pessoas com empregos regulares, mas que viram no evangelismo financeiro a oportunidade de mudar de vida e a si próprios – fascinados pela ostentação de viagens, luxo e riqueza na redes sociais da comunidade Zoe.

A Geração Zoe tinha uma pregação evangelista cruzada com técnicas de venda e coaching ontológico. Se o demônio existe, ele está no encontro desses mundos. Cositorto descobriu que podia combiná-los, e ser uma espécie de telepregador ao estilo americano, longe da ética católica que enobrece os pobres e dos pastores suburbanos com alto-falantes e cadeiras de plástico brancas. 

A religião não foi o único catalisador: também utilizavam o feminismo como discurso de venda.

Cositorto logo percebeu que não alcançaria a pirâmide ideal, e viu nas criptomoedas o próximo público-alvo. Acima de tudo, aqueles que não eram ainda “criptobros”, mas ansiavam por ser. Novamente, a questão aspiracional como eixo do tema. Ele ofereceu-lhes uma moeda criptográfica - a Zoe Cash - e até terrenos virtuais em um país virtual.  Em uma jogada de ficção que desafia a teoria econômica, eles anunciaram a compra de supostas minas de ouro (não se pode comprar minas de ouro na Argentina), para gerar o lastro da criptomoeda.

O mais impressionante: Cositorto e seu vice, Maximiliano Batista, contratavam traders profissionais para trabalharem baicamente numa plataforma que criou uma espécie de Matrix financeira: as telas simplesmente informavam uma realidade ficcional, com ganho inexistentes.

Zoe oferecia a todos a oportunidade de entrar em um mundo de influenciadores que otentavam em posts e vídeos do Instagram: como ganhar quinhentos por cento em 24 horas com investimentos em dólares, enquanto dirigem carros alemães de luxo e se autoproclamavam traders ou closers. 

A derrocada começou com os chamados “Robos de Natal”: Zoe ofereceu às suas vítimas retornos de 150% em dólar com Bots que operavam com operações de alta frequência... coisa de ficção científica. Na verdade, era o desepero de Cositorto no final de 2021:  a pirâmide começava a ruir e precisava de uma nova campanha mais agressiva para conseguir dinheiro novo.

Quando os investidores deram pé da situação já era tarde: as unidades Geração Zoe estavam fechadas com centenas de investidores deseperados esmurrando as portas e Leonardo Cositorto já estava escondido na República Dominicana, procurado pela Interpol, enquanto postava vídeos nas redes alertando seus seguidores que estava sendo sabotado pelo sistema.

Será? 

Desde que o dinheiro deixou de ser um simples equivalente geral para compra de mercadoria e, ele próprio, transformou-se em mercadoria, sua liquidez tornou-se objeto de um fascínio religioso, mágico, fetichista.

No cinema ganha uma aura de glamour. Na telona a liquidez está quase sempre associada a protagonistas inteligentes e com “sex appeal”: Gordon Gekko no filme Wall Street, o yuppie que se transforma em gênio dos mercados financeiros através das “smart drugs” em Sem Limites (Limitless, 2011), ou ainda a sexy personagem interpretada por Annette Bening no filme Os Imorais (The Griffers, 1990) que trabalhava num escritório de corretagens onde ajudava a aplicar golpes nos mercados financeiros.

Desde que a financeirização ocupou o lugar da economia real como drive social, o mundo do investimentos basicamente e dividiu entre acionistas e devedores. Investimos em ações, fundos etc. Emprestamos liquidez para empresas cuja única preocupação é render dividendos a curto prazo. O que torna a economia real frágil, voltada apenas a resultados rápidos, sem planejar investimentos de longo prazo.

Eventualmente, nesse esquema de liquefação econômica bolhas financeiras explodirão – papéis terão que ser liquidados, lucros realizados e... o crash financeiro inicia por crise de liquidez. Alguma coisa parecida com a Geração Zoe de Cositorto.

A diferença é que o Estado, Banco Central, Ministério da Fazenda ou Comissão de Valores não estão do lado dele. Ao contrário dos mercados globais, grandes demais para quebrarem e arrastarem a sociedade inteira junta.

Wall Street ou Zona Euro serão socorridos pela injeção de liquidez pública com a justifica esotérica do perigo da “crise sistêmica”. Enquanto pirâmides Ponzi de gente como Cositorto e Maximiliano vão para a cadeia.

Ao assistir O Vendedor de Ilusões chegamos a uma indagação: como uma empresa que, pelo menos não inicialmente, não tinha registro na Comisão de Valores conseguiu estender um negócio criminoso por quase toda a América Latina, chegando a Espanha e Indonésia?

Seguindo a pista de Durkheim, porque todo crime cumpre uma função social para a manutenção de um sistema social. 

Por contraste, figuras folclóricas como Leonardo Cositorto na verdade ocultam que todo o sistema financeiro opera como um esquema Ponzi. Por contraste, ao meter na cadeia o golpista, legitima o retante do sistema.

Crimes como os da Geração Zoe são bodes expiatórios do cassino financeiro global.

 

Ficha Técnica

 

Título: O Vendedor de Ilusões: O Caso Geração Zoe

Diretor:  Matias Gueilburt

Roteiro:  Nicolás Gueilburt

Elenco: Leonardo Cositorto, Maximiliano Batista, Juliana Companys

Produção: Anima Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2024

País: Argentina

# Só faltaram a cartola e o coelho

Jordan Peterson: o Brasil paralelo da direita agora é oficial

Promoção do site Fronteiras do Pensamento agita a galera nazi-fascista que está em busca de alguma referência intelectual que justifique sua existência. Herdeiro de Olavo de Carvalho, Jordan Peterson é um mascate dos lugares comuns e ganha muito dinheiro com isso. A matéria abaixo foi publicada na Ilustríssima e é assinada por Martin Vasques da Cunha (acesse


Link para acesso ao texto original da Ilustríssima, mas observe a linha fina que serve como legenda do "anúncio" do Fronteiras do Pensamento (melhor seria "Abismos do Pensamento"): no patrocínio da vinda ao Brasil de Peterson associaram-se o que há de pior na cultura política nacional...

Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)

[RESUMO] Ícone da direita, o psicólogo canadense Jordan Peterson já vendeu milhões de livros e arrasta multidões para vê-lo mundo afora. Em passagem por São Paulo na semana passada, atraiu políticos, milionários e celebridades da internet para ouvi-lo falar de Caim, Abel e sacrifício. Neste relato, autor descreve como a movimentada noite de palestra, embalada por ingressos salgados, Bach, uísque e apertos de mão a R$ 1.300, espelhou a nova cara da direita e o futuro político do Brasil.

"E se alguém jogasse uma bomba aqui? Com certeza, a direita brasileira seria destruída para sempre." Sim, foi isso o que se ouviu na fila de espera, gigantesca, na frente do Espaço Unimed, em São Paulo, no último dia 18, enquanto cerca de 4.000 pessoas se preparavam para assistir à palestra do doutor Jordan Peterson, provavelmente o intelectual público mais pentelho do planeta.

"Pentelho? Como assim? Esses esquerdistas são foda. Ficam preocupados com essa história da Nubank, da Erika Hilton. Estamos pouco nos lixando com isso. Você não entende nada: Jordan salvou a minha vida", poderia responder algum fã ali presente. Naquele lugar, a voz do povo era de fato a voz de Deus.

Salvar é uma palavra meio forte, mas é a exata sensação que se respirava quando finalmente os portões do local se abriram e os que estavam ali há mais de uma hora começaram a entrar, prontos para enfim receber, via inspiração divina, o que o bom doutor tinha a dizer.

O psicólogo canadense Jordan Peterson, ícone da direita, durante palestra em São Paulo, no dia 18 de junho - Greg Salibian/Fronteiras do Pensamento

Porque Jordan Peterson é, de fato, o bom doutor. E não só isso: ele é o bom doutor que, graças ao seu talento, se tornou milionário. Com seus livros ("Mapas do Significado", "12 Regras para a Vida", "Além da Ordem") vendeu mais de 10 milhões de exemplares. O próximo, "We who Wrestle with God" ("Nós que Lutamos contra Deus"), está previsto para novembro.

Mas havia outra coisa que se respirava ali na entrada, antes de ir ao palco, onde o público, que pagou no mínimo R$ 600 por ingresso, se espalhava em diferentes setores, divididos por fitas de cores que iam do azul ao preto, passando pelo amarelo. O que se respirava ali, além do tesão por uma bomba que pudesse destruir todos os presentes, era "a nostalgia do gulag".

A "nostalgia do gulag" é o seguinte: antes, durante e depois de Olavo de Carvalho, toda a direita brasileira —que simplesmente idolatra Jordan Peterson porque ele combate como poucos a política identitária, o comunismo e o ateísmo— sempre sonhou ir para uma Sibéria particular. No entanto, ela não tinha dinheiro para isso. Diferente da esquerda burguesa, a direita é pobre.

Então, para ter a Sibéria particular, a direita seguiu essa estratégia: acusou todo mundo de persegui-la. Universidades, imprensa, o Congresso, o Palácio do Planalto, mais recentemente o Supremo Tribunal Federal. Faça sua escolha. Com isso, conquistou um público que, humilhado por uma casta que não para de aumentar a morte e os impostos, resolveu se revoltar com protestos. Como consequência, Dilma Rousseff foi expelida do poder. Ainda assim, a direita continuava miserável, no bolso e na cabeça.

A solução foi apelar para as redes sociais e vender cursos. Mais do que isso: seus integrantes tornaram-se "influenciadores", os infames "coaches de vida". Foi quando o dinheiro passou a cair como maná. A esquerda alega que isso faz parte de uma conspiração internacional, mas também não hesitou em imitar sua competidora. Agora com a grana correndo a solta, a direita poderia ter o seu gulag. A diferença é que esse lugar era nada mais, nada menos que o próprio Brasil.

Com a pandemia, a direita brasileira entrou em sua fase mais recente: a de ser o contraponto à cultura oficial. Teve até um levante de velhinhos no famoso 8 de janeiro para marcar essa passagem. Mesmo com a morte de Olavo de Carvalho e a derrota de Jair Bolsonaro em 2022, ela não parou de crescer. Tornou-se, de fato, um país paralelo. Não à toa, a empresa que mais simboliza esse movimento —e é a encarnação suprema da "nostalgia do gulag"— se chama justamente Brasil Paralelo.

E também não por acaso, a empresa promoveu a visita de Jordan Peterson, junto com a produtora oficial do evento, o grupo gaúcho Fronteiras do Pensamento. O Brasil Paralelo, contudo, fez mais do que divulgar a vinda do bom doutor. Praticamente o sequestrou para seus próprios interesses.

O problema é que Jordan Peterson gostou disso, sofrendo da habitual síndrome de Estocolmo, ao tirar fotos festivas com gente do naipe de Eduardo Bolsonaro, em encontro intermediado por ninguém menos que o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP).

Se você, leitor, estivesse no Espaço Unimed no dia da palestra, iria respirar essa atmosfera nostálgica da direita. Mas, se estivesse nos camarotes, e não no gargarejo do palco, também iria respirar o cheiro salgado dos pastéis e das fritas (R$ 35 a porção), o odor doce dos fondues de chocolate, a fragrância dos vinhos que custavam, no mínimo, R$ 120, e ouviria o tilintar dos cubos de gelo em copos cujas doses milimétricas de uísque eram contabilizadas em R$ 45. Havia também outros tipos de comida, com direito a hambúrger e cerveja, para pessoas menos "descoladas".

Entre uma música de Bach e outra que tocava antes da apresentação, só "descolados" circulavam ali. O elenco era vasto —e profundo: do pré-candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal (PRTB) ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), passando por Leda e Duda Nagle (mãe, jornalista, e filho, ator), a deputada federal Bia Kicis (PL- DF), o ator Juliano Cazarré, Marco Antonio Costa (ex-Jovem Pan), André Marinho (atual Jovem Pan), Caio Coppola (comentarista na CNN Brasil), o cientista político e ex-deputado Heni Ozi Cukier, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (PL), Adolfo Sachsida (ex-ministro de Bolsonaro), até a influencer Lara Brenner , Gabriel Kanner (herdeiro da Riachuelo) e sua esposa, Marthina Brandt (miss Brasil 2015), ali estava a nostalgia do gulag transmutada no radical chique de direita (muito obrigado, Tom Wolfe).

E não eram apenas as celebridades deste Brasil paralelo. O economista Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha, também compareceu; Maria Homem, psicanalista e professora da FAAP, que cobra R$ 1.700 por sessão avulsa de terapia (via Skype), fez graça com Schopenhauer quando a palestra finalmente terminou.

"Finalmente" é um termo exato porque o show —foi um show mesmo, pois Peterson se tornou uma espécie de Taylor Swift do intelecto— durou quase duas horas. Quem prestou atenção no conteúdo ficou com torcicolo. Afinal, o tema não era nada leve: sacrifício, Caim e Abel, Abraão e Isaac. Enfim, o velho e conhecido problema do mal, o tema que obceca —já podemos chamá-lo assim?— "Jordan".

Portanto, "Jordan" começou com um sacrifício a ser imposto ao seu público tão querido: a abertura foi uma série de quatro músicas cantadas por um aluno seu, Victor Swift (nada a ver com Taylor, graças a Deus), o qual, com seu violão, simplesmente assassinou "Hallelujah", de Leonard Cohen (é melhor nem comentar as outras três).

Antes de Jordan entrar, veio sua esposa, "Tammy" (que o chama de "Dr. Peterson"), aplaudida efusivamente —afinal de contas, não é qualquer pessoa que consegue escapar de um câncer nos rins.

E eis que ele surgiu. Sozinho no palco, vestindo um terno que parecia figurino do longa "Coringa" (2019), "Jordan" foi celebrado como o sacerdote que todos esperavam. O show foi todo dele: por quase uma hora e meia, houve um passeio pelo "significado político" da história bíblica de Caim e Abel, mas sobretudo pelo fato de que "Deus é o juiz do sacrifício", sem que o bom doutor se importasse com a definição exata do termo "sacrifício" (a violência sagrada que molda o comportamento humano).

Na verdade, Abel não pratica rituais violentos para Deus, ao contrário do seu irmão homicida, e sim oferendas pacíficas (agradecemos esta distinção ao professor doutor Maurício Righi), e isto também foi tratado de forma displicente. Mas quem está preocupado com rigor nessas horas, não é mesmo?

No mundo do Brasil paralelo, o que importa é falar que "o maior descendente de Caim nos tempos atuais é o marxismo" —uma afirmação recebida pelo público com tamanha energia nos aplausos que era de se perguntar se o próximo sacrifício a ser feito pelo filho maldito de Adão e Eva não aconteceria na esquina ali ao lado.

É claro que aconteceria. Mas antes disso, o "gran finale": apertar as mãos de Jordan e conversar com ele por alguns minutos. Havia, porém, uma condição (feita sem o conhecimento prévio da produção): pagar US$ 250 (cerca de R$ 1.380).

Quem se habilitou? Várias pessoas, a julgar por outra fila longuíssima formada, desta vez com os radicais chiques da vez, entre eles Nikolas Ferreira —que não conseguia andar, tamanho o assédio das fãs, e depois escreveu no seu Instagram, como legenda de sua foto com a estrela da noite: "Pick your damn sacrifice" ("escolha o seu maldito sacrifício")— e Pablo Marçal, cuja forma de se aproximar do palestrante foi astuta: deu a impressão de que Jordan o conhecia há tempos; os dois se olharam como amigos, um apertou a mão do outro e até se abraçaram.

Este gesto foi a prova de que a palestra de Jordan Peterson simbolizou uma mudança no eixo de poder político do país. Os Bolsonaros não estavam mais no topo da cadeia alimentar da direita; Nikolas e Pablo eram, desta vez, a carne fresca.

E a imprensa, como sempre, desprezou o evento. Uma jornalista que estava ali chegou a relatá-lo como se fosse uma "reunião de reacionários". Na realidade, era o futuro, o mesmo futuro caótico eleito em 2018, suspenso durante a pandemia e que agora, amadurecido e devidamente financiado, deixará de ser o Brasil paralelo e será o Brasil oficial por meio de uma única regra: o sacrifício em uma roupagem "descolada", pleno da "nostalgia do gulag", criando assim uma terceira etapa na carnificina da nossa violência sagrada —a síndrome de Caim.

Como reflexo disso, o bom doutor afirmou à produção oficial do evento que não daria entrevistas. E não deu, exceto para um veículo de imprensa: a Jovem Pan, representada pelo humorista André Marinho.

A razão dessa proeza é que Marinho é amigo de Robert F. Kennedy Jr., o candidato independente à Presidência dos EUA e aliado de Jordan em causas mais do que polêmicas (guerra contra a cultura woke, oposição a vacinas). É óbvio que um jornalista qualquer jamais teria chance de trocar uma palavra com o palestrante. Afinal, quem pode competir contra Camelot?

Ninguém, especialmente se levar em conta que, na saída do evento, por volta das 22h30, três amigos, que ainda digeriam os insights sobre Caim e Abel, foram em direção ao metrô mais próximo, a estação Barra Funda, repleta de pessoas deitadas no chão e moradores de rua pedindo dinheiro.

Enquanto esperavam um táxi, um vendedor ambulante, chamado Douglas, se aproximou e perguntou se eles queriam comprar um kit "dieta balanceada" —na verdade, uma modesta caixa de brigadeiros caseiros (R$ 10). Desconfiados, recusaram a oferta. Mas Douglas foi insistente e soltou outra questão: "Quem estava ali dando show?". Não foi show, foi uma palestra, responderam. "De quem?" Jordan Peterson. "Jordan Peterson? Puxa, tão brincando? Sou fã dele! Li todos os livros."

O vendedor sacou o celular gasto pelo uso e mostrou, na tela, que de fato tinha a obra completa do bom doutor. "Eu aplico as 12 regras da vida dele todos os dias!" Sorridente, Douglas se despediu. Os três amigos estavam completamente surpresos. Era o Brasil verdadeiro a se sacrificar pelo Brasil paralelo (e, quiçá, oficial) que pagou uma fortuna para apertar a mão de um mero homem.

Militante do Exército Zapatista de Libertação Nacional

Os movimentos sociais mais críticos e anticapitalistas não nascem da relação salarial


“Diante da decomposição do sistema-mundo e a crise de legitimidade dos estados, pode ser a hora dos movimentos e dos povos”, conclui o jornalista e pesquisador Raúl Zibechi (Montevidéu, 1952), em um dos artigos publicados no jornal La Jornada (Entre la caída de occidente y transiciones inciertas, 31 de maio. A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 25-06-2024 e transcrita no site IHU (acesse)

A entrevista:

Em novembro de 1983, foi fundado o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que se levantou em 1º de janeiro de 1994, em Chiapas. Você dedica um artigo do livro ao zapatismo (Semear sem colher). Quais são as principais contribuições do movimento?

Muitas. Talvez a principal delas é a de que é possível, mesmo neste período tão difícil, continuar transformando o mundo. Não se renderam, não claudicaram, nem se venderam. A dignidade continua sendo a direção do zapatismo, segundo o que posso compreender. Penso que é muito para esta época.

Contudo, o que mais surpreende e entusiasma no EZLN é a sua capacidade de mudar a si mesmo, não apenas de mudar o mundo. Criaram os municípios autônomos e a juntas de bom governo, e agora as fecham porque acreditam que não são adequados para as situações que se avizinham. Fizeram uma autocrítica muito profunda, algo que a esquerda deixou no esquecimento, ao dizer que essas estruturas funcionavam de forma piramidal, separando as autoridades dos povos, e decidiram cortar a ponta da pirâmide ou invertê-la.


Nos últimos tempos, você constata novidades nas práticas do EZLN?

As iniciativas zapatistas sempre vão além. Agora, nestes novos 20 comunicados, apostam no “comum”, superando o conceito de propriedade, mesmo o de propriedade comunal ou comunitária. Convidam as pessoas que concordarem a ir até essas terras comuns para trabalhá-las, algo que nenhum movimento anticapitalista é capaz de fazer hoje, porque encarnam uma rejeição concreta ao capitalismo, não só discursiva como estamos acostumados em outros lugares.

Se eu tivesse que resumir, diria que a sua maior contribuição é a ética. Eles nos mostram que é possível fazer política a partir da ética de fazer o que dizem e de dizer o que fazem, e toda uma série de “princípios” que vêm divulgando nestes 30 anos, como o “mandar obedecendo”. E se propõem a lutar desde já para que as meninas e os meninos que nascerem dentro de sete gerações, 120 anos, sejam livres. No meu modo de ver, este semear sem eles próprios colher supõe uma mudança de fundo na cultura revolucionária.


Que análise geral você faz dos seis anos na presidência de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), após a vitória eleitoral - em 2 de junho - da candidata progressista Claudia Sheinbaum?

Militarizou o país, os desaparecimentos e os crimes continuaram, mas, além disso, as fronteiras, os aeroportos e as obras de infraestrutura foram entregues às forças armadas que agora impedem o protesto com a aplicação em massa da força.

Aprofundou o capitalismo no México. Fragilizou os movimentos e as resistências com programas sociais que concretamente agridem o tecido comunitário. Desempenha o papel de atenuar as migrações para impedir que mais pessoas cheguem aos Estados Unidos.

Em absoluto, não foi um governo popular. O seu apoio em massa se deve ao enorme desprestígio dos partidos da direita tradicional, como o PRI e o PAN, e às transferências monetárias para os setores populares.


Por outro lado, para os movimentos populares na Argentina, quais são as consequências da presidência, desde dezembro de 2023, do ultraliberal Javier Milei?

Agora, há mais repressão e mais pobreza. O alinhamento com os Estados Unidos e Israel mostra a cara geopolítica regressiva que também impede a integração regional, que já vinha em franca decadência. No entanto, não conseguiu romper com a China, como disse durante a campanha, porque o país asiático é o principal mercado das exportações agropecuárias argentinas.

Apesar da sua política profundamente antipopular, Milei mantém um amplo apoio em todos os setores da sociedade, o que se explica em grande medida pelo desprestígio da oposição, pois o governo progressista de Alberto Fernández deixou o país muito mal, com 100% de inflação anual e metade da população na pobreza.

Milei é o produto de uma sociedade em decomposição, um processo de longa data que teve um salto qualitativo na ditadura militar (1976-1983). Uma sociedade polarizada em que os jovens não têm futuro e cada parte considera a outra como se fossem estranhos ou estrangeiros. Uma sociedade que não reconhece as e os outros como parte do mesmo conglomerado humano.

Quais consequências prevê em relação às possibilidades de organização e mobilização dos coletivos sociais?

Há muita raiva acumulada e um grande desgaste nos movimentos, que passam por um período de acentuada fragilidade organizacional e falta de horizontes próprios. No curto prazo, não vejo alguma chance de recuperação dos movimentos, pois a deterioração ocorreu ao longo de mais de uma década em que as políticas sociais desempenharam um papel determinante na conversão dos movimentos em meros administradores desses programas e em colaboradores dos governos.

No entanto, existem pequenos núcleos que permanecem autônomos, mas não possuem mais a projeção que o movimento piquetero alcançou em torno do Argentinazo de dezembro de 2001. A minha perspectiva é que a reconstrução e a refundação dos movimentos devem superar a dependência das políticas sociais.

Em que sentido?

Em um primeiro momento, após 2001, fazia certo sentido utilizar os programas sociais para gerar organização, mas ao longo de duas décadas os movimentos se tornaram aparelhos de gestão com doses de corrupção interna e de controle da população receptora dos planos sociais.

Algumas organizações mapuches, alguns núcleos territoriais nas periferias urbanas e um pouco mais, seguem resistindo. Contudo, a maioria se mobiliza contra Milei para restaurar algum tipo de governabilidade progressista em que voltem a ter um papel de intermediários entre o governo e os movimentos. Será um processo longo e doloroso, porque há necessidades urgentes que ninguém cobre e uma repressão preocupante.


Em ‘Mundos otros y pueblos en movimiento’, você não se concentra apenas na América Latina. Que lições destacaria da resistência das mulheres no Curdistão?

As mulheres curdas e o pensamento crítico de Abdullah Öcalan são referências imprescindíveis para as lutas anticapitalistas e antipatriarcais.

As mulheres desenvolveram o seu próprio pensamento feminista (a Jineolojî) que não deve nada ao Ocidente, mas, sim, à sua própria experiência. São muito críticas ao feminismo acadêmico que busca somente um lugar melhor para as mulheres com formação universitária e exclui os homens.

Elas ergueram o Instituto Andrea Wolf, onde as mulheres do movimento trabalham com os homens em seu processo de despatriarcalização. Penso que é uma proposta muito interessante, muito complexa para ser implementada, mas necessária porque não se pode almejar a emancipação de apenas metade da humanidade.

Você mencionava o líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), Abdullah Öcalan, fechado nas prisões do Estado da Turquia há mais de duas décadas...

Quanto ao pensamento de Öcalan, penso que a sua crítica profunda ao marxismo economicista é tão necessária quanto pertinente. Öcalan diz que o capitalismo não é economia, mas poder, o tipo de poder que os estados-nação encarnam. Por isso, o movimento curdo não luta pela criação de um Estado curdo, o que seria o mesmo que reproduzir a opressão que já sofrem.

Ao longo de seus livros, o líder curdo desenvolve um conjunto de análises que enriquece o pensamento crítico, muito estagnado e em retrocesso no Ocidente, onde a esquerda fez do pragmatismo a sua principal marca. Sinto que o EZLN e o PKK são os movimentos mais interessantes para nós que seguimos empenhados em superar o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.


Quais são as últimas ações protagonizadas na Colômbia pelo Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC): cerca de 200.000 pessoas de oito grupos étnicos?

O CRIC está passando por situações muito complexas. Por um lado, há uma presença cada vez mais forte de paramilitares e traficantes de drogas, em seus territórios do Cauca, assassinando homens e mulheres que se destacam na defesa das comunidades. Por outro, há um cerco político do progressismo de Gustavo Petro, que com suas políticas de apoio aos grandes proprietários de terra, combinadas com discursos que dizem defender os povos, geram confusão entre os indígenas nasa, misak e outros grupos.

Apesar da tendência à cooptação e à desorganização, considero que a Guarda Indígena continua sendo uma instância autônoma, capaz de assumir a defesa do território e avançar em ações muito fortes, como a que aconteceu durante a paralisação de três meses em Cali.


O que aconteceu durante a revolta social de 2021, na capital do Valle del Cauca?

Cali é uma cidade de dois milhões de pessoas, a maioria afrodescendentes que são a parcela mais pobre da população. Durante a paralisação, foram criados 25 pontos de resistência onde as juventudes ensaiaram as formas de vida que desejam, com muita confraternização e criatividade. No entanto, houve uma repressão brutal que deixou 40 mortos na cidade e também um grande número de desaparecidos.

Nessa situação, cerca de 10.000 guardas foram até Cali, com mais de uma hora e meia de estrada, para apoiar jovens que não conheciam, que têm uma cor de pele diferente, outros modos e costumes. Permaneceram por semanas em Cali, contribuindo com os seus conhecimentos de autodefesa. Penso que este gesto fala por si da capacidade dos povos originários do Cauca e, concretamente, da Guarda Indígena, em agir de forma solidária, generosa e autônoma.


Na coletânea de artigos, você destaca as análises do filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis acerca do marxismo, bem como as interpretações do sociólogo peruano Aníbal Quijano. Por quais motivos você se interessa por estes dois autores?

Castoriadis porque compreendeu a fundo os problemas da herança revolucionária comunista, os seus limites e os aspectos que reproduzem o sistema. Compreendeu em especial as amarras daqueles que militam em um partido hierárquico no momento de formular críticas ou abandoná-lo, os problemas que uma atitude independente traz para os militantes formados em uma cultura opressiva e hierárquica.

O pensamento de Quijano é muito importante para nós que vivemos na América Latina. Seu trabalho posterior à queda do socialismo real demonstra criatividade e compreensão da realidade. Analisa em detalhes as particulares relações sociais existentes, que sintetiza na “heterogeneidade histórico-estrutural”.

Pela primeira, entende as diversas origens e trajetórias dos povos que habitam este continente, pertencentes às duas civilizações que povoam o planeta, um caso único no mundo. A segunda supõe compreender que existem cinco relações com o trabalho: salário, escravidão, servidão, reciprocidade e iniciativa mercantil e produtiva familiar, ou seja, a chamada informalidade. Todas elas controladas pelo capitalismo, mas com espaço-tempos próprios.

Por que considera que essa conceituação é relevante?

Isto é muito importante porque os movimentos mais críticos e anticapitalistas não nascem da relação salarial (como os sindicatos), mas de espaços em que predominam a reciprocidade, a servidão e a informalidade. O zapatismo, os nasa e misak, os mapuche, nascem em propriedades onde existiam relações de servidão, mas também em comunidades onde a reciprocidade é uma prática crucial, para dar um exemplo.

Estamos acostumados a pensar a política de esquerda ancorada nos assalariados organizados, mas não sabemos como se faz política em chave comunitária, partindo dos mercados populares e dos bairros periféricos.


Qual é a diferença?

Quando se faz política a partir da comunidade, da produção de valores de uso e não de mercadorias, os lugares e os modos dessa política vão ser muito diferentes daquela que se funda na representação diante do Estado.

Então, Quijano nos abre uma porta para compreender melhor as resistências em nosso continente. É profundamente anti-eurocêntrico, mas não a partir de um teoricismo abstrato, mas da realidade concreta dos povos que lutam.

Por último, quais movimentos sociais emergentes – e quais setores – você destacaria na América Latina?

Há povos e lutas que já são patrimônio dos que resistem: o zapatismo e o povo mapuche, no Chile e na Argentina, pelo menos. No entanto, vejo que os povos amazônicos no Brasil e no Peru estão transitando caminhos de autonomia e autogoverno como a melhor forma de defender seus territórios frente ao extrativismo e a violência do capitalismo.

No Peru, existem nove governos territoriais autônomos, na região fronteiriça com o Equador, e no Brasil 64 povos indígenas, em 48 territórios, estão criando protocolos autônomos de demarcação de seus territórios. Também no Brasil existe a Teia dos Povos (Rede de Povos) onde convergem povos indígenas, quilombolas (comunidades negras) e assentamentos sem terra (não o MST), em uma nova e combativa coordenação não hierárquica que está se expandindo de forma notável.

Vejo como as comunidades garífunas de Honduras e as maias da Guatemala se adiantam em resistências muito importantes à expansão do modelo de espoliação e que as comunidades aymaras do sul do Peru estão debatendo como seguir a luta contra o governo de Dina Boluarte e a oligarquia.


Em conclusão…

Há muito mais e acredito que surgirão novas resistências da decomposição da sociedade argentina, menos centralizadas do que aquelas que já conhecemos, que entraram em colapso frente ao progressismo. E os feminismos continuarão nos surpreendendo positivamente, em particular os populares, negros e indígenas.

Enfim, assim como existe um regime cada vez mais repressivo e opressivo, também há poderosas resistências e renovação, o nascimento de novos coletivos e confluências aos quais devemos estar atentos.

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“Tempo presente e tempo passado, são ambos presentes no tempo futuro”.  T. S. Eliot, na citação de Nicolau Sevcenko

Plano Real: os moedeiros falsos

Artigo de José Luiz Fiori publicado no caderno mais!, da Folha de S.Paulo, em 3 de julho de 1994; transcrito de A Terra é redonda (acesse)

“Afinal é preciso admitir, meu caro, que há pessoas que sentem necessidade de agir contra seu próprio interesse…”
(André Gide).

“É importante para um ‘technopol’ vencer a próxima eleição para continuar a implementar sua agenda e não para manter-se no cargo. Vencer uma eleição abandonando suas posições é para ele uma vitória de Pirro”
(John Williamson).

1.

Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado “think tank” de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por John Williamson, “In Search of a Manual for Technopols” (Em Busca de um Manual de ‘Tecnopolíticos’), num seminário internacional cujo tema foi: “The Political Economy of Policy Reform” (A Política Econômica da Reforma Política).

Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com representantes de 11 países da Ásia, África e América Latina “as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um ‘technopol’ a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso” o programa de estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de “Washington Consensus” (Consenso de Washington).

Um plano único de ajustamento das economias periféricas, chancelado, hoje, pelo FMI e pelo Bird em mais de 60 países de todo mundo. Estratégia de homogeneização das políticas econômicas nacionais operada em alguns casos, como em boa parte da África (começando pela Somália no início dos anos 1980), diretamente pelos técnicos próprios daqueles bancos; em outros, como por exemplo na Bolívia, Polônia e mesmo na Rússia até bem pouco tempo atrás, com a ajuda de economistas universitários norte-americanos; e, finalmente, em países com corpos burocráticos mais estruturados, pelo que Williamson apelidou de “technopols“: economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu “mainstream” (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do “Consensus”, como é ou foi o caso, por exemplo, de Aspe e Salinas no México, de Cavallo na Argentina, de Yegor Gaidar na Rússia, de Lee Teng-hui em Taiwan, Manmohan Singh na Índia, ou mesmo Turgut Ozal na Turquia e, a despeito de tudo, Zélia e Kandir no Brasil.

Um programa ou estratégia sequencial em três fases: a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de “reformas estruturais”: liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico.

2.

Foi ainda nos anos 1980 que o reiterado insucesso das políticas monetaristas de estabilização introduziu nos debates econômicos a importância crucial para o sucesso no combate antiinflacionário do “fator credibilidade”, e teve como consequência a canonização de uma heterodoxia, a da re-regulação do câmbio ou “dolarização”. Logo à frente, já nos anos 1990, as novas avaliações pessimistas, tanto do FMI como do Bird, puseram em destaque a importância decisiva do “fator poder político” no sucesso ou fracasso de seu programa econômico.

Esta nova preocupação dos intelectuais e gestores do Consenso de Washington é que explica não só a realização do Seminário de Bergsten e Williamson, como a presença nele de dois cientistas políticos, Joan Nelson e Stephan Haggard, responsáveis por um dos mais abrangentes estudos comparativos já feitos sobre este assunto nos Estados Unidos.

No seu documento introdutório, Williamson resume as perguntas e hipóteses centrais relativas às dificuldades próprias de cada uma das etapas do plano e sobre as respostas alternativas encontradas pelos diferentes países. Porque reconhece os perversos efeitos sociais e econômicos das medidas de austeridade e liberalização sobre as economias e populações nacionais, o autor também entende, com este programa, como fica difícil eleger e sustentar um governo minimamente estável. De onde surgiram várias táticas ou artifícios políticos capazes de fazer os eleitores aceitarem os desastres sociais provocados em todo lugar pelo programa neoliberal como sendo transitórios ou necessários em nome de um bem maior e de longo prazo.

Listam-se ali, como condições mais favoráveis, quando o programa consegue ser ampliado depois de alguma grande catástrofe (guerra ou hiperinflação) capaz de minar toda e qualquer resistência; quando os “technopols” conseguem defrontar-se com uma oposição desacreditada ou desorganizada; quando, além disto, eles disponham de uma liderança forte capaz de “insularizá-los” com relação às demandas sociais.

Condições que não dispensaram, entretanto, em todas as situações conhecidas, a formação prévia de uma coalizão de poder suficientemente forte para aproveitar as condições favoráveis e assumir, por um longo período de tempo, o controle de governos sustentados por sólidas maiorias parlamentares. Esta, sim, uma condição considerada indispensável para poder transmitir “credibilidade” aos atores que realmente interessam, neste caso: os “analistas de risco” das grandes empresas de consultoria financeira, responsáveis, em última instância, pela direção em que se movem os capitais “globalizados”.

3.

Poucos ainda têm dúvidas de que o Plano Real, a despeito de sua originalidade operacional, integra a grande família dos planos de estabilização discutidos na reunião de Washington, onde o Brasil esteve representado pelo ex-ministro Bresser Pereira. E aí se inscreve não apenas por haver sido formulado por um grupo paradigmático de “technopols“, mas por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo: ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc., para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento.

Neste sentido, os seus “technopols“, como bons aprendizes, sabem que a dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período prolongado de tempo.

Desde este seu ponto de vista, aliás, o Plano Real não foi concebido para eleger FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial.

4.

Por isto, não surpreende a confusão popular frente à candidatura de FHC e suas relações sinergéticas com o Plano Real. O que surpreende, sim, é a confusão ainda maior que reina entre os intelectuais que criticam ou justificam emocional ou ideologicamente as suas atuais preferências políticas.

Erro que não cometeria o FHC professor, lógico e realista, se não estivesse impedido de recorrer a si mesmo e ao que ainda melhor explica suas preferências políticas atuais: os seus próprios ensaios sobre o empresariado industrial e a natureza associada e dependente do capitalismo brasileiro, datados dos anos 1960. Eles permitem entender e acompanhar de forma perfeitamente racional o caminho lógico que levou FHC à sua posição atual no xadrez político-ideológico brasileiro. Mas é verdade que, ao mesmo tempo, contêm o libelo mais duro, veemente e essencial contra a sua própria opção.

Em termos muito sintéticos: (a) O trabalho acadêmico de FHC pode ser todo ele definido como uma busca incansável dos “nexos científicos” entre os interesses e objetivos desenhados pelas situações “histórico-estruturais” e os caminhos possíveis que vão sendo construídos politicamente nas sociedades concretas pelos grupos sociais e suas coalizões de poder.

(b) Com esta perspectiva, FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, de maneira implacável, já em 1963, que “a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía” e que, por isto, “havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de uma vez por todas de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócio-menor do capitalismo ocidental.”

Constatação que lhe permitiu redescobrir muito cedo no empresariado brasileiro uma condição universal do capitalismo: a de que pode estar associado, indiferentemente, segundo as circunstâncias, a um discurso ideológico protecionista ou livre-cambista, estatista ou anti-estatista, obedecendo apenas ao interesse maior da liberdade de movimento do capital e dos desdobramentos geoeconômicos e políticos da sua continuada internacionalização.

Esta descoberta foi responsável direta pelo seu passo seguinte e mais original: para FHC, se a condição periférica do capitalismo se definia pela ausência de moeda conversível e capacidade endógena de progresso tecnológico, a sua “condição dependente” se definia pela forma peculiar de associação econômica e política do empresariado nacional com os capitais internacionais e o Estado. Tripé de sustentação econômica da fase de “internacionalização do mercado interno” (em que as empresas multinacionais assumiram a liderança em quase todos os setores de ponta, responsabilizando-se por cerca de 40% do produto industrial) e de um tipo de “industrialização associada”, tão viável quanto inevitável do ponto de vista da “burguesia industrial brasileira.”

Durante os anos 1970, o trabalho intelectual de FHC consistiu em demonstrar que esta “situação estrutural” não impedia o crescimento econômico nem o associava necessariamente a um só modelo social e político. Concluindo, logo antes de entrar para a vida política, que o caráter predatório, excludente e autoritário do capitalismo brasileiro era a marca própria que a coalizão conservadora de poder imprimira ao Estado desenvolvimentista brasileiro.

5.

Não é difícil estender e atualizar a análise de FHC à nova “situação estrutural”, definida por uma internacionalização mais avançada ou globalizada do capitalismo, associada ao aumento de nossa “sensibilidade” interna às mudanças da economia mundial. Sobretudo porque a nova realidade ultrapassa, mas não invalida, o que de essencial FHC escreveu nos anos 1960 e 1970. E a sua inteligência lhe impede repetir bobagens e lhe permite saber que o que interessa para o Brasil no novo contexto globalizado não tem nada a ver com a queda do Muro de Berlim nem tampouco com o esgotamento do modelo de substituição de importações que já ocorrera nos anos 60/70…

Nessa atualização, basta ter claro que a globalização não é um processo completamente apolítico, envolvendo desde os anos 1980 pressões crescentes de governos e organismos multilaterais sobre a condução doméstica das economias periféricas. Por isto, os ajustes nacionais tampouco são puramente econômicos. Os Estados nacionais têm que optar e decidir como se conectam à nova redefinição das coalizões interna e externa de poder.

No nosso caso, o velho tripé econômico e sua aliança com as elites políticas regionais entrou em crise e precisa ser refeito. Dos antigos aliados, a velha elite política está esfacelada regionalmente; o sócio internacional “financeirizou-se”; o empresariado local, que já se “ajustou” a nível microeconômico, mantém sua velha opção ainda quando tenha encontrado seu exato lugar enquanto “sócio menor associado”, e por isto já se alinhou plenamente com o livre-cambismo anti-estatista do “Washington Consensus“; e, por fim, o Estado, falido financeiramente, já foi além disto destruído de forma absolutamente irracional e ideológica pelo governo Collor.

FHC sabe como ninguém que mudar ou refazer esta articulação econômica e aliança política é o problema central que hoje está posto no cenário brasileiro. E, frente a esse desafio, tomou sua primeira e decisiva decisão: resolveu acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como um fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais. Deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos “nexos científicos” para se propor como “condottiere” da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira.

6.

Como consequência natural, aderiu à estratégia de ajustamento do FMI e do Banco Mundial. Mas sua opção mais importante não foi esta. Dispunha de um elenco de alternativas políticas para implementar essa mesma estratégia. Mas, diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia revolucionar o sistema político e social brasileiro aproximando-o do social-liberalismo de Felipe González, FHC preferiu o caminho de Oraxi, Vargas Llosa ou Mitsotakis, e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL que lhe garante o apoio natural dos demais partidos conservadores num eventual segundo turno. Uma aliança que, obviamente, não se explica por razões puramente eleitorais, pois afinal Collor e Berlusconi já demonstraram que nesse campo é possível obter melhores resultados por caminhos mais diretos e “modernos”.

O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar a tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este o verdadeiro significado direitista de sua decisão que, aliás, não é de hoje, mas data de maio de 1991, quando apoiou a reorganização do governo Collor em aliança com o próprio PFL de ACM e Bornhausen.

Se ali não teve sucesso, foi por obra do destino ou de Mário Covas, mas as cartas já estavam lançadas. Desde então, costurou de forma brilhante e eficiente a adesão de quase toda a grande imprensa e do empresariado, mas sobretudo os apoios internacionais que faltaram a Collor, haja vista, além das avaliações de risco das grandes consultoras financeiras publicadas pela imprensa internacional, o desfile recente de personalidades mundiais (públicas e privadas) do neoliberalismo que têm vindo dar apoio ao programa de estabilização e reformas de FHC. Faltam-lhe ainda, contudo, duas coisas: o apoio das lideranças políticas regionais que vêm negociando com imensa dificuldade a partir do PFL e, sobretudo, o dos eleitores que pretende obter através do sucesso instantâneo de seu Plano Real.

Em síntese, FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington, valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária. E, com isto, em nome do seu realismo, na verdade está se propondo, ainda uma vez, a refundar a economia sem refundar o Estado brasileiro. E aqui sim, contradiz um ponto essencial de suas ideias e de seu passado reformista.

7.

Não nos interessa discutir aqui porque o programa FMI/Bird pode ser virtuoso para o empresariado e catastrófico para um país continental e desigual como o Brasil, mas apenas nos ater aos dilemas internos e específicos de tal proposta, e de sua experimentação concreta, para assim esclarecer o significado mais radical da opção de FHC. Mas para isto devemos voltar brevemente a Washington.

Não mais às sugestões práticas do seminário de John Williamson, mas às conclusões do estudo comparativo de J. Nelson e S. Haggard, sobre um grupo de 25 países que antecederam o Brasil na adesão ao “Washington Consensus”. E aqui todas as experiências apontam numa mesma direção: se o projeto não avança sem “credibilidade”, não há credibilidade possível sem governos com autoridade centralizada e forte. Mas por que chegaram a esta conclusão de que era indispensável recorrer à política e a Estados fortes para alcançar o “mercado quase perfeito”?

Primeiro, porque na maioria dos países que já aplicaram as políticas e fizeram as reformas recomendadas não houve a esperada recuperação dos investimentos. E isso porque, em segundo lugar, o apoio empresarial, interno e externo, não passa do entusiasmo retórico para a cooperação ativa, indispensável inclusive para a primeira etapa da estabilização sem ter garantias sobre as reformas liberalizantes.

Em terceiro lugar, como consequência, aliás, todos os países que lograram vencer a etapa da estabilização contaram com uma ajuda externa politicamente orientada; no caso chileno, 3% do PIB durante cinco anos, de ajuda pública mais um aporte equivalente, durante três anos, por parte dos bancos comerciais; 5% do PIB durante cinco anos no caso da Bolívia; 2% do PIB durante seis anos no caso do México, etc.

Mas, em quarto lugar, mesmo quando obtiveram ajuda externa e se estabilizaram, estas economias “reformadas” atravessaram profundas recessões, perdas significativas da massa salarial e aumento geométrico do desemprego, os famosos “custos sociais” da estabilização.

Em quinto lugar, mesmo ali onde houve retomada do crescimento, esse tem sido lento e absolutamente incapaz de recuperar os empregos destruídos pela reestruturação e abertura das economias. Sendo que para culminar, em sexto lugar, no caso das experiências bem-comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento.

Neste quadro, como é óbvio, fica difícil obter credibilidade para as políticas neoliberais junto ao empresariado, seu aliado indispensável, e pior ainda, junto aos trabalhadores. Segue-se daí a conclusão inevitável: a longa espera pelos eventuais resultados positivos das políticas e reformas preconizadas pelo FMI e Bird demandam uma estabilização prolongada da situação de poder favorável às reformas. Solução que desemboca, entretanto, num novo problema: o da viabilização eleitoral duradoura da coalizão “reformista”. Eis aí a questão: como fazer com que o povo compreenda e apoie por um longo período de tempo, e apesar de sua dura penalização, a verdade dos “technopols”? Ou em termos mais diretos: nestas condições, como ganhar eleições e manter tanto tempo uma sólida maioria no Congresso Nacional?

8.

Frente a este desafio, descartada a “alternativa Menem” (usar um programa para a campanha eleitoral e outro no governo) defendida entusiasticamente no seminário de Washington por Nicolas Barlette do International Center for Economic Growth, os estudos apontam para três caminhos conhecidos: (a) o dos partidos capazes de assegurarem a vitória e a maioria parlamentar por mais de uma década, o que em geral se deu em sociedades com menores índices de inflação e/ou de desigualdade social; (b) o da existência de condições excepcionais, de guerra ou recuperação democrática, favoráveis ao logro de acordos sociais e políticos entre partidos, sindicatos e empresários; (c) ou então, como os estudos mencionados indicam em quase todos os casos dos países com economias de alta inflação, grande fragilidade externa e extrema desigualdade social, o apelo a regimes autoritários permanentes ou “cirúrgicos”, como foi o caso da Turquia no início dos 1980 e do Peru mais recentemente.

9.

FHC, desde 1991, pelo menos, optou claramente por este projeto de modernização neoliberal e por um bloco de sustentação de centro-direita. Neste sentido, segundo nos relata a experiência, optou por uma estratégia socioeconômica que tem gerado ou aprofundado os níveis preexistentes de desigualdade e exclusão social. E além disto, para culminar, também optou para levar à frente este projeto anti-social e quase sempre autoritário, através de uma coalizão política que foi sempre autoritária e que já logrou forjar, antes e durante a era desenvolvimentista, esta nossa sociedade que ocupa hoje o penúltimo lugar mundial em termos de concentração de renda.

Neste sentido é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de “aggiornamento” do autoritarismo anti-social de nossas elites.

10.

Mas agora o jogo já começou e as coisas já evoluíram. Hoje, FHC se transformou em refém de seus próprios “technopols“. Como sua proposta neolibeal satisfaz o empresariado mas deixa pouca margem para costurar as alianças com as velhas elites políticas regionais, e como a situação dos eleitores piorou enormemente desde que assumiu o Ministério da Fazenda, só lhe resta esperar pelo milagre dos três meses prometidos pelas cabeças “iluminadas” de sua equipe econômica.

Neste ponto, aliás, o Brasil produz uma novidade que talvez possa ser relatada no próximo seminário de Washington: em vez de silenciar sobre os efeitos perversos do programa, faz-se de seu sucesso antecipado de curtíssimo prazo a grande arma para obter a vitória eleitoral… Mas é por isto também que neste caso o plano de estabilização já nasceu de forma autoritária, de tal forma que, desde agora, a condução independe do conhecido senso público do ministro Ricupero.

Lançado num período eleitoral quando, por definição, as escolhas são livres e os resultados indeterminados, o pré-anunciado sucesso do Plano supõe que só possa haver um ganhador, ou pior, supõe que, quem quer que seja o ganhador, terá que se submeter aos “technopols“, a menos que queira enfrentar uma hiperinflação explícita, com fuga de capitais, sobrevalorização cambial e desequilíbrio fiscal gerado pelas altas taxas de juros.

Para não falar que, nestes três meses de engodo, tudo o que faz parte normal de uma campanha eleitoral será considerado subversivo do ponto de vista do Plano… Sendo desnecessário acrescentar, neste momento, que mesmo que FHC ganhe as eleições dificilmente terá a maioria parlamentar de que falam, o que nos candidata fortemente, segundo a experiência relatada, a prolongarmos no tempo a concepção originariamente autoritária do Plano.

Neste sentido, ao contrário do que alguns defendem, FHC está dando uma nova e sofisticada colaboração para a irracionalidade da política brasileira.

11.

E quanto à moeda que nasce, depois de chegar a Brasília protegida pelos tanques do Exército, seguirá sendo uma moeda virtual ancorada numa paridade cambial, que, por sua vez, está atrelada a futuro político impossível de ser assegurado de antemão. Sorte teríamos neste sentido se sobre ela pudéssemos apenas parafrasear Helmut Schmidt (quando disse aqui no Brasil, comentando a possibilidade de sucesso imediato das reformas liberais no Leste europeu): “Ter-se-ia que ser professor de Harvard para crer nestas tolices”. Nossa situação é ainda mais triste, porque temos que reconhecer que nossos “technopols” conseguem reunir à “tolice dos professores de Harvard” a irresponsabilidade dos moedeiros falsos do André Gide.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Os moedeiros falsos (Vozes).

Privatização das escolas públicas em São Paulo

À nossa geração cabe fazer o enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade, desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras necessárias para o avanço das políticas privatizantes. Ricardo Normanha, A Terra é redonda (acesse)

O governo de São Paulo, sob a gestão do governador de extrema direita Tarcísio de Freitas (Republicanos), está implementando o projeto “Novas Escolas” através de uma parceria público-privada (PPP) para construir e “modernizar” 33 unidades escolares, atendendo 35 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio (São Paulo [2024?]).

O decreto publicado no último dia 11 de junho concretiza a iniciativa que já vinha sendo noticiada há tempos e faz parte do pacote de “desestatização”, um dos pilares da gestão de Tarcísio em São Paulo, junto com a política de segurança pública baseada no aval para a violência policial, no punitivismo e no populismo penal.

O tema das privatizações das escolas públicas ganha ainda mais os holofotes da imprensa em um momento propício em que a ofensiva ultraconservadora de extrema direita pauta o debate público. No início de junho, projeto semelhante foi aprovado a toque de caixa na Assembleia Legislativa do Paraná, mesmo sob os protestos de professores e estudantes. Vale mencionar também que o plano de privatização das escolas públicas estaduais do Paraná foi gestado quando Renato Feder, atual secretário de educação do estado de São Paulo, ocupava a mesma pasta na gestão do governador Ratinho Júnior (PSD) no Paraná.

Ainda no campo da educação, outros ataques da extrema direita vêm se efetivando em São Paulo na gestão Tarcísio/Feder: substituição de livros didáticos – avaliados e aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático – por materiais digitais (slides) de qualidade, no mínimo, duvidosa; utilização de Inteligência Artificial para a confecção dos materiais digitais; plataformização irrestrita da educação por meio do uso compulsório de inúmeros aplicativos e recursos digitais tanto para atividades administrativas quanto para as atividades pedagógicas, afetando profundamente – e negativamente – o processo de ensino-aprendizagem e o controle do trabalho docente; a aprovação do programa que institui as escolas cívico-militares no estado, transferindo para quadros da reserva da Polícia Militar as funções administrativas e disciplinares das escolas, sob o argumento de que o desempenho acadêmico dos estudantes das escolas cívico-militares é melhor em relação ao dos estudantes das escolas convencionais.[i]

Transferência direta de recursos públicos para a iniciativa privada

O plano de privatização das escolas públicas estaduais em São Paulo, que faz parte do Programa de Parcerias de Investimentos do Estado (PPI-SP), envolve um investimento de R$ 2,1 bilhões e prevê a construção, adequação e manutenção predial das novas escolas, com a promessa de que metade das unidades serão entregues em dois anos e o restante até janeiro de 2027. A licitação para a privatização da administração dessas escolas foi autorizada, com concessão prevista por 25 anos, segundo informações do portal G1.[ii]

O projeto prevê que as empresas concessionárias serão responsáveis pela construção, manutenção, conservação, gestão e vigilância das unidades, além de outros serviços não pedagógicos, como limpeza, portaria, monitoramento de câmeras, controle de acesso, alimentação, jardinagem e controle de pragas. Ou seja, as empresas que vencerem a licitação receberão do governo do estado grandes montantes de recursos públicos para realizar a gestão das escolas. O critério de julgamento da licitação será o menor valor da contraprestação pública máxima a ser paga pelo governo, com o leilão previsto para o terceiro trimestre e a assinatura do contrato no final deste ano.

Em tempos de pós-verdade e de narrativas que suplantam a realidade concreta, faz-se necessário dizer o óbvio. Empresas privadas objetivam lucro e, como em toda atividade capitalista, buscam maximizar os seus ganhos. Tendo em vista que a gestão das escolas não se constitui, necessariamente, como uma atividade produtiva, isto é, não produz diretamente uma nova mercadoria, a possibilidade de maximização de lucros reside na redução dos custos de tal forma que o que elas irão receber do governo do estado seja sempre mais – e quanto mais, melhor – do que o montante que será investido na construção, manutenção e gestão administrativa e de zeladoria das escolas.

Em outras palavras, indiscutivelmente, serão realizados progressivos cortes de gastos em todas essas atividades de gestão: materiais de baixa qualidade, infraestrutura mínima, redução de gastos com salários e direitos.

Separação entre gestão e atividade pedagógica

O projeto de privatização das escolas tem como argumento principal centralizar a contratação para “otimizar” a gestão, reduzir custos e “melhorar a qualidade” dos gastos, o que permitiria que gestores e professores se concentrem nas atividades pedagógicas. A proposta é que as atividades pedagógicas continuem, do ponto de vista formal, sob a responsabilidade da Secretaria da Educação. Parte-se, portanto, da premissa da separação entre gestão e atividades pedagógicas, como se pertencentes a universos distintos e não diretamente relacionados.

Desde os anos de 1990, a onda neoliberal que assolou o mundo após o fim do bloco socialista articulada à reestruturação produtiva no mundo capitalista, de acordo com Reginaldo de Moraes (2002) consolidou uma narrativa que buscou descrever e explicar os supostos problemas do mundo social “politicamente regulado”. No que diz respeito à reforma dos serviços públicos, essa narrativa defende a supremacia do mercado como o melhor e mais eficiente mecanismo para alocar recursos, promovendo, portanto, justiça, igualdade e liberdade.

Nesse sentido, no âmbito da Nova Gestão Pública, paradigma administrativo que defende a aplicação direta de práticas de gestão do setor privado na Administração Pública e cujo objetivo é alcançar maior eficiência, reduzir custos e aumentar a eficácia na prestação de serviços, compreendendo os cidadãos como clientes e os servidores públicos como gestores, observamos ao longo dos anos de 1990 e primeira década de 2000, uma série de reformas do aparelho estatal que logrou consolidar um modelo de gestão executiva dos serviços públicos pensado de maneira separada e autônoma das atividades fins.

Assim, vimos ao longo das últimas décadas um processo acentuado de privatização da gestão dos serviços públicos, seja no sentido de uma transferência direta da gestão para a iniciativa privada, seja no sentido da adoção das práticas e valores do mercado na administração pública, visando uma aparente “profissionalização” da gestão. Na mesma direção, nota-se a emergência de novos atores que compõem e orientam as redes de governança pública, como as instituições, fundações e empresas privadas que não só pautam o debate público como incidem com o peso de fortes investimentos financeiros na formulação e implementação das políticas públicas.

No campo da educação, essa segmentação entre gestão escolar e gestão pedagógica vem se intensificando na medida em que diretores e diretoras de escolas assumem cada vez mais funções relacionadas à gestão de recursos humanos, verbas, insumos e materiais – vale dizer, recursos esses cada vez mais escassos – distanciando-os das reflexões e práticas pedagógicas das escolas (Souza, 2004). Nesse sentido, o projeto de privatização em curso nos estados de São Paulo e Paraná, reforça essa distinção, assumindo que a gestão administrativa das escolas se constitui como um fim em si mesmas.

Na educação, a “atividade fim” é a própria prática pedagógica. A administração é, portanto, uma “atividade meio”, necessária para o desenvolvimento da prática educacional. Desta forma, a gestão não pode ser separada, apartada e autonomizada em relação à atividade propriamente pedagógica. A condição para o desenvolvimento do modo de produção capitalista reside justamente na separação entre produtores diretos e os meios de produção, mas também na separação entre produtores e gestores da produção. A educação pública, ao sucumbir a essa lógica, dissipa sua dimensão pública e rende-se aos interesses privados de acumulação de capital.

Ultraliberalismo como expressão da ofensiva de extrema direita

As transformações econômicas e políticas que atravessaram o mundo globalizado a partir do final da primeira década do século XXI, apontam para um aprofundamento e radicalização da lógica neoliberal que regeu a economia global desde meados da década de 1980. Entende-se aqui que o termo neoliberalismo passa a ser insuficiente e anacrônico para dar conta das complexidades do mundo contemporâneo, sobretudo a partir da crise de 2008.

Além disso, o uso do termo neoliberalismo passou a ser usado de forma difusa e confusa incorrendo muitas vezes no esvaziamento do seu significado. Nesse sentido, é necessário acionarmos categorias e conceitos que apontem com precisão para o processo em curso na economia global. Desta forma, o argumento de Miranda (2020) defende que o uso do termo “ultraliberalismo” é mais adequado pois enquanto o prefixo “neo” sugere uma novidade temporal – e o neoliberalismo já está em voga há algumas décadas e já não se apresenta mais como novidade – o prefixo “ultra” destaca a radicalização dos preceitos do liberalismo clássico e do próprio neoliberalismo.

Assim, o ultraliberalismo não representa uma nova era, mas uma intensificação das práticas capitalistas de exploração e expropriação da classe trabalhadora e de aprofundamento da ideologia de redução do Estado e de transferência de toda a gestão pública para a iniciativa privada.

Nesse sentido, quando se observa o processo explícito e escancarado de privatização das escolas públicas, é nítido o aprofundamento e radicalização daquilo que já vinha sendo implementado desde o final do século XX. Enquanto a Nova Gestão Pública, instrumento ideológico do neoliberalismo dos anos 1990 e 2000, forçou a permeabilidade da lógica do mercado no coração da administração pública, do estado e dos serviços públicos, o momento atual aponta para uma transferência direta desta gestão para a iniciativa privada em setores, até então, relativamente protegidos dessa ofensiva.

Se a reforma gerencialista do Estado não hesitou em vender empresas estatais estratégicas, como as de telefonia, mineração e bancos, alguns serviços públicos, graças à resistência oferecida pelos movimentos sociais, especialmente no campo da saúde e da educação, não permitiram o entreguismo privatista às custas do sucateamento de tais serviços.

No entanto, o avanço da extrema direita em todo o mundo e, em especial, no Brasil, sobretudo a partir do golpe contra Dilma Rousseff em 2016, impôs aos movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e outras formas de organização da classe trabalhadora, um cenário defensivo e de baixa, ou quase nenhuma, capacidade de resistência.

Resta-nos, agora, analisar a conjuntura dessa quadra da história e compreender o papel das forças progressistas, democráticas e da esquerda radical no confronto direto a essa ofensiva ultraliberal da extrema-direita. Como convocou Franz Fanon: “cada geração tem que descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la” (Fanon, 2022, p. 207).

À nossa geração coube fazer esse enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade, desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras necessárias para o avanço das políticas privatizantes.

Ricardo Normanha é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp.

Referências


FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

Souza, Silvana Aparecida de. “Os sentidos da separação entre gestão pedagógica e gestão escolar nas políticas públicas educacionais do Paraná”. Ideação, vol. 6, no 6, 2004, p. 176-85.

MORAES, Reginaldo C. “Reformas neoliberais e políticas públicas: hegemonia ideológica e redefinição das relações Estado-sociedade”. Educação & Sociedade, vol. 23, setembro de 2002, p. 13–24.

MIRANDA, João Elter B. O ultraliberalismo enquanto categoria conceitual. LavraPalavra, 2 de dezembro de 2020, https://lavrapalavra.com/2020/12/02/o-ultraliberalismo-enquanto-categoria-conceitual/.

NEVES, Ian. Greve no paraná, privatização e militarização das escolas | Cortes do Ian Neves. 2024. YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=ga98DLupzIs.

SÃO PAULO, Secretaria de Parcerias em Investimentos. Novas Escolas. [2024?]. Disponível em https://www.parceriaseminvestimentos.sp.gov.br/projeto-qualificado/ppp-educacao-novas-escolas/#:~:text=O%20projeto%20Novas%20Escolas%2C%20qualificado,apenas%20servi%C3%A7os%20n%C3%A3o%2Dpedag%C3%B3gicos).

Tarcísio autoriza licitação para privatizar gestão de 33 novas escolas estaduais de SP. G1. 12 jun. 2024. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/12/tarcisio-autoriza-licitacao-para-privatizar-gestao-de-33-escolas-estaduais-de-sp.ghtml.

Notas


[i] Argumento facilmente desmontado por inúmeros pesquisadores e pesquisadoras especializados. O suposto melhor desempenho dos estudantes das escolas cívico-militares está associados a outros fatores que não estão relacionados à gestão militarizada, como investimentos, valorização da profissão docente, infraestrutura e trajetórias e bagagens culturais familiares desses estudantes. Para entender mais sobre as falácias das escolas cívico-militares ver SAMORA, Frederico. A arte do golpe: cinco pontos para pensar as escolas cívico-militares. Brasil de Fato. São Paulo (SP) | 24 de outubro de 2019. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2019/10/24/artigo-or-a-arte-do-golpe-cinco-pontos-para-pensar-as-escolas-civico-militares.

[ii] Tarcísio autoriza licitação para privatizar gestão de 33 novas escolas estaduais de SP. G1. 12 jun. 2024. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/12/tarcisio-autoriza-licitacao-para-privatizar-gestao-de-33-escolas-estaduais-de-sp.ghtml.

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