Giordano Bruno foi condenado à morte em fevereiro de 1600 e obrigado a ouvir sua setença de joelhos. Desabafou: "talvez sintam maior temor ao pronunciar essa sentença do que eu ao ouví-la". Foi queimado na fogueira, no campo dei Fiori, em Roma. Clique aqui para ler a biografia completa de Giordano.
Biografia
para uma leitura ilustrada deste texto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Bruno
Giordano Bruno (Italiano: [dʒorˈdaːno ˈbruːno]; em latim: Iordanus Brunus Nolanus; nascido Filippo Bruno, (Nola, Reino de Nápoles, 1548[1] – Campo de' Fiori, Roma, 17 de fevereiro de 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor, matemático, poeta, teórico de cosmologia, ocultista hermético e frade dominicano italiano[2][3][4] condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana (Congregação da Sacra, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício) com a acusação de heresia[5] ao defender alegações consideradas erros teológicos. É também referido como Bruno de Nola ou Nolano.[6] É considerado por alguns como um mártir da igreja dos tempos de então, tendo contribuído para avanços significativos do conhecimento do seu tempo.[7] Ele é conhecido por suas teorias cosmológicas, que conceitualmente estenderam o então novo modelo copernicano. Ele propôs que as estrelas fossem sóis distantes cercados por seus próprios planetas e levantou a possibilidade de que esses planetas criassem vida neles próprios, uma posição filosófica conhecida como pluralismo cósmico. Ele também insistiu que o universo é infinito e não poderia ter "centro".
A partir de 1593, Bruno foi julgado por heresia pela Inquisição romana, acusado de negar várias doutrinas católicas essenciais, incluindo a condenação eterna, a Trindade, a divindade de Cristo, a virgindade de Maria e a transubstanciação. O panteísmo de Bruno também era motivo de grande preocupação,[8] assim como seus ensinamentos sobre a transmigração da alma. A Inquisição o considerou culpado e ele foi queimado na fogueira no Campo de' Fiori, em Roma, em 1600. Após sua morte, ganhou fama considerável, sendo particularmente comemorado por comentaristas do século XIX e início do século XX que o consideravam mártir de ciência,[9] embora os historiadores concordem que seu julgamento por heresia não foi uma resposta a seus pontos de vista astronômicos, mas sim uma resposta a seus pontos de vista filosóficos e religiosos.[10][11][12][13][14] Já outros historiadores consideram sim que suas visões cosmológicas foram o principal motivo ou um dos principais da condenação (heresia da pluralidade dos mundos).[15][16][17] O caso de Bruno ainda é considerado um marco na história do livre pensamento e das ciências emergentes.[18][19]
Além da cosmologia, Bruno também escreveu extensivamente sobre a arte da memória, um grupo pouco organizado de técnicas e princípios mnemônicos. A historiadora Frances Yates argumenta que Bruno foi profundamente influenciado pela astrologia árabe (particularmente a filosofia de Averróis[20]), neoplatonismo, hermetismo renascentista e lendas do gênero Gênesis em torno do deus egípcio Tote.[21] Outros estudos de Bruno se concentraram em sua abordagem qualitativa da matemática e sua aplicação dos conceitos espaciais da geometria na linguagem.[22]
Origem e formação
Filho do militar Giovanni Bruno e Fraulissa Savolino,[23] seu nome de batismo era Filippo Bruno.[24] Adotou o nome de Giordano quando ingressou na Ordem Dominicana, aos 15 anos de idade.[24]
No seminário, estudou Aristóteles e Tomás de Aquino, predominantes na doutrina católica da época, doutorando-se em Teologia.
Suas ideias particulares, porém, suscitaram suspeitas por parte da hierarquia da Igreja. Em 1576 foi acusado de heresia e levado a Roma para ser julgado. Poucos meses depois, abandonou o hábito[24] e em 1579 deixou a Itália.[25]
Iniciou-se, então, o período de peregrinação de sua vida. Em Gênova, ainda em 1579, aparentemente, adotou o calvinismo, o que negaria mais tarde, ao ser julgado em Veneza.[24] Acabou sendo excomungado pelos calvinistas e expulso de Gênova.[24] Viajou sucessivamente para França (Toulouse, Paris[24]), Suíça e Inglaterra.[25] Em Londres, onde permaneceu de 1583 a 1585, esteve sob a proteção do embaixador francês, e frequentou o círculo de amigos do poeta inglês Philip Sidney. Em 1585, Bruno retornou a Paris, indo em seguida para Marburgo, Wittenberg, Praga, Helmstedt e Frankfurt, onde conseguiu publicar vários de seus escritos.
Em Roma, o julgamento de Bruno durou oito anos, durante os quais ele foi preso, por último, na Torre de Nola. Alguns documentos importantes sobre o julgamento estão perdidos, mas outros foram preservados e entre eles um resumo do processo, que foi redescoberto em 1999.[26] As numerosas acusações contra Bruno, com base em alguns de seus livros, bem como em relatos de testemunhas, incluíam blasfêmia, conduta imoral e heresia em matéria de teologia dogmática e envolvia algumas das doutrinas básicas da sua filosofia e cosmologia. Luigi Firpo lista estas acusações feitas contra Bruno pelo tribunal local:[27]
sustentar opiniões contrárias à fé católica e contestar seus ministros;
sustentar opiniões contrárias à fé católica sobre a Trindade, a divindade de Cristo e a encarnação;
sustentar opiniões contrárias à fé católica sobre Jesus como Cristo;
sustentar opiniões contrárias à fé católica sobre a virgindade de Maria, mãe de Jesus;
sustentar opiniões contrárias à fé católica tanto sobre a Transubstanciação quanto a Missa;
reivindicar a existência de uma pluralidade de mundos e suas eternidades;
acreditar em metempsicose e na transmigração da alma humana em brutos, e;
envolvimento com magia e adivinhação.
Giovanni Mocenigo (1558-1623), membro de um das mais ilustres famílias venezianas, encontrou Bruno em Frankfurt em 1590 e convidou-o para ir a Veneza, a pretexto de lhe ensinar mnemotécnica, a arte de desenvolver a memória, em que Bruno era perito. Segundo Will Durant[28] Bruno estava havia muitos anos na lista dos procurados pela Inquisição, ansiosa por prendê-lo por suas doutrinas subversivas, mas Veneza gozava da fama de proteger tais foragidos, e o filósofo sentiu-se encorajado a cruzar os Alpes e regressar. Como Mocenigo quisesse usar as artes da memória com fins comerciais, segundo alguns, ou esperasse obter de Bruno ensinamentos de ocultismo para aumentar seu poder, prejudicar seus concorrentes e inimigos, segundo outros, Bruno se negou a ensiná-lo.[29] Segundo Durant, Mocenigo, católico piedoso, assustava-se com "as heresias que o loquaz e incauto filósofo lhe expunha", e perguntou a seu confessor se devia denunciar Bruno à Inquisição. O sacerdote recomendou-lhe esperar e reunir provas, no que Mocenigo assentiu; mas quando Bruno anunciou seu desejo de regressar a Frankfurt, o nobre denunciou-o ao Santo Ofício. Mocenigo trancou-o num quarto e chamou os agentes da Inquisição para levarem-no preso, acusado de heresia. Bruno foi transferido para o cárcere do Santo Ofício de San Domenico de Castello, no dia 23 de maio de 1592.[30]
No último interrogatório pela Inquisição do Santo Ofício, não abjurou e, no dia 8 de fevereiro de 1600, foi condenado à morte na fogueira. Obrigado a ouvir a sentença ajoelhado, Giordano Bruno teria respondido com um desafio: Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis quam ego accipiam ("Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu ao ouvi-la").[31]
A execução de sua sentença ocorreu no dia 17 de fevereiro de 1600. Na ocasião teve a voz calada por um objeto de madeira posto em sua boca.[32]
Ideário
Ver também: Magia no Renascimento § Bruno
Foi trágico o desfecho do processo contra Giordano Bruno (século XVI), acusado de panteísmo e queimado vivo por defender com exaltação poética a doutrina da infinitude do Universo e por concebê-lo não como um sistema rígido de seres, articulados em uma ordem dada desde a eternidade, mas como um conjunto que se transforma continuamente.[33]
Um dos pontos chave de sua cosmologia é a tese do universo infinito e povoado por uma infinidade de estrelas, como o Sol, e por outros planetas, nos quais, assim como na Terra, existiria vida inteligente.[34] Sua perspectiva se define a partir das ideias do cardeal Nicolau da Cusa, de Copérnico e de Giovanni Battista della Porta. Bruno é às vezes citado como o primeiro a propor que o universo é infinito, o que ele fez durante seu tempo na Inglaterra, mas um cientista inglês, Thomas Digges, apresentou essa ideia em um trabalho publicado em 1576, cerca de oito anos antes de Bruno,[35] e também filósofos da antiguidade clássica como Arquitas e Lucrécio. Um universo infinito e a possibilidade de vida alienígena também já haviam sido sugeridos pelo cardeal católico Nicolau de Cusa em "Sobre a Douta Ignorância", publicado em 1440.
As suas ideias sobre a relatividade anteciparam as de Galileu:[36][37] num universo infinito, qualquer perspectiva de qualquer objeto é sempre relativa à posição do observador, há infinitos referenciais possíveis e não existe nenhum privilegiado em relação aos demais.[38] Além de defender a existência de planetas extrassolares.[38]
Seu livro Spaccio de la Bestia Trionfante era um ataque à religião e mostrava o panteísmo do seu autor.[39]
Segundo John Gribbin, em seu livro Science: A History (1543-2001), Bruno filiou-se ao hermetismo, baseado em escrituras egípcias, da época de Moisés. Entre outras referências, esse movimento utilizava os ensinamentos atribuídos ao deus egípcio Thoth, cujo equivalente grego era Hermes (daí hermetismo), conhecido pelos seguidores como Hermes Trismegisto. Bruno teria abraçado a teoria do padre Copérnico porque ela se encaixava bem na ideia egípcia de um universo centrado no sol.
Deus seria a força criadora perfeita que forma o mundo e que seria imanente a ele. Bruno defendia a crença nos poderes humanos extraordinários, a crença de que todas as coisas tinham alma, criou a Geometria Sagrada e enfrentou abertamente a Igreja Católica,[40] a Igreja Luterana, Calvinista, sendo excomungado de todas elas.
A contribuição geral de Bruno para o nascimento da ciência moderna ainda é controversa. Alguns estudiosos seguem Frances Yates, enfatizando a importância das ideias de Bruno sobre o universo ser infinito e sem estrutura geocêntrica como ponto de cruzamento crucial entre o antigo e o novo. Outros vêem na ideia de Bruno de múltiplos mundos instanciando as infinitas possibilidades de um indivisível e pristino Um,[41] um precursor da interpretação de muitos mundos de Everett da mecânica quântica.[42]
Enquanto muitos acadêmicos observam a posição teológica de Bruno como panteísmo, vários a descreveram como pandeísmo e alguns como panenteísmo.[43][44] O físico e filósofo Max Bernhard Weinstein, em seu Welt und Lebensanschauungen, Hervorgegangen aus Religion, Philosophie und Naturerkenntnis ("Visões da vida e do mundo emergindo da religião, filosofia e natureza"), escreveu que o modelo teológico do pandeísmo era fortemente expresso nos ensinamentos de Bruno, especialmente no que diz respeito à visão de uma divindade para a qual "o conceito de Deus não está separado do conceito do universo".[45] No entanto, Otto Kern faz exceção ao que considera as afirmações gerais de Weinstein de que Bruno, assim como outros filósofos históricos como João Escoto Erígena, Anselmo de Canterbury, Nicolau de Cusa, Mendelssohn e Lessing seriam pandeístas ou se inclinavam para o pandeísmo.[46] O editor da Discover, Corey S. Powell, também descreveu a cosmologia de Bruno como pandeística, escrevendo que era "uma ferramenta para avançar uma teologia animista ou pandeísta",[47] e essa avaliação de Bruno como pandeísta foi concordada pelo escritor científico Michael Newton Keas e o escritor da The Daily Beast David Sessions.[48]
Filosofia\
Giordano Bruno foi o grande defensor da ideia de infinito.[49]
"Nós declaramos esse espaço infinito, dado que não há qualquer razão, conveniência, possibilidade, sentido ou natureza que lhe trace um limite." (Giordano Bruno, Acerca do Infinito Universo e Mundos, 1584), com base nas ideias do cardeal Nicolau de Cusa.
Bruno era hilozoísta (pensava que tudo tem vida) e panpsiquista (pensava que tudo tem uma natureza psíquica, uma alma).
"A Terra e os astros (...), como eles dispensam vida e alimento às coisas, restituindo toda matéria que emprestam, são eles próprios dotados de vida, em uma medida bem maior ainda; e sendo vivos, é de maneira voluntária, ordenada e natural, segundo um princípio intrínseco, que eles se movem em direção às coisas e aos espaços que lhes convêm" (A ceia de cinzas).
"Todas as formas de coisas naturais têm almas? Todas as coisas são animadas? pergunta Dicson.[50] Theophilo, porta-voz de Bruno, responde: Sim, uma coisa, por minúscula que seja, encerra em si uma parte de substância espiritual, a qual, se encontra o sujeito [suporte] adequado, torna-se planta, animal (...); porque o espírito se encontra em todas as coisas, e não há mínimo corpúsculo que não o contenha em certa medida e que não seja por ele animado." (Causa, Princípio e Unidade, 1584).
"E o que se pode dizer de cada parcela do grande Todo, átomo, mônada, pode se dizer do universo como totalidade. O mundo abriga em seu coração a Alma do mundo" (idem).
"O mundo é infinito porque Deus é infinito. Como acreditar que Deus , ser infinito, possa ter se limitado a si mesmo criando um mundo fechado e limitado?" (idem)
"Não é fora de nós que devemos procurar a divindade, pois que ela está do nosso lado, ou melhor, em nosso foro interior, mais intimamente em nós do que estamos em nós mesmos." (A ceia de cinzas).
Visões retrospectivas de Bruno
Posição tardia do Vaticano
O Vaticano publicou poucas declarações oficiais sobre o julgamento e execução de Bruno. Em 1942, o cardeal Giovanni Mercati, que descobriu vários documentos perdidos relacionados ao julgamento de Bruno, afirmou que a Igreja estava perfeitamente justificada em condená-lo. No 400º aniversário da morte de Bruno, em 2000, o cardeal Angelo Sodano declarou a morte de Bruno como um "episódio triste", mas, apesar de seu pesar, defendeu os promotores de Bruno, afirmando que os inquisidores "tinham o desejo de servir à liberdade e promover o bem comum e fizeram todo o possível para salvar sua vida".[51] No mesmo ano, o papa João Paulo II fez um pedido de desculpas geral pelo "uso da violência que alguns cometeram a serviço da verdade".[52]
Um mártir para a ciência
Alguns autores caracterizaram Bruno como um "mártir da ciência", sugerindo paralelos com o caso Galileu, que começou por volta de 1610.[53] "Não deve ser suposto", escreve A. M. Paterson, de Bruno, e seu "sistema solar heliocêntrico", que ele "alcançou suas conclusões através de alguma revelação mística....Seu trabalho é uma parte essencial dos desenvolvimentos científicos e filosóficos que ele iniciou".[54] Paterson repete Hegel ao escrever que Bruno "introduz uma moderna teoria do conhecimento que compreende todas as coisas naturais do universo a serem conhecidas pela mente humana através da estrutura dialética da mente".[55]
Ingegno escreve que Bruno adotou a filosofia de Lucrécio, "destinada a libertar o homem do medo da morte e dos deuses".[56] Os personagens do livro Causa, Princípio e Unidade de Bruno desejam "melhorar a ciência especulativa e o conhecimento das coisas naturais" e alcançar uma filosofia "que produza a perfeição do intelecto humano de maneira mais fácil, eminente e mais próxima da verdade da natureza".[57]
Outros estudiosos se opõem a essas opiniões e afirmam que o martírio de Bruno para a ciência é exagerado ou totalmente falso. Para Yates, enquanto "liberais do século XIX" foram levados "a êxtases" sobre o copernicanismo de Bruno, "Bruno empurra o trabalho científico de Copérnico de volta a um estágio pré-científico, de volta ao hermetismo, interpretando o diagrama copernicano como um hieróglifo de mistérios divinos".[58]
Segundo o historiador Mordechai Feingold, "Tanto os admiradores quanto os críticos de Giordano Bruno basicamente concordam que ele era pomposo e arrogante, valorizando muito suas opiniões e mostrando pouca paciência com quem até discordava dele levemente". Discutindo a experiência da rejeição de Bruno quando ele visitou a Universidade de Oxford, Feingold sugere que "poderia ter sido a maneira de Bruno, sua linguagem e sua autoafirmação, e não suas ideias" que causaram ofensa.[59]
Heresia teológica
Em suas Palestras sobre a História da Filosofia, Hegel escreve que a vida de Bruno representava "uma rejeição ousada de todas as crenças católicas baseadas na mera autoridade".[60]
Alfonso Ingegno afirma que a filosofia de Bruno "desafia os desenvolvimentos da Reforma, põe em questão o valor da verdade de todo o cristianismo e afirma que Cristo perpetrou um engano na humanidade... Bruno sugere que agora podemos reconhecer a lei universal que controla o devir perpétuo de todas as coisas em um universo infinito".[61] A. M. Paterson diz que, embora não tenhamos mais uma cópia da condenação papal oficial de Bruno, suas heresias incluíam "a doutrina do universo infinito e dos inúmeros mundos" e suas crenças "sobre o movimento da terra".[62]
Michael White observa que a Inquisição pode ter perseguido Bruno no início de sua vida com base em sua oposição a Aristóteles, interesse no arianismo, leitura de Erasmo e posse de textos proibidos. White considera que a heresia posterior de Bruno era "multifacetada" e pode ter se apoiado em sua concepção de mundos infinitos. "Esta foi talvez a noção mais perigosa de todas ... Se existiam outros mundos com seres inteligentes vivendo lá, eles também tiveram suas visitações? A ideia era completamente impensável".[63]
Frances Yates rejeita o que ela descreve como a "lenda de que Bruno foi processado como um pensador filosófico, foi queimado por suas visões ousadas sobre inúmeros mundos ou sobre o movimento da terra". Yates, no entanto, escreve que "a Igreja estava ... perfeitamente dentro de seus direitos se incluísse pontos filosóficos na condenação das heresias de Bruno" porque "os pontos filosóficos eram bastante inseparáveis das heresias".[64]
De acordo com a Stanford Encyclopedia of Philosophy, "em 1600 não havia posição católica oficial no sistema copernicano, e certamente não era uma heresia. Quando Bruno [...] foi queimado na fogueira como herege, não teve nada a ver com seus escritos em apoio à cosmologia copernicana".[65]
O site dos Arquivos Secretos do Vaticano, discutindo um resumo dos procedimentos legais contra Bruno em Roma, declara:
"Nas mesmas salas em que Giordano Bruno foi interrogado, pelas mesmas razões importantes da relação entre ciência e fé, no início da nova astronomia e no declínio da filosofia de Aristóteles, dezesseis anos depois, o cardeal Bellarmino, que então contestou as teses heréticas de Bruno, convocou Galileu Galilei, que também enfrentou um famoso julgamento inquisitorial que, felizmente para ele, terminou com uma simples abjuração".[66]
Obras
De umbris idearum, 1582
Cantus Circaeus, 1582
De compendiosa architectura, 1582
Il Candelaio, 1582
Ars reminiscendi, 1583
Explicatio triginta sigillorum, 1583
Sigillus sigillorum, 1583
Le ombre delle idee, 1582
La cena de le ceneri, 1583
De l’infinito universo e mondi, 1584
De la causa, principio e uno, 1584
Spaccio de la Bestia Trionfante, 1584[Nota 1]
Cabala del Cavallo Pegaseo, 1585
Gli eroici furori, 1585
Figuratio Aristotelici Physici auditus, 1585
Dialogi duo de Fabricii Mordentis Salernitani, 1586
Idiota triumphans, 1586
De somni interpretatione, 1586
Animadversiones circa lampadem lullianam, 1586
Lampas triginta statuarum, 1586
Centum et viginti articuli de natura et mundo adversus peripateticos, 1586
De lampade combinatoria Lulliana, 1587
De progressu et lampade venatoria logicorum, 1587
Oratio valedictoria, 1588
Camoeracensis Acrotismus, 1588
De specierum scrutinio, 1588
Articuli centum et sexaginta adversus huius tempestatis mathematicos atque Philosophos, 1588
Oratio consolatoria, 1589
De magia, 1591
De vinculis in genere, 1591
De triplici minimo et mensura, 1591
De monade numero et figura, 1591
De innumerabilibus, immenso, et infigurabili, 1591
De imaginum, signorum et idearum compositione, 1591
Summa terminorum metaphisicorum, 1595
Artificium perorandi, 1612
Obras disponíveis na Internet
(em francês) Spaccio de la Bestia Trionfante, formato PDF, digitalização pelo The Warburg Institute.
(em inglês) Gli eroici furori, parte I e parte II, vários formatos, Projeto Gutenberg.
(em italiano) Le opere italiane. Gottinga, Dieterichsche Universitatsbuchhandlung, 1888, vol 1, vol2, formato PDF, digitalização pelo The Warburg Institute (não inclui escritos em Latim, a maioria).
(em italiano) Il Candelaio, formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
(em italiano) La cena de le ceneri, formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
(em italiano) Le hombre delle idee, formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
(em italiano) Dell'Infinito, formato formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
(em italiano) Degli eroici furori, formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
(em inglês) The Heroic Enthusiasts, formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
(em italiano) Spaccio de la bestia trionfante, formato html (múltiplos documentos), Intratext Digital Library.
Filmografia
Giordano Bruno, de Giuliano Montaldo, com Gian Maria Volontè, 1973; duração: 123min.
Ver também
Notas e referências
Notas
↑ A data de 1584, segundo o jornal inglês Spectator, corresponde à data em que o livro foi impresso em Londres.
Referências
↑ «Quem foi Giordano Bruno?». Revista Galileu. Globo.com. Consultado em 21 de outubro de 2017
↑ Gatti, Hilary. Giordano Bruno and Renaissance Science: Broken Lives and Organizational Power. Cornell University Press, 2002, 1, ISBN 0-801-48785-4
↑ Bruno era matemático e filósofo, mas não é considerado astrônomo pela comunidade astronômica moderna, pois não há registros dele realizando observações físicas, como foi o caso de Brahe, Kepler e Galileo. Pogge, Richard W. http://www.astronomy.ohio-state.edu/~pogge/Essays/Bruno.html 1999.
↑ Spectator, edição de 27 de maio de 1712, p.331 [em linha]
↑ Bombassaro, Luiz Carlos. Giordano Bruno e a filosofia na Renascença, Caxias do Sul: Educs, 2008
↑ Estudos da Fundação Calouste Gulbenkian
↑ Birx, James H. "Giordano Bruno" The Harbinger, Mobile, AL, 11 November 1997. "Bruno was burned to death at the stake for his pantheistic stance and cosmic perspective."
↑ Arturo Labriola, Giordano Bruno: Martyrs of free thought no. 1
↑ Frances Yates, Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, Routledge and Kegan Paul, 1964, p. 450
↑ Michael J. Crowe, The Extraterrestrial Life Debate 1750–1900, Cambridge University Press, 1986, p. 10, "[Bruno's] sources... seem to have been more numerous than his followers, at least until the eighteenth- and nineteenth-century revival of interest in Bruno as a supposed 'martyr for science.' It is true that he was burned at the stake in Rome in 1600, but the church authorities guilty of this action were almost certainly more distressed at his denial of Christ's divinity and alleged diabolism than at his cosmological doctrines."
↑ Adam Frank (2009). The Constant Fire: Beyond the Science vs. Religion Debate, University of California Press, p. 24, "Though Bruno may have been a brilliant thinker whose work stands as a bridge between ancient and modern thought, his persecution cannot be seen solely in light of the war between science and religion."
↑ White, Michael (2002). The Pope and the Heretic: The True Story of Giordano Bruno, the Man who Dared to Defy the Roman Inquisition, p. 7. Perennial, New York. "This was perhaps the most dangerous notion of all... If other worlds existed with intelligent beings living there, did they too have their visitations? The idea was quite unthinkable."
↑ Shackelford, Joel (2009). «Myth 7 That Giordano Bruno was the first martyr of modern science». In: Numbers, Ronald L. Galileo goes to jail and other myths about science and religion. Cambridge, MA: Harvard University Press. p. 66 "Yet the fact remains that cosmological matters, notably the plurality of worlds, were an identifiable concern all along and appear in the summary document: Bruno was repeatedly questioned on these matters, and he apparently refused to recant them at the end.14 So, Bruno probably was burned alive for resolutely maintaining a series of heresies, among which his teaching of the plurality of worlds was prominent but by no means singular."
↑ Gatti, Hilary (26 de outubro de 2012). «Why Giordano Bruno's "Tranquil Universal Philosophy" Finished in a Fire». In: Lavery, Jonathan; Groarke, Louis; Sweet, William. Ideas under Fire: Historical Studies of Philosophy and Science in Adversity (em inglês). [S.l.]: Fairleigh Dickinson. pp. 116–118
↑ Martinez, Alberto A. (outubro de 2016). «Giordano Bruno and the heresy of many worlds». Annals of Science (em inglês) (4): 345–374. ISSN 0003-3790. doi:10.1080/00033790.2016.1193627. Consultado em 8 de julho de 2023
↑ Koyré, Alexandre (1980). Estudios galileanos. México D.F.: Siglo XXI Editores. pp. 159–169.
↑ Gatti, Hilary (2002). Giordano Bruno and Renaissance Science: Broken Lives and Organizational Power. Ithaca, NY: Cornell University Press. pp. 18–19. ISBN 978-0801487859. Consultado em 21 de março de 2014. For Bruno was claiming for the philosopher a principle of free thought and inquiry which implied an entirely new concept of authority: that of the individual intellect in its serious and continuing pursuit of an autonomous inquiry… It is impossible to understand the issue involved and to evaluate justly the stand made by Bruno with his life without appreciating the question of free thought and liberty of expression. His insistence on placing this issue at the center of both his work and of his defense is why Bruno remains so much a figure of the modern world. If there is, as many have argued, an intrinsic link between science and liberty of inquiry, then Bruno was among those who guaranteed the future of the newly emerging sciences, as well as claiming in wider terms a general principle of free thought and expression.
↑ Montano, Aniello (2007). Antonio Gargano, ed. Le deposizioni davanti al tribunale dell'Inquisizione. Napoli: La Città del Sole. p. 71. In Rome, Bruno was imprisoned for seven years and subjected to a difficult trial that analyzed, minutely, all his philosophical ideas. Bruno, who in Venice had been willing to recant some theses, become increasingly resolute and declared on 21 December 1599 that he 'did not wish to repent of having too little to repent, and in fact did not know what to repent.' Declared an unrepentant heretic and excommunicated, he was burned alive in the Campo dei Fiori in Rome on Ash Wednesday, 17 February 1600. On the stake, along with Bruno, burned the hopes of many, including philosophers and scientists of good faith like Galileo, who thought they could reconcile religious faith and scientific research, while belonging to an ecclesiastical organization declaring itself to be the custodian of absolute truth and maintaining a cultural militancy requiring continual commitment and suspicion.
↑ «Giordano Bruno». Encyclopædia Britannica
↑ A obra principal sobre o relacionamento entre Bruno e o hermetismo é Frances Yates, Giordano Bruno and The Hermetic Tradition, 1964; para uma abordagem alternativa, pondo mais ênfase na Cabala, e menos no hermetismo, ver Karen Silvia De Leon-Jones, Giordano Bruno and the Kabbalah, Yale, 1997; para uma volta à ênfase do papel de Bruno no desenvolvimento da ciência, e crítica da ênfase de Yates nos temas mágicos e herméticos, ver Hillary Gatti (1999), Giordano Bruno and Renaissance Science, Cornell.
↑ Alessandro G. Farinella and Carole Preston, "Giordano Bruno: Neoplatonism and the Wheel of Memory in the 'De Umbris Idearum'", in Renaissance Quarterly, Vol. 55, No. 2, (Summer, 2002), pp. 596–624; Arielle Saiber, Giordano Bruno and the Geometry of Language, Ashgate, 2005
↑ McIntyre, J. Lewis. Giordano Bruno
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a b Ingegno, Alfonso (2004). Introduction. In de Lucca, Robert e Blackwell, Richard J. (org.) Giordano Bruno: "Cause, Principle and Unity" and Essays on Magic, pp. vii-xxix. Cambridge Texts on History of Phylosophy. Cambridge: Cambridge Press. ISBN 0-521-59359-X.
↑ "II Sommario del Processo di Giordano Bruno, con appendice di Documenti sull'eresia e l'inquisizione a Modena nel secolo XVI", edited by Angelo Mercati, in Studi e Testi, vol. 101.(em italiano)
↑ Luigi Firpo, Il processo di Giordano Bruno, 1993. (em italiano)
↑ DURANT, Will e Ariel. A História da Civilização. Começa a Idade da Razão. Trad. Mamede de Souza Freitas. 2ª edição, v. 7, Editora Record.
↑ Giordano Bruno: His Life and Thought. Chapter seven. "Martyrdom (1591-1600)" a. Padua and Venice (1591-92).
↑ ROWLAND, Ingrid D. Giordano Bruno: Philosopher / Heretic. University of Chicago Press, 2008.
↑ Singer, Dorothea Waley, Giordano Bruno, His Life and Thought, New York, 1950, ch. 7. O texto menciona um relato feito em carta por Caspar Schoppe, convertido ao Catolicismo e protegido do Papa Clemente VIII. É considerado certo que o autor do relato esteve presente ao julgamento de Giordano Bruno.
↑ "II Sommario del Processo di Giordano Bruno, con appendice di Documenti sull'eresia e l'inquisizione a Modena nel secolo XVI", edited by Angelo Mercati, in Studi e Testi, vol. 101; o objeto de madeira posto na boca de Giordano Bruno é descrito como una morsa di legno.
↑ [ fonte :Livro: Filosofando de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins.]
↑ John Gribbin (2009). In Search of the Multiverse: Parallel Worlds, Hidden Dimensions, and the Ultimate Quest for the Frontiers of Reality, ISBN 978-0470613528. p. 88
↑ MOURÃO, Ronaldo Rogerio de Freitas Explicando a Teoria da Relatividade
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a b Bruno, Giordano. Dell'Infinito
↑ Spectator, edição de 27 de maio de 1712, p.331 [em linha]
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↑ Max Bernhard Weinsten, Welt- und Lebensanschauungen, Hervorgegangen aus Religion, Philosophie und Naturerkenntnis ("World and Life Views, Emerging From Religion, Philosophy and Nature") (1910), p. 321: "Also darf man vielleicht glauben, daß das ganze System eine Erhebung des Physischen aus seiner Natur in das Göttliche ist oder eine Durchstrahlung des Physischen durch das Göttliche; beides eine Art Pandeismus. Und so zeigt sich auch der Begriff Gottes von dem des Universums nicht getrennt; Gott ist naturierende Natur, Weltseele, Weltkraft. Da Bruno durchaus ablehnt, gegen die Religion zu lehren, so hat man solche Angaben wohl umgekehrt zu verstehen: Weltkraft, Weltseele, naturierende Natur, Universum sind in Gott. Gott ist Kraft der Weltkraft, Seele der Weltseele, Natur der Natur, Eins des Universums. Bruno spricht ja auch von mehreren Teilen der universellen Vernunft, des Urvermögens und der Urwirklichkeit. Und damit hängt zusammen, daß für ihn die Welt unendlich ist und ohne Anfang und Ende; sie ist in demselben Sinne allumfassend wie Gott. Aber nicht ganz wie Gott. Gott sei in allem und im einzelnen allumfassend, die Welt jedoch wohl in allem, aber nicht im einzelnen, da sie ja Teile in sich zuläßt."
↑ Review of Welt- und Lebensanschauungen, Hervorgegangen aus Religion, Philosophie und Naturerkenntnis ("World and Life Views, Emerging From Religion, Philosophy and Nature") in Emil Schürer, Adolf von Harnack, editors, Theologische Literaturzeitung ("Theological Literature Journal"), Volume 35, column 827 (1910): "Dem Verfasser hat anscheinend die Einteilung: religiöse, rationale und naturwissenschaftlich fundierte Weltanschauungen vorgeschwebt; er hat sie dann aber seinem Material gegenüber schwer durchführbar gefunden und durch die mitgeteilte ersetzt, die das Prinzip der Einteilung nur noch dunkel durchschimmern läßt. Damit hängt wohl auch das vom Verfasser gebildete unschöne griechisch-lateinische Mischwort des 'Pandeismus' zusammen. Nach S. 228 versteht er darunter im Unterschied von dem mehr metaphysisch gearteten Pantheismus einen 'gesteigerten und vereinheitlichten Animismus', also eine populäre Art religiöser Weltdeutung. Prhagt man lieh dies ein, so erstaunt man über die weite Ausdehnung, die dem Begriff in der Folge gegeben wird. Nach S. 284 ist Scotus Erigena ein ganzer, nach S. 300 Anselm von Canterbury ein 'halber Pandeist'; aber auch bei Nikolaus Cusanus und Giordano Bruno, ja selbst bei Mendelssohn und Lessing wird eine Art von Pandeismus gefunden (S. 306. 321. 346.)." Translation: "The author apparently intended to divide up religious, rational and scientifically based philosophies, but found his material overwhelming, resulting in an effort that can shine through the principle of classification only darkly. This probably is also the source of the unsightly Greek-Latin compound word, 'Pandeism.' At page 228, he understands the difference from the more metaphysical kind of pantheism, an enhanced unified animism that is a popular religious worldview. In remembering this borrowing, we were struck by the vast expanse given the term. According to page 284, Scotus Erigena is one entirely, at p. 300 Anselm of Canterbury is 'half Pandeist'; but also Nicholas of Cusa and Giordano Bruno, and even in Mendelssohn and Lessing a kind of Pandeism is found (p. 306 321 346.)".
↑ Powell, Corey S., "Defending Giordano Bruno: A Response from the Co-Writer of 'Cosmos', Discover, March 13, 2014: "Bruno imagines all planets and stars having souls (part of what he means by them all having the same "composition"), and he uses his cosmology as a tool for advancing an animist or Pandeist theology."
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Bibliografia
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(em francês) Arkan Simaan, Science et pseudo-sciences, n° 288, outubro 2009, Giordano Bruno : de l’errance au bûcher,
(em italiano) Felice Tocco, Le Opere Latine di Giordano Bruno Esposte e Confrontate com le Italiane, Firenze, 1889, digitalização pelo The Warburg Institute, formato PDF.
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O Wikiquote possui citações de ou sobre: Giordano Bruno
Ligações externas
Ferrater Mora, J. Diccionario de Filosofía. "Bruno, Giordano (Filippo)" (em castelhano)
Istituto Italiano per gli Studi Filosofici. Centro Internazionale di Studi Bruniani "Giovanni Aquilecchia"(CISB) (em inglês ou italiano)
Giordano Bruno.info (em inglês, italiano e espanhol)
Site sobre a vida e obra de Giordano Bruno. Contem obras do filósofo para download (em italiano).
Antroposmoderno. Giordano Bruno (em português)
Obras de Giordano Bruno: textos disponíveis online
Santos, Patricia Lessa. No caldeirão dos bruxos : a filosofia herética de Giordano Bruno. UNICAMP, 1997.
Variações
# A teoria crítica da Cultura de Thedor Adorno. Lucas Fiaschetti Estevez (A Terra é redonda)
# Marx e a financeirização: o exuberante capital fictício. Renildo Souza (A Terra é redonda)
# 88 anos do assassinato de García Lorca (Opera Mundi)
# A extrema direita leu Gramsci e entendeu (Jornalistas Livres)
# Os símbolos da branquitude em análise (Piauí)
# Honoré de Balzac (1799-1850)
Balzac: a obra-prima ignorada
Ronaldo Tadeu de Souza, A Terra é redonda
De todos os escritores que compõem o assim chamado cânone da literatura ocidental nenhum possui obra tão extensa como Honoré de Balzac. Sua Comédia Humana ultrapassa os 10 volumes (são um total de 17 na consagrada edição da editora Globo), chegando aproximadamente às mais de 8 mil páginas. Ele sem dúvida expressou pelo enredo e pela historicidade dos temas que tratou aspectos constitutivos da era e da sociedade pós-mundo feudal (continue a leitura)
1.
Não é fortuito que o historiador marxista Eric Hobsbawn afirma que após a Revolução Francesa (a mais importantes das revoluções burgueses) entravamos no mundo de Honoré de Balzac. Os sonhos e desejos ingênuos de Luciano Rubempré, a ambição sobre-humana das filhas de Goriot, a essência calculista e monetária de Grandet são momentos que conformaram a espiritualidade de uma sociedade governada pelo realismo frio e sem alma do dinheiro – do capital. (
Karl Marx foi um apaixonado leitor do autor de As Ilusões Perdidas; e Friedrich Engels ter dito que ele revelou mais sobre a sociedade francesa de seu tempo que todos os sociólogos, pensadores políticos e historiadores do mundo. De modo que, os grandes trabalhos de Honoré de Balzac são conhecidos do público letrado (brasileiro); seus significados no contexto do romance histórico acerca da existência humana na aurora de um tempo em que tudo o é sólido desmancha no ar, estão registrados ao longo dos anos por diversos críticos literários, ensaístas, filósofos, sociólogos da cultura e pesquisadores e pesquisadoras das letras.
Entretanto, uma parte da grandiosa Comédia Humana ainda está para ser desterrada pelos estudiosos. Ao desvelamento das relações sociais do mundo pós-1789 em todas as suas variações – nas cenas da vida privada, nas cenas da vida provinciana, nas cenas da vida política, nas cenas da vida parisiense, nas cenas da vida rural e nas cenas da vida militar –, Honoré de Balzac incorporou pequenos textos (também ficcionais) que tinham como preocupação questões envolvendo o fazer artístico, as tensões da vivência por que passam os artistas (e os escritores) diante da necessidade de sobrevivência e a indagação sobre o lugar absoluto ou não, pelo contrário às vezes, do talento original e criativo nas artes.
Em Estudos Filosóficos, o volume 15 da Comédia Humana, encontramos o pequeno ensaio-conto, anedota-crítica de arte ou ainda breve tratado sobre estética-prosa histórica (o texto é de difícil classificação), A obra-prima ignorada. Assim; a questão é: qual é a obra (e seu significado) A obra-prima ignorada de Honoré de Balzac? No que segue proponho uma breve abordagem, de modo a interpretar referido conto com vistas a argumentar que se prefigura em A obra-prima ignorada os traços e os aspectos fundadores da arte moderna (de vanguarda).
2.
Na pergunta qual é a obra de A obra-prima ignorada é possível se desdobrar uma série de outras interrogações; bem como erigir formulações e configurar hipóteses de trabalho. Ao menos três considerações nos interessam ainda que não abordaremos duas delas diretamente no presente ensaio. Quais sejam: primeiro, interessa observar que é um texto que se exercita na fronteira entre arte e literatura, aqui importa dizer que é sempre complexo abordar de modo articulado, em interação, essas duas esferas da estética, o próprio texto em si é sobre artes plásticas (pintura).
Mas Balzac enquanto tal é um escritor, e um dos grandes romancistas da história da literatura como frisamos há pouco, e vez por outra ele distingue em A obra-prima ignorada a arte como pintura e a poética (subentendida) como proceder literário; deriva-se dessa peculiaridade a segunda consideração articulada em dois momentos (uma no âmbito da literatura e outra acerca da arte moderna).
O conto é sugestivo para problematizarmos algumas observações de um dos mais influentes crítico literário do século XX, George Lukács, na medida em que ele toma a obra de Balzac como uma das representantes do romance histórico-realista, e isso, em contraposição aos romances modernos, particularmente os romances de James Joyce, de Franz Kafka, e de Marcel Proust, três dos principais autores das inovações formais do modernismo literário.
A obra-prima ignorada não é um texto literariamente realista e histórico, pois o próprio enredo construído por Balzac – o sentido da arte para Frenhofer – está, de certo modo, distante de ser qualificado a partir daquelas duas características (histórico e realista), ele está, por assim dizer, mais próximo, o personagem, de um esteta a autoexplicitar a arte (e a literatura) modernista, nos termos expressos por Giulio Carlo Argan (1987); a terceira formulação balzaquiana está contida na imanência da questão que aqui apresentei, em sentido forte – qual obra, seu significado, sua poeticidade, sua forma, é a obra presente em A obra-prima ignorada? Vejamos.
A obra-prima ignorada foi publicada em primeira versão no ano de 1831. Uma nova versão apareceu em 1837, nela Balzac fez alterações variadas, sobretudo, na descrição do ateliê de Porbus (Lagos, 2014). Três personagens compõem a narrativa; são eles Porbus o mestre-pintor, Poussin o noviço que deseja aprender as técnicas da pintura para se tornar grande artista e por fim o exótico Frenhofer – esse, supostamente é o artista par excellence.
Pois, é nessa figura mítica da Comédia Humana que Balzac irá representar os sentidos da criação (Rivero, 2004); Frenhofer exprimi as virtudes estéticas da imaginação na arte (Barolsky, 2004). Com efeito – Frenhofer irrompe na cena inicial de A obra-prima ignorada dessa maneira: “um velho subiu a escada” (Balzac, 2003 [1831], p. 15). Balzac representa o idoso no estilo histórico-preciso, no detalhismo da caracterização do romance do século XIX, na distribuição equilibrada entre o lugar externo da ação que está latente e a fisionomia romântica.
O personagem Frenhofer já dá andamento problemático no enredo balzaquiano sobre o cerne do fazer artístico, pois ele é visto com “indumentária” estranha; rosto “diabólico” (profano); cor dos olhos impressionistas de um “verde” inusitado; cabeça original talhada com arabescos; cintilações “fantásticas” vinda da escada presentificam esse velho místico – era como se fosse a (parodia) de “uma tela de Rembrandt” (Ibidem, p. 16). Segue-se a fabulação; estão eles – Poussin e Frenhofer – no ateliê de Porbus; é ali que a matéria adquire forma de arte. É nesse intervalo da existência onde o autêntico se funda; o jovem Poussin experimenta o deslumbramento dos “pintores natos ao verem [a] primeira” (Ibidem) sala na qual a dimensão da arte está partilhada em todos os lugares, momentos e disposições espirituais.
O diálogo inicia-se. Maria do Egito é o quadro que incita a conversação; feita para o jogo (utilitário) dos Medicis ela se tornou objeto de troca no momento de dificuldade da família: Maria Médicis vendeu seu homônimo pictural “quando se viu na miséria” (Balzac, 2003 [1831], p.18) e desde então o quadro era reproduzido. É o significado da arte, entretanto, que está sendo debatido.
Indagado sobre se gostou ou não da Maria do Egito de Poussin, Frenhofer é categórico, a santa não estava “mal-feita” (Ibidem); ocorre que o quadro (o original e a reprodução) não possui vida – “sua santa […] não tem vida” (Ibidem) –, desenhar um rosto perfeito, imitar corretamente as regras da “anatomia” (Ibidem) não é a forma-da-arte. Seguir as normas da boa pintura, sustenta Frenhofer, não é suficiente para erguer a linguagem poética em um quadro. Trata-se, isto sim, de subjetividade – de paixão heroica (Barolsky, 2004) para erigir a arte.
De delírio por fazer o hodierno estético, Frenhofer quer o “frenesi criativo” (Rivero, 2004). Para ele não é originar artificialismos bem construídos, geometricamente raciocinados, já que o objetivo do velho, se é que há algum, está equidistante da “boa perspectiva […], [de exprimir] as cores do céu corretamente” (Balzac, 2003 [1831], p. 19); era ele um precursor do impressionismo? O mestre do mestre de Poussin é impiedoso com a Maria do Egito; na verdade a lição sobre arte de Frenhofer é dada, indiretamente, ao correto e ético Porbus.
De personalidade marmorificada – lisa, esculpida à perfeição, branca – ele não compreendia a posição do velho Frenhofer. Ora, esse deseja que a vida, que o caráter oposto ao destino (Benjamin, 2011) soprasse na alma do quadro – e consequentemente de Porbus e do jovem Poussin. Para ele, sem que o pintor, o poeta, o músico transfigure seu mundo próprio e autêntico para a matéria em toda a sua completude estarão longe de entregar à humanidade uma obra-prima.
Ingênuo o “jovem mal continha o desejo de agredir” (Balzac, 2003 [1831], p. 19) Frenhofer por desprezar o espelhamento rigoroso de um rosto humano feito com o pincel racional e consciente de seu mestre. O inconformismo moderado o fazia questionar como um indivíduo com aquele aspecto poderia ser tão irascível diante da Maria do Egito e de seu realizador (ou proprietário): um homem que respeita a natureza fundamental das coisas, um obediente seguidor dos costumes burgueses que é Porbus (Falkemback, 2012) não poderia estar diante de tal vilipêndio.
Após um exame mais detido da obra de Porbus, sempre na presença inconformada de Poussin, Frenhofer esboça o que seria uma obra de arte séria (Adorno, 1985). No diálogo tecido por Balzac a posição do pupilo-mestre (pupilo do velho e mestre do jovem pintor) reflete um engano social; a verdadeira arte é aquela que imita com precisão, com respeito ao delineamento externo e com parcimônia de animo a natureza. Porbus diz estudar “muito […] [o] colo nas modelos nuas [que pinta]” (Balzac, 2003 [1831], p. 21).
Sua queixa, para Frenhofer, imaginando complacência do velho, é dizer da natureza que ela esconde os “efeitos verdadeiros” (Ibidem) – daí a dificuldade e o insucesso dos pintores por vezes. Irritado com a postura tão acomodatícia, típica dos salões burgueses pós-restauração e dos artistas frequentadores deles, o antimestre como um tigre voraz exibindo as presas troveja que “a missão da arte não é copiar a natureza, porém expressá-la! Você não é um vil copista, mas um poeta!” (Ibidem, p. 21). (Um vanguardista a inventar o novo…).
Quem tenciona forjar a obra de arte, a obra prima, não deve se satisfazer apenas tomando atitude austera e rigorosa com a externalidade apreendida. (Há “pintores [que] triunfam institivamente sem conhecer [os] temas [que se quer racionalizados] da arte” (Ibidem, p. 22) – Porbus está estupefato.) Então; o que significa a arte? Frenhofer responde: é a forma (atribuída) à matéria. É transformar “o nada [em] tudo” (Ibidem, p. 24). Assim, fizeram “Ticiano e Rafael” (Ibidem) – assim não o fez o miserável utilitarista Pierre Grassou, um “espírito medíocre, metódico […], burguês” (Lago, 2014, p. 101).
Ser poeta, pintor, exige-se a disposição para experimentar a loucura da abundância e para aceitar a tentação em abarcar as circunstâncias da vida na sua extensão total; é a inclinação para intervir nas representações práticas da existência que faz surgir a uma obra de arte. Frenhofer ardente pela paixão da e ela arte arrebata a “paleta e [os] pincéis” (Balzac, 2003 [1831], p. 25); tomado de “aspiração heroica” (Barolsky, 2004, p. 51) o personagem principal do volume Estudos filosóficos da Comédia humana quer convencer esse Rubempré da pintura ainda sem ambição a negar a “fria razão [dos] burgueses” (Balzac, 2003 [1831], p. 35) – quer convencer Poussin, não Porbus, a viver a antítese da “falta de seriedade da arte […] [que expressa a pobreza do gosto burguês” (Barolsky, 2004, p. 50).
“Você é digno de uma lição, e [ainda] capaz de compreender, vou mostrar-lhe quão pouco […] [é] preciso para [realizar] […] [a obra] de arte” (Balzac, 2003 [1831] p. 25): entenderá que “as coisas grandes são simples”. O jovem Nicolas Poussin querendo provar ser um borrador de tela honesto – “sou um desconhecido, mas um borrador de tela nato que acaba de chegar a esta cidade” (Ibidem) – após a indagação com rispidez de Porbus que quis saber quem ele era, copiou o rosto de Maria do Egito; o incandescente Frenhofer é um demônio; age com rapidez, o espírito é impaciente, das mãos extasiadas gesticulam traços luminosos, a “fértil imaginação” (Ibidem, p. 26) derrama singularidade na tela.
Pequenos toques de cores são acompanhados por pinceladas disruptivas, essas forjam, junta àquelas, luzes subjetivas de espessura própria dando forma-apaixonada e forma-genuína à vivência: o gênio de Frenhofer urdiu “uma nova pintura” (Ibidem, p. 27).
Poder-se-ia continuar à exaustão esse breve ensaio. Mas tendo no horizonte os objetivos exigidos para escrever este trabalho – recoloco a questão ao qual organizei as asserções argumentativas do texto que lhes apresento; a obra da Obra-prima ignorada qual é? E seu significado? No âmbito da narrativa de Balzac é indecidível, bem como no que concerne à referência histórico-literário. É o próprio Frenhofer no enredo do romance (ou conto) que, sugestivamente, responde à nossa pergunta-método; estilizando a resolução ele diz que na “obra-prima” (Ibidem, p. 25), de A obra-prima ignorada, “apenas os iniciados [e jovens iniciantes] nos mais íntimos arcanos da arte podem descobrir […]” o que ela é; ela é aquilo que podemos chamar, na esteira das teorias estéticas de vanguarda, de arte: por oposição e negatividade aos Porbus, aos Pierres Grassous e toda modalidade de arte que prolifera como “comodity” (Barolsky, 2004, p. 51) no mundo mesmo de Balzac. E que ele explicitou de maneira inigualável ao longo da Comédia humana.
*Ronaldo Tadeu de Souza é professor no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Referência
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Marcuse: Um ensaio sobre a libertação
Prefácio do Prof. Wolfgang Leo Maar, na 1a foto ao lado, à edição brasileira do livro recém-editado de Herbert Marcuse (expandir)
A libertação referida por Herbert Marcuse é a de tornar-se livre da coação com que a sociedade capitalista a todos constrange com o objetivo primordial da acumulação de valor e suas consequências por demais conhecidas. Será que a humanidade não consegue satisfazer suas necessidades sem gerar desigualdade, miséria, opressão e barbárie? Barbárie que ocorre justamente quando os homens praticam uns com os outros a violência que lhes é imposta pela sociedade repressora em que se converteu a ordem capitalista.
Este livro tem importância dupla: política e teórica. Política, porque chega num momento muito oportuno em que demonstra sua grande atualidade: a defesa da liberdade hoje cada vez mais rara, em nexo com igualdade, solidariedade, cooperação e felicidade num outro projeto de sociedade. Nunca se falou tanto em liberdade e nunca ela foi tão descaracterizada, vilipendiada e sequestrada num mundo dominado pelo processo de acumulação capitalista, ao qual devemos servir e que não temos a liberdade de criticar e substituir. Eis o verdadeiro caminho da servidão! (continue a leitura)
O livro confronta a não-liberdade, o simulacro apresentado como liberdade, a dos (neo)liberais apoiados em Mises, Hayek, Friedman etc.
Os liberais aprisionam a liberdade como livre exploração e expropriação pela razão econômica. Impregnam mulheres e homens com a obrigação de produzir excedente e com o individualismo do culto ao mérito pessoal, numa ordem social repressora – inclusive fascista –que os apropriadores do excedente pretendem imutável. Herbert Marcuse cita o próprio Mises como exemplo, que afirma: “o capitalismo é a única ordem possível das relações sociais. […] o fascismo e todas as orientações ditatoriais semelhantes […] salvaram na atualidade a formação civilizatória européia”.[1]
Em seu prefácio e sua introdução, a obra diagnostica e denuncia, para seguir com a análise dos fundamentos e das condições da dominação vigente e revelar a praxis da libertação possível. Ao final, propõe uma nova sociedade, avessa à opressão e com liberdade, cuja dinâmica própria evita sua transfiguração em seu contrário repressivo nos termos da ideologia liberal vigente.
Além disso e igualmente importante: o livro é uma contribuição teórica fundamental, pois enriquece a reflexão filosófica, sociopolítica, econômica e cultural com a discussão dos problemas das relações com a natureza, inclusive a natureza humana, as necessidades e a sensibilidade. Herbert Marcuse procura analisar as consequências da imposição da sociedade capitalista sobre os indivíduos em termos de mudanças na “natureza humana”. A nova sensibilidade e a praxis refletem essa situação. Os conceitos universais são compreendidos como categorias sociais finamente ajustadas a interesses e a mudanças, e sua verdade precisa levar em conta essa situação.
Herbert Marcuse pensa ideais como necessidades, vinculadas aos interesses a que correspondem. Discorre sobre cultura, política, educação e filosofia pela perspectiva da crítica aliada à praxis material sensível, para driblar as armadilhas tanto do idealismo quanto do materialismo raso, com frequência embutidas nos projetos de transformação social.
Já bastante atrasada em relação à obra original de 1969, a primeira versão em língua portuguesa de An Essay on Liberation é de 1977. Apareceu numa conjuntura muito desfavorável à sua adequada compreensão no período da ditadura civil-militar instaurada por um golpe de Estado no Brasil.
É uma obra sobre política como construção de formas de sociedade, como transformação da sociedade e de modos de vida, ou seja: de mudança das relações entre o social e o individual. Refere-se menos à política como conquista e manutenção do poder institucional e de Estado, prioridade compreensível no período ditatorial. Nos anos 1970, foi lida como libelo contracultural e irracionalista, até mesmo “desbunde” apolítico.
Herbert Marcuse constituiria “estímulo ao irracionalismo, à contracultura, à ideia de culto à sensibilidade, da razão como coisa anacrônica”[2] para contaminar a esquerda da época. Em consonância com a estratégia comunista da Terceira Internacional então hegemônica, não existiu abertura à apreensão da política como (re)construção da sociedade em nova forma, como política enquanto transformação social, para além das vias do assalto e da tomada do Estado. Nada estranho num país como o Brasil, em que o Estado precedeu o estabelecimento da nação e ditou a forma capitalista da sociedade, a qual até hoje demonstra grande fragilidade institucional e organizativa; o desafio é evitar sua perene repetição com a mera mudança de mãos do Estado.
A obra passou despercebida como contribuição à discussão política, ao contrário da recepção mais favorável da primeira versão brasileira de O homem unidimensional, intitulada Ideologia da sociedade industrial, de 1967. Por outro lado, no plano propriamente acadêmico, Marcuse foi desconsiderado “por falta de rigor”.[3] Assim foi excluído do volume dedicado à Teoria Crítica na prestigiada Coleção Os Pensadores, que mobilizou os intelectuais engajados e foi muito influente naqueles anos para os estudos de filosofia, sociologia e disciplinas afins no país.
Em certo sentido, a leitura “contracultural” acertou. Herbert Marcuse vinculou a forma capitalista da sociedade à imposição sobre os indivíduos de uma dinâmica de interferência e mudança da sua “natureza humana”. Por sua vez uma política de transformação da sociedade deveria intervir para uma mudança crítica nesse estado de coisas. Para isso, os indivíduos teriam que ser “libertados” de sua “natureza humana” imposta, para serem sujeitos de uma transformação dessa natureza humana mediante hábitos e valores, por meio de outra “cultura”, que poderia assim ser vista como “contracultura”.
Mas acertou em parte: isso nada tem a ver com “irracionalismo” ou “desbunde” apolítico — ao contrário! Irracional é a forma capitalista da sociedade, ao se estruturar conforme fins impostos por uma minoria e não universalizáveis, justamente para obstruir sua transformação! A libertação, segundo Herbert Marcuse, é necessária porque “deve preceder”[4] a edificação de uma outra sociedade, “racional” pois subordinada a fins dos seus próprios integrantes e não da acumulação acelerada de capital.
Esta beneficia apenas os poucos que têm seu controle e propriedade, às custas da geração de uma sociedade atulhada de bens que são falsas necessidades. Se os indivíduos forem libertados, podem promover uma política contrária àquela em curso, que é de conservação do status quo. Podem desenvolver políticas de transformação e construir outra sociedade, coletiva e publicamente, com consciência e nova sensibilidade para as verdadeiras necessidades materiais e culturais humanas.
Herbert Marcuse foi sobretudo um pensador político centrado na dinâmica social, na perspectiva do movimento das sociedades, de sua transformação e da modificação de seus nexos com os indivíduos, com a interação entre eles e seus vínculos com a natureza. Como sustentou Theodor Adorno, “uma teoria crítica, apesar de toda experiência de coisificação e mesmo ao exteriorizar esta experiência, se orienta pela ideia da sociedade como sujeito, enquanto a sociologia aceita a coisificação”.[5] Herbert Marcuse é levado a ser um adversário do capitalismo justamente porque neste o único movimento admitido e reforçado é o da reprodução ampliada do capital; a sociedade, por sua vez, deve manter-se coisificada, imóvel, estática.
A linguagem de Herbert Marcuse atesta essa questão: ele menciona “teorias da transformação social”, “sociedade sem mudança”, “destino histórico da democracia burguesa” etc. A abordagem dinâmica da sociedade é um diferencial de Marcuse no contexto da primeira geração frankfurtiana. O prisma dinâmico já distingue sua apreensão de história da historicidade heideggeriana e constitui o cerne de Filosofia e teoria crítica, pelo qual debate o ensaio Teoria tradicional e teoria crítica de Max Horkheimer na Zeitschrift für Sozialforschung em 1937.
Esse texto é uma contribuição relevante, no qual Herbert Marcuse discute a dinâmica da “verdade” na passagem de sua forma filosófico-abstrata à função teórico-prática nas tendências sociais concretas. Nessa medida, pode-se afirmar que esse texto constituiria, vinte anos depois, o ponto de partida teórico do qual Marcuse desenvolve Um ensaio sobre a libertação, em que a verdade será discutida no plano da praxis material sensível, da libertação das imposições de uma “natureza humana”. Boa parte dos temas já está aí, articulada de modo semelhante: libertação e opressão, utopia e processo social, ideias e fatos etc.
“[…] se o desenvolvimento esboçado pela teoria não acontecer, se as forças que deveriam produzir a transformação recuassem? […]. A teoria crítica […] fala contra os fatos […]. Como a filosofia, ela opõe-se à justiça da realidade, opõe-se ao positivismo satisfeito. Entretanto, diferente da filosofia, sempre extrai seus objetivos a partir das tendências existentes do processo social. […]. Na medida em que a verdade não for realizável dentro da ordem social existente […] não fala contra, mas sim, pela verdade. O elemento utópico foi na filosofia o único elemento progressivo: […] se apegar à verdade contra todas as aparências”.[6]
“A não realização do previsto pela teoria não desabona seu conteúdo de verdade. O critério de verdade não é realista pragmático e determinante, mas social histórico e reflexionante. É preciso intervir para realizar efetivamente a “verdade” e verificar como deve-se mudar a ordem social vigente com esse objetivo. Mas “a teoria crítica não tem nada a ver com a realização de ideais, trazidos de fora para as lutas sociais. Ela reconhece nessas lutas, por um lado, a causa da liberdade, por outro, a causa da opressão e da barbárie”.[7] A mudança dessa ordem não é tarefa da filosofia, cujos conceitos têm sua verdade abstrata, que só é verdade quando não referida à realidade social vigente. Mas, por essa sua “transcendência, pode tornar-se em objeto da teoria crítica”.[8]
O interesse da teoria crítica na libertação da humanidade a vincula a determinadas verdades antigas as quais necessita preservar. Que o homem possa ser mais do que um sujeito utilizável no processo de produção da sociedade de classes, trata-se de uma convicção que vincula profundamente a teoria crítica à filosofia.[9]
Converte-se em força progressiva e subversiva ao tornar conscientes “possibilidades para as quais a situação mesma está amadurecida”.[10] Herbert Marcuse se identifica com Rousseau: “A natureza comanda todos os animais e o animal obedece. O homem sofre a mesma influência, mas se reconhece livre para ceder ou resistir”.[11] A consciência dessa liberdade indica, a partir da libertação – ou seja: a partir do povo – situações fatuais que ultrapassam as condições do presente – ou seja: as condições do soberano –tornadas anacrônicas.
Um ensaio sobre a libertação conduz essa dinâmica, apreendida no plano da razão objetiva, ao contexto das tendências históricas, decifrando nos conceitos categorias sociais e aprofundando as questões apreendidas no plano das necessidades e da sensibilidade. As aspirações universais de liberdade e solidariedade perdem seu conteúdo idealista abstrato para serem ancoradas na natureza humana como necessidades materiais e sensíveis verdadeiramente correspondentes aos homens e às mulheres.
Hoje a onipresença da questão democrática confere relevo ao que Herbert Marcuse chamou nesse livro de “sociedade repressora”.[12] Ela é precisamente o contrário do que deve ser entendido como democracia, mas que progressivamente toma conta da configuração corrente da “democracia” burguesa neoliberal. Esta forma da democracia, fruto do casamento com o capitalismo em suas metamorfoses, tornou-se “o maior obstáculo para qualquer transformação — exceto a mudança para pior. […] seu desenvolvimento regressivo, a autoconversão num Estado policial e de warfare deve ser discutida […]”.[13] É preciso libertar-se dessa forma de sociedade e de suas implicações sobre a natureza humana, sobre as interações sociais e os próprios objetivos da vida. Há libertação possível, e o livro discute suas condições de possibilidade.
A revolução como conquista do poder pelo assalto ao Estado, tal como apreendida em sua formulação clássica, é insuficiente se dela não resultam um redirecionamento no plano produtivo e uma configuração social com equidade de condições e organização pública da vida coletiva. Isto é: se a libertação não resultar em liberdade com relação à forma da sociedade. Nesse caso, instala-se um continuum sociopolítico, cuja expressão contemporânea é o mundo neoliberal e sua versão própria da racionalidade e da sensibilidade. Esse é o problema fundamental posto por Marcuse no Manifesto Libertário que é Um ensaio sobre a libertação, uma tradução perfeita da crítica e da oposição à sociedade opressora avessa em relação a tudo que não é espelho.
A sociedade burguesa capitalista contemporânea logrou por essa sua forma escapar ao que a aterrorizava: o fantasma da revolução enquanto praxis transformadora. A revolução assimilada foi aquela tomada apenas como produto, como razão subjetiva e não como envolvida em uma tendência histórica, de um processo cotidiano e persistente de mudança rumo à liberdade. A praxis da libertação é proposta por Herbert Marcuse para reativar, dar vida nova à transformação em termos em tudo análogos aos que balizavam a revolução de outrora, como razão subjetiva e objetiva, respeitadas as diferenças efetivas a serem contempladas. Em especial, a abrangência doravante totalizante do processo de valorização e os avanços no plano da produção material.
Iniciado em Filosofia e teoria crítica e desenvolvido em Um ensaio sobre a libertação, o projeto de transformação e reconstrução social baseada na praxis material sensível dirigida à construção de uma sociedade não repressora e feliz encontra, conforme o próprio Marcuse, sua formulação mais acabada em Contrarrevolução e revolta.
“O novo padrão histórico da revolução vindoura talvez esteja melhor refletido no papel desempenhado por uma nova sensibilidade […]. Esbocei essa nova dimensão em Um ensaio sobre a libertação; aqui tentarei indicar o que está em jogo, a saber, uma nova relação entre o homem e a natureza — a sua própria e a natureza externa. A transformação radical da natureza torna-se uma parte integrante da transformação radical da sociedade. Longe de ser mero fenômeno psicológico […], a nova sensibilidade é o meio em que a mudança social se converte numa necessidade individual, a mediação entre a prática política de transformar o mundo e o impulso de libertação pessoal”.[14]
Além disso, essa obra apresenta “o esforço para encontrar formas de comunicação que possam romper o domínio opressivo da linguagem e imagens que há muito se converteram num meio de dominação”,[15] ao introjetar na população valores dos dominadores e reproduzir o vigente nas consciências e nos sentidos. É a revolução cultural em um novo sentido: o das mudanças no domínio das necessidades vitais culturais, não materiais.
“O que está em jogo na revolução socialista não é meramente a ampliação da satisfação, dentro do universo existente de necessidades […] mas o rompimento com esse universo, o salto qualitativo. A revolução envolve uma transformação radical das próprias necessidades e aspirações, tanto culturais como materiais; da consciência e da sensibilidade; do processo de trabalho e do lazer. Essa transformação aparece na luta contra a fragmentação do trabalho, a necessidade e a produtividade de desempenhos estúpidos e estúpidas mercadorias, contra o indivíduo burguês aquisitivo, contra a servidão sob o disfarce da tecnologia, a privação sob o disfarce da vida boa, contra a poluição como um modo de vida. As necessidades morais e estéticas convertem-se em necessidades básicas, vitais, e impulsionam novas relações entre os sexos, entre as gerações, entre os homens e mulheres e natureza. A liberdade é entendida com raízes na satisfação dessas necessidades, que são simultaneamente sensoriais, éticas e racionais”.[16]
Necessidades – needs em inglês, Bedürfnisse em alemão – são apreendidas por Herbert Marcuse como sociais e históricas, tal como feito por Marx. Mesmo em seu famoso lema do Programa de Gotha: “de cada um conforme suas capacidades; a cada um conforme suas necessidades”, este esclarece que o próprio trabalho não é só meio, mas converte-se em uma dessas necessidades vitais.
Em Contrarrevolução e revolta, Marcuse interpreta claramente a dominação como repressão de “necessidades”. Como em Um ensaio sobre a libertação, substitui a distinção entre necessidades “falsas” e “verdadeiras” por necessidades vitais supérfluas e vitais básicas. Marx é a referência fundamental: “Marx viu no desenvolvimento e disseminação de necessidades vitais supérfluas, para além das necessidades básicas, o nível de progresso em que o capitalismo estaria maduro para a queda final: “O grande papel histórico do capital é o de criar esse trabalho excedente, trabalho supérfluo do ponto de vista do simples valor de uso, da mera subsistência e seu destino histórico está consumado tão logo, por um lado, as necessidades são desenvolvidas a tal ponto que o próprio trabalho excedente acima do necessário é necessidade universal derivada das próprias necessidades individuais; por outro lado, a laboriosidade universal mediante a estrita disciplina do capital, pela qual passaram sucessivas gerações, é desenvolvida como propriedade universal da nova geração”.[17] A localização da revolução é aquela fase em que a satisfação de necessidades básicas gera necessidades que transcendem a sociedade do Estado capitalista e do Estado socialista. No desenvolvimento dessas necessidades estão os impulsos radicalmente novos da revolução.[18]
A satisfação dessas necessidades deve orientar-se conscientemente pela autonomia, pela autodeterminação de homens e mulheres livres. Querem construir sua vida social pela satisfação das suas necessidades vitais básicas, materiais e culturais, mas conforme seus próprios desígnios, como sujeitos de sua história e não determinados de modo heterônomo pela produção capitalista.
Como “animal político”, para Marx, o homem é um animal social. “O ser humano é no sentido mais literal, um ζῷον πoλιτικόν (zoon politikon), não apenas um animal social, mas também um animal que somente pode isolar-se em sociedade”.[19] Isto é, a vida social é uma necessidade humana. Herbert Marcuse retoma precisamente esse tema ao explicitar a libertação: o homem é um animal social dotado de liberdade. “O ser humano é e continuará sendo um animal, mas um animal que satisfaz e preserva o seu ser-animal tornando-o parte de seu eu, de sua liberdade como Sujeito”.[20] A forma de sociedade em que o homem se isola deve fundamentar-se na liberdade exercida plenamente por seus sujeitos emancipados conforme seus próprios interesses e suas necessidades vitais básicas. Após despedaçar o véu ideológico, é preciso derrubar a estrutura do mundo que o sustenta. Individualizar-se livremente, com o domínio sobre as imposições da sociedade.
O fetichismo do mundo das mercadorias, que parece tornar-se mais denso dia a dia, só pode ser destruído por homens e mulheres que despedaçaram o véu tecnológico e ideológico que oculta o que está acontecendo, que encobre a realidade insana do todo – homens e mulheres que se tornaram livres para desenvolver suas próprias necessidades, para construir, em solidariedade, seu próprio mundo.[21]
2.
Se há justificativa para uma retomada do interesse pelo pensamento de Herbert Marcuse, o livro em nossas mãos revela bem o porquê. Persistem todos os problemas denunciados por Marcuse num passado que ameaça deter o tempo e quedar-se como único presente. Permanecem também suas análises e propostas de transformação e emancipação para que haja um futuro para o presente.
Elaborada há meio século, essa obra político-filosófica procura explicar e traduzir o “tempo” que atravessamos, em que permanente e inevitavelmente somos objeto, mas em que, ao mesmo tempo não conseguimos deixar de ser sujeito, nem que seja sujeito sujeitado, sofrido e anulado. A rigor, a dualidade sujeito-objeto pouco acrescenta ao enfrentamento dos fatos, embora necessária à sua compreensão adequada.
Quase tudo já se encontra presente: mesmo muito do que ainda nem existia concreta e plenamente quando foi escrito este livro desfila por suas páginas. Ele foi finalizado ainda antes de ocorrerem os famosos eventos de maio de 1968, mas parece até que foi resultado desses acontecimentos que revolveram o mundo, tal a sintonia de Herbert Marcuse com o espírito de seu tempo. O mesmo vale para a sociedade neoliberal: ela engatinhava durante a redação da obra, mas sua ideologia do desempenho individualista já é contemplada em suas análises.
Não há motivo para espanto. Em que pesem os avanços que produzimos para a sobrevivência da espécie, o mundo em que vivemos não mudou nos últimos tempos – desde a Segunda Guerra Mundial – salvo para pior em tudo o que afeta o nosso controle sobre o que se passa conosco. Assim vivenciamos de maneira progressiva os efeitos da dominação da acumulação capitalista sobre a totalidade das dimensões da vida na forma neoliberal de sociedade. Hoje todos são dependentes e, de algum modo, reprimidos num mundo cujo objetivo se desumaniza aceleradamente rumo à sujeição material global ao valor pelas mais diversas formas, cuja consequência mais macabra é a desigualdade gritante. Ao mesmo tempo, a política “capitalista” se concentra no congelamento das forças dinâmicas da sociedade para evitar qualquer mudança, o que se concretiza como ofensiva antidemocrática. Como resultado, espraia-se uma ansiedade geral por uma transformação bem como uma disposição ao protesto e à intervenção.
Herbert Marcuse decifra o mundo como uma sequência de condições e suas implicações. É um mestre da exposição da dinâmica do capitalismo, seja ao desvendar o lado sombrio da voracidade da acumulação acelerada do valor onipresente a corroer a humanidade, seja ao apontar o horizonte iluminador espraiado do experimento de libertação, cujo esboço apresenta como prática e arte de transformação ancorada nesse mundo. Por toda parte, encontram-se indícios disso, sinais testemunhados na linguagem utilizada, criativa e precisa, como, por exemplo, na multiplicidade de adjetivos e qualificações finamente selecionados que desfilam junto a termos como sociedade, democracia, necessidades etc.
Sobretudo neste livro Herbert Marcuse preconiza a relevância tanto do que desde sempre é opressivo ou do que é um novo mal, conforme o conhecido lema benjaminiano-brechtiano, quanto também do que é novo e bom, libertador. Para resumir: procura ver como um desafio a esperança na desesperança, ao procurar juntar crítica e praxis, ao mesclar a nova sensibilidade com a disciplina intelectual e a organização política. Esse nexo é um dos marcos de sua obra desde a publicação de Filosofia e teoria crítica, onde, como vimos, a praxis se apresenta, inclusive, quando as previsões da teoria crítica não ocorrem e cabe realizar as tendências sociais que as realizem.
Este é um livro sobre democracia. Democracia que não se sustenta por si: depende de subjetividades democráticas. O capitalismo a fundamentar a forma democrática da sociedade em vigor, afeta fortemente os sujeitos, submetidos aos ditames da ideologia do desempenho produtivista e da meritocracia no próprio plano da natureza humana. Por isso a sociedade vigente é uma “pseudodemocracia”[22] ou uma ordem “semidemocrática”.[23]
O livro de Herbert Marcuse discute a consciência, a crítica e a praxis alternativa a esse estado. Eis uma das grandes contribuições dessa obra entre nós. Vem a ser um antídoto ao individualismo extremo e à racionalidade do mérito competitivo, impostos às pessoas e sustentáculos da desumanidade capitalista como racionalidade e sensibilidade nos moldes vigentes. Por toda parte, observa-se a construção de uma forma repressora de democracia. As pessoas acabam convertidas em engrenagens na reprodução desse vigente.
Por exemplo: a maioria dos moradores da periferia da cidade de São Paulo acredita que os benefícios da sociedade do bem-estar, como o acesso à educação, à saúde e à habitação, não se desenvolvem no contexto de políticas públicas no âmbito institucional e do Estado, mas constituem resultado exclusivo de seu próprio mérito individual, do esforço e interesse imediato do seu desempenho no trabalho nas condições existentes.[24] Há um forte apelo liberal em curso, com o empreendedorismo individualista e uma oposição às políticas sociais universais e à justiça social equitativa.
Essa consciência individual da meritocracia e das saídas privadas resulta da obstrução da consciência coletiva e de classe, no plano de uma reconstrução da sociedade de acordo com os interesses dominantes vigentes. Ela constitui uma intervenção na natureza humana, gerando a necessidade de produzir trabalho excedente e obstruindo a apreensão da necessidade da vida social e coletiva. O resultado é a formação de massas a partir de indivíduos atomizados, mantidos longe de quaisquer representações vinculadas à vivência comum, como cooperação e solidariedade.
O interesse próprio, individual e aparentemente imediato, a rigor, é mediato e abstrato, imposto por igual a todos na esfera produtiva e, por essa via, aberto à manipulação, impedindo a autonomia. Esse interesse individual abstrato impede a autonomia que, apoiada numa “nova sensibilidade”, pode facultar a percepção da desigualdade de oportunidades no sistema produtivo capitalista vigente.
É preciso pensar em “novas formas de emancipação […]. Em primeiro lugar a negação: liberdade das determinações econômicas […] que impõem formas de luta pela existência que já são obsoletas”.[25] A defesa do princípio do desempenho competitivo, obsoleto economicamente, constitui um comportamento que reproduz o estado estabelecido. Tal comportamento deve ser diferenciado de comportamentos realmente emancipatórios. Protestos e rebeliões nessa direção não são espontâneos, mas apoiados na compreensão e praxis de potenciais de libertação presentes, embora obstruídos na sociedade vigente.
Assim cabe “vincular a formação política com a imaginação”:[26] a crítica radical do princípio do desempenho mediante os potenciais de libertação da cooperação e da solidariedade desenvolvidos na própria sociedade do capitalismo desenvolvido. Aqui existe a relação necessária com o outro, para fora do individualismo da subjetividade produtivista. Afinal, como visto antes, o ser humano é um animal que somente pode individualizar-se em sociedade, com os outros.
A autonomia e a liberdade não podem ser mera implementação de ideais, mas devem sustentar-se em ensaios de libertação de interesses comuns e coletivos que levem em conta as condições em sociedade que facultam a emancipação. Suas condições sociais são as forças que remetem a uma “nova racionalidade” baseada em uma esfera pública de discussão e decisão, para além do critério da produtividade econômica em direção ao bem comum. Remetem também a uma “nova sensibilidade” apta à percepção da solidariedade e da cooperação ativas, para além da mera receptividade em relação ao existente. São potencialmente existentes, embora impedidas socialmente pelos interesses dominantes.
A libertação se expressa em múltiplas vozes e em dimensões plurais, de classe, de raça, de gênero, culturais, identitárias etc., conforme for vinculada a conflitos efetivamente presentes ou mesmo potenciais. Isso garantiria uma racionalidade objetiva, como tendência histórica que é uma resposta a Habermas, que critica, em Marcuse, uma mediação “estritamente subjetiva entre teoria e prática”.[27]
3.
Este é um livro sobre a liberdade. A libertação para a liberdade. Só é possível referir-se a ela em sociedade como um “impulso subversivo”.[28] A consciência dessa liberdade significa a possibilidade da mudança. Libertação para novas relações inter-humanas e entre a humanidade e a natureza, não baseadas na acumulação e expropriação do excedente.[29]
A liberdade pode ser um potente meio de dominação. Talvez seja essa a feição mais desconcertante e impactante da sociedade burguesa-liberal contemporânea: a voluntária e aparentemente espontânea, a livre aceitação e sujeição, a autoinculpável submissão ao que nela se apresenta como opressivo “necessário”. Esse é o fulcro da famosa dialética do esclarecimento.
Herbert Marcuse não atribui essa situação ao mau uso ou ao uso deturpado da liberdade e nem tão somente a um universo repressor decorrente dos meios de comunicação de massa. Para ele, trata-se do jugo opressivo de uma sociedade marcada pelo predomínio de necessidades que se tornaram necessidades dos próprios indivíduos, de sua “natureza humana” e que pré-condicionam – como uma “segunda natureza” –seu comportamento com um conjunto de satisfações repressivas. Nesses termos, avança a principal argumentação em O homem unidimensional, com o diagnóstico e a exposição da complexa totalidade de uma “sociedade repressiva”.
Para expor a originalidade de Marcuse, cabe enfatizar que Adorno e Horkheimer já desqualificavam a falsa liberdade na sociedade vigente ao afirmarem que “a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa”.[30] Pouco à frente, no segmento “Elementos de anti-semitismo”, assinalaram ainda em referência à competição ideológica:
Quanto mais louco o antagonismo, mais rígidos os blocos. É só quando a total identificação com essas potências monstruosas é impressa nas pessoas concernidas como uma segunda natureza e quando todos os poros da consciência são tapados as massas são levadas ao estado de absoluta apatia […]. Quando ainda se deixa uma aparência de decisão ao indivíduo, esta já se encontra essencialmente predeterminada. A incompatibilidade das ideologias, trombeteada pelos políticos dos dois blocos, não passa ela própria de ideologia de uma cega constelação de poder.[31]
Eles atribuem essa situação sobretudo aos efeitos da indústria cultural e da “perda total do pensamento” exemplificada na “mentalidade do ticket”.[32] Aqui se revela a importância do complemento marcuseano como avanço em relação à análise da Dialética do esclarecimento. Para Herbert Marcuse, a própria organização funcional da sociedade repressiva, com suas práticas e costumes de individualização e isolamento não cooperativo, impõe como condição objetiva a consequência pretendida, isto é, o que poderá ser e o que por fim é escolhido pelos indivíduos como uma “necessidade” que sua “liberdade” determina.
O traço distintivo da sociedade industrial avançada é sua capacidade efetiva de sufocar aquelas necessidades que demandam libertação – libertação também daquilo que é tolerável, gratificante e confortável – enquanto sustenta e absolve o poder destrutivo e a função repressiva da sociedade afluente. Aqui, os controles sociais exigem a necessidade irresistível de produção e consumo de supérfluos; a necessidade de trabalho imbecilizante onde isso não é mais necessário; a necessidade de modos de relaxamento que aliviam e prolongam essa imbecilização; a necessidade de manter liberdades enganosas como a livre concorrência com preços administrados, uma imprensa livre que se autocensura, a livre escolha entre marcas idênticas e acessórios inúteis.[33]
Em Contrarrevolução e revolta, essa questão é diretamente remetida a Marx e sua exposição do “trabalho excedente”, como visto anteriormente. Um trabalho alienante e imbecilizante justificável porque, por determinado tempo, seria necessário à produção da subsistência material e cultural. Onde já não existe motivo para o “trabalho imbecilizante”, a necessidade dele é falsa. Seu verdadeiro conteúdo é repressivo: manter o indivíduo sob o jugo coercitivo da imposição ao trabalho opressor, explorado em seu mais valor, como se fosse necessário à geração e acumulação do valor essencial à reprodução da sociedade burguesa capitalista contemporânea.
São necessidades repressivas de que os indivíduos não têm consciência, pois eles se identificam com a existência que lhes é imposta a partir desse todo social: as necessidades perfazem um contexto racional com que se obstrui qualquer possível razão crítica de um pensamento negativo. Sob esse jugo, os homens são livres para realizar a satisfação das necessidades. Eis o mecanismo de imunização frente à falsidade, mediante o qual toda oposição é silenciada e reconciliada com a liberdade na sociedade em sua forma presente.
Falar em liberdade requer referir-se a esse contexto social repressivo. É um nexo dinâmico: na toada atual, o destino histórico da totalidade social vigente não será uma sociedade livre, mas sua resiliente reprodução como sociedade repressiva.
Esse é o motivo principal que leva Herbert Marcuse a excluir a menção direta à liberdade no próprio título da obra em nossas mãos. Título por si só notável: para começar, refere-se a ensaio, mas o sentido aqui não é um gênero de prosa filosófica. Ensaio nesse título significa o que precede uma realização e é necessário para que ela ocorra. É um experimento, um projeto esboçado do que ainda é possibilidade, potência. Um teste experimental a abrir, esclarecer e animar perspectivas realizáveis, a serem repetidas para viabilizarem sua execução na prática efetiva e objetiva.
Liberdade é o que deve resultar desse exercício, do processo de libertação. Esse processo é a mediação para alcançar a liberdade. Não tem a ver com algo ideal, abstrato, disponível de modo imediato e a ser efetivado, mas com a realização de uma prática diária – melhor: de uma práxis – concreta. Assim justifica-se a escolha de libertação.
Herbert Marcuse certamente se inspirou em Marx e Engels, que em A Ideologia alemã esclareceram: “O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento resultam dos pressupostos atualmente existentes”.[34]
A libertação, como processo de reconfiguração geral do estado de coisas vigente, ocupa a posição pertencente ao comunismo na época do Manifesto comunista: fantasma, espectro a rondar como assustador prenúncio imanente do seu fim, a sociedade instalada, repressora em todas as suas dimensões e que se toma como normal e eterna.
4.
Este é um livro sobre política. Política como construção e reprodução de formas de sociedade, como condição social de dominação ou de libertação. A condição para a dominação atual é a organização social sustentada na necessidade do trabalho excedente. É a base social da exploração que, como “princípio de realidade”, penetra o mundo como um todo gerando uma sociedade repressora. O desafio é pensar sobre política pelo prisma de outro “princípio de realidade”, não baseado em necessidades vinculadas à perpetuação do vigente.
Nos anos sessenta do século passado, Herbert Marcuse escreveu uma tríade de livros de conteúdo político explícito, com forte unidade entre si e com grande repercussão: O homem unidimensional, 1964; Um ensaio sobre a libertação, 1969 e Contrarrevolução e revolta, 1972.
Uma experiência política histórica importante e duradoura, com consequências marcantes para a atualidade, caracterizou esse período no que se refere à configuração da política. Foi o desenvolvimento, célere a partir de 1960, da chamada “Nova Esquerda”. Refere-se ao movimento de transição de intervenções sustentadas em apoio à luta de classes praticada sobretudo no contexto estatal como eixo primordial da política, para ações baseadas em protesto ou resistência sustentadas e realizadas de modo plural mas vinculadas a interesses vitais no próprio âmbito social.
A primazia das ações, com o operariado como sujeito principal praticamente exclusivo e até então centradas no plano institucional e do Estado, desloca-se no contexto da sociedade como um todo. Volta-se para uma ampliação na percepção do conjunto dos alienados e dominados pelo modo de produção capitalista, para a organização dos seus interesses e a funcionalidade de suas relações.
Oskar Negt resume a questão em Sessenta e oito. Intelectuais políticos e poder: “No mais tardar em meados dos anos sessenta (do século anterior) se rompe o universo de ações definidas institucionalmente e orientadas em sua essência a macro organizações de mediação estatal […]. A palavra “política” se vincula a uma reivindicação emancipatória, orientada à implementação de interesses vitais dos humanos. […] sua substância se desconecta da fixação estatal para retomar a elaboração da vida na comunidade presente no sentido originário do termo política […]”.[35]
Com a ruptura do nexo primordial da política com a conquista e manutenção do poder, configura-se uma nova forma da ética da responsabilidade, que faculta uma “apreensão moralmente enriquecida”[36] do poder e da política.
“O que é esquerda doravante já não pode ser um conjunto de intenções desprovidas de conteúdo, mas deve expressar o necessário para encontrar saídas humanas para as crises contemporâneas e ajudar na geração de um estado racional de ordenamento comum […]. A preocupação com a essência do comum, com esboços e planos para uma economia que substitua o poder onipotente da racionalidade econômico empresarial – essa seria a direção de questionamentos que poderiam ser chamados genuinamente de esquerda”.[37]
Um ensaio sobre a libertação reflete diretamente esse posicionamento, marca do movimento de 1968. Tendo em vista a desigualdade social crescente no capitalismo contemporâneo, a obra tem grande atualidade. Mantém sua força como denúncia, reflexão e proposição de transformação de uma realidade efetiva de dominação não só consentida, mas de sujeição voluntária e ativa no contexto vigente.
Para Herbert Marcuse, o movimento foi exitoso: “1968 mudou as coisas. Nossa sociedade já não é a mesma. Há uma dupla tendência: a organização da contrarrevolução e o enfraquecimento interno da integração social”.[38] Em decorrência, abriram-se possibilidades de ação: enfrentar a contrarrevolução e aproveitar a debilitada integração social capitalista.
Nesse sentido, o livro ecoa sobretudo duas das insígnias da época dos levantes de maio de 1968: (i) denunciar e combater a “repressão”, donde a centralidade do tema da “sociedade repressiva”; (ii) afrontar o “princípio do desempenho burguês”, característico da continuidade do mundo em sua forma presente, propugnando por uma revolução “cultural”.
Aos rebeldes, as duas questões apareciam como relacionadas: a continuidade do universo social repressivo se vinculava fortemente à eficiência laboral alienante.
Por outro lado, a libertação na “sociedade repressora”, como Herbert Marcuse denomina a forma social vigente,[39] instala-se a partir da realização de um “princípio de realidade” qualitativamente novo, para além daquele em vigor. Aqui se encontra uma diferença com Eros e civilização, onde Herbert Marcuse se posicionava pelo “princípio do prazer” ou da fruição, para além do “princípio de realidade”. Como Marx,[40] Marcuse considerava ser impossível evitar completamente a realidade do trabalho penoso e não prazeroso para o “homem socializado”. Nessa medida, no novo “princípio de realidade”, a emancipação não seria vinculada à ausência da labuta, mas à recusa do controle cego do capital sobre ela. A liberdade seria a regulação racional com controle comum, mediante esforço mínimo e respeito à natureza humana.
Nesse sentido vale lembrar que “O combate ao continuum exige a ruptura com a forma tradicional da política. As lógicas da revolta e da revolução são distintas; a luta pelo poder não consegue liberar as forças de libertação no capitalismo tardio; a grande transformação já não é pensável como assalto ao palácio de inverno — a luta pelo poder reduz libertação a um problema técnico, plano em que os dominantes sempre serão superiores. Como Marcuse deixou claro, trata-se da construção de um novo princípio de realidade, em que a técnica deixe de ser fim em si mesmo para se tornar meio para os homens. A oposição romântica à técnica já não tem lugar no mundo além do princípio de realidade vigente”.[41]
O princípio de realidade vigente já não é necessário, mas permanece como resto de um modo de produção imposto, como necessidade. Herbert Marcuse aqui se identifica com Adorno: a fome já não seria uma carência decorrente do alto incremento populacional, pois o mundo produz o suficiente para alimentar toda a sua população. Se mesmo assim a fome existe, essa miséria é socialmente reproduzida no plano dos nexos societários necessários, como “falsas” necessidades, para a perpetuação da ordem vigente conforme os interesses dos detentores da acumulação capitalista.
“A fome perdura em continentes inteiros embora pudesse ser abolida no que dependesse das condições técnicas para tanto, justamente por isso ninguém consegue ser realmente feliz com a prosperidade. […] a humanidade não se permite uma satisfação visivelmente paga às custas da miséria da maioria”.[42]
É preciso mudar a forma de sociedade em que a fome persiste. Assim como a fome já não precisaria existir, também o princípio do desempenho opressor do trabalho excedente gerador de mais valor e da acumulação resultante, outrora explicado no contexto de uma produção necessária à humanidade, já não se justifica para o incremento necessário da produção de riquezas a beneficiarem a humanidade.
Quando apareceu Eros e civilização, a crítica ao princípio do desempenho ainda significava a redução da produção industrial de bens de consumo e, portanto, exigia uma educação cultural anticonsumista. Se bem sucedida, ela levaria à substituição do princípio de realidade pelo princípio do prazer. Mas, a partir dos anos setenta do século passado, a jornada de trabalho pôde ser reduzida drasticamente, sem perdas no resultado da produção. Hoje há a necessidade de uma jornada muito reduzida.
Herbert Marcuse mudou o foco: concentra-se na geração da “necessidade” da eficiência produtiva como elemento da “natureza humana” reprodutora do sistema de acumulação do valor. A existência da eficiência e de suas “recompensas” seria uma “necessidade” com sua “satisfação”. Se vincula à ideologia do mérito próprio individualizado, que favorece a perpetuação das forças da sociedade repressiva existente, pela difusão de um espírito de concorrência desagregador, individualista, privado e antissolidário, obstruindo qualquer dinâmica de transformação, necessariamente coletiva e pública. Nessa medida, impõe-se a crítica e o movimento de transição da necessidade “falsa” para uma necessidade “verdadeira”. Para ocorrer efetivamente, a própria transformação deve ser uma “necessidade” verdadeira, para cuja identificação é imprescindível uma “nova sensibilidade”, com a qual nos ocuparemos mais adiante.
A distinção entre “falsas” e “verdadeiras” necessidades e a sua dinâmica foi desenvolvida n’O homem unidimensional e, como vimos, posteriormente foi renomeada como diferença entre necessidades vitais “supérfluas” e necessidades vitais “básicas” em Um ensaio sobre a libertação e Contrarrevolução e revolta.
“Falsas” são aquelas, como a perpetuação do trabalho excedente, a competitividade, o desempenho individual, que são impostas ao indivíduo por determinados interesses de dominação social. A gratificação de sua satisfação serve para impedir o surgimento da aptidão ao reconhecimento dessas necessidades falsas. Elas portam função e conteúdo impostos a indivíduos desprovidos de controle sobre eles e servem apenas aos interesses repressivos do sistema impositivo e não aos interesses próprios individuais.
O fato de que a ampla maioria da população aceite e seja levada a aceitar essa sociedade não a torna menos irracional e menos repreensível. A distinção entre verdadeira e falsa consciência, interesses reais e imediatos é ainda significativa. Mas essa própria distinção deve ser validada. Os homens devem chegar a vê-la e a encontrar o caminho da falsa consciência para a verdadeira, de seu interesse imediato para o interesse real. Eles só podem fazer isso se sentirem a necessidade de mudar seu modo de vida, de negar o positivo, de recusar. É precisamente essa necessidade que a sociedade estabelecida administra para reprimir, na proporção exata em que ela é capaz de “distribuir os bens” em um escala cada vez maior e usar a conquista científica da natureza para a conquista científica do homem.[43]
A consciência da distinção entre “falsas” e “verdadeiras” necessidades – para a qual é decisiva a nova sensibilidade – constitui o fulcro central de Um ensaio sobre a libertação. Aqui as necessidades “falsas” ou vitais supérfluas e as necessidades “verdadeiras” ou vitais básicas estão em pauta enquanto dois “princípios de realidade”, duas formas de sociedade em confronto. Não apenas a disputa política trilha outros caminhos e organiza-se de maneiras diversas, mas conforme outras palavras de ordem expressando necessidades, aspirações e valores diferentes.
“[…] a política não é um fim em si mesmo, se não passa por uma crítica do vivido e da opressão cotidiana. A revolta contra a multiplicidade de opressões — reclamada como “fascistização da vida cotidiana” pelos jovens — não é mais nem menos do que a crítica global da civilização industrial […] a mais violenta crítica jamais elaborada de uma vida que se limita à sobrevivência”.[44]
A rigor, a disputa é a construção de um mundo qualitativamente distinto a partir de outro, apoiada nele e não exterior a ele. Ou seja, doravante a política ocorre no embate efetivo entre o mundo existente, estabelecido e perpetuado e o processo de transformação desse mundo. Em outros termos, pode-se dizer que, nesse sentido, política é transformação, como construção da sociedade e do mundo humano.
Para Herbert Marcuse, no plano dessa política, existe a possibilidade de um encontro, uma identidade de sujeito e objeto, entre razão subjetiva e razão objetiva. Isto é: entre a racionalidade na coordenação dos meios para a realização de certos fins e a própria determinação objetiva desses fins. Assim a racionalidade calculista dos meios disponíveis e mobilizáveis para a construção social, a política conforme Max Weber por exemplo, pode vincular-se ao fim racional da construção de uma sociedade racional, harmônica, igualitária e fraterna. É assim que, para Marx, a prática se resolve socialmente como praxis, conforme a famosa 8ª tese sobre Feuerbach: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem ao misticismo, encontram sua solução racional na praxis humana e no compreender dessa praxis”.[45] A praxis humana é objetiva e também subjetiva.
Assim configura-se um projeto que forma uma verdadeira revolução da sociedade em seu ordenamento. Isso ocorre a partir da sua reorganização produtiva e reprodutiva, orientada pela crítica ao princípio do desempenho ou da maximização produtivista capitalista, bem como por uma praxis alternativa, regida por uma outra cultura, não individualista, de uso tecnológico e racional nas relações produtivas, harmônica no contexto interpessoal e no nexo com a natureza.
Sustentado em Marx, Herbert Marcuse propõe uma “sociopolítica” de que as “políticas públicas” são uma expressão e que interferem na estrutura e na ordem da sociedade. A “sociopolítica” é o que define uma forma de socialização, isto é, de individualização na sociedade e de formas de sociedade em consonância com essa individualização. É uma “forma de sociedade em sua estrutura de poder”[46]; poder este gerado em uma determinada organização social, seus meios e seus fins. Assim, por exemplo, a organização da sociedade capitalista como um todo, com seu modo de vida, suas demandas, seus valores e sua ordem, tem a ver com a obstrução de sua transformação, ou seja, com a conservação do seu modo vigente de produção e da expropriação da maioria social que isso implica. Marcuse explicita essa mudança no todo social.
“A criação de uma adequada mais valia necessita não só da intensificação do trabalho, mas também de investimentos ampliados em serviços supérfluos e lucrativos […] ao mesmo tempo em que se negligenciam e até reduzem os serviços públicos não lucrativos (transportes, educação, previdência social) […]. O consumo competitivo deve ser constantemente aumentado – o que significa que o alto padrão de vida perpetua uma existência em formas cada vez mais insensatas e desumanizantes, enquanto os pobres continuam pobres e o número de vítimas da prosperidade aumenta”.[47]
Hoje justamente o potencial dessa “nova” política, aparente nas “políticas sociais”, a mediação para a satisfação das verdadeiras necessidades dispostas pelos sujeitos sociais coletivos e não lhes impostas enquanto individualizados, fundamenta a retomada atual da obra de Herbert Marcuse. Pelas políticas sociais públicas, é possível gerar condições que conduzam à transformação social ao interferirem no todo social inviabilizando a hegemonia que garante a sociedade vigente.
No plano delineado das políticas públicas, o livro sustenta a apreensão da política como construção coletiva de um mundo solidário, fraterno e em harmonia com seu ambiente. Porém “solidária” num sentido próprio, de autodeterminação e não conforme o padrão imposto pela ordem capitalista, pois também o fascismo é “solidário”[48] ao mesmo tempo em que é opressor. Aqui cabe mencionar a questão da chamada “contracultura”, a transformação de necessidades culturais não materiais.
Nessa referência, está em pauta uma “outra” cultura/civilização, sem a imposição repressiva do princípio do desempenho, o que resultaria de uma “revolução cultural”, uma mudança de valores. Trata-se de um projeto político de transformação da sociedade, afastando-a da opressão e da falta de liberdade e igualdade, inclusive no que se refere à natureza humana. Nesse âmbito pode se desenvolver a consciência da libertação necessária na sociedade vigente.
5.
Este é um livro sobre a sociedade e sua configuração. Sobre a sociedade vigente, construída de forma a manter a acumulação e a expropriação capitalistas e a estrutura de classes correspondente. Um livro sobre a irracionalidade da totalidade da sociedade, com hábitos que mantêm a produção com seu acúmulo de supérfluos e ausência de satisfação de necessidades vitais básicas, verdadeiras; com ausência de políticas públicas de educação, saúde habitação.[49] A individualização e competitividade nessa forma social gera os impulsos à sua reprodução continuada baseada na própria natureza humana. Por fim, o livro é sobre a potencial transformação ou revolução dessa forma de sociedade.
A construção de uma nova sociedade, com um novo princípio de realidade, com novas relações humanas, solidárias e cooperativas tanto com a própria natureza humana quanto com a natureza exterior, precisa de uma nova racionalidade para não ser irracional e uma nova sensibilidade para não ser coisificada.
O primeiro capítulo do livro refere-se à “natureza humana”, social e histórica. Não há democracia sem democratas, sem homens livres para determinar os fins de sua sociedade, homens “emancipados”.[50] Mas essa liberdade é limitada subjetivamente. Os homens podem ser emancipados, mas não no sentido de estarem prontos e preparados; precisam mudar junto com a sociedade. “A felicidade é uma condição objetiva que exige mais do que sentimentos subjetivos […] a validade desta noção depende da solidariedade real da espécie ‘homem’ […]”.[51]
A qualitativa diferença entre uma sociedade livre e a sociedade vigente “afeta todas as necessidades e satisfações para além do nível animal, ou seja, todas aquelas que são essenciais à espécie humana […] são permeadas pelas exigências do lucro e da exploração”.[52] Isso ocorre pelo desenvolvimento técnico-científico na produção material valorativa, que conduz a uma adaptação orgânica em relação a esse estado de coisas.
Uma nova sociedade exige uma nova natureza humana. Mas uma transformação social efetiva demanda uma consciência em relação a essa questão. E também uma “nova sensibilidade” apta a reconstruir ciência e tecnologia mediante a criatividade da imaginação, de modo a intervir no plano dessa adaptação orgânica – como natureza humana – e orientá-la conforme as necessidades verdadeiramente humanas. Haveria um novo nexo entre entendimento e sensibilidade. Uma nova sensibilidade como forma social, como forma de sociedade.
“A nova sensibilidade se tornou um fator político”.[53] Assim inicia o segundo capítulo de Um ensaio sobre a libertação. Cabe acrescentar esse componente, essa dimensão ao processo revolucionário. “[…] a nova sensibilidade […] se tornou praxis: ela emerge no combate à violência e à exploração, onde quer que tal combate seja empreendido em direção a modos e formas essencialmente novos de vida: a negação do establishment como um todo, de sua moralidade, de sua cultura; a afirmação do direito de construir uma sociedade na qual a abolição da pobreza e da labuta deságua num universo no qual o sensual, o lúdico, a tranquilidade e o belo se tornam formas de existência e, assim, a Forma da sociedade em si mesma”.[54]
A libertação é um processo que se apoia nessas disposições como condições em que os sujeitos podem adquirir autonomia em relação às imposições das determinações da continuidade social. Libertar-se de uma moral individualista do desempenho e de uma cultura da competição voltada à lucratividade, que são impostas e em relação às quais não há liberdade. A primeira liberdade é uma negação que se exerce em relação a essas imposições. Não se trata de libertar da imposição da economia apenas a racionalidade, a produtividade, mas também as aptidões sensíveis, a receptividade humana, a natureza humana que a razão instrumental cunhou. A “revolução deve ser ao mesmo tempo uma revolução na percepção”.[55]
A libertação é condicionada não somente pela revolução das relações de produção e pelo desenvolvimento das forças produtivas, mas também por mudanças no plano da subjetividade, da natureza humana, tais como a necessidade do trabalho excedente repressivo gerador de mais valia. Assim haveria a libertação social da dominação incontrolável do aparato produtivo disciplinador, individualista, de vigilância.
A persistência dessa subjetividade produtivista obstrui o espaço para o outro e, desse modo, interdita a vida em sociedade. Ela impede que formas de cooperação e solidariedade possam ser emancipadoras, pois não há controle sobre as mesmas. “[…] a transformação da sociedade é concebível apenas como o modo com que homens livres (ou, mais precisamente, homens no ato de libertarem a si mesmos) dão forma a suas vidas em solidariedade e constroem um ambiente em que a luta pela existência perde seus atributos hediondos e agressivos. A Forma da liberdade não é mera autodeterminação ou autorrealização mas antes a determinação e a realização de metas que melhorem, protejam e unam a vida na Terra. E essa autonomia encontraria expressão não apenas no modo de produção e nas relações produtivas, mas também nas relações individuais entre os homens […]”.[56]
A mudança exige uma união entre nova sensibilidade e nova racionalidade, para resultar em uma (re)educação no plano da economia política. Por essa via de crítica à separação entre os agentes e os pacientes, poder-se-ia construir uma sociedade não cindida entre os que são sujeitos intelectuais, que decidem e se apropriam do excedente, de um lado, e os que sentem e realizam o trabalho material. Esse é o “estado estético de Schiller”.[57] No século vinte, o grande defensor dessa utopia estética foi Herbert Marcuse.
Friedrich Schiller é uma referência para Herbert Marcuse quando sustenta que a sensibilidade dos sentidos não é passiva ou meramente receptiva. Os sentidos possuem um papel ativo na constituição da experiência, vinculando a vida sensitiva à vida social. Isso ocorre com o impulso estético em direção ao jogo da imaginação. A educação estética do homem de Schiller se orienta nessa direção, como revela a Carta XXVII: “Se já a necessidade constrange o homem à sociedade e a razão implanta nele princípios sociais, é somente a beleza que pode dar-lhe um caráter social. Somente o gosto permite harmonia na sociedade, pois institui harmonia no indivíduo […]. No Estado estético, todos –o mesmo o que é instrumento servil – são cidadãos livres que tem os mesmos direitos que o mais nobre […] no reino da aparência estética realiza-se o Ideal da igualdade […]”.[58]
Mesmo aquele reduzido a instrumento servil de trabalho é cidadão com plenos direitos. Este é o cerne do projeto político-filosófico de Um ensaio sobre a libertação: a libertação para conferir liberdade, para revolucionar a sociedade para além do presente de não-liberdade e para que se reproduza sem dominação e repressão. Dar “liberdade através da liberdade é a lei fundamental desse reino (da aparência estética)”.[59]
É importante destacar que a experiência estética da liberdade não se limita à realização interior, mas deve adquirir existência política como uma situação social objetiva em que se realizariam liberdade e igualdade como finalidade humana universal. Vale indagar: quais as condições de possibilidade de uma sociedade com essa vida harmoniosa?
Haveria alguma coisa na dimensão estética que possuísse uma afinidade essencial com a liberdade não só em sua forma cultural sublimada (artística), mas também em sua forma política dessublimada, existencial, de modo que a estética pudesse se tornar em uma gesellschaftliche Produktivkraft: um fator na técnica de produção, um horizonte sob o qual as necessidades materiais e intelectuais se desenvolveriam?[60]
A reprodução social é discutida sempre em sua vinculação à nova sensibilidade.
Embora os sentidos sejam moldados e formados pela sociedade, constituem a nossa experiência primária do mundo e fornecem o material tanto à razão quanto à imaginação. Hoje em dia são contidos e truncados socialmente, de modo que apenas uma emancipação dos sentidos e uma nova sensibilidade podem gerar uma mudança social libertadora.[61]
Herbert Marcuse assume esse significado de sensibilidade de Marx, como exposto em suas Teses sobre Feuerbach, que são dirigidas explicitamente à diferenciação em relação à visão do materialismo antropológico de Feuerbach.
Na Tese 1, Marx explica: “A falha capital de todo materialismo até agora (incluso o de Feuerbach) é captar o objeto, a efetividade, a sensibilidade apenas sob a forma de objeto ou de intuição, e não como atividade humana sensível, praxis; só de um ponto de vista subjetivo. Daí, em oposição ao materialismo, o lado ativo ser desenvolvido, de um modo abstrato, pelo idealismo, que naturalmente não conhece a atividade efetiva e sensível como tal”.[62]
Na Tese 5, Marx retorna ao tema: “Feuerbach […] não capta a sensibilidade como atividade prática, humana e sensível”.[63] Na Tese 9, remete ao conteúdo social envolvido na questão: “O extremo a que chega o materialismo intuitivo, a saber, o materialismo que não compreende a sensibilidade como uma atividade prática, é a intuição dos indivíduos únicos e a sociedade civil”.[64]
Na Tese 10, arremata com a distinção entre os dois sentidos da sensibilidade, a sensibilidade da sociedade burguesa vigente, com o seu individualismo na sociedade civil, e a “nova” sensibilidade: “O ponto de vista do materialismo antigo é a sociedade civil (e os indivíduos únicos), o do materialismo moderno, a sociedade humana ou a humanidade social”.[65] De um lado, a sociedade civil burguesa e seus “indivíduos únicos”; de outro, a “sociedade humana” no sentido de condição humana social, objetiva, para se opor ao indivíduo único.
Sensibilidade – Herbert Marcuse usa sensibility ou sensitivity e Sensibilität ou Sinnlichkeit – termo que possui um duplo significado. De um lado, cabe aos homens e às mulheres fazerem a experiência de sua natureza humana mediante a sensibilidade, ativando a percepção pelos sentidos. De outro lado – o destaque para Herbert Marcuse – há o significado de sensibilidade não conforme a sua raiz sensibilitas, mas pela raiz sensualitas.[66] Por essa via, sujeitos humanos possuem a “necessidade” de seres humanos. Ou seja: os humanos se tornam necessidades vitais básicas para os humanos, um significado político muito claro na medida em que o capitalismo exerce controles sociais justamente para promover o individualismo e desativar essa sensibilidade. A “nova” sensibilidade já contém os elementos distintivos da solidariedade e da fraternidade, da cooperação e do comum para além dos vigentes. A vida social livre é uma necessidade vital básica.
“A natureza humana só pode ser formada e realizada, se completar e florescer na coexistência das pessoas […]. Na ‘nova sensibilidade’ já se encontra presente a ‘nova solidariedade’”.[67] O conceito da nova sensibilidade implica mais: uma “convivência cultural” entre natureza e humanidade. “A sociedade socialista terá entre suas bandeiras não só liberdade, igualdade e justiça, mas também felicidade, fraternidade e paz”.[68] Além disso, porque se trata da emancipação humana, “[…] cabe na formação da “nova solidariedade” um papel fundamental à relação entre homens e mulheres. […] em primeiro lugar, é uma relação entre natureza e humanidade […] só em comunhão homens e mulheres formam a nova geração […]. Em segundo lugar, a divisão do trabalho pela exploração cultural do papel feminino no parto e na educação conduziu à mais antiga e profunda exploração da natureza humana pela dominação masculina da sociedade”. A luta pela supressão dessa dominação leva em terceiro lugar, como afirma Marcuse, também à emancipação da sensibilidade feminina: “a inteligência com sensibilidade que a dominação masculina opressora e agressiva cuidou de reprimir”.[69]
Assim os sujeitos da libertação, da emancipação humana, são todas as pessoas que são alvo de discriminação, opressão, exploração, barbárie. “[…] a consciência delas e seus objetivos as fazem representantes de um interesse comum dos oprimidos que é bastante real. Sendo contra o domínio de classes e dos interesses nacionais que suprimem esse interesse comum, a revolta contra as velhas sociedades é verdadeiramente internacional: o surgimento de uma nova e espontânea solidariedade. Essa luta é bastante diferente do ideal humanista e da humanitas; ela é luta pela vida – vida não como senhores e escravos, mas como homens e mulheres”.[70]
*Wolfgang Leo Maar é professor titular sênior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Referência
Herbert Marcuse. Um ensaio sobre a libertação. Tradução: Humberto do Amaral. São Paulo, Editora Politeia, 2024, 192 págs.
Notas
[1] Mises, Ludwig von apud Marcuse, Herbert, “O Combate ao liberalismo na concepção totalitária do Estado” [1934], in Cultura e sociedade, vol. 1, 1997, p. 53.
[2] Soares, Jorge C., Marcuse no Brasil. Entrevistas com filósofos, 1999, p. 18.
[3] Arantes, Paulo E., “1968 trinta anos depois” [1998], in Zero à esquerda, 2004, p. 156.
[4] Infra, p. 6.
[5] Adorno, Theodor W., “Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã” [1969], in Textos escolhidos, 1980, p. 233.
[6] Marcuse, Herbert, “Filosofia e teoria crítica” [1937], in Cultura e sociedade, vol. 1, 1997, p. 144.
[7] Ibid., p. 148.
[8] Ibid., p. 153.
[9] Ibid., p. 154.
[10] Ibid., p. 159.
[11] Rousseau, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens [1755], 1989, p. 60.
[12] Infra, p. 78.
[13] Marcuse, Herbert, “The Historical Fate of Bourgeois Democracy” [1973], in Kellner, Douglas (ed.), Towards a Critical Theory of Society, Collected Papers of Herbert Marcuse, vol. 2, 2001, p. 165.
[14] Marcuse, Herbert, Contra-revolução e revolta [1972], 1981, p. 63.
[15] Ibid., p. 81.
[16] Ibid., p. 25.
[17] Marx, Karl, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857–1858, 2011, p. 255.
[18] Marcuse, Herbert, Contra-revolução e revolta [1972], 1981, p. 26.
[19] Marx, Karl, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857–1858, 2011, p. 40.
[20] Marcuse, Herbert, Contra-revolução e revolta [1972], 1981, p. 27.
[21] Ibid., p. 127.
[22] Infra, p. 7.
[23] Infra., p. 78.
[24] Fundação Perseu Abramo, “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, 2017.
[25] Negt, Oskar, “Marcuses dialektisches Verständnis von Demokratie”, in Das Schicksal der bürgerlichen Demokratie, 1999, p. 21.
[26] Ibid., p. 22.
[27] Habermas, Jürgen, “Presentación”, in Habermas, Jürgen (org.), Respuestas a Marcuse [1968], 1969, p. 15.
[28] Infra, p. 5.
[29] Marcuse, Herbert, Contra-revolução e revolta [1972], 1981, p. 63.
[30] Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max, Dialética do esclarecimento [1947], 1985, p. 156.
[31] Ibid., p. 191.
[32] Ibid., p. 194.
[33] Marcuse, Herbert, O homem unidimensional [1964], 2015, p. 46.
[34] Marx, Karl e Engels, Friedrich, A ideologia alemã [1845–1846], 2007, p. 38.
[35] Negt, Oskar, Achtundsechzig. Politische Intellektuelle und die Macht, 1995, p. 208.
[36] Ibid., p. 194.
[37] Ibid., p. 369.
[38] Marcuse, Herbert, “The University and Radical Social Change” [1976], in Transvaluation of Values and Radical Social Change. Five Lectures, 1966–1976, 2017, p. 47.
[39] Infra, p. 78.
[40] Marx, Karl, O capital, Livro III [1894], 2017, p. 883.
[41] Claussen, Detlev (org.), Spuren der Befreiung, 1981, p. 40.
[42] Adorno, Theodor W., “O que significa elaborar o passado” [1959], in Educação e emancipação, 1995, p. 40.
[43] Marcuse, Herbert, O homem unidimensional [1964], 2015, p. 34.
[44] Palmier, Jean-Michel, Marcuse et la nouvelle gauche, 1973, p. 577.
[45] Marx, Karl, “Teses contra Feuerbach” [1845], in Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos, 1974, p. 58.
[46] Maar, Wolfgang Leo, “Sociopolitics: Marx and Marcuse”, Constelaciones: revista de teoría crítica, 2016–2017, p. 182.
[47] Marcuse, Herbert, Contra-revolução e revolta [1972], 1981, p. 29.
[48] Infra, pp. 77–78.
[49] Marcuse, Herbert, Contra-revolução e revolta [1972], 1981, p. 29.
[50] Adorno, Theodor W., “Educação — para quê?” [1967], in Educação e emancipação, 1995, p. 142.
[51] Infra, p. 18.
[52] Infra, p. 20.
[53] Infra, p. 27.
[54] Infra, p. 28.
[55] Infra, p. 37.
[56] Infra, pp. 43–44.
[57] Rancière, Jacques, A partilha do sensível. Estética e política [2000], 2009, p. 66
[58] Schiller, Friedrich, A educação estética do homem: numa série de cartas [1794], 2011, p. 135.
[59] Ibid., p. 134.
[60] Infra, p. 29.
[61] Kellner, Douglas, “Marcuse and the Quest for Radical Subjectivity”, in Abromeit, John e Cobb, W. Mark (org.), Herbert Marcuse. A Critical Reader, 2004, p. 90.
[62] Marx, Karl, “Teses contra Feuerbach” [1845], in Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos, 1974, p. 57.
[63] Ibid., p. 58.
[64] Ibid.
[65] Ibid., p. 59.
[66] Thürnau, Donatus, “Sinnlichkeit”, in Enzyklopädie Philosophie, 2010, p. 2471.
[67] Schmied-Kowarzik, Wolfdietrich, “Die ‘menschliche Natur’. Zum Naturbegriff bei Herbert Marcuse”, in Schmied-Kowarzik, Wolfdietrich e Flego, Gvozden (org.), Herbert Marcuse. Eros und Emanzipation, 1989, p. 271.
[68] Ibid., p. 270.
[69] Ibid., p. 272.
[70] Infra, p. 49.
A literatura self do capitalismo tardio
Professora provoca: obsessão pela experiência individual está multiplicando a produção de arte narcísica, em ensaios pessoais e autoficção. Para ela, isso é o produto de uma vida comandada pelo imediato e de uma ecologia social cada vez mais fraturada
Jacobin Brasil, via Outras Palavras (expandir)
Anna Kornbluh em entrevista a Daniel Zamora, na Jacobin
A cultura contemporânea é obcecada pela experiência, desde pinturas imersivas até romances narrados em primeira pessoa. Em todo o lado, a ideia de que é possível falar e escrever de uma forma que não depende fundamentalmente da identidade de alguém está sob ataque. Anna Kornbluh, teórica literária e autora de Immediacy: Or, The Style of Too Late Capitalism (Verso, 2024), conversou com a Jacobin sobre as causas desses desenvolvimentos na esfera cultural. Numa conversa ampla, ela argumenta que eles são o paralelo estético de mudanças semelhantes que ocorrem no mundo da economia.
Leia a entrevista
Você começa o livro discutindo a proliferação das chamadas exposições de pintura “imersivas”. As “experiências” de Vincent van Gogh, Frida Kahlo ou Claude Monet estão agora surgindo em todo o mundo. Uma maneira de olhar para este desenvolvimento é a partir da perspectiva econômica. Tais exposições são obviamente facilmente replicáveis e mais baratas do que as exposições mais tradicionais. Mas você argumenta que há algo mais acontecendo. Você poderia dizer o que é isso?
O livro tenta pensar por que há tantas pressões sobre a representação no presente. Existe uma sensação geral de que as pessoas não têm tempo para a arte, que não podemos permitir-nos a lentidão de pensamento que a representação exige. Se você estiver diante de uma pintura de Van Gogh, seu significado não será evidente; talvez os sapatos no chão sejam o ponto, talvez o ângulo de perspectiva seja o ponto, talvez algo sobre o mercado de pigmento amarelo seja o ponto, e por isso temos que processar o que está diante de nós.
Se você fizer uma pose de ioga na Aula Matinal Imersiva de Van Gogh, a contemplação não é o objetivo; a fusão sensorial total é. Esta mudança da contemplação para a experiência intensa é vendida como libertadora, mas é paralela a outras mudanças sociais e econômicas que não são tão grandes.
Nestas exposições, a ênfase está na experiência: experiência corporal, sensorial, avassaladora. A ênfase não está na obra de arte, nem nas técnicas pelas quais ela é mediada e na contemplação que elas solicitam. Parte da razão para o aumento da proeminência deste tipo de arte é, como você diz, que ela é barata. De um certo ponto de vista, isto faz parte de um processo de democratização. Mas temos de compreender isso também como um corte da obra de arte e, portanto, como uma rejeição profunda da arte.
Além disso, temos de compreender que este é também um esforço econômico: eliminar o intermediário faz parte do modelo dos grandes negócios na indústria do século XXI, desde o compartilhamento de automóveis até à corretagem eletrônica. Os lucros vêm menos da produção e mais da troca. Quando o nosso estilo estético dominante abraça mensagens diretas e acesso instantâneo, ele se agarra demasiadamente às relações capitalistas em vez de as iluminar.
Você também argumenta que hoje não estamos enfrentando uma crise de historicidade, mas de “futuridade”. O que isso significa?
“Crise de historicidade” é o termo usado pelo teórico literário Fredric Jameson para a estética do pós-modernismo. Esta é uma estética que retira estilos ou técnicas do seu contexto histórico e os mistura, um pastiche que ele vê como uma resposta ao tempo unificado da economia globalizada. “Crise da futuridade” é o meu termo para um aspecto da nossa situação estética que o “pós-modernismo” não descreve bem: nós perdemos o futuro — a humanidade enfrenta uma extinção forçada — e em vez de brincar com o passado, o nosso estilo estético dominante amplia o presente e a presença.
Esta perda do futuro está, obviamente, distribuída de forma desigual, não obstante, implica a espécie na totalidade. É uma forma de explicar como a nossa cultura torna a experiência emocional mais extrema — na arte, no cinema e na literatura, a dor, a raiva e o desespero tornam-se mais profundos.
O livro tenta unir um conjunto de desenvolvimentos econômicos e estéticos e, surpreendentemente, conectar os romances de Karl Ove Knausgård, o filme Joias Brutas e a atuação, A Artista Está Presente, de Marina Abramović. O que eles compartilham um com o outro?
No trabalho dos artistas que você menciona está difundido um repúdio à espessura da representação, uma intolerância às mensagens indiretas, uma recusa à mediação. A mediação é a atividade social de criar significado, de dar sentido, de colocar algo num meio, de construir relações entre coisas, pessoas e lugares; sem ela a arte desmorona, o mundo torna-se incompreensível e os movimentos coletivos de mudança tornam-se insustentáveis. Na obra destes artistas a mediação é expressamente rejeitada.
A narração em primeira pessoa tornou-se o estilo literário dominante da nossa era do imediatismo. Esta é uma mudança substancial. Durante a maior parte de seus trezentos anos de existência, o romance foi geralmente escrito na terceira pessoa. O que essa mudança indica e como devemos explicá-la?
O projeto teve origem na minha tentativa de examinar as mudanças no estilo literário e como elas pareciam responder a uma mudança cultural mais ampla. Na história do romance inglês, a ficção é majoritariamente composta na terceira pessoa. A terceira pessoa é o modo gramatical não apenas do experimento especulativo da onisciência, mas em certo sentido da própria ficcionalidade. Isto porque constrói perspectivas contrafactuais em diferentes tempos e espaços – uma perspectiva que a experiência individual é naturalmente incapaz de acessar.
A terceira pessoa é também o modo que torna possível o discurso indireto livre, uma forma de mesclar o pensamento de diferentes mentes, única no romance. Em nenhum outro lugar podemos pensar em pensamentos compartilhados coletivamente (é isso que os torna “livres”; eles não são propriedade de ninguém).
É essa terceira pessoa, esse modo mágico, que parece estar desaparecendo: os romances em inglês do século XXI são, em sua maioria, em primeira pessoa. Este é um acontecimento radical na história da literatura, que exige explicação. Por que os escritores querem eliminar a capacidade única da consciência ficcional? Por que, ao desmantelar explicitamente a narratividade como tal, tantos romancistas contemporâneos também rejeitam explicitamente a noção de personagem literário, ou enredo, ou de duração temporal à qual a forma do romance é frequentemente associada?
Isto também explica talvez a proliferação do formato de memórias e do ensaio pessoal.
Tento responder a esta questão num capítulo do livro onde abordo as transformações nas indústrias dos meios de comunicação, como o jornalismo, a publicação literária e as redes sociais, bem como na universidade. Nestas áreas, analiso as condições econômicas para a produção cultural criativa.
De acordo com o New York Times, as vendas de memórias aumentaram 400% neste século em relação ao século anterior. Ao mesmo tempo, o ensaio pessoal predomina como um modo barato ou desqualificado de jornalismo e geração de “conteúdo”. E há uma dinâmica relacionada, a hegemonia de uma epistemologia de ponto de vista enfraquecida. Esta teoria, que prioriza o conhecimento moldado pela perspectiva de quem conhece, foi inicialmente desenvolvida para promover os objetivos da classe trabalhadora, feminista, queer e outras minorias. Na cultura atual, contudo, forneceu justificação para uma hostilidade em relação à abstração e às reivindicações de conhecimento universal.
Você critica bastante aqueles que descrevem o aumento da autoficção e dos ensaios pessoais como uma espécie de “epidemia de narcisismo” alimentada pelas redes sociais.
Alguns críticos culturais e profissionais de saúde mental explicam esta onda do self como resultado de uma crescente “epidemia de narcisismo”. E certamente, as tendências antissociais na nossa sociedade são palpáveis. Mas não é suficiente compreender a produção cultural contemporânea através de uma lente que psicologize ou moralize, por diversas razões.
A principal delas é que a psicologia não está isolada do resto da sociedade; a cultura, a economia e a tecnologia desempenham um papel importante na estruturação de sintomas e distúrbios. Se estamos vivendo uma espécie de inflação do ego e da autoimagem, isso tem de estar ligado à nossa ecologia mediática e à ideologia econômica dominante do capital humano e do bootstrapping, bem como ao desmantelamento das instituições sociais que apoiam a vida cotidiana – como a educação pública.
Mas a outra razão pela qual não é suficiente descrever a nossa cultura como narcisista é que os tipos de priorização do eu que podemos notar nas obras de arte também são acompanhados pelo esvaziamento da mediação. Se houver um ataque ao significado coletivo, o significado individual surge em seu lugar. Se houver uma ruptura na mediação, coisas que parecem imediatas – a experiência, o corpo, o pessoal – surgem. Mas é o ataque, a disrupção – o que nos negócios é chamado de “desintermediação” – que vem primeiro.
Você também parece ligar esse desenvolvimento estético ao desenvolvimento mais amplo de como a política evoluiu nas últimas duas décadas. O “momento populista” também veio acompanhado de uma necessidade crescente de eliminar os intermediários. O nosso presente é menos caracterizado pela mediação de partidos e sindicatos de massas e mais por revoltas e “movimentos” espontâneos. Significou a “desintermediação” da política com formas de pertencimento menos estruturadas e duradouras. Você diria que essas duas tendências estão conectadas?
Absolutamente. Identificar o imediatismo como um estilo cultural envolve conectar as artes ao conhecimento e à economia, bem como à política. As artes são geralmente a arena onde a mediação se mostra. É definitivamente a arena onde “obras” específicas têm contornos e limites que se prestam à análise. Em contraste, a “política” pode ser mais complicada para criar um objeto de estudo rigoroso.
Essa é provavelmente a minha formação como pesquisadora de estética, mas pode ser mais fácil saber onde olhar para ver a rejeição da mediação acontecendo em um programa de TV ou poemas do que no movimento geral do populismo na esfera política. No entanto, o livro tenta absolutamente indicar que o estilo de imediatismo governa as preferências tácticas (e ideológicas) pelo horizontalismo, localismo, anarco-espontaneidade, anti-sindicalismo e a falta de organização disciplinada na esquerda. Este último é frequentemente substituído por cultos ao carisma, ao opinionismo virulento e ao anti-institucionalismo. Todas estas tendências podem ser observadas na esquerda e na direita políticas. Houve análises realmente importantes destas políticas à medida que se desenvolveram ao longo da última década; espero que outra pessoa escreva um estudo abrangente e aprofundado sobre o imediatismo na política.
Daniel Zamora é um sociólogo de pós-doutorado na Université Libre de Bruxelles e Cambridge University. Seu livro, “Le Dernier Homme e A Finada da Revolução: Foucault après Mai 68”, em co-autoria com Mitchell Dean, será publicado em inglês pela Verso em 2020.
Anna Kornbluh é professora de inglês e membro do United Faculty Bargaining Committee da Universidade de Illinois Chicago. É autora de The Order of Forms (University Chicago 2019), Marxist Film Theory and Fight Club (Bloomsbury 2019) e Realizing Capital (Fordham 2014).
Inteligência artificial: o que esperar dos Estados
Apropriação do trabalho intelectual coletivo. Precarização. Desenvolvimento de robôs assassinos. Se ficar sob controle de corporações, nova tecnologia será fonte de pesadelos. Por isso as sociedades, mais que regulá-la, precisam dirigi-la.
Mariana Mazzucato, Outras Palavras
Em dezembro passado, a União Europeia (UE) estabeleceu um precedente global ao finalizar a Lei de Inteligência Artificial, um dos conjuntos de regras de IA mais abrangentes do mundo. A legislação emblemática da Europa pode sinalizar uma tendência mais ampla em direção a políticas de IA mais responsivas. Mas embora a regulamentação seja necessária, não é suficiente. Além de impor restrições às empresas privadas de IA, os Estados devem assumir um papel ativo no desenvolvimento da tecnologia, projetando sistemas e moldando mercados para o Comum (continue a leitura)
É claro que os modelos de IA estão evoluindo rapidamente. Quando os reguladores da UE divulgaram o primeiro rascunho da lei sobre o tema em abril de 2021, eles gabaram-se de ele ser supostamente “à prova de futuro”. Apenas um ano e meio depois, correram para atualizar o texto, em resposta ao lançamento do ChatGPT. Mas os esforços regulatórios não são em vão. Por exemplo, a proibição, por lei, do uso de IA no policiamento por biometria continuará provavelmente relevante, em que pesem os avanços na tecnologia. Além disso, os parâmetros de risco incluídos na lei de IA ajudarão os formuladores de políticas a se proteger contra alguns dos usos mais perigosos da tecnologia. Embora a IA tenda a se desenvolver mais rápido do que a política, os princípios fundamentais da lei não precisarão mudar – embora ferramentas regulatórias mais flexíveis sejam necessárias para ajustar e atualizar as regras.
Mas pensar no Estado apenas como regulador é perder de vista o aspecto principal. A inovação não é apenas um fenômeno de mercados sagazes. Ela tem uma direção; e esta depende das condições em que emerge. Os formuladores de políticas públicas podem influenciar essas condições. O surgimento de um design tecnológico ou modelo de negócios dominante é o resultado de uma luta de poder entre vários atores – corporações, órgãos governamentais, instituições acadêmicas — com interesses conflitantes e prioridades divergentes. Ao refletir essa luta, a tecnologia resultante pode ser mais ou menos centralizada, mais ou menos proprietária, e assim por diante.
Os mercados que se formam em torno de novas tecnologias seguem o mesmo padrão, com implicações distributivas importantes. Como o pioneiro do software Mitch Kapor coloca, “Arquitetura é política”. Mais do que regulamentação, o design de uma tecnologia e da infraestrutura que a circunda dita quem pode fazer o quê com ela e quem se beneficia. Para assegurarem que inovações transformadoras produzam crescimento inclusivo e sustentável, não basta que os Estados corrijam os mercados. Eles precisam moldá-los e cocriá-los. Quando os Estados contribuem para a inovação por meio de investimentos ousados, estratégicos e orientados para missões, eles podem criar novos mercados e atrair o setor privado.
No caso da IA, a tarefa de direcionar a inovação está atualmente dominada por grandes corporações privadas. Isso leva a uma infraestrutura que serve aos interesses dos já envolvidos e agrava a desigualdade econômica. É o reflexo de um problema de longa data. Algumas das empresas de tecnologia que mais se beneficiaram de apoio público – como Apple e Google – também foram acusadas de usar suas operações internacionais para evitar o pagamento de impostos. Essas relações desequilibradas e parasitárias entre grandes empresas e o Estado agora correm o risco de ser ampliadas pela IA, que promete recompensar o capital enquanto reduz as rendas conferidas ao trabalho.
As empresas que desenvolvem IA generativa já estão no centro dos debates sobre comportamentos extrativistas, devido ao seu uso desenfreado de textos, áudios e imagens protegidos por direitos autorais, para treinar seus modelos. Ao centralizarem o valor dentro de seus próprios serviços, elas reduzirão os fluxos de recursos para os artistas de quem dependem. Assim como nas redes sociais, os mecanismos estão alinhados para a extração de renta, cuja lógica é permitir que intermediários dominantes acumulam lucros às custas de outros. As plataformas que prevalecam hoje – como Amazon e Google – exploraram sua posição dominante usando seus algoritmos para extrair tarifas cada vez maiores (“rentas de atenção algorítmica”) para acesso aos usuários. Uma vez que Google e Amazon se tornaram um gigantesco esquema de jabaculês, a qualidade da informação deteriorou e as plataformas passaram a extrair valor do ecossistema de sites, produtores e desenvolvedores de aplicativos nos quais as se baseiam. Os sistemas de IA de hoje poderiam seguir um caminho semelhante: extração de valor, monetização disfarçada e deterioração da qualidade da informação.
Governar modelos de IA generativa para o Comum exigirá parcerias mutuamente benéficas, orientadas para objetivos compartilhados e a criação de valor público, e não apenas privado. Isso não será possível com Estados que agem apenas após os fatos consumados. Precisamos de Estados empreendedores, capazes de estabelecer estruturas pré-distributivas que compartilhem riscos e recompensas ex ante. Os formuladores de políticas devem se concentrar em entender como as plataformas, os algoritmos e a IA generativa criam e extraem valor, para que possam estabelecer as condições – entre elas, regras de design equitativas – para uma economia digital que remunere a criação de valor.
Lembre-se da História
A internet é um bom exemplo de uma tecnologia que foi projetada a partir de princípios de abertura e neutralidade. Considere o princípio do “ponto a ponto”, que garante que ela opere como uma rede neutra,k responsável pela entrega de dados. O conteúdo entregue de computador para computador pode ser privado, mas o código é gerenciado publicamente. E a infraestrutura física necessária para acessar a internet é privada, mas o desenho original assegurou que, colocados online, os recursos para a inovação na rede são livremente disponíveis.
Essa escolha de design, coordenada [nos EUA] pelo trabalho inicial da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (entre outras organizações), tornou-se um princípio orientador para o desenvolvimento da internet, permitindo flexibilidade e inovação extraordinárias nos setores público e privado. Ao visualizar e moldar novos espaços de criação, o Estado pêde estabelecer mercados e direcionar o crescimento, em vez de apenas incentivá-lo ou estabilizá-lo.
É difícil imaginar que empresas privadas, encarregadas de desenvolver a internet na ausência de envolvimento governamental, tivessem aderido a princípios igualmente inclusivos. Considere a história da tecnologia telefônica. O papel do Estado foi predominantemente regulatório. A inovação foi deixada, em grande medida, nas mãos de monopólios privados. Este tipo de centralização não apenas prejudicou o ritmo da inovação, mas também limitou os benefícios sociais mais amplos que poderiam ter surgido.
Por exemplo, em 1955, a American Telephone and Telegraph (AT&T) persuadiu a Comissão Federal de Comunicações a banir um dispositivo que reduziria o ruído nos receptores telefônicos, alegando direitos exclusivos para melhorias na rede. O mesmo tipo de controle monopolista poderia ter relegado a internet a ser apenas um instrumento de nicho para um grupo seleto de pesquisadores, em vez da tecnologia universalmente acessível e transformadora em que se converteu.
Da mesma forma, a transformação do GPS – de uma ferramenta militar para uma tecnologia universalmente benéfica – destaca a necessidade de governar a inovação para o bem comum. Inicialmente projetado pelo Pentágono para coordenar ações militares, o acesso público aos sinais de GPS foi deliberadamente rebaixado, por motivos de segurança nacional. Mas, à medida que o uso civil ultrapassou o militar, o governo dos EUA, sob o presidente Bill Clinton, tornou o GPS mais responsivo aos usuários civis e comerciais em todo o mundo.
Essa mudança não apenas democratizou o acesso à tecnologia de geolocalização precisa, mas também estimulou uma onda de inovação em muitos setores, incluindo navegação, logística e serviços baseados em localização. Uma mudança de política que buscava maximizar o benefício público teve um impacto transformador e de longo alcance na inovação tecnológica. Mas esse exemplo também mostra que governar para o bem comum é uma escolha consciente que requer investimento contínuo, alta coordenação e capacidade de entrega.
Para aplicar essa escolha à inovação em IA, precisaremos de estruturas de governança inclusivas e orientadas para missões, com meios para investir conjuntamente com parceiros que reconheçam o potencial da inovação liderada pelo Estado. Para coordenar respostas de múltipos atores a objetivos ambiciosos, os formuladores de políticas devem estabelecer condições para financiamento público, de modo que os riscos e recompensas sejam compartilhados de forma mais equitativa. Isso significa objetivos claros, aos quais as empresas precisam se adequar; altos padrões de trabalho, sociais e ambientais; e compartilhamento de lucros com o público. As condicionalidades podem e devem exigir que as Big Tech sejam mais abertas e transparentes. Não devemos aceitar nada menos do que isso, se quisermos levar a sério a ideia de capitalismo de stakeholders.
Por fim, enfrentar os perigos da IA exige que os governos ampliem seu papel além da regulação. Sim, diferentes governos têm capacidades diferentes, e alguns são altamente dependentes da economia política global mais ampla da IA. A melhor estratégia para os Estados Unidos pode não ser a melhor para o Reino Unido, a UE ou qualquer outro país. Mas todos devem evitar a falácia de presumir que governar a IA para o Comum está em conflito com a criação de um setor de IA robusto e competitivo. Pelo contrário, a inovação floresce quando o acesso às oportunidades está aberto e as recompensas são amplamente compartilhadas.
Vida, trabalho e dignidade
Luiz Marques, Terapia Política (expandir)
Em Uma breve história da igualdade, Thomas Piketty revela: “Até o início do século XX, não existia uma classe média, no sentido de que os 40% compreendidos entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos eram quase tão pobres (em termos de participação na propriedade total) quanto os 50% mais pobres. Em contrapartida, no fim do século XX e no início do século XXI, a classe média patrimonial é constituída por pessoas que não são imensamente ricas, mas estão longe de ser pobres”. Descontado o eurocentrismo, temos o “tipo ideal” weberiano para outras realidades. Aqui, interessa o olhar do clínico geral e não o dos especialistas sobre a doença em um país, em especial.
Crise da civilização
Após a década de 1980, a middle class genérica é jogada mais para o fundo do poço nos países ocidentais. Os filhos acumulam menos bens materiais do que os pais acumulavam, outrora. Por sua vez, a ideologia meritocrática é desacreditada. Ademais, ao persuadir vencedores a considerarem que o sucesso deles é produto de suas ações e a encararem os derrotados como os de baixo com desdém, bloqueia a possibilidade de conciliação de classes. Isso ajuda a explicar por que os deixados para trás pela globalização ficam ressentidos e por que se sentem atraídos por populistas autoritários. Eis aí o retrato das camadas intermediárias do sistema capitalista, em nossa época.
A desindustrialização e a precarização dos empregos recriam a barbárie estrutural no contexto das inovações cibernéticas. De um lado, o retrocesso espalha o fascismo social; de outro, capilariza o fascismo político. Em 26 dos 27 Legislativos das nações da União Europeia, a extrema direita tem cadeiras. Na Hungria, Polônia e Itália (terceira economia, atrás da Alemanha e França) já assumiu o poder. Hoje o espectro que ronda o velho continente é o avesso do especulado pela utopia socialista.
Está em curso uma crise da civilização, com a erosão da democracia. Um fenômeno que desperta para a necessidade da resiliência primordial e também irrefreada, para escapar ao pó. A concepção schmittiana separa a política em “amigos” vs “inimigos” no âmbito nacional, e redesenha a divisão internacional do trabalho. Fixar-se no agro (latifúndio, monocultura, exportação) era o que queria o atraso, no Brasil. Dizer que o parto da multipolaridade passa pela guerra nuclear não é um absurdo.
A política apresenta-se em exposições públicas com clichês rancorosos. Os valores do Iluminismo – a razão, a liberdade, a laicidade, a ciência, o lema “ouse conhecer” – são trocados por dogmas. O cansaço com os princípios fundadores da modernidade conduz a humanidade à autodestruição e o planeta à hecatombe climática. A soberania do povo e a participação social vão para o índex.
Vale lembrar o discurso de Javier Milei ao tomar posse na Argentina. “A curto prazo, a situação vai piorar”. Óbvio. Ministérios do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Trabalho; Cultura; Mulheres, Gênero e Diversidade que atendiam demandas modernas indispensáveis são extintos. O empobrecimento dos setores médios e a miserabilidade dos desalentados aprofundam os medos e a insegurança. Ouvem-se os sinais da monumental recessão. O país de Jorge Luis Borges se deixou agrilhoar por um palhaço sociopata, com o tango do anarcocapitalismo. “Viva la libertad, carajo”.
O populismo direitista usa “fatos alternativos”, como o espírito de um cão morto, para atrair os eleitores em ambientes de degradação ética e cognitiva – atacando as instituições, per se, além dos direitos sociais. “Sua força popular depende não da evidência, mas do sentimento; a essência da cultura da pós-verdade”, na reflexão de Matthew D’Ancona, em Pós-verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. O sentimento é, em simultâneo, de confusão cerebrina e absoluta falta de consciência sobre a identidade dos responsáveis pelo caos. A “verdade objetiva” se esvai no ralo da demagogia. A guerra de todos contra todos mostra o fracasso do modelo social hegemônico.
Unificar demandas
A alteridade assume ares hostis. A coletividade é pulverizada, torna-se um simulacro. O excedente de imaginário abastece as pulsões necropolíticas (a uberização da vida) e o colapso civilizacional. Antes, as vitrines do comércio funcionavam como ponto de fuga; agora, com o Big Data, viraram uma clausura. Com a dinâmica da inteligência artificial (machine learning) perseguem-se os moinhos da cidadania – o feminismo, o antirracismo, a anti-homofobia, o ambientalismo, a esquerda. Em lugar da emancipação coletiva revolucionária, a salvação pessoal pela Teologia da Prosperidade. O hiperindividualismo sintetizado na imagem do Lobo de Wall Street é reproduzido nas periferias.
No pano de fundo do cenário está a financeirização do Estado e da sociedade. A noção do demos (povo) é desconstruída. A representação se desvanece (“Não me representa”). A lealdade se dissipa (“Partidos são iguais”). As redes digitais se transfiguram na publicidade golpista da Festa da Selma. O tecido sociopolítico é esgarçado. A ignorância é monetizada por rastaqueras saídos do esgoto em bueiros do mapa-múndi, com uma verborragia totalitária sobre a moral e os costumes. Que fazer?
A tarefa dos progressistas é defender a bandeira do igualitarismo e da cooperação mútua. No livro Forjando a democracia – o título remete a Hefesto, “Deus da Forja” (tecnologia, metalurgia, armas, fogo) na antiga Atenas – o autor Geoff Eley ressalta: “A democracia sempre foi uma fronteira em movimento, cujas projeções idealistas irrealizadas foram tão importantes quanto ganhos efetivos”. As derrotas plantam sementes onde amanhã nascem punhos fechados, no asfalto. A vitória épica de Lula e da esquerda unida no Brasil trouxe de volta a esperança ao coração dos desesperançados.
Se as disputas parlamentares importam, mais decisivo é o que floresce nas relações sociopolíticas. A mediação das massas na esfera pública é crucial. Humilhados e ofendidos precisam se reconhecer em um fórum interclassista, sob uma palavra de ordem abrangente: “Vida, Trabalho e Dignidade”:
Vida, porque o capitalismo não assegura a sobrevivência dos humanos ou de qualquer espécie;
Trabalho, porque é a base de um sistema que precariza o labor com a gramática neoliberal; e
Dignidade, porque engloba as aspirações do conjunto de todas as articulações transformadoras.
A unificação das demandas é a chave do futuro. A questão organizativa condensa a possibilidade da edificação contra-hegemônica. Salve Lenin. A polarização provocada pelo movimento pró-fascismo se nutre da valorização do privado e desvalorização do público. Se a privatização da existência é a essência da alienação dos indivíduos; a privatização dos espaços urbanos é a barreira erguida contra a perspectiva de convivialidade na diversidade das urbes. Sem as lutas pela equanimidade e o bloco na rua, seguimos reféns do ressentimento e do ódio sob o neoliberalismo selvagem das finanças.
O sonho não morreu
O pior é que não podemos buscar consolo na ideia de que se trata de uma circunstância excepcional, quando o Estado de exceção parece configurar a nova normalidade. Conforme sublinha Freud, em Considerações atuais sobre a guerra e a morte, o belicismo não cessará “enquanto os povos [e as classes sociais, acrescente-se, con permiso] viverem em condições tão diferentes, enquanto divergirem de tal modo no valor que atribuem à vida individual e enquanto os ódios que os dividem representarem forças psíquicas tão intensas”. Até lá, a besta humana desse período de decadência imperialista gozará com os escombros palestinos na Faixa de Gaza, na reprodução metonímica de Guernica. Nosso desafio é desconstruir a história da desigualdade no mundo. O sonho não morreu.
Clique aqui para ler artigos do autor.
Luiz Werneck Vianna (1938-2024)
Um dos principais nomes da sociologia brasileira. Pensamento arguto e militante que nos ajudou a entender o país e suas difíceis contradições. Alguns textos e entrevistas que reúnem parte da riqueza de seu pensamento estão lincados abaixo.
# Arquivos Luiz Werneck Vianna (A Terra é redonda) # Artigos de Luiz Werneck Vianna (PUC-Rio) # Entrevista: A luta de classes saiu da moda (UFMG) # Tudo sobre Luiz Werneck Vianna (Estadão) # Antologia (Fundação Astrogildo Pereira) # Uma difícil democracia: diálogos sobre a obra de Luiz Werneck Vianna (IHU)
Clara Mattei: Capitalismo é incompatível com democracia
Pesquisadora italiana que trabalha com o tema 'austeridade' afirma que políticas de redução do Estado são espinha dorsal das economias modernas contra trabalhadores
Uirá Machado, Folha (expandir)
Celebrado por figurões como Thomas Piketty e Martin Wolf, o livro "A Ordem do Capital" propõe uma nova maneira de enxergar as políticas de austeridade adotadas por diferentes países.
Não como uma exceção impopular e dolorosa usada só para reduzir o déficit orçamentário em momentos de maior desequilíbrio nas contas públicas, mas como "o sustentáculo do capitalismo moderno", segundo a italiana Clara Mattei.
A italiana Clara Mattei no Festival Costituzione, na Itália, em maio de 2023 - Divulgação/Festival Costituzione
No livro, a pesquisadora volta à década de 1920 para mostrar como a austeridade surgiu depois da Primeira Guerra Mundial em países como Inglaterra e Itália, quando trabalhadores organizados cobravam mais direitos sociais.
Para Mattei, a austeridade foi naquela época —e continua sendo hoje— "uma reação antidemocrática às ameaças de mudança social vindas de baixo para cima". Daí o subtítulo da obra: "Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo".
Em entrevista à Folha, ela diz que "as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas", mas que o "capitalismo é incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas".
Em seu livro, a sra. afirma que os programas de austeridade devem ser vistos não como exceção, mas como o sustentáculo do capitalismo moderno. Qual o ganho analítico dessa perspectiva?
Minha definição tem a vantagem de ser uma definição política, na qual fica claro quem ganha e quem perde com as políticas de austeridade. Essa definição tenta ir além da ideia de que a austeridade seja apenas a redução do tamanho do Estado.
Falar em "menos Estado" é uma maneira muito ideológica de entender a história do capitalismo e nossa situação econômica atual. O ponto não é ver se o Estado gasta menos, mas onde o Estado gasta. Porque austeridade não significa menos Estado, mas Estado gastando a favor das elites em detrimento da maioria da população.
A trindade de políticas de austeridade —fiscal, monetária e industrial— tem o objetivo de enfraquecer os sindicatos e manter os trabalhadores sob controle. E isso enquanto o Estado gasta muito dinheiro no complexo industrial militar, por exemplo, ou subsidiando e desonerando investimentos privados em energia verde, ou resgatando bancos.
Sua pesquisa volta aos anos 1920 para detectar as origens da austeridade na Inglaterra e na Itália. O que explica o surgimento desse receituário?
A austeridade não é um produto da exceção do sistema neoliberal. O que tento mostrar é como, na verdade, a austeridade é funcional e estrutural para o capitalismo. Ela é particularmente útil quando as pessoas querem um sistema econômico alternativo, querem mais direitos sociais. Aí a austeridade é muito importante para a elite, a fim de preservar o status quo.
Após a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], isso ficou muito claro, porque foi um momento em que, no coração do capitalismo, os cidadãos estavam exigindo sociedades pós-capitalistas, rompendo com as relações salariais, rompendo com a propriedade privada dos meios de produção em favor da democracia econômica. Ou seja, as pessoas queriam a participação dos trabalhadores no processo de produção e distribuição. Foi aí que a austeridade nasceu.
O subtítulo do livro faz uma ligação forte entre austeridade e fascismo, mas a Inglaterra não teve um governo fascista. É possível generalizar a conexão?
A questão é mostrar que Mussolini se tornou tão poderoso porque ele era muito bom em implementar a austeridade, exatamente as mesmas políticas que os liberais na Itália, nos Estados Unidos e no Reino Unido estavam patrocinando.
A capacidade de subjugar os trabalhadores, de fazê-los aceitar salários mais baixos e parar com as greves; a capacidade de privatizar, de cortar gastos sociais e revalorizar a lira: tudo isso fez de Mussolini quem ele se tornou, um ditador fascista que permaneceu no governo por mais de 20 anos.
O capitalismo é bastante incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas e na distribuição de recursos.
Claro que o capitalismo é compatível com a democracia eleitoral, mas isso é superficial. No capitalismo contemporâneo, você pode se tornar fascista para apoiar as prioridades da economia. Foi o que aconteceu na Itália sob Mussolini, no Chile sob Pinochet e é o que está acontecendo agora na Argentina com Milei.
Em outros países não é tão diferente, se você olhar para a necessidade de proteger as decisões econômicas da interferência das pessoas. E isso é feito com a independência do Banco Central, com a ideia de colocar orçamentos equilibrados na Constituição, com mecanismos técnicos que têm o mesmo efeito de desdemocratizar a economia.
Há uma tensão entre capitalismo e democracia. Os governos fascistas, obviamente, são antidemocráticos. Mas o que é generalizável é que as supostas democracias liberais também têm tendências antidemocráticas que se associam muito mais ao fascismo do que se costumava pensar.
Que lições podem ser tiradas em relação à extrema direita hoje?
Os governos de extrema direita são muito bons em implementar a austeridade e, por esse motivo, ganham a confiança do mercado e são vistos com bons olhos pelos tecnocratas internacionalmente.
Mas o contexto agora é muito diferente. Quando Mussolini chegou ao poder, ele estava lá explicitamente para esmagar quem estava se mobilizando. Hoje, as pessoas votam em governos de extrema direita porque foram desempoderadas por um século de políticas de austeridade.
O sucesso da austeridade está em nos individualizar, nos tornar muito precários, nos tornar muito inseguros, para que não sintamos que estamos unidos como trabalhadores. A razão pela qual esses governos de extrema direita chegam ao poder é porque, em última instância, representam a expressão da insatisfação com o atual sistema econômico, que as pessoas entendem como um sistema a favor dos ricos e poderosos.
O problema é que as pessoas votam na direita, mas a direita é melhor em implementar a austeridade.
No Brasil, políticas de austeridade não são exclusivas de governos de direita. Por que isso acontece?
Essa é outra lição muito importante que podemos tirar do estudo histórico: infelizmente, a austeridade atravessa as linhas partidárias. É a expressão do falso pluralismo na economia que nossas democracias eleitorais apresentam. Elas nos dão a impressão de que, se votarmos em Lula em vez de Bolsonaro, teremos uma completa mudança nas políticas econômicas, mas é mais complicado do que isso.
Sob o capitalismo, a prioridade de qualquer governo, de direita ou de esquerda, é garantir os fundamentos para a acumulação de capital, o que significa não perturbar os investidores privados.
Então não podemos pensar que votamos uma vez a cada quatro anos e nosso trabalho está feito, porque existem pressões muito fortes vindas do mercado. Se o povo brasileiro, como qualquer outro povo, quiser uma mudança social séria, precisa lutar por isso.
Se você olhar historicamente, perceberá que há muito mais potencial para sistemas econômicos alternativos do que estamos acostumados a pensar, porque o objetivo principal dos economistas no poder é nos dizer que não há alternativa possível.
As alternativas existem, mas, para obtê-las, não basta eleger alguém que diga que fará algo diferente. Precisamos de uma participação maior do povo na economia.
Mas como escapar da lógica que comanda a economia em escala global hoje em dia?
A mensagem principal que emerge do livro é que as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas, no sentido de que não há nada que seja uma necessidade técnica. São decisões políticas que acontecem dentro de um sistema que funciona sob pressões específicas.
Você pode ir contra essas pressões, mas terá de arcar com as consequências. Essa mudança não acontecerá suavemente. Se você quiser realmente subverter o Estado capitalista de dentro, você precisa entender que não vai ser fácil.
Clara E. Mattei, 35
Formada em filosofia, mestre na mesma disciplina e doutora em economia, é professora associada do Departamento de Economia da New School for Social Research (Nova York)
# Acesse a matéria original publicada pela Folha
# Acesse também extratos em pdf do texto original do livro traduzidos por Fernando Nogueir da Costa
Intelectuais (novamente) em questão
Paulo Fernandes Silveira, A Terra é redonda (expandir)
Paulo Fernandes Silveira, A Terra é redonda (expandir)
Em tempos de redes sociais, o papel dos intelectuais precisa ser colocado novamente em questão
“Tá tudo errado, irmão, então pega a visão”
(Planet Hemp, “Distopia”)
1.
Em abril de 1994, a revista Magazinne Littéraire publicou parte da correspondência entre Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre (MERLEAU-PONTY; SARTRE, 1995). Essas cartas evidenciam a razão da ruptura entre os filósofos: uma divergência sobre suas concepções acerca do engajamento intelectual.
Poucos meses depois, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma tradução dessas cartas feita por Renato Janine Ribeiro. Essa edição dominical do jornal também trazia textos de Marilena Chaui (1994b; 1994c), Alberto Muñoz (1994); Manuel da Costa Pinto (1994) e do próprio Janine Ribeiro (1994) sobre Merleau-Ponty e Sartre.
Na quinta-feira da semana anterior, o jornal havia publicado outros dois textos que mencionavam Sartre. Em meio à campanha presidencial que tinha FHC e Lula na lista de candidatos, Marilena Chaui (1994a) e Otávio Frias Filho (1994) analisaram uma frase da atriz Ruth Escobar: “Nessa eleição temos duas opções: votar em Jean-Paul Sartre ou num encanador” (SILVA; PASCOVITCH, 1994, p. 8).
Além de criticar o preconceito de classe implícito na frase, Marilena Chaui cita um artigo em que Jânio de Freitas denuncia a arbitrariedade de uma pergunta que teria sido formulada numa pesquisa do Ibope: “o sr. preferiria para presidente do Brasil: alguém como Lula, que é realmente próximo da população pobre e dos trabalhadores, mas que tem pouca instrução e pouca experiência para presidente, ou alguém como Fernando Henrique, que não é tão próximo da população pobre e dos trabalhadores, mas que tem instrução e experiência necessárias para ser presidente?” (FREITAS, 1994, p. 5).
Em seu texto, publicado na página anterior à do texto de Chaui, o diretor e um dos donos da Folha de S. Paulo advoga pela analogia criada por Escobar: “como o preconceito sempre toma por verdade geral uma constatação parcialmente verdadeira, ou pelo menos justificável em parte, cabe perguntar se FHC não é de fato ‘Sartre’ e Lula um ‘encanador’” (FRIAS FILHO, 1994, p. 2).
Numa entrevista concedida durante a campanha, FHC afirma que Lula estava preparado para ser líder sindical, mas talvez não estivesse para ser presidente (FHC ACHA LULA PREPARADO, 1994). Na mesma edição em que registra essa fala de FHC, a Folha de S. Paulo destaca que, segundo o Datafolha, a falta de estudo é um dos principais motivos da rejeição a Lula (TOLEDO, 1994).
Nesse contexto eleitoral, a aproximação entre FHC e Sartre guarda mais de um sentido. Autor de livros importantes de filosofia e de literatura, Sartre também foi reconhecido como um homem de ação. Comprometido com as causas da esquerda, o escritor engajou-se em diversas campanhas populares. A afirmação de que FHC é Sartre sugere, portanto, capacidade intelectual (teórica) e política (prática) ao candidato.
2.
A figura do homem de ação é central no debate travado entre Merleau-Ponty e Sartre. Em suas cartas, Sartre (1994a; 1994b) procura refutar as críticas que Merleau-Ponty lhe fez numa aula aos estudantes do Colégio de França. Nessa aula, publicada com o título Elogio à filosofia, Merleau-Ponty (1986) traça um panorama histórico das relações entre a filosofia e a política. A posição de Sartre é criticada na última parte do texto.
No fim da sua carta, Merleau-Ponty (1994b) faz um resumo da sua aula aos estudantes, destacando o tema do engajamento. Na aula e no resumo, Merleau-Ponty faz criticas à tradição intelectualista (CHAUI, 1994c), segundo a qual a consciência, situando-se fora do mundo, dominaria a t