História ℰ
Cultura
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Pensatas para o fim de semana
# Um bandido e seus ancestrais na Casa Branca
# Trump não tem condições de ser presidente de nada (Fukuyama, DW) # Trump tem um poder colossal de causar danos (IHU) # Primeira entrevista: plano para deportação em massa de estrangeiros (G1) # Mídia perde influência e se prepara para ataques de Trump (Folha)
# Brasil tem 16,4 milhões de pessoas vivendo em favelas (G1) # Em 12 anos, Paraisópolis sobe 5 posições e se torna a 3a maior favela do Brasil (G1)
Enquanto isso... # Copom eleva taxa de juros e consolida sua posição de promotor da concentração da renda e da universalização da miséria (adspt Intercept) # A maldição de Sísifo (GGN)
# A Era Tarcísio: Leiloar escolas, vender gente (Outras Palavras)
# Elogio da recusa ao trabalho hiperterceirizado (Outras Palavras)
# Bolsonaristas planejavam sequestrar Lula e Alexandre de Moraes (247) # Fascistas estavam informados sobre pessoal e armas da segurança de Lula (Uol) # Até o uso de crianças: as táticas para promover o PL da anistia (Lupa, Uol) # Ives Gandra: o inspirador do golpe? (Uol)
Por que 'aliviar' com um dos maiores bandidos da História?
Opinião pública brasileira encharca os olhos na indignidade da cobertura que a mídia tradicional 'construiu' em torno das eleições nos EUA. Na verdade, Trump é um facínora e sua presença na presidência da maior potência mundial deve ser repudiada. O caminho é a denúncia sistemática de todas as arbitrariedades que cometer.
Leituras indispensáveis
# A democracia americana diante do abismo (Urian Fancelli, Piauí) # Project 2025: como Trump ameaça o mundo (Mel Gurtov, Outras Palavras) # A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca (Franco Berardi, Outras Palavras) # Delírio coletivo: por que o eleitorado 'norte-americano' recoloca Trump, mais ameaçador que nunca, na Casa Branca (Clarissa Carvalhaes, Carta Capital, assinantes) # Ao lado de Trump, bolsonaristas celebram vitória e retomam plano de pressionar o STF (Pública) # Como a mídia americana se comportou (Marcelo Soares, Piauí) # Recordar é viver: Quatro horas que abalaram o mundo (João Lanari Bo, A Terra é redonda).
Enquanto isso...
# Leilão das escolas públicas vai acabar na privatização do ensino público (Daniel Cara, GGN)
# A doença dos jogos on-line (Podcast, Pesquisa Fapesp)
# As bets afetam a saúde mental dos brasileiros (Pesquisa Fapesp)
# Graça Nunes: Inteligência Artificial sem ilusões (Pesquisa Fapesp)
Megalópolis e a utopia de Coppola
A questão central do filme é a modernidade, mais com seus fracassos do que vitórias. Escrito pelo diretor, o longa diz que o sono da utopia desperta monstros, para parafrasearmos Goya. E, nesse sentido, o tempo todo a utopia precisa ser despertada para que o mundo não se curve às trevas dos todos totalitarismos em cidades planejadas para a opressão e dominação.
I'm back
Mapa com o número de delegados conquistados pelos republicanos registrava, antes mesmo do fim da apuração, margem insuperável de votos dados ao ex-presidente. # Acesse aqui o placar do Google
Matérias do clipping de Francisco Bicudo (SinproSp):
# Trump anuncia vitória, diz que fechará fronteiras e promete virada nos EUA: 'Será a era de ouro da América' (G1)
# Trump diz em discurso que América lhe deu mandato sem precedentes (Folha de S.Paulo)
# Trump deverá ter superpoder com maioria no Congresso e na Suprema Corte (Valor)
Trump x Kamala: nas mãos de quem fica O Destino Manifesto?
Acompanhe o noticiário sobre as eleições de 5 de novembro nos Estados Unidos: há dúvidas de toda sorte no ar, mas duas delas são fundamentais: nas mãos de quem vai ficar o governo da maior potência econômica e militar do planeta? E se Kamala vence Trump muda a orientação imperalista de Washington ou ela ressurge disfarçada numa narrativa de roupa nova?
# Campanha de Trump quer questionar resultados. Jamil Chade (Uol) # Trump ameaça o mundo com seu 'projeto vingança'. Ricardo Kotsho (Uol)
EUA parecem mais divididos do que nunca. Mas por trás da polarização...
Imagem: O triunfo da pobreza, Nicole Eisenman (2009)
Controle de Gaza é estratégico: com avanço chinês, garante presença militar maior dos EUA. E conexão econômica entre Israel e a região do Golfo (Outras Palavras)
Chancelaria de Israel notificou a ONU sobre proibição de fornecer ajuda aos civis no enclave palestino (Opera Mundi)
Resultados das eleições municipais animaram forças conservadoras à ofensiva neoliberal. Aparentemente aleatório, movimento que visa emparedar Lula tem objetivo determinado: inviabilizar projetos de cunho social, paralisar iniciativas populares do governo e ceifar, desde já, a candidatura que herdaria a popularidade da política social-democrata
# Recuo forte dos mercados mostra chantagem da Faria Lima contra o governo. João Paulo Kupfer (Uol) # Telebras admite 'pedalada' e prevê rombo de mais de R$ 184 milhões. Julia Affonso (Uol) # Nunes Marques descarta impedir Congresso de limitar poderes do Supremo. Andreza Matais (Uol)
# Itaú-Unibanco tem lucro líquido de R$ 20,6 bilhões no III trimestre de 2024: uma alta de 18,1% em 1 ano (Estadão)
O eixo se deslocou para a direita, mas se afastou do fascismo.
Silvio C. Brava (Le Monde)
Eis aí o recado das urnas nas eleições municipais
Fernando de Barros e Silva (piauí)
Como as urnas afetaram as coalizões que devem se enfrentar em 2026
André Singer (piauí)
# Esquerda nas eleições de 24: melhor acender uma vela que amaldiçoar a escuridão
Orlando Silva (Carta Capital)
Antropólogo ressalta que projeto não se compromete com a prevenção de crimes e contribui com a militarização das forças policiais
# Uma análise do estado do Rio de Janeiro. Mayra Goulart e Giulia Gouveia, A Terra é redonda (acesse aqui)
Leia também Muniz Sodré: # O tamanho do buraco identitário (Folha)
Por SAMUEL KILSZTAJN*
Comentário sobre o pintor holandes
Vincent Willem van Gogh, este homem movido a paixões, de espírito solidário e irreverente, produziu mais de 900 pinturas e 1.110 esboços e desenhos, além de duas mil cartas (820 das quais foram encontradas). As pinturas foram realizadas em seus dez últimos anos de vida, principalmente nos dois últimos. As obras completas, pinturas, esboços, desenhos etc. estão classificadas em http://www.vggallery.com/. As cartas manuscritas, digitadas no idioma original e traduzidas para o inglês estão disponíveis em https://vangoghletters.org/vg/. (acesse)
Link para o texto original do artigo:
Os quadros de Van Gogh estão entre os mais cobiçados e valorizados do mundo, alguns superando a marca dos 100 milhões de dólares. Mesmos suas cartas são comercializadas a preços vultuosos. Em 2020, o Museu Van Gogh de Amsterdam adquiriu a carta escrita em Arles a Émile Bernard a 1-2 de novembro de 1888, com um adendo de Paul Gauguin, por mais de 200 mil dólares.
O preço por metro quadrado de um Van Gogh supera em muito o metro quadrado de um apartamento em Nova York. Boa parte de seus quadros foram pintados em telas de 72 por 90 cm, ou seja, 0,65 metros quadrados. O metro quadrado de um Van Gogh atinge, portanto, mais de 150 milhões de dólares. Um apartamento de 100 metros quadrados na 5ª Avenida, na altura do Hotel Plaza, pode ser adquirido por uma bagatela de dois milhões de dólares, míseros 20 mil dólares por metro quadrado. Ou seja, o metro quadrado de um van Gogh é 7.500 vezes maior que o metro quadrado na 5ª Avenida.
Todo este economês para falar da cultura e do mercado da arte e dizer que Vincent van Gogh, que vendeu apenas uma de suas mais de 900 obras, passou a vida na miséria, sendo amparado emocional e financeiramente por seu irmão Theo van Gogh, um marchand que apoiou o impressionismo. Vincent pintava (e escrevia) compulsiva e convulsivamente. Vivia para pintar, embora não ganhasse um centavo com isso, ao contrário, gastava sua saúde e o dinheiro do irmão que o sustentava, casa, comida, tintas, pincéis e telas. Sua ansiedade o compelia a pintar de forma frenética.
Era obstinado e obcecado a ponto de ser repelido pelas pessoas que o cercavam, o que ainda o levava a ter que enfrentar a solidão. Louco varrido em vida, transformou-se em um deus da arte depois de morto, dando razão a Aristóteles que inicia A política dizendo que um homem solitário é um monstro ou uma divindade.
Em 23 de dezembro de 1888, quando Gauguin estava vivendo com ele em Arles, Vincent teve a sua primeira crise, que o levou a decepar parcialmente o lóbulo de sua orelha direita. Dois dias antes, em 21 de dezembro, Theo havia pedido o consentimento de sua mãe, Anna von Gogh, para o noivado com Johanna Bonger. O noivado foi celebrado em 9 de janeiro de 1889 e o casamento em 17 de abril de 1889. O filho de Theo e Jo, nomeado Vincent Willem em homenagem ao tio, nasceu em 31 de janeiro de 1890. Em 19 de fevereiro de 1890, Vincent escreveu para Anna van Gogh, “… comecei imediatamente a fazer uma pintura para ele, para pendurar no quarto deles. Grandes ramos de flor de amendoeira branca contra um céu azul”.
Em carta de 16 de março de 1889, Theo havia escrito a Vincent, “Você fez tanto por mim que lamento saber que agora que provavelmente terei dias felizes com minha querida Jo, você certamente terá dias muito ruins.” Em carta de 10 de julho de 1889, Vincent escreveu a Theo e Jo, “Eu temia – não inteiramente – mas um pouco, assim mesmo – que eu era um perigo para você, vivendo às suas custas…” Sentindo-se emocionalmente desamparado e um peso para seu irmão, após recorrentes crises, Vincent van Gogh faleceu em Auvers-sur-Oise a 29 de julho de 1890, aos 37 anos de idade. Theo van Gogh, que era devotado ao irmão, assim como o irmão era devotado à arte, e vivia em Paris cercado por uma profusão de quadros encalhados e imerso em mais de 650 longas cartas deste gênio da pintura, partiu seis meses mais tarde, foi ao encontro do irmão em 25 de janeiro de 1891, aos 33 anos de idade.
Embora oficialmente considerada morte por suicídio, a versão de que o polêmico Vincent foi vítima de um homicídio acidental foi levantada em 1930 pelo historiador John Rewald e, em 2012, por Steven Naifeh e Gregory White em Van Gogh: a vida (Companhia das Letras). A versão de homicídio também é apresentada nos filmes Com amor, van Gogh, de 2017, e No portal da eternidade, de 2018. Em carta a Theo de Saint-Remy em 10 de setembro de 1889, após uma crise, Vincent escreveu que ficou assustado e resolveu se alimentar melhor e decididamente investir em sua saúde, “… procuro me curar no presente como quem gostaria de se suicidar, achando a água muito fria, busca alcançar a margem.”
Além de testemunhos de pessoas de Auvers, há vários indícios que desqualificam a versão de suicídio. Ele saíra para pintar, não possuía arma de fogo e o tiro no abdômen em ângulo oblíquo descartava a possibilidade de suicídio; além disso, todos estes materiais, tela, tintas, cavalete e a arma utilizada jamais foram localizados. Antes de morrer, teria afirmado, em consonância com o seu espírito solidário, que fora suicídio para proteger os adolescentes autores do homicídio acidental. De qualquer forma, a versão de suicídio prevaleceu e continua prevalecendo porque, além de atender à disposição de van Gogh, é consonante com a trajetória de um homem que viveu incompreendido e revolucionou a arte moderna.
Vincent van Gogh: Auto-retrato
(Wikimedia Commons)
Vincent van Gogh: Autorretrato Com Chapéu De Palha
(Wikimedia Commons)
Vincent vivia reclamando que precisava urgentemente de modelos que, infelizmente, não tinha condições de pagar. Embora tenha pintado 35 autorretratos e mais de 50 retratos de amigos e conhecidos, nunca retratou Theo van Gogh, ainda que tivessem morado juntos em Paris de março de 1886 a fevereiro de 1888 (há quem defenda, entretanto, que o retrato abaixo seja de Theo). O retrato do Dr. Félix Rey Bust, que cuidou de Vincent em sua primeira crise em Arles, o médico usou para tapar um buraco no galinheiro.
Foto: Wikimedia Commons
* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Partir c’est garder son équilibre [https://amzn.to/48lv9G9]
Três explicações erradas para a derrota de Boulos. Valery Arcary (A Terra é redonda)
O desencanto pela política não aparece em gráficos, mas existe. G. Maringoni (GGN)
Extrema direita cresce e fortalece planos de Tarcísio, Nikolas e Gayer para 2026 (Intercept)
# Leia também: Percepções e valores políticos na periferia de São Paulo (Fundação Perseu Abramo)
A “esquerda vem perdendo adesão nas periferias”; “a esquerda perdeu o diálogo com a periferia”; “a esquerda definha nas periferias das capitais”. Essas são algumas manchetes de jornais recolhidos ao acaso nos últimos dias. Agreguem-se a isso as receitas oferecidas: “é preciso apoiar o empreendedorismo, dialogar com os neopentecostais” etc.
Entre os argumentos esgrimidos estaria o de que a periferia não quer mais CLT, Estado, impostos, “ideologia de gênero” etc. Por exemplo, o Data Favela registrou que 8 em cada 10 moradores de favelas pretendem empreender. # Lincoln Secco, A Terra é redonda.
# Leia também Wilson Gomes: Esquerda precisa perguntar a seu ex-eleitor: "você está melhor sem mim?" (Folha)
Crônica em Washington, às vésperas de uma eleição em que não há saída real. Vencerá a candidata da guerra perpétua ou o da ameaça fascista? Nas ruas, poucos parecem se importar. Mas os bilionários tomaram partido, e evita-se o voto negro. # Tatiana Carloti, Outras Palavras.
Além da disputa presidencial, o que mais está em jogo nas eleições nos EUA no 5 de novembro? # Vitor Farinelli, Opera Mundi
# O Destino Manifesto. A doutrina que faz os EUA acreditarem-se como nação predestinada a impor seu poder ao mundo (BBC)
Talvez nenhuma discussão de Marcuse seja tão importante hoje em dia como essa, quando uma parcela grande da humanidade encontra na tecnologia, tal como ela é, uma resposta para a crise climática e para a crise política, enquanto os setores “progressistas”... # Bruna Della Torre, Boitempo
Francis Ford Coppola, 85, lança "Megalópolis", filme que se tornou famoso antes mesmo de chegar aos cinemas pela longa trajetória percorrida para finalmente estrear
# Fernanda Talarico, Flavia Guerra e Roberto Sadovski, no Splash (Uol)
# A geografia do poder: uma análise das eleições em São Paulo
Diferentes projetos nas diversas regiões (Le Monde)
# Anatomia de um colapso: a crise da privatização dos serviços públicos
O Brasil e a luta pela de reestatização (Le Monde)
STF anula condenações de Dirceu e abre caminho para 2026
# M. Coutinho # Sakamoto # W. Sobrinho # M. Bergamo (Uol e CC)
Governador na mira da lei: esperança é a última que morre
# Tarcísio pode ficar inelegível. Leia as matérias do GGN com entrevista de Kakay e artigo de Dolores Guerra
# BBC
# Em tom de despedida, 'Pepe' Mujica faz discurso emocionante em Montevideu (assista no Youtube)
Mais de 30 instituições ocupadas, nos quatro cantos do país. Aulas públicas, assembleias, estudantes nas ruas. É por verbas e dignidade, mas também contra o ultraliberalismo. Como surgiu o movimento. Por que ele pode sacudir a sociedade.
(...) tudo nos ensina que o sucesso e o insucesso ocorrem indistintamente para os bons e para os maus (*)
Na edição do clipping do site sobre as eleições, o ruído ensurdecedor das análises que procuram explicar o resultado das urnas. Um material rico de percepções que podem nos ajudar a refazer a ponte da esquerda com a sociedade...
# O discurso de Boulos sobre o resultado das urnas # Fabíola Perez # Renato Janine Ribeiro # Jessé Souza # Vladimir Safatle # Joel Pinheiro da Fonseca # IHU # Antonio Martins # Luis Felipe Miguel (acesse o clipping)
(*) Sérgio Buarque de Holanda, citado por Sevcenko em Orfeu extático na metrópole
# Clippping do site atualizado desde o início da campanha eleitoral: as propostas e deslizes dos candidatos, a cobertura enviesada do jornalismo de encomenda e do jornalismo sério; os debates, os espamos populistas, as narrativas fascistas e a utopia de uma cidade feita para a solidariedade e a democracia (acesse aqui). # Leia também as principais informações sobre a campanha do II turno.
Perspectivas: # Os números do Datafolha # Momento exige ousadia e cálculo, diz Claúdio Couto sobre entrevista de Boulos com Marçal (GGN) # Ainda que fosse bom, Boulos deveria ter recusado papo com Marçal (Uol) # Os números na matéria da Rede Brasil Atual # Quaest: Boulos avança entre mulheres e jovens (Carta Capital)
Samir Gandesha, em A Terra é redonda: # A base subjetiva da propaganda fascista (o poder momentâneo do "pequeno grande homem") # Profetas do engano (a erosão da consciência liberal)
Tudo o que eu penso sobre o II turno das eleições para a prefeitura de São Paulo e por que minha escolha é Boulos
O cenário é otimista: depois de amargar todo o peso do radicalismo da extrema direita que se espalha como poeira tóxica pelos vários segmentos da população paulistana, Boulos está atravessando a ponte dos números mágicos das pesquisas.E atravessando também o terreno perigoso do preconceito ideológico que alimenta boa parte das análises da 'grande' mídia (acesse)
A distância dos índices que favoreciam Nunes já é menor que 14% (nesta 5a feira, 24/10), e a julgar pelo engajamento de seus apoiadores esse índice deve cair na reta final da campanha. Bem feitas as coisas e com a contundência das grandes batalhas da cidadania, é possível chegar ao domingo com uma virada parecida com aquela que Erundina deu sobre Paulo Maluf em 1988.
Pode ser que esse meu otimismo não se confirme, mas a insistência na tecla da denúncia dos 'crimes' cometidos pela turma que se articulou com Nunes desde a morte de Bruno Covas, turma essa contaminada com Bolsonaro e Tarcísio, é uma insistência que vai na direção do apoio envergonhado que Nunes tem recebido. Entenda-se o "envergonhado" como um apoio inseguro, sem convicção, tipo 'manada' que corre atrás e que segue o 'cordão' sem nem ao menos saber a letra da música que a galera ensaia cantar. Penso que é um estado catártico que se repete agora depois que Marçal deixou o palco.
Sem saber direito quem é Boulos, o que ele pensa, ou movidos pelo anti-lulismo atávico da imprensa e das elites, o voto em Nunes - as pesquisas já identificaram isso - é o voto dado ao menos pior, como se essa justificativa tivesse algum grau de objetividade que a sustente. A candidatura Nunes é vazia em densidade política e programática e não consegue disfarçar sua origem: o prefeito é um aventureiro que só chegou onde chegou por força da composição de Covas com as forças políticas atrasadas da Câmara Municipal.
É possível que ele vença, mas é possível que não. As próximas 72 horas é que vão dizer se a força narrativa da extrema direita é suficiente para virar esse "a esmo" da parcela dos eleitores que consideram Nunes o menos pior.
A candidatura Boulos, por seu lado, me parece mais estruturada (além da empatia que tenho por ela, pela experiência política do candidato, por sua militância e por sua consistência argumentativa e ética). A filiação de boa parte de suas ideias é a da social-democracia e isso me parece programaticamente mais coerente com os desafios históricos que a sociedade brasileia enfrenta: o fortalecimento do papel indutor do Estado no campo do crescimento econômico, a adoção de políticas fiscais de natureza direta e indiretamente distributiva, a ampliação dos direitos sociais e a recusa radical à privatização de quaisquer setores do patrimônio público. Esse núcleo de propostas (ainda que simplificado aqui) me parece o diferencial da esquerda, sua natureza socialista e a razão de sua articulação orgânica e estratégica, diferentemente do grupo que a mídia e uma parcela do senso comum definem como "de direita" ou "extrema direita".
A prefeitura de São Paulo está no centro dessa polarização e o que difere um e outro polo, além do conteúdo, é o grau de lucidez histórica que um deles tem e o outro não. Em síntese: o fascismo continua sendo o anti-humanismo por excelência e a negação da racionalidade iluminista. Basta ouvir os enunciados de seus líderes e acompanhar as práticas da facção que apoia Nunes para entender isso. O fascismo nega a inteligência; o socialismo tem nela o principal instrumento da emancipação da sociedade e do indivíduo.
Por isso tudo é que eu voto Boulos.
J.S.Faro
Cenários
Variações temáticas numa hora dessas?
# Quando o chat GPT tenta ser Paulo Freire (Orlando Lima Pimentel, Outras Palavras) # Viagem aos porões da Inteligência Artificial (Adio Dinika, O. P.) # The Guardian publica editorial em apoio a Kamala Harris (247)
Deixem que cresçam juntos até a colheita. Então direi aos encarregados: juntem primeiro o joio e amarrem-no em feixes para ser queimado; depois juntem o trigo e guardem-no no meu celeiro' (*)
# A lógica da razão simples: o elogio da idiotice como mensagem (jsfaro.net, 2018)
"Ô cara, fica na tua. Em 2026 sou eu"
Com a presença de Bolsonaro em churrasco e ao lado de Tarcísio, Nunes evitou associar sua imagem à do ex-presidente, embora todos ali sejam matéria da mesma composição orgânica. Temendo ser desautorizado por sua condição de inelegibilidade e sempre sob a perspectiva de prisão pela tentativa de golpe do 8 de janeiro, Bolsonaro se irritou até com o governador do Estado a quem pode ter dito (como se deduz da foto): "quem manda aqui sou eu".
# Leia a matéria de Fabíola Perez e Saulo P. Guimarães no Uol
# Rejeição cresceu com mentiras # Boulos enfrenta extrema direita patrocinada por empresários e por Tarcísio # O aborto legal será restabelecido # Barrar a transformação da polícia em milícia # Tirar a prefeitura das mãos do crime organizado # Denúncia grave contra Nunes será feita nesta semana: anatomia dos esquemas do atual prefeito.
Em entrevista à DW, historiadora Lilia Moritz Schwarcz diz que o país "nunca teve um apartheid na lei", mas "praticou um apartheid por costume". Em novo livro, ela analisa imagens que refletem o racismo na sociedade.
A entrevista é de Edison Veiga, publicada por DW, 21-10-2024 e reproduzida no site IHU (leia aqui)
Denúncia foi feita pelo movimento Sou da Paz. Com cinismo e frieza desconcertantes, e indiferente à dimensão dos sucessivos crimes letais que ocorrem sob sua administração, Governador Tarcísio de Freitas afirma que policiais adotam "procedimentos técnicos" em suas ações.
# Leia a matéria de Paulo Eduardo Dias (Folha) # Por que as mortes pela polícia aumentaram em SP? (Folha)
Modelo brasileiro de alienação do patrimônio público está falido, mas Tarcísio de Freitas, um brontossauro privatista a serviço dos interesses privados, insiste nele
Começa em Londres o julgamento dos responsáveis pela tragédia de Mariana. Não há atenuantes para o descalabro assassino que foi cometido pelos concessionários das barragens: descaso pela segurança da população local e severa incompetência na gestão do 'negócio da China' que foi a privatização da Vale. O caso não é único e pode mesmo ser visto como paradigmático porque em todos os setores onde a privatização ocorreu - no Brasil e no exterior - os danos, além de irreparáveis, são de gravidade humanitária. Privatização é crime.
Saiba mais: # O que está em jogo no julgamento do caso Mariana, em Londres (Opera Mundi) # Entenda o julgamento (GGN) # Milhares de vítimas pedem indenização (JN)
Uma obra prima de Ray Bradbury. A literatura desconfiada do deslumbramento com a sociedade funcional: a distopia como denúncia
“Já se vão cinco primaveras que nos falta o professor Zenir Campos Reis. Falta a presença física. A presença intelectual aí está, nos diversos escritos que Zenir nos legou. Desta vez, seus amigos e discípulos trazemos à conversa o Prefácio à tradução francesa de Fahrenheit 451. Ali, o fio que persegue a atualidade do romance puxa reflexões precisas/preciosas sobre o destino dos livros, da cultura na sociedade capitalista” (Cláudia Arrruda Campos)
Continue a leitura: # Prefácio de Jacques Chambon à edição francesa do livro de Ray Bradbury
# Sem disfarces ou eufemismos: "A esquerda tem o que dizer". Mauro Iasi (Boitempo)
# Haddad acerta ao analisar transição pós-bolsonarismo. Josias de Sousa (Uol)
# Precarização da vida é motivo do desencanto. Tiaraju P. D'Andrea (Uol)
# "Eu era do PT, agora...", diz líder comunitário. Paulo Motoryn (Intercept)
Nobel de Economia, James Robinson, mostra que os abismos sociais aprofundam estado de anomia até mesmo nos partidos de forte enraizamento teórico. # Leia no site da BBC
São Paulo vai continuar nas mãos de um idiota?
# Por que Nunes se dispôs a apanhar? Tales Faria (Uol)
# Nunes perdeu o debate para ele mesmo. Andreza Matais (Uol)
# Jessé Souza: "É preciso mostrar ao povo quem são seus verdadeiros inimigos" (assista Juca Kfouri Entrevista. Youtube)
# Leia a entrevista de Jessé Souza no 247
Caiado e Tarcísio disputam o espólio fascista
# Bolsonaro indica Tarcísio candidato em 2026 e chama Caiado de traidor (247)
# Caiado se diz candidato e revida: "Bolsonaro não tem jeito" (247)
# Zema corre por fora (Carta Capital)
# Brasil tem empresários que pagam só 4% de imposto sobre os lucros (Folha)
"... o lucro deveria ser tributado em 45% nos bancos e 34% nas empresas não financeiras, mas (...) essa carga tributária não é obedecida pela gande maioria dos negócios no Brasil"
Os mercadores do Templo (Marcos 11: 15-16)
# Comentário de Luis Nassif no GGN # Entrevista com a própria Petra Costa sobre o cenário que ela mesma classifica como "assustador e esclarecedor" (Splash, Youtube)
Documentário da Al Jazeera - legendado em português - exibe o terror genocida que Israel impõe aos palestinos na faixa de Gaza. Não há uma norma bíblica ou um preceito moral qualquer que justifique o crime contra a humanidade que está sendo cometido impunemente por Tel Aviv.
# Nunca se viu numa guerra algozes que celebram seus crimes". Além de assistir do filme, vale a pena ler aqui a matéria sobre ele publicada na revista piauí
Voto Boulos! Imprescindível...
# População de SP em pânico: Nunes deixa a cidade à sua própria sorte e, acobertado por Tarcísio, foge do debate com Boulos como o "diabo foge da cruz". Tomara que o troco venha das urnas...
# Alerta da Climatempo (G1) # Boulos culpa Tarcísio pelo apagão e chama Nunes de covarde (Uol) # Datafolha: Nunes 51%, Boulos 33 (247) # Nunes perde musculatura, mas Boulos pode ter chegado no limite (G1) # Paulistanos desesperados 'inventam' sistemas alteernativos de proteção (JN)
# Acompanhe aqui os desafios do segundo turno das eleições de São Paulo
Democracia em declínio e fascismo em alta: "O fenômeno 'pobre de direita' está ditando os resultados das urnas"
# Tiaraju Pablo D'Andrea (Uol)
Rafael Mafei, Piauí
As eleições municipais deste ano mostraram que há duas direitas disputando o eleitorado brasileiro. Ao mesmo tempo em que trabalham juntas contra a esquerda, elas também disputam entre si a hegemonia sobre o campo oposto. Celso Rocha de Barros chamou-as de “direita-redes” e “direita-máquina”. Aplicando-a ao microcosmo paulistano para exemplificar, Pablo Marçal (PRTB) representou a direita-redes no primeiro turno da eleição municipal; Ricardo Nunes (MDB), a direita-máquina (continue a leitura).
# O mito do desenvolvimento econômico
Bresser Pereira analisa o clássico de Celso Furtado
Ladislau Dowbor analisa o desfecho do otimismo do pós II Guerra
# Mapa para livrar o Brasil do agronegócio. Ingrid Pena (Outras Palavras)
# O papo liberaloide sobre qualquer privatização. Reinaldo Azevedo (Uol)
# Senado do México aprova a reestatização do setor energético (Opera Mundi)
# A armadilha mortal de Israel para exterminar Gaza (Intercept)
# Israel x Irã: ataque que pode incendiar o mundo (Outras Palavras)
# Por que os Estados Unidos apostam nas armas? (Folha/Opera Mundi)
“Minha querida mãe deu à luz gêmeos, eu e o medo”, escreveu Thomas Hobbes. O autor de Leviatã e pai da teoria política moderna viveu em tempos de violência extrema. Nasceu em 1588, em uma Inglaterra aterrorizada pela iminente chegada às suas costas da Invencível Armada espanhola. Lidou durante toda a sua longa vida com a pobreza e a violência de uma sociedade dilacerada por sangrentos conflitos religiosos. Então, compreendeu que não havia paixão humana que pudesse competir com o medo e assim expôs em sua obra principal. Sem um forte poder soberano absoluto e coercitivo que trouxesse a paz à humanidade – que ele batizou com o nome do monstro marinho bíblico –, a vida do homem estava destinada a ser “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (Leia a entrevista de John Grey publicada no IHU)
A evolução histórica pareceu desmentir Hobbes, quando o liberalismo nascente deu origem a estados democráticos nos quais o poder estava submetido à lei. Foi uma miragem. Segundo o britânico John Gray (South Shields, 1948), em seu último livro, The New Leviathans [Os Novos Leviatãs], no século XXI, os monstros adormecidos despertaram, os estados autoritários voltam para dar sentido a um mundo incerto.
Gray é o rei dos pessimistas, um pensador denso, de enorme influência, que vem advertindo sobre a fragilidade do sonho liberal muito antes das pandemias, guerras e extremismos religiosos e políticos despedaçarem o otimismo que, nos anos 1990, após a queda do muro, tornou-se uma fé secular. Ao nos encontrarmos com ele por videoconferência, avisa que manterá a tela desligada e que só ouviremos a sua voz.
A entrevista é de Daniel Arjona e Sophia Spring, publicada por El Mundo, 10-10-2024. A tradução é do Cepat.
Quando a pandemia estava terminando e a guerra na Ucrânia começando, um amigo me disse: ‘Sabe, John Gray estava certo e Steven Pinker errado’. É difícil que tenha razão dadas as circunstâncias?
Sim, eu preferiria estar errado sobre muitas das coisas que disse. Por exemplo, em 2003, antes da invasão do Iraque, expliquei que seria uma grande catástrofe para o próprio país, para o Oriente Médio e para o mundo inteiro. Na verdade, foi ainda pior do que eu pensava.
Tenho a reputação de ser um grande pessimista, mas depois os acontecimentos me dão razão. Claro, não sou infalível. Cometi erros e não tenho poderes proféticos. Embora, curiosamente, Cassandra nunca foi escutada. Então, não vou criticar Steven Pinker. Ele é inabalável em seu otimismo racional. Sua religião se sustenta frente a todas as adversidades.
O liberalismo é uma religião que hoje perdeu seus fiéis, conforme defende em seu último livro?
Steven Pinker e outros como ele seguem apegados ao racionalismo liberal, que basicamente afirma que o mundo todo é irracional, exceto eles. Então, a solução para os problemas do mundo é que as pessoas os ouçam.
Lembro-me de um artigo maravilhoso de John Maynard Keynes, chamado Minhas próprias crenças, no qual descreve como abandonou o racionalismo liberal. Dizia algo assim: ‘Durante todo o meu trabalho, em toda a minha vida, pensei que era possível convencer as pessoas no poder com argumentos racionais, que implementariam tudo o que fosse racional e o mundo melhoraria. No entanto, eu estava errado’.
As terríveis previsões históricas de Keynes também deram no cravo.
Keynes relatava que, como representante da delegação britânica na Conferência de Paz de Paris, após a Primeira Guerra Mundial, esperava que se debatesse sobre como lidar com a fome que afetava a Europa. No entanto, encontrou uma situação em que cada potência atacava as outras e se espalhava a sede de vingança contra os alemães.
Pensou, e mais tarde escreveu, que o resultado daquilo seria um grande desastre para a civilização europeia, caso o tratamento à Alemanha derrotada se baseasse unicamente na vingança. E foi isso aconteceu.
Keynes era, na verdade, muito espirituoso. Dizia: ‘Meu amigo Bertie [Bertrand Russell] acredita que toda a história da humanidade foi uma história de crimes e loucura. Mas a solução é simples: todos deveríamos ser mais razoáveis’ (risos).
Mas, então, nós, humanos, não somos esses seres racionais que a teoria política costuma descrever?
Um dos aspectos centrais da vida humana é que as pessoas não são movidas por argumentos, mas por paixões, interesses e, no caso do Ocidente moderno, por suas carreiras. Os racionalistas costumam se mostrar mais irracionais do que as pessoas comuns. O taxista e o garçom que serve o seu café estão mais em contato com a realidade e os problemas cotidianos. Os políticos, ao contrário, estão isolados da vida diária e pensam que entendem as coisas melhor do que o restante das pessoas. Mas é uma ilusão.
Às vezes, os problemas simplesmente não têm solução, só são trágicos e absurdos. Pinker não vê as coisas assim. Seria capaz de defender algo como: ‘Nunca houve um momento melhor para haver um Exterminador’. (Risos). E observe que embora Pinker tenha sido atacado por não ser suficientemente woke, segue acreditando que se você prega a razão, as pessoas vão te ouvir.
Você não quer ser ouvido?
Não espero que alguém faça isso. Não escrevo para mudar políticas. Em muitos casos, as políticas são ditadas por instituições e órgãos de opinião internacionais que não vão mudar. Quando uma política fracassa no Ocidente, a resposta habitual passa por investir mais recursos, alegando-se que houve erro porque não se tentou o suficiente. Depois, sem mais, é abandonada.
Foi o que aconteceu no Afeganistão. Estivemos lá durante 20 anos e alguns diziam: ‘Funcionará a longo prazo, só temos de suportar’. De repente, os estadunidenses partiram sem avisar ninguém. Alguns chegaram a dizer que desta vez os talibãs seriam mais moderados do que antes. Seguem perseguindo as mulheres, as outras religiões e proibindo empinar pipas. Na verdade, são ainda piores. Foi um desastre total.
Então, por que você escreve?
Com a minha escrita, busco incutir o sentido duro e doloroso da realidade. Depois, os leitores podem fazer o que quiserem com isso. Alguns podem dizer que isso não é verdade, e tudo bem. Você pode discordar, tudo bem também. Pode estar certo e eu errado. Contudo, não busco trazer consolo e esperança.
Lamentavelmente, há situações em que não há muito espaço para a esperança. Não resta muita esperança na Ucrânia. Sinto que a nossa responsabilidade, ao menos a minha como escritor e jornalista, é dizer as coisas como são. Não sou um herói, nem me comparo a George Orwell, que foi muito criticado por dizer a verdade. Mas ele é um dos modelos que sigo.
A religião está de volta?
A religião nunca se foi. Os liberais, que sempre se orgulharam de ser empíricos, críticos e de considerar os fatos, deram origem a uma nova fé. Desde então, não conseguem aceitar o horror completo de uma realidade sem Deus. E, então, buscam uma visão do ser humano como uma entidade coletiva, racionalista, que avança ao longo da história. Ou pensam que eles próprios são capazes de diagnosticar e resolver problemas. São ilusões.
Os seres humanos se agarram a ilusões ainda mais fortes quando se veem ameaçados pela realidade. Os piores são os intelectuais. Shalamov, o poeta russo sobrevivente do gulag, lembrava que nos campos de concentração os primeiros a desmoronar eram os intelectuais. O grupo seguinte que sobrevivia melhor eram os criminosos. E os que mais suportavam eram aqueles que tinham fé religiosa. Não desejo nada semelhante, mas temo que algo similar pode acontecer, caso o Ocidente sofra um grande deslocamento. A intelligentsia seria a primeira a naufragar.
Em ‘Os Novos Leviatãs’, a Rússia protagoniza muitas páginas. A guerra na Ucrânia é um desses problemas que não têm solução?
Tem sido ainda pior do que o Iraque. A invasão da Ucrânia começou como um crime contra a humanidade, depois tornou-se uma tragédia, devido à resistência dos ucranianos, e agora se tornou absurda, porque, ao final, tudo levará a um acordo de paz sujo. Muitas vidas foram perdidas e arruinadas por nada. Sim, a Rússia é um desses problemas do mundo que não têm solução. Não pode ser resolvido, apenas contido. Esta continua sendo a opção mais sábia.
A Rússia não se converterá em uma democracia de repente, porque se assim fosse, iria se desintegrar, e não queremos um Estado falido com a maior quantidade de armas nucleares do mundo. Já vimos o que aconteceu na Guerra Civil russa: massacres, doenças, fomes... Seria uma catástrofe gigantesca e agora com armas nucleares.
Desde o início, temi que finalmente os ucranianos fossem abandonados pelo Ocidente, que não teria os recursos, nem a vontade para travar uma guerra de desgaste como esta. Um acordo de paz desfavorável parece ser a coisa mais provável de acontecer. Acabaremos por aceitá-lo, mas antes viveremos horrores extraordinários.
Em ‘Os Novos Leviatãs’, defende que a história não terminou com a queda do comunismo em 1989, mas, ao contrário, ressurgiu. Os historiadores do futuro estudarão o liberalismo como uma experiência fracassada?
Não foi um fracasso total, porque durante algum tempo criou uma civilização de alto nível, com certas conquistas que podemos reconhecer. Embora, é verdade, com muitas imperfeições e problemas internos, como a exploração dos trabalhadores e a discriminação das minorias. A Europa burguesa que entrou em colapso entre 1914 e 1918 era muito melhor do que a que se seguiu: a dos genocídios, do comunismo e das limpezas étnicas.
O erro do liberalismo foi acreditar que essa civilização poderia ser universalizada, quando, na verdade, foi muito mais um acidente histórico, o produto de uma série de coincidências que não durariam para sempre. Os neoconservadores americanos, ultraliberais em muitos aspectos, também acreditaram nisso. Apoiaram a intervenção militar no Iraque e na Síria e almejaram exportar o liberalismo para a Rússia, um país que só viveu breves e fracassadas experiências liberais. Caso tal crença seja retirada dos liberais, suas vidas perdem o sentido. Nunca aceitarão. Meus livros não são escritos para os liberais, mas para os céticos.
No livro, afirma que o capitalismo ocidental nada pode fazer contra o capitalismo de Estado chinês.
O modelo chinês tem uma enorme vantagem estratégica por ser controlado pelo Estado, enquanto o capitalismo ocidental é impulsionado pelo lucro. Diz-se muito, e quase sempre se diz de forma errônea, que os Estados Unidos querem se retirar da Europa e reduzir o seu compromisso aí, e que talvez sob um novo mandato de Trump, este compromisso com a Ucrânia também pode desaparecer.
Alguns sugerem que os Estados Unidos também querem reduzir a sua presença no Oriente Médio para se concentrar em sua relação com a China. Não acredito que isto aconteça. Os Estados Unidos estão muito interconectados economicamente com a China. Os estadunidenses têm muito capital investido na China para se separarem facilmente.
Se a China entender assim, pode iniciar uma guerra que os Estados Unidos provavelmente não se atreverão a lutar?
A China é muito inteligente para iniciar uma guerra porque pode fazer basicamente tudo o que quiser sem a necessidade de recorrer a ela. Mesmo que os chineses conseguissem prevalecer em uma guerra, seria uma catástrofe humana e também política para eles. Não estou querendo dizer que o regime chinês não esteja disposto a lutar, a guerra talvez seja o único meio para obter Taiwan, como desejam. Mas há outras opções, como um bloqueio da ilha, que só tem reservas de energia para três ou quatro semanas.
Os chineses poderiam sufocar Taiwan e esperar que os estadunidenses distraídos com as suas eleições, ou por alguma perturbação interna significativa depois delas, não respondessem. Poderia ser em um momento no qual os Estados Unidos estivessem muito ensimesmados para reagir. E tudo isso sem a necessidade de um conflito total.
Não estou dizendo que um confronto não possa acontecer, mas não penso que seja inevitável. Na minha opinião, é mais provável que, com o tempo, haja algum tipo de acordo sobre Taiwan. Xi Jinping é muito corrupto e frio em sua estratégia. Os capitalistas venderão a corda com a qual serão enforcados.
A China tem os seus próprios problemas.
O regime chinês cometeu grandes erros. Por exemplo, com a gestão da covid, quando mantiveram os confinamentos durante muito tempo, prejudicando gravemente a economia. Não há garantias de que a China, a longo prazo, não se desmorone também. Os Estados totalitários têm os seus limites. E existem graves problemas internos: dívida, uma transição demográfica iminente, com o envelhecimento da população antes de o país ficar rico o suficiente para cuidar dela, bolhas imobiliárias... Sem falar na opressão e na tirania.
Apesar de tudo, contam com uma vantagem sobre o Ocidente. Como não carregam a fé liberal, quando cometem um grande erro, reconhecem, embora não publicamente, e nunca se desculpam. Xi nunca pede desculpas por nada. No entanto, trocam de política. São flexíveis e pragmáticos. Enquanto isso, o Ocidente continua repetindo os mesmos erros e gastando mais dinheiro sem mudar o enfoque.
Uma derrota de Trump nas eleições dos Estados Unidos deterá a ascensão da extrema direita populista ou apenas a adiará?
Depende de se aceita os resultados e os reconhece, mas duvido, pois parece pensar que é algo como o escolhido. Não só a extrema direita estadunidense, mas também muitos liberais estadunidenses tendem a cair em teorias da conspiração. Haverá um grande número de pessoas, talvez um terço da população dos Estados Unidos, que não aceitará o resultado. E muitos progressistas também não aceitarão, caso sejam derrotados.
Portanto, veremos um período de desordem após as eleições, e se alguma coisa for acontecer nas relações internacionais, seja em Taiwan ou na Ucrânia, o momento de maior perigo será no final deste ano ou entrando em 2025. No Reino Unido, vivemos alguns tumultos logo após Keir Starmer chegar ao poder, mas, aqui, as pessoas têm facas, não armas de fogo. Os Estados Unidos têm uma população fortemente armada. A situação pode ser muito pior, incomparavelmente pior, e isso limitaria a capacidade do Estado de enfrentar os perigos externos.
Uma das teses do seu livro é que o liberalismo se transformou em um hiperliberalismo progressista. O que chamamos de ideologia “woke” é a evolução lógica do liberalismo e não do pós-modernismo, como é comum dizer?
As pessoas que dizem que o woke provém do pós-modernismo estão erradas, embora haja uma pequena fração de verdade. Não podemos culpar Foucault pela tomada das universidades estadunidenses pelo progressismo identitário, não teve tanta influência. Isto é algo que provém do interior das sociedades liberais; é uma evolução extrema e hiperbólica dentro do próprio liberalismo.
Ao contrário da repressão da liberdade intelectual na Europa do Leste e na União Soviética, uma repressão muito severa imposta pelo governo, no Ocidente, esta repressão é autoimposta. Nos países comunistas, a repressão vinha do Estado, ao passo que no Ocidente é autoimposta pelas universidades, museus, editoras e pela sociedade civil. É incrível o nível de intolerância que agora domina o discurso nos Estados Unidos e em outros países.
Um de seus primeiros livros, ‘Liberalismo’, publicado em 1986, é uma exposição das ideias liberais que se lê como uma defesa, ainda que, é verdade, uma defesa crítica. O que aconteceu depois? Hoje, você é um liberal desiludido ou se tornou diretamente um antiliberal?
Não compartilho da visão daqueles que nos Estados Unidos pensam que todo o liberalismo foi mal. Como mencionei antes, a civilização liberal floresceu em seu tempo, ainda que não tenha sido perfeita. No entanto, nunca tive grandes ilusões. Naquele livro, defendi o que se chama de aposta liberal, mas também sabia que a civilização liberal era um produto muito frágil.
Não sou discípulo de Hobbes, mas está muito presente em Os Novos Leviatãs porque entendeu bem que a civilização não é natural, nem inevitável, mas extremamente frágil. A civilização, tal como a entendemos em termos de proteção das artes, das letras, das minorias e da luta contra a violência, é algo que sob o liberalismo sempre foi vulnerável. E agora estamos vendo isso em todo o mundo.
Após a Primeira Guerra Mundial, a Europa caiu na anarquia e na ditadura, com genocídios terríveis. Não digo que estamos vendo exatamente a mesma coisa, mas penso que a situação atual no mundo se parece mais com a de antes da Primeira Guerra Mundial do que a de qualquer outra, com uma retomada dos conflitos, tanto nacionalistas quanto ideológicos.
O que está em jogo é a civilização, que é algo raro e frágil, e pode se extinguir. No entanto, eu continuo comprometido com os valores liberais. Mesmo que a civilização esteja destinada a desaparecer, penso que devemos continuar defendendo esses valores e vivendo de acordo com eles enquanto pudermos, mesmo que seja apenas por um sentido de dever trágico.
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# Ciclo de Estudos, IHU Ideias
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Entrevista a Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro, publicada por Ctxt e pelo site IHU (# leia aqui)
# Raquel Landim, do Uol, avalia as circunstâncias políticas que promovem o governador de São Paulo a beneficiário do espólio do bolso-fascismo e da desorientação das elites (# leia aqui). Leia também: # Tarcísio é a mais perigosa expressão do bolsonarismo (Luis Nassif, 247)
Sem linguagem, não há cognição, sínteses mentais nem empatia. Mas sistemas sem corpo e sem cérebro poderão servir-se do domínio da linguagem para se tornar conscientes? Provocações a partir de casos de “crianças ferais”.
Os crimes de Israel
# A resistência é uma necessidade (Intercept)
# Gaza: um desafio moral
(A Terra é redonda)
# Quando se trata de Israel, a imprensa esconde o cadáver (Intercept)
# Um ano de guerra de Israel contra as crianças (Intercept)
São Paulo à beira do precipício político e administrativo: eventual vitória de Nunes deixa a cidade nas mãos de interesses privados da pior espécie
# Primeira pesquisa do Datafolha aponta dificuldades do candidato das forças populares em encarar a extrema direita (leia mais) # Números da FESPSP são diferentes (leia aqui) # Paulistanos tiram 2 pontos de Nunes por apoio de Bolsonaro e aumentam pontos de Boulos pelo apoio de Lula (GGN)
A militância nos movimentos sociais e a formulação de projetos de que combatem a aliança entre corrupção e empresariado
(memória do 1o turno)
Recupere no clipping do site as denúncias feitas contra a candidatura bolsonarista do pior prefeito que a cidade já teve
(memória do 1o turno)
# Líderes de direita querem derrota de Boulos para evitar novo Lula. Raul Monteiro (Política Livre)
# Marçal repete votos da direita em bairros da classe média de SP. Ana Luiza Albuquerque e Júlia Barbon (Folha)
# A eleição do continuismo: o 'gestor' no lugar do político. Luiz Marques (A Terra é redonda)
# Discurso de Boulos comprova o efeito virtuoso das eleições em regimes democráticos. Maria H. Tavares (Folha)
Impunidade. Carandiru, 1992: corredor empoçado no sangue de 111 mortos na maior chacina contra presos jamais registrada na história (leia aqui)
# Córtex: Programa do Ministério da Justiça monitora pessoas indiscriminadamente e cria o Big Brother orweliano (Uol e Pública)
# Câmaras corporais: licença para matar (Folha)
# Entidades questionam candidatos sobre propostas para população de rua (Poder 360)
# Bolsonaro continua impune (Folha)
# A distopia de Orwell e o mal que deve ser evitado (Jornal da USP)
O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a ‘informação’ que não pensa em si mesma.
No núcleo de um sistema que criou múltiplas formas de extrair a riqueza coletiva, há dois grupos de corporações: as Big Techs e as gestoras de ativos. Como elas atuam em conjunto e por que isso é social e politicamente devastador? Panos Tsoukalis, Outras Palavras (acesse)
Por Panos Tsoukalis, em Sin Permiso | Tradução: Eleutério Prado1
Acesso ao texto original publicado em Outras Palavras
O capitalismo mudou de tal forma que o rótulo “neoliberalismo” se tornou obsoleto. A crescente proeminência econômica e política das grandes empresas de tecnologia e de gestão de ativos transformou o capitalismo contemporâneo de várias maneiras. O mais importante é que ela trouxe a predominância da renda sobre o lucro, da apropriação sobre a produção. Isso afetou a lógica fundamental da compreensão econômico-política da realidade social em curso, pondo em questão assim a própria sobrevivência do capitalismo.
O neoliberalismo está aí desde a década de 1980. Desde então, o capitalismo passou por múltiplas crises e transformações. Mais recentemente, ele suportou uma crise financeira global e uma pandemia que paralisou as cadeias de suprimentos e o comércio, trancou as pessoas em suas casas e devolveu o Estado à vanguarda da política econômica.
Há muitas maneiras de entender o termo neoliberalismo. Utilizo o conceito principalmente para me referir a duas coisas: em primeiro lugar, para apontar para uma era na história do capitalismo, que começa com as eleições de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos; em segundo lugar, para fazer referência à predominância de um pacote de políticas econômicas que inclui a liberalização do comércio internacional, a privatização dos serviços públicos e a flexibilização dos mercados de trabalho. Uma característica fundamental do neoliberalismo é que ele alimentou um processo que muitos chamam de “financeirização”, ou seja, o crescente domínio do setor financeiro sobre o sistema econômico.
Alguns estudiosos parecem estar agora, cada vez mais, insinuando que o termo neoliberalismo se tornou inadequado. O capitalismo mudou muito desde a década de 1980 e isso parece exigir uma conceituação diferente, que visa compreender a sua configuração contemporânea. Ele tem sido diagnosticado de várias formas: “capitalismo de vigilância” (Zubboff, 2019), “capitalismo rentista” (Christophers, 2020), “capitalismo de plataforma” (Srnicek, 2017), “capitalismo de gestão de ativos” (Braun, 2022), “capitalismo canibal” (Fraser, 2022), ou “capitalismo de precariedade” (Azmanova, 2020). Ao fazê-lo, também se aponta para diferentes previsões sobre a possibilidade de transformação social progressiva. Varoufakis (2023) e Decano (2020) chegam ao ponto de sugerir que se deve perguntar se ainda é possível falar de capitalismo.
Se o neoliberalismo foi superado, como se deve entender a forma de capitalismo em que habitamos agora? Neste artigo, argumento que qualquer resposta à pergunta sobre o que vem depois do neoliberalismo deve levar em conta a ascensão das grandes empresas de tecnologia e de gestão de ativos e, assim, o seu crescente controle sobre nossas vidas. Vou me basear em duas conceituações que enfocam essas transformações do capitalismo contemporâneo, a saber, a de Yanis Varoufakis, que usa o termo “tecnofeudalismo”, e a de Benjamin Braun, que emprega a expressão “capitalismo de gestão de ativos”.
De fato, uma chave para entender a mais recente transformação do capitalismo contemporâneo pode ser encontrada na exploração dos vínculos entre o que Varoufakis chama de “capital-nuvem” (cloud capital) e as empresas gestoras de ativos, as quais, como argumenta Braun, se tornaram onipresentes. Fazendo um pequeno desvio pela história do pensamento econômico, argumentarei que ambos esses fenômenos sugerem o mesmo, ou seja, que ocorreu já um triunfo da apropriação sobre a produção e, em consequência, da renda sobre o lucro. Sendo assim, as dúvidas sobre a sobrevivência do capitalismo parecem realmente justificadas.
Em Tecnofeudalismo: o que matou o capitalismo (2023), Varoufakis argumenta que o uso da inteligência artificial e das redes digitais e algorítmicas transformou a natureza e o poder de certos bolsões de capital. Ou seja, surgiu uma nova forma de capital – a qual ele chama de “capital-nuvem” – que tem o poder de subjugar a produção capitalista às suas próprias necessidades e lógica. A produção ainda é capitalista, no sentido de que se baseia nos meios de produção privados e na exploração do trabalho assalariado, mas ela está integrada agora por meio de uma estrutura tecnofeudal (voltarei a essa questão na última seção). Enquanto o capital tradicional (ou “capital terrestre”, como o chama Varoufakis) só pode explorar trabalhadores, o capital-nuvem também pode explorar os consumidores, bem como outros capitalistas que não possuem capital-nuvem. Isso adiciona uma camada adicional não apenas à hierarquia de estratificação econômica do capitalismo, mas também à hierarquia social de poder e controle.
Como afirma Varoufakis, os consumidores são explorados porque seu tempo de lazer está sendo explorado pelas “big techs” para obter lucro. O tempo de lazer gasto pesquisando no Google, interagindo com Alexa, postando no Instagram ou navegando pelo TikTok foi instrumentalizado para acumulação de capital na nuvem. Contudo, os consumidores não obtêm nenhum valor extra desse seu “trabalho”.
Uma grande parte dos dados pessoais que compartilhamos em todas essas plataformas acaba formando o que Shoshana Zuboff (2019) chama de “excedente comportamental” (ou seja, o excedente de dados sobre o comportamento do consumidor acumulados acima do necessário para melhorar a experiência do consumidor). Esse excedente é vendido aos anunciantes na esperança de não apenas prever, mas também afetar nosso comportamento futuro.
Varoufakis ressalta que toda vez que interagimos com um servidor digital, como o Alexa, treinamos seu algoritmo para que ele reconheça os nossos hábitos e preferências e possa nos oferecer “boas” recomendações. Mas no final chega um momento, depois de uma inevitável geração de confiança, em que a Alexa começa a explorar o nosso perfil de consumidor para mudar os nossos hábitos e preferências, promovendo produtos que de outra forma não compraríamos. Nesse ponto, não está mais claro quem treina quem, quem é o mestre e quem é o servo.
Em suma, a produção de capital na nuvem depende não apenas do trabalho assalariado (de pessoas diretamente empregadas por empresas como Google ou X), mas também do trabalho não remunerado dos consumidores. Consequentemente, enquanto empresas capitalistas tradicionais como General Motors e General Electric gastam cerca de 80% de sua receita em salários, as grandes empresas de tecnologia acabam gastando apenas cerca de 1%. Esse modo de produzir que recorre ao trabalho não assalariado é aquele que fornece uma semelhança com a ordem feudal.
O capital-nuvem também tem a capacidade de explorar outros capitalistas que não o possuem, substituindo mercados por feudos formados pela própria nuvem. Varoufakis argumenta que plataformas de comércio eletrônico como a Amazon não se constituem propriamente como mercados. Para ele, os mercados são instituições públicas que hospedam interações espontâneas e descentralizadas entre consumidores e produtores.
Em vez disso, os feudos-nuvem isolam o comprador do comprador, o vendedor do vendedor, de modo que apenas o algoritmo tem o poder de conectá-los. Entrar na Amazon é como entrar em uma cidade onde tudo pertence e é controlado por uma única pessoa, ou seja, por Jeff Bezos. Ao contrário da natureza pública e aberta dos mercados, isso descreve um arranjo institucional privatizado por meio de um processo de centralização. Isso permite que os proprietários do capital-nuvem exijam comissões excessivas (até 40% no caso da Amazon) de outros capitalistas para que eles possam acessar o feudo tecnológico, pagando o que Varoufakis chama de “aluguéis da nuvem”.
Quanto ao efeito do capital-nuvem sobre os trabalhadores, Varoufakis mostra que sua capacidade de supervisão e controle total leva a uma exploração ainda maior do trabalhador, mais até do que aquela que o capitalista tradicional poderia fazer. Isso se mostra bem nos armazéns da Amazon, onde a tecnologia portátil e os algoritmos trabalham incansavelmente para otimizar os processos de embalagem e, assim, para espremer os trabalhadores do armazém ao ponto de levá-los ao colapso. Em vez de responder a um chefe, os trabalhadores respondem a um algoritmo que rastreia todos os seus movimentos. Como resultado, não apenas eles são forçados a trabalhar mais, mas sua capacidade de ação coletiva para salvaguardar as condições mínimas de trabalho (como o direito de ir ao banheiro) é significativamente diminuída.
No contexto do neoliberalismo, isso implica numa grande perda de poder por parte dos trabalhadores, e esse padrão tem ficado muito evidente nas últimas décadas. Desde a década de 1980, os ganhos de produtividade beneficiaram quase exclusivamente os empregadores nos EUA, enquanto os trabalhadores viram seus salários reais estagnarem, se não diminuírem. Veja-se o gráfico abaixo produzido pelo Economic Policy Institute, em 2024. Ele mostra a crescente diferença entre a produtividade dos trabalhadores e a remuneração salarial nos EUA (1984-2024).
Nancy Fraser (2022) chama esse fenômeno de ascensão do “trabalhador híbrido”, um trabalhador que é ao mesmo tempo explorado e expropriado. Seguindo Marx, Fraser entende que a exploração capitalista ocorre porque o empregador paga um salário que cobre apenas os custos necessários de reprodução do trabalhador, mas fica com a maior parte do valor gerado, na forma de mais-valor (na forma do lucro).
No entanto, afirma Fraser (2022), a expansão da dívida permitiu que os empregadores pagassem ainda menos aos trabalhadores. Ou seja, muitos trabalhadores sob o neoliberalismo recebiam menos do que precisavam para sobreviver como trabalhadores ativos, o que os levava a se endividarem cada vez mais. Assim, além de explorado, ele passou a ser também expropriado. A isso, Varoufakis (2023) acrescenta que a chegada do capital-nuvem piora ainda mais as coisas devido à sua maior capacidade de vigilância e controle que, juntamente com o endividamento, torna o trabalho dos trabalhadores ainda mais expropriáveis.
Varoufakis afirma que a chegada do capital-nuvem implica a impossibilidade da social-democracia, pelo menos tal como foi concebida no final do século XX. Pois, não se sabe bem como é possível regular as plataformas das “big techs”. A regulamentação de preços é impossível, pois elas oferecem seus produtos gratuitamente; por outro lado, a regulamentação antitruste é difícil de aplicar, já que a lógica das plataformas consiste em sua capacidade de realizar economias de escala. Seja uma plataforma de aluguel de apartamentos ou uma plataforma de aluguel de táxi, o principal produto que uma plataforma oferece a compradores e vendedores é o acesso a uma ampla rede de compradores e vendedores. Na maioria dos casos, uma plataforma pequena oferece sempre um produto ruim.
Além disso, sob o capitalismo de vigilância, os trabalhadores são monitorados de perto para impedir sua ação coletiva; ademais, enquanto consumidores, eles ficam fisicamente isolados, o que dificulta a organização de boicotes. Ainda assim, o recente sucesso do sindicato dos trabalhadores da Amazon nos EUA e os boicotes dos consumidores à Starbucks, Pizza Hut e McDonald’s mostram que nem toda esperança foi perdida.
De fato, Varoufakis argumenta que essas barreiras podem ser superadas por uma grande coalizão de trabalhadores, consumidores e pequenos capitalistas que não possuem capital-nuvem (por exemplo, o restaurante ou o bar de bairro, cujos lucros são reduzidos por taxas exorbitantes cobradas pelo Uber Eats). Tudo isso mostra que é preciso pensar além das estratégias tradicionais da política progressista; ele sugere que é preciso gerar um engajamento que chama de “mobilização em nuvem” – isto é, seria necessário usar os recursos da nuvem contra o próprio capital-nuvem.
Enquanto a análise da ordem social atual como “tecnofeudal” concentra a atenção no poder social das plataformas e das grandes empresas de tecnologia, o diagnóstico do “capitalismo de gestão de ativos” nos convida a levar em consideração a enorme ascensão das empresas de gestão de ativos. Benjamin Braun e Brett Christophers apresentam em seu livro alguns fatos estilizados.
As três grandes gestoras de ativos (BlackRock, Vanguard e State Street) detinham, em 2008, cerca de 13,5% de todas as empresas do S&P 500; agora, em 2024, essa porcentagem chegou a 22%. Varoufakis (2023) acrescenta que elas são os maiores acionistas de 90% das empresas da Bolsa de Valores de Nova York. Além disso, as gestoras de ativos controlam conjuntamente US$ 126 trilhões em recursos financeiros, obtêm um total de US$ 526 bilhões em receita, auferindo lucros estimados em cerca de US$ 200 bilhões por ano (equivalente ao PIB da Grécia) (Braun & Christophers 2024). Sem dúvida, como se vê, os números aqui falam por si.
As gestoras de ativos usam seu imenso acesso a recursos financeiros para influenciar ativamente o comportamento das empresas capitalistas. As gestoras de ativos “convencionais”, como as “três grandes”, obtêm recursos das empresas de seguros, dos fundos de pensão e dos fundos soberanos, todos os quais procuram-nas para investir as enormes somas de capital que detêm. Devido ao seu enorme tamanho, as gestoras de ativos tendem a possuir um capital significativo, o que lhes permite manter um controle substancial sobre as políticas das empresas. Braun e Christophers afirmam que as gestoras de ativos se tornaram o “sistema nervoso central da sociedade capitalista contemporânea”, bem como componentes centrais do capitalismo como um todo.
Os Estados também são reféns das preferências políticas das grandes gestoras de ativos. Especialmente no Sul Global, onde os países dependem de títulos denominados em moeda para financiar seus serviços estatais, as gestoras de ativos podem afetar diretamente seu acesso ao mercado de títulos soberanos. Tornam-se, portanto, árbitros de capacidade creditícia, da solvabilidade e, em última análise, também da soberania de vários países.
Além disso, muitos Estados dependem cada vez mais das gestoras de ativos para conceber e aplicar as suas próprias políticas, por exemplo, no que diz respeito à transição ecológica e até mesmo para o fornecimento de bens públicos básicos. Não apenas isso, mas a dependência do Estado e o enfraquecimento (ou completa inexistência) da soberania monetária, juntamente com o imenso acesso aos recursos, significam que as gestoras de ativos também têm a capacidade de pressionar diretamente os governos. Isso ocorre com o objetivo de impedir a regulamentação ou para promover ativamente sua agenda política.
Um exemplo de um espaço de política em que a influência das gestoras de ativos tem sido crítica é a política monetária. Benjamin Braun (2022) argumenta que a abordagem moderada adotada pela maioria dos bancos centrais para combater a inflação recente está relacionada à influência das gestoras de ativos.
Tradicionalmente, a política monetária tem sido um campo em que se dá o conflito de classes. Os bancos, os credores e os poupadores geralmente preferem inflação baixa e altas taxas de juros, mesmo que isso custe algum desemprego. Pelo contrário, os trabalhadores e os devedores preferem taxas de juros baixas, pois facilitam o investimento e a criação de empregos. Na verdade, os devedores muitas vezes estão dispostos a suportar alguma inflação porque ela consome o valor real de sua dívida.
A ascensão das gestoras de ativos alinhou os interesses de Wall Street com os da classe trabalhadora na questão do nível da taxa de juros. As taxas de juros persistentemente baixas levaram à inflação dos preços dos ativos; conforme se eleva os seus valores de mercado, aumenta a receita dessas empresas que obtêm na forma de taxas. Ao tornar os empréstimos mais baratos, as baixas taxas de juros também reduziram os custos de financiamento para as gestoras de ativos altamente alavancadas. Dessa maneira, os interesses dos bancos e poupadores foram superados pelo poder acumulado pelas gestoras de ativos.
O que não está claro nesta apresentação do capitalismo das gestoras de ativos é a questão de saber se isso representa uma ruptura radical com o neoliberalismo ou se se está diante simplesmente do resultado do aprofundamento da financeirização. Uma crítica muito comum ao neoliberalismo é que ele significou o triunfo do capital financeiro sobre o resto da economia. No entanto, esse triunfo transformou o motor do sistema econômico; se era produtivo, tornou-se parasitário. As atividades especulativas tornaram-se mais lucrativas do que o investimento produtivo, criando uma situação em que se gera muita instabilidade financeira. Não apenas isso, mas esse domínio sufoca supostamente o crescimento da produtividade, pois o capital é cada vez mais desviado de outras atividades para as finanças (ver Mazzucato 2018, Harvey 2024, Lapavitsas 2013).
Talvez o primeiro economista a estabelecer uma ligação explícita entre o neoliberalismo e a crescente influência de investidores institucionais, como fundos de pensão, tenha sido Hyman Minsky (Whalen 2010). Para Minsky, a década de 1980 inaugurou a era do “capitalismo das gestoras de dinheiro”; nesse andamento, as gestoras e os seus fundos se tornaram os novos mestres da economia. As suas preocupações sobre esse fenômeno eram muito semelhantes às discutidas acima, ou seja, apontavam para a natureza propensa a crises do sistema, bem como sua relutância em financiar investimentos produtivos. Embora o diagnóstico de Minsky tenha sido bem profundo, é duvidoso que ele tenha imaginado a extensão da propriedade concentrada e o poder que os gestores de ativos acumularam agora.
Assim, se a ascensão das gestoras de ativos representa o culminar do longo processo de financeirização da economia (ou seja, o crescente domínio das finanças sobre todos os outros setores produtivos), muitas das críticas ao neoliberalismo nas últimas décadas ainda podem ser relevantes. Podemos estar testemunhando novos níveis de concentração de capital; diante disso, portanto, continua sendo uma prioridade política controlar as finanças para garantir que elas funcionem para o bem público. No entanto, este não é o caso se se aceita o diagnóstico proposto por Varoufakis. Como foi sugerido na seção anterior, se se aceita a hipótese do tecnofeudalismo, torna-se necessário repensar radicalmente as prioridades políticas, bem como das estratégias para a transformação social progressista.
É inegável que a ascensão do capital-nuvem e das gestoras de ativos são dois fenômenos fundamentais que estruturam o capitalismo contemporâneo. Talvez sejam esses dois tipos de corporações que configuram, pelo menos até certo ponto, o que virá (ou o que já está vindo) depois do neoliberalismo.
Embora as duas críticas ao capitalismo contemporâneo antes analisadas direcionem nossa atenção para fenômenos diferentes, as implicações que podem ser extraídas delas têm muito em comum. Na verdade, ambas implicam uma maior concentração de capital e de poder nas mãos de poucos, bem como um aumento da desigualdade de renda e riqueza. No entanto, o que quero enfatizar aqui é que ambas as estruturas sugerem a predominância da renda sobre o lucro, da apropriação sobre a produção.
Muitos consideraram que o advento do neoliberalismo e da financeirização vêm de mãos dadas com o retorno da figura do rentista. Por exemplo, Harvey (2024) argumenta que a financeirização e a monopolização criaram o rentista moderno que não produz nada além de benefícios monetários por meio da propriedade de ativos ou especulação financeira. Azmanova (2020) considera que os rentistas têm sido ativamente criados por políticas estatais que visam aumentar a competitividade dos “campeões” nacionais ou regionais, em detrimento da concorrência de mercado e da regulação antitruste.
Parece que o processo em andamento de substituição do neoliberalismo está trazendo algo ainda pior. Os donos das nuvens e as gestoras de ativos são rentistas por excelência. Eles estão no negócio de tomar, não de fazer. Eles se beneficiam da propriedade e do controle – e não da produção – em condições de concorrência limitada. Brett Christophers (2020) tem a mesma visão, sugerindo que os aluguéis pagos pelo uso das plataformas desempenham um papel fundamental no que ele chama de “capitalismo rentista”.
Em seu livro sobre empresas de gestão de ativos, ele também conclui que os gestores de ativos são “rentistas puros” (Christophers, 2023). Um gestor de ativos pode ser proprietário de um parque eólico na Noruega ou de um complexo imobiliário na Flórida, mas isso não tem nada a ver com a operação e manutenção do dia a dia desses ativos, que são terceirizados para outras empresas. Eles não produzem nada, enquanto “seu negócio é maximizar o próprio ganho por meio da extração de receitas – ou seja, aquele rendimento que é obtido por meio desse ativo” (Christophers 2023).
Esses estudiosos consideram que a produção capitalista é simultaneamente baseada no lucro e na renda, na produção e na apropriação, na exploração e na expropriação. Embora na ascensão do capitalismo a renda, a apropriação e a expropriação tenham sido obstadas, elas nunca foram completamente superadas. Essas duplicatas não são equivalentes entre si, mas todas apontam para o fato de que o capitalismo não é um mero sistema de troca contratual no qual os mais eficientes, os mais produtivos e os mais inteligentes se beneficiam de acordo. Por trás da troca contratual está escondida a morada da renda imerecida, do capital patrimonial, do poder hereditário e da expropriação pura e simples. Para Varoufakis (2023), o triunfo do lucro sobre a renda foi o que acabou definindo a transição do feudalismo para o capitalismo. Nesse sentido, o retorno da renda que o capital da nuvem trouxe significa que devemos questionar se estamos vivendo ainda sob o capitalismo.
Na economia política marxista, a importância do equilíbrio entre lucro e renda foi mais claramente expressa por Rosa Luxemburgo, que argumentou que a acumulação primitiva era uma característica estrutural do capitalismo – e não apenas sua condição primitiva. Por outro lado, na economia política clássica, David Ricardo considerava os latifundiários rentistas como vestígios do feudalismo que impediam o pleno florescimento do modo de produção capitalista. Keynes, da mesma forma, pediu a eutanásia do rentista, referindo-se principalmente aos financistas parasitas que enriqueceram mantendo o capital artificialmente escasso (Mann, 2019). Mesmo na economia neoclássica convencional, o termo renda monopolista refere-se aos lucros acumulados acima dos lucros normais alcançáveis sob um design de mercado eficiente e competitivo.
Antes de resumir o resultado dessa apresentação sumária da questão da superação histórica do neoliberalismo, apresentamos abaixo um retrato dos vinte principais acionistas institucionais das 10 maiores empresas de tecnologia dos EUA:
Em suma, em muitas escolas de pensamento econômico, bem como em afiliações políticas, a busca de renda, a apropriação e a expropriação são vistas como fardos em uma economia capitalista. De uma perspectiva avaliativa, se toda essa extração não pode ser considerada como totalmente moral, pelo menos tem de ser tomada como politicamente censurável. Portanto, se o que estamos testemunhando agora é uma nova mudança na balança em direção à renda e à apropriação, ainda maior do que a provocada pelo neoliberalismo, então maiores problemas virão.
Varoufakis (2023) coloca a origem dos problemas (ou seja, a extração de renda ou “rent-seeking”) em grandes empresas de tecnologia, enquanto Braun e Christophers (2024) o fazem em empresas de gestão de ativos. O que falta, no entanto, é a relação entre esses dois fenômenos. Dado que a Blackrock et al. são os principais acionistas de grandes empresas de tecnologia, como isso afeta a nova dinâmica introduzida pelo capital em nuvem? Os gestores de ativos são os verdadeiros rentistas de nuvem? Como pode ser visto na tabela acima, parece que a resposta é afirmativa (Hyppolite & Michon, 2018). As gestoras BlackRock, Vanguard, State Street e Fidelity detêm as maiores participações (coletivamente, mais de 20%) nas 10 principais empresas de tecnologia dos EUA.
Se os mercados públicos e abertos não são mais o principal mecanismo de distribuição de bens e serviços, se a alocação de recursos financeiros está sujeita aos caprichos idiossincráticos de algumas corporações gigantescas, se as grandes empresas de tecnologia adquirem uma parcela significativa de seu capital gratuitamente porque os consumidores lhes fornecem os seus dados – isto é, se a renda deslocou o lucro nas economias, então, na verdade, ainda estamos falando sobre o capitalismo?
Teorizar o agora se tornou, muitas vezes, desafiador. No entanto, tentar conciliar a ascensão do capital-nuvem com a ascensão das gestoras de ativos pode ser a chave para entender as profundas transformações pelas quais o capitalismo está passando. O que deve se seguir do exposto, tomando o desafio de Varoufakis, é uma tentativa de vincular teoria e prática. Ou seja, encarar o fato de que, junto com o neoliberalismo, a conhecida caixa de ferramentas da política progressista (por exemplo, tributação, regulamentação e mobilização) também se tornou desatualizada, ou pelo menos inadequada para os desafios futuros. Talvez devêssemos pensar e agir de forma mais radical.
Referências
Azmanova, A. (2020). Capitalism On Edge: How fighting precarity can achieve radical change without crisis or utopia. Columbia University Press: NY, USA.
Braun, B. (2022). Exit, Control, and Politics: Structural power and corporate governance under asset manager capitalism. Politics & Society. 50(4): 630–654.
Braun, Β. & Christophers, Β. (2024). Asset manager capitalism: An introduction to its political economy and economic geography. Economy and Space. 56(2): 546-557.
Christophers, B. (2023). Our Lives in Their Portfolios: Why Asset Managers Own the World. Verso: London, UK.
Christophers, B. (2020). Rentier capitalism: who owns the economy, and who pays for it? Verso: London, UK.
Dean, J. (2020). Neofeudalism: The End of Capitalism? Los Angeles Review of Books.
Economic Policy Institute (2024). The Productivity-Pay Gap. https://www.epi.org/productivity-pay-gap/.
Fraser, N. (2022). Cannibal Capitalism: how our system is devouring democracy, care and the planet – and what we can do about it. Verso: London, UK.
Harvey, D. (2024, forthcoming). The Story of Capital: What everyone should know about how capital works.
Hippolyte, P.A. & Michon, A. (2018). Big Tech Dominance (1): The New Financial Tycoons. Fondation Pour L’Innovation Politique Study. https://www.fondapol.org/en/study/big-tech-dominance-1-the-new-financial-tycoons/.
Lapavitsas, C. (2013). Profiting Without Producing: How Finance Exploits Us All. Verso: London, UK.
Mann, G. (2019). In the Long Run We Are All Dead: Keynesianism, Political Economy, and Revolution. Verso: London, UK.
Mazzucato, M. (2018). The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy. Public Affairs: NY, USA.
Srnicek, N. (2017). Platform Capitalism. Polity Press: Cambridge, UK.
Varoufakis, Y. (2023). Technofeudalism: What Killed Capitalism. Bodley Head: London, UK.
Whalen, C. J. (2012). Money Manager Capitalism found in Chapter 34 of Toporowski, J. & Michell, J. (2012). The Handbook of Critical Issues in Finance. Edward Elgar: Cheltenham, UK.
Zuboff, S. (2019). The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Public Affairs: NY, USA.
Notas:
1 O economista Eleutério Prado é um dos expoentes destacados, no Brasil, no debate sobre as novas formas assumidas pelo capitalismo após a contrarrevolução neoliberal. Ele traduziu generosamente este artigo, mas faz questão de frisar uma discordância conceitual com o autor. Ei-la:
“Publica-se um artigo informativo, mas bem confuso, que versa sobre as mudanças no capitalismo advindas da ascensão das grandes empresas de tecnologia digital (big techs) e das gestoras de ativos, as quais são apresentadas como “rentistas”. Ele não compreende que capital é uma relação social de exploração que se manifesta por meio de formas reificadas, a saber, dinheiro, meios de produção e mercadorias acabadas. Ele parece não saber nada sobre a distinção entre o capital portador de juros, que financia a produção de mercadorias, e o capital fictício, que financia o consumo ou tem uma relação indireta com a produção. Chama, por isso, os pagamentos associados ao capital fictício de renda, confundindo, assim, os pagamentos de “juros” apropriados pelo capital fictício – que não é de fato capital, mas parece que é – com a renda da terra. É partindo desse erro crasso, que teóricos pouco rigorosos chegam à ideia absurda do tecnofeudalismo. Contudo, ainda assim o artigo pode ser lido com proveito.
O avião veio do Rio, parou em São Paulo e seguiu para Santiago. Estava vazio. A seleção brasileira ia jogar amistoso contra a chilena, como preparativo para as Eliminatórias da Copa de 86. Era maio de 1985, e o Chile ainda vivia sob a feroz ditadura do general Augusto Pinochet.O jogo seria no estádio Nacional, reaberto havia pouco depois de ter servido durante anos como cárcere e palco de tortura e de fuzilamento de presos políticos. No avião, encontro João Saldanha, o único. Sento-me ao seu lado e engatihamos mil conversas. # Juca Kfouri, na Folha (acesse)
João era para ser ouvido. E eu não me cansava de ouvi-lo. Eis que, quando estávamos para pousar, ele botou a mão em meu braço e disse, paternal, como às vezes gostava de fazer: "Olha aqui. Eu te conheço, e você me conhece. Você sabe que não sou de ter medo de nada, mas vou te avisar; a ditadura aqui não é mole. Eles somem com as pessoas, sejam elas quem forem, venham de onde vierem. Não vá bancar o herói e falar mal desses caras na TV porque eles vão estar ouvindo".
Achei graça e o tranquilizei.
Na noite anterior, ao me despedir de meu pai, ouvi dele coisa parecida: "Cuidado lá, filho. Não vá se meter a balão".
Eu já tinha três filhos, 35 anos, não era nenhuma criança e tinha razoável experiência política, ex-militante da ALN (grupo de resistência armada à ditadura brasileira) e do Partido Comunista Brasileiro, eterno partido do nosso João Saldanha.
Chegamos ao estádio, o narrador do SBT, Osmar de Oliveira, abre a jornada e me chama para os primeiros comentários.
Sem me dar conta, tamanha a emoção de estar naquele lugar sinistro num momento em que, no Brasil, já vivíamos a reconstrução democrática, engato a primeira e vou: "O estádio Nacional de Santiago desperta duas sensações antagônicas. Foi aqui que, em 1962, a seleção brasileira liderada por Mané Garrincha ganhou o bicampeonato mundial". E engato a segunda: "Mas foi aqui também que, em 1973, a ditadura chilena assassinou e prendeu milhares de patriotas que se insurgiram contra o golpe militar que derrubou o presidente socialista democraticamente eleito, Salvador Allende".
Osmar de Oliveira, para quem Saldanha havia pedido "segura esse cara", me olha com olhar de espanto.
E engato a terceira: "Aqui morreram patriotas como o compositor *Victor Jara, que, antes de ser fuzilado, teve os dedos das mãos quebrados pelos militares chilenos para não poder tocar para os prisioneiros".
Por fim, a quarta: "Aqui morreram e estiveram presos muitos exilados brasileiros também".
E devolvo a palavra para Osmar. Nem bem passados dois minutos, ele me cutuca.
Na porta de nossa cabine, um cidadão de terno e cara de poucos amigos estaciona com ares de quem vai ficar. E fica até o fim do jogo. E nos acompanha ao jantar, ao hotel e ao aeroporto, às seis da matina do dia seguinte.
João Saldanha não falava nada, só me fuzilava com o olhar, mas sem arredar pé de perto de mim o tempo todo.
Ao chegar a São Paulo, quando fui me despedir, ele abriu um sorriso e disse marotamente: "Parabéns. Você é um fdp, mas é o meu orgulho".
Três explicações: publiquei este texto em "Meninos, Eu Vi", *Jara morreu em outro estádio e omiti o fdp no original, pois não pegava bem à época.
Assembleia realizada no porão do navio decide qual o rato que fica com o guizo (na gravura magistral de Gustave Doré)
# O desvio para o centro nas eleições é ilusão (Hugo Boghossian, Folha) # A desilusão progressista e a nova realidade (Wilson Gomes, Folha)
# Malafaia: Bolsonaro é covarde (JC)
# Por que isso?(G1)
# Tarcísio: Bolsonaro é o nosso líder (Folha)
# Quem apoia quem - por enquanto (Uol)
# "Boulos deve ganhar", diz o ex-coach (Folha)
# Bolsonaro por Marçal não é só troca de liderança (Intercept)
# Entrevista com Esther Solano, IHU (acesse)
No último domingo, o Brasil realizou eleições municipais e a cidade de São Paulo foi o centro das principais batalhas. As eleições mostraram a sobrevivência do centrão, a expansão do campo conservador e a incapacidade de Luiz Inácio Lula da Silva em dar novo impulso ao Partido dos Trabalhadores.
A entrevista é de Pablo Stefanoni, jornalista argentino, autor do livro A rebeldia tornou-se de direita (Editora da Unicamp, 2022), publicada por Nueva Sociedad, outubro de 2024.
As eleições municipais no Brasil revelaram uma capacidade limitada de atrair o Partido dos Trabalhadores e o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com resultados fracos nas grandes cidades e em algumas áreas emblemáticas da esquerda. O ex-presidente Jair Bolsonaro conseguiu fazer pender a balança em diversas cidades a favor dos candidatos conservadores, mas mesmo assim os partidos tradicionais mostraram resistência nos territórios, pela força de seus aparatos e de seus pactos ultrapragmáticos.
Nesta entrevista, a cientista política Esther Solano dá algumas chaves de leitura dos resultados. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora da Universidade Federal de São Paulo, centra-se na emergência do pós-bolsonarismo, como uma identidade conservadora mais ampla que depende apenas parcialmente do ex-presidente.
Comecemos por São Paulo, a joia da coroa das eleições municipais brasileiras, o que nos diz o vínculo entre o atual prefeito, Ricardo Nunes, apoiado sem entusiasmo por Bolsonaro, e o candidato de esquerda Guilherme Boulos, apoiado por Lula? Irão para o segundo turno e deixarão o forasteiro Pablo Marçal na terceira colocação?
São Paulo representa fundamentalmente o que chamamos de novo momento do pós-bolsonarismo ou das novas reconfigurações da extrema-direita no Brasil. Em escala nacional, mas especialmente em São Paulo, cristalizou-se uma divisão da extrema-direita em dois grupos: um mais sistêmico, representado por Ricardo Nunes (do Movimento Democrático Brasileiro mas apoiado por Bolsonaro), e sobretudo pelo grande figura encarnada pelo Governador Tarcísio de Freitas, que está mais próximo da direita tradicional, e parece ser mais pró-establishment e menos perturbador, e outro grupo mais perturbador, como Pablo Marçal – um guru pessoal de autoajuda. Uma figura mais próxima do influenciador, com uma campanha muito autônoma do bolsonarismo e de seu líder, mas que mantém uma série de temas desse movimento, como a denúncia do Estado corrupto, a defesa da “liberdade”, o empreendedorismo e a meritocracia. Isto encarna um bolsonarismo mais novo e mais sedutor, uma espécie de pós-bolsonarismo.
Do lado esquerdo, Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que conta com o apoio de Lula, teve um bom desempenho, mas agora é difícil para ele romper com o já fiel voto esquerdista. De uma forma geral, a sua candidatura enfrenta uma dificuldade mais ampla da esquerda em lidar com novas subjetividades – muitos jovens votaram em Marçal – mas também com questões concretas da vida cotidiana, do governo municipal.
No geral, o PT teve um resultado ruim, principalmente nas grandes capitais, mas melhorou em relação a 2020. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse que é um partido em reconstrução. No Rio de Janeiro, venceu o candidato apoiado por Lula, o atual prefeito Eduardo Paes, mas é um centrista pragmático, que passou por inúmeras disputas... como você vê isso?
É verdade que o resultado do PT não tem sido bom, principalmente considerando que Lula está no poder. E mais ainda: que Lula está no poder com um governo que funciona muito bem. Então isso torna o resultado mais dramático, porque o PT deveria ter conseguido se beneficiar disso.
Um elemento é que a figura de Lula não tem a mesma força de mobilização de antes. Hoje representa mais a gramática do passado do que a do futuro. Paradoxalmente, embora os conservadores olhem para o passado, estão conseguindo projetar a ideia de um “outro Brasil”, com certa perspectiva refundacional. Depois, há questões mais terrenas, como a segurança pública.
Mas entre os vencedores estão os partidos tradicionais: o famoso centrão, ultrapragmático e corrupto mas com muita capilaridade territorial. E, por outro lado, o bolsonarismo, que carrega fundamentalmente a força ideológica, a “luta por valores”, etc. O Partido Liberal (aliado de Bolsonaro) cresceu substancialmente.
A esquerda não mostrou nem a capilaridade territorial do centrão nem a força ideológica do bolsonarismo. Isto explica parcialmente o resultado.
O Partido Liberal de Bolsonaro se saiu melhor, mas não tão bem... os partidos tradicionais, como o Partido Social Democrata (PSD) e o MDB, resistiram melhor?
O PL se saiu bem, mas, na verdade, não tão bem quanto eu esperava. Não ganhou os mil municípios que pensava. O resultado mostra que em nível local há, na política cotidiana, um certo esgotamento da polarização, por vezes algo abstrata ou vazia, que se verifica em nível nacional, daí os bons resultados dos partidos tradicionais. O segundo turno em São Paulo sem dúvida será nacionalizado e Lula e Bolsonaro aparecerão mais. Teremos de ver o poder desta nacionalização polarizadora.
Qual foram os papéis de Lula e Bolsonaro na campanha? Os resultados nos dizem algo sobre a liderança nacional?
Bolsonaro esteve presente em alguns locais e fortaleceu candidaturas no Norte e Nordeste, mas fracassou no Rio de Janeiro, onde seu candidato, Alexandre Ramagem, não conseguiu chegar ao segundo turno. Por sua vez, Lula tem estado geralmente pouco presente.
Quanto à liderança nacional, a eleição diz-nos que Bolsonaro – desqualificado pela justiça – não está tão politicamente morto como alguns anteciparam. Ele mostrou capacidade de levar candidatos que seriam insignificantes sem o seu apoio para um segundo turno. Como representante do Brasil conservador, Bolsonaro está bastante vivo.
Lula demonstrou influência muito limitada. O PT perdeu em lugares muito simbólicos como a Grande São Paulo (o cinturão metalúrgico que já vinha perdendo), cidades como Araraquara, governada por um quadro histórico do PT, onde venceu o candidato bolsonarista (ali o ex-presidente e sua esposa jogaram fortemente) e o Nordeste está em disputa. O fato de em várias cidades nordestinas o PL ter passado para o segundo turno mostra o desafio à identidade lulista nesses bastiões do PT.
Ainda é cedo para afirmar que o bolsonarismo saiu fortalecido das eleições municipais, diz analista
Indiferença política: um caminho perigoso! Artigo de Dirceu Benincá
Brasil registra recorde de pessoas LGBT+ eleitas nas eleições municipais de 2024
Eleições 2024: prefeitos multados por desmatamento e queimadas são reeleitos
Crescimento da abstenção indica que voto está se tornando facultativo, avalia professor
Abstenção é a maior em 20 anos para eleições municipais; Porto Alegre lidera entre capitais
Um chapéu de palha nas eleições de Porto Alegre. Artigo de Jorge Barcellos
Clima e eleições: “Bancada do Clima” passa de 5 para 185 candidaturas em uma semana
A democracia no Brasil e as eleições municipais. Artigo de Erminia Maricato
# Artigo de Antonio Augusto de Queiroz, Fundação Perseu Abramo, Teoria e Debate, via CN (acesse)
A eleição de 2024 marcou uma reafirmação da política local tradicional, com forte influência do poder econômico, dos arranjos partidários e das políticas públicas de repasse de recursos via emendas impositivas
Marcadas por um ambiente de continuidade, com a reeleição da maioria esmagadora dos prefeitos e vereadores que tentaram renovar seus mandatos, as eleições municipais de 2024, em grande medida, retornaram ao padrão tradicional de normalidade democrática, com a valorização das realizações, do diálogo, da experiência, da estrutura de campanha, inclusive financeira, e do compromisso com os interesses locais. A limitada influência das redes sociais e da polarização lulismo versus bolsonarismo contribuiu para esse cenário. As emendas impositivas, bem como o aumento significativo dos fundos eleitorais e partidários, ajudaram na continuidade do Centrão como força política hegemônica, mesmo que fragmentada em partidos com diferentes posições em relação ao governo federal.
Na disputa pelas prefeituras, a valorização da continuidade, da experiência política e das realizações ficou evidenciada no elevado índice de reeleição e na escolha de novos prefeitos com histórico político ou administrativo. Mesmo nas capitais e nos grandes centros, os eleitores recompensaram gestores percebidos como competentes, em detrimento de candidatos que priorizaram a retórica polarizadora, tanto à direita quanto à esquerda. Os incumbentes – tanto em caso de reeleição quanto na indicação de sucessor – beneficiaram-se de serviços prestados, especialmente pelo aumento dos repasses de recursos por meio de emendas parlamentares, além dos recursos provenientes do Fundo de Participação dos Municípios e dos repasses federais destinados à saúde e educação.
Outro aspecto relevante foi o papel fundamental da Justiça Eleitoral na regulamentação do uso das redes sociais nas eleições, bem como na celeridade de decisões que combateram abusos. A punição rigorosa aos extremistas envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 teve um efeito pedagógico, moderando comportamentos nas eleições municipais de 2024. Casos como o de Pablo Marçal, cuja campanha foi marcada por excessos, certamente serão punidos exemplarmente, inclusive como forma de evitar posturas semelhantes de outros candidatos no futuro.
Quanto à percepção de grande crescimento do Centrão nestas eleições, é preciso cautela ao analisar essa questão. Muitas análises comparam as eleições de 2024 com as de 2020, sem considerar a influência da janela partidária, que levou milhares de prefeitos e vereadores a migrarem para partidos de direita e centro-direita, num crescimento que já vinha desde 2016. O PSD e o União Brasil, por exemplo, que cresceram artificialmente durante a janela partidária, embora tenham crescido nestas eleições em relação a 2020, elegeram menos prefeitos e vereadores do que têm atualmente. O PL, favorecido por ser oposição radical e por contar com o maior fundo partidário, expandiu sua presença nas prefeituras e Câmara de Vereadores, assim como o partido Novo na Câmara de Vereadores. O PP também aumentou o número de prefeitos, mas viu uma redução em sua atual bancada de vereadores no país.
É relevante observar que, embora a polarização nacional tenha sido menos impactante, o cenário local continua sendo bastante influenciado por dinâmicas regionais, onde a capacidade de entrega dos prefeitos, a proximidade com o eleitorado e a mobilização de recursos financeiros foram fatores decisivos. A eleição de 2024 marcou uma reafirmação da política local tradicional, com forte influência do poder econômico, dos arranjos partidários e das políticas públicas de repasse de recursos via emendas impositivas. Por fim, apesar da menor influência das redes sociais e de campanhas ideológicas extremadas, ainda temos um segundo turno no qual esses aspectos podem florescer mais fortemente.
O fundamental é que o PT do Presidente Lula, e o PSB, do Vice-Presidente Geraldo Alckmin, cresceram em relação a 2020 e o pleito se deu sem maiores intercorrências, sinalizando para o retorno gradual da normalidade democrática. A volta da normalidade e da civilidade no convívio social, em grande medida, é mérito do Presidente Lula, que não tem medido esforços para pacificar o país. O fato de pouco ter participado do processo eleitoral, frente às enormes demandas que tem como Chefe do Governo e Chefe de Estado, o credencia nos futuros embates, especialmente na escolha dos presidentes da Câmara e do Senado, postos-chave para facilitar ou dificultar a governança e até a governabilidade no país.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap e é membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – o Conselhão.
A extrema direita não foi capaz de isolar as forças populares que querem mudar a gestão de São Paulo. Para o 2o turno, o que há de pior na política brasileira vai transformar a eleição de Nunes na trincheira da manutenção das políticas de exclusão social que a cidade sofre. A alternativa é a mudança representada pela chapa Boulos-Marta: a construção de uma sociedade solidária e democrática, de respeito à dignidade de trabalhadoras e trabalhadores, de ampliação e qualificação das condições da saúde, da educação e da habitação.
A militância nos movimentos sociais e a formulação de projetos de que combatem a aliança entre corrupção e empresariado
(memória do 1o turno)
Recupere no clipping do site as denúncias feitas contra a candidatura bolsonarista do pior prefeito que a cidade já teve
(memória do 1o turno)
# Seis em cada 10 candidatos apoiados pela extrema direita perderam a eleição (Intercept) # Esquerda vai ao 2o turno em 5 capitais (Opera Mundi) # Disputa em SP multiplica direita e dá chance de redenção à esquerda (Folha) # As regiões da cidade e seus resultados (Folha) # PSDB não elegeu nenhum vereador em SP (Folha) # Ao lado de Tarcísio, Nunes se apresenta como o candidato da ordem contra a desordem (G1) # Boulos diz que 2o turno é bolsonarismo vesus democracia (G1) # Tábata anuncia apoio a Boulos no 2o turno (G1) # "Vou entrar de cabeça", diz Bolsonaro sobre apoio a Nunes (Uol) # Votação mostra que Nunes deve mais a vereadores do que a Tarcísio (Uol) # Boulos acena às elites: "Combater desigualdades é bom para todo mundo" (247) # Boulos chama ao diálogo e defende coalizão que livrou o Brasil do autoritarismo (Carta Capital)
# intermitências do fim de semana
# Eleição municipal inaugura a II era da fragmentação da direita. Daniela Lima (G1) # Marçal caiu na teia do Xandão e se complicou. Reinaldo Azevedo (Uol) # Boulos é quem tem mais chances de avançar para o II turno. Toledo (Uol)
Às vezes, nem jornalismo é
Atavismo anti-lulista contamina o noticiário dos jornais conservadores, especialmente a Folha, e deixa a sociedade desarmada de informações que qualifiquem os brasileiros às escolhas conscientes que devem fazer na democracia. Para um pecado desses a remissão não é simples (leia meu comentário).
Pois então:
A Folha lançou mão do eufemismo suposto laudo para transformar uma mentira simples de ser apresentada aos leitores como tal - caso o repórter entendesse que o termo suposição não é critério noticioso, mas elemento de apuração jornalística - , em suspeita contra Boulos. Com isso, deixou de prestar o serviço para o qual o jornal (qualquer jornal) existe: o do esclarecimento do público. Engana-se quem imagina que isso é incompetência profissional ou um acidente narrativo; é um recurso ideológico: sua prática espalha pelos desafetos do veículo não propriamente notícias que os desabonam (com as consequências que isso tem para suas reputações públicas), mas insinuações, ambivalências, maledicências, sinuosidades discursivas e o que mais for preciso para que o jornal ocupe o espaço da construção imaginária do seu público.
São muitas as vítimas desse anti-jornalismo, mas nenhuma delas se compara ao lugar que Lula e os acontecimentos a ele associados ocupam na galeria dos temas que percorrem as páginas do jornal. No caso de Lula, a associação de valores negativos é construída em tudo quanto o Presidente da República faz ou a qualquer coisa que possa a ele ser indiretamente atribuída ou associada. É como se Lula imprimisse à realidade o poder de contaminá-la com seu papel de líder popular: as queimadas, a pane no avião presidencial, o calor excessivo, os juros altos, o déficit público, as incontinências de seus ministros etc. Dessa forma, o jornal cria em torno de Lula uma aura abstrata de malignidade que decorre de um processo de imantação simbólica: foi Lula que fez, então é coisa ruim, é descrédito...
No caso das eleições municipais não é necessário muito esforço para compreender que todo o notíciário flutua nos jornais como parte de um complexo relacionado às disputas pelo poder do Estado, naturalmente levando-se em conta as articulações que são pensadas em termos de desdobramentos futuros. Assim, por exemplo, as eleições para a prefeitura de São Paulo - talvez o caso mais evidente - carregam consigo a figura do governador Tarcísio de Freitas, já claramente preferido da Folha para o pleito de 2026, o que determina um certo afago editorial com Nunes, o preferido de Freitas, e assim por diante.
Ponho em dúvida os critérios editoriais que a Folha usa em suas coberturas de todo o tipo, mas esse viés que eu chamo de atávico contamina tudo, exceto vários de seus excelentes articulistas e colaboradores que pertencem àquela categoria de valores com os quais o jornal convive até mesmo em decorrência da mística publicitária com qual se caracterizou ("de rabo preso com o leitor"). Como produto de síntese de uma operação midiática, o jornal é presa desse paradoxo e é um bom jornal; mas como produto jornalístico, a Folha tem uma enorme dívida com a esfera pública.
A propósito do escândalo do suposto laudo (que a própria Folha reconheceu ser falso, mas depois de perceber o erro crasso que cometeu) sugiro a leitura da coluna de Reinaldo Azevedo - Farsa de Marçal contra Boulos e questão à imprensa: até quando vamos errar? (Uol)
Ps: Há neste meu comentário uma lacuna. Em que momento a Folha usou o adjetivo suposto? O termo foi usado no noticiário disponível na internet às 3h34 e às 3h36 da madrugada do sábado, dia 5. Ao longo do dia o termo foi substituído pelo adjetivo falso - forma que passou a figurar no noticiário durante todo o dia, exceto no painel de Fábio Zanini, espaço onde a impropriedade continuou figurando até o momento em que este meu comentário foi feito.
A palavra está com o ombdusman da Folha. No mínimo, merecemos um erramos em destaque. Seja como for, um bom curso de jornalismo não deixaria a oportunidade de uma aula sobre o assunto passar despercebida aos seus alunos: jornalismo é coisa séria.
Ps: deixo de comentar o Globo e o Estadão porque penso que são experiências distintas da Folha e, por isso, merecem análises diversas.
Divulgação de falso laudo sobre Boulos é crime comum e eleitoral e golpe na lisura do processo de escolha do novo prefeito. Retirada de Marçal da disputa, no entanto, favorece Nunes. O resultado desse imbroglio às vésperas do pleito é consequência da leniência da Justiça Eleitoral com os sucessivos crimes que o coach cometeu durante toda a campanha. Acompanhe o noticiário sobre o assunto no clipping Dossiê SP Eleições 2024
Ao longo do programa, ele provocou, chamou para briga e mostrou que, de fato, quer estar no segundo turno. O plano de Boulos foi dizer que merecia estar no segundo turno. Para isso, ele descreveu bem seus planos de governo e destacou o que considera as falhas de seus adversários. O entendimento na campanha do candidato do PSOL é o de que o eleitor gosta de quem é firme e se posiciona
# Leia a aqui a análise da comentarista da Globo
# "Vamos cinquentar para São Paulo ficar odara e mudar de cara"
# Coach - política neofascista e traumaturgia.
Tales Ab'Sáber
Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach (A Terra é redonda)
# A desprivatização da saúde é o alicerce para garantir um SUS universal
Lígia Bahia “Meus esforços como pesquisadora e grande apoiadora do SUS estão voltados para sairmos da mesmice e desprivatizar a saúde" (IHU)
# Nas mãos de Toffoli, o segredo mais bem guardado da República de Curitiba
Luis Nassif Material escondido na 13ª Vara corre risco de desaparecer. Segundo Garcia, Moro teria utilizado acervo para pressionar desembargadores (GGN)
# Quem sustenta a Civilização do Plástico
Jayati Ghosh Símbolo do descarte e desperdício do capitalismo, contamina rios, mares, solos e corpos. Redução drástica de seu uso é possível e está em debate num tratado internacional. (Outras Palavras)
Tarefas exaustivas ou bizarras. Alucinações do sistema. Submissão: só A Plataforma sabe quanto você receberá, quando será chamado novamente e quem é “o cliente”. Relato sobre o mundo precário que as empresas de IA já começam a produzir...
"Foi Boulos quem tirou Marçal do sério" (Matheus Pichonelli, Uol)
No ato final da pior campanha eleitoral que São Paulo já viveu, candidato da frente de esquerda oferece aos eleitores credibilidade e propostas consistentes para um governo da cidade voltado para a superação da herança perversa de Nunes.
# O resumo do que foi o debate: confonto entre Boulos e Marçal deixa Nunes esquecido (Uol) # Comentaristas analisam o debate (G1) # Tendência é II turno entre Boulos e Marçal (247) # Marçal perde a pose e Nunes perde o rumo (Carta Capital)
Pesquisa mostra cenário embolado em empate técnico a três dias da eleição para a Prefeitura de SP, com deputado do PSOL em oscilação positiva e prefeito recuando em relação à semana passada. Datafolha ainda esmiuça comportamento dos eleitores e amplia otimismo do bloco anti-bolsonarista: Nunes está ao relento; Marçal é o mais rejeitado. Deus é pai! (leia mais)
Voto Boulos!
Por uma São Paulo solidária e democrática
Boulos, Marta e Lula na caminhada para a vitória, sábado, 5/10, 9h, na frente do Masp
Análises: # Empresas acusam Marçal de calote # Pressão de Tarcísio sobre Bolsonaro sugere debandada # Nunes enfrenta maré revolta na reta final com onda pró-Marçal # Marçal mostra que não é miragem e pode melar duelo Nunes-Boulos # Quaest: Lula tem aprovação positiva de 65% # Marçal representa movimento de radicalização moral do liberalismo # O significado da candidatura Boulos no cenário da política nacional
Para explicar o fenômeno das novas direitas, assim como a sua ascensão vertiginosa no cenário político contemporâneo, Rodrigo Nunes, num artigo de grande qualidade (Nunes, 2024), aponta para a existência e persistência de um “operador ideológico” em sua base; para que ocorresse, segundo ele, era preciso que o seu crescimento fosse impulsionado pelo “empreendedorismo”. A base do fenômeno social aqui, portanto, é uma disposição psicopolítica. Eleutério Prado, A Terra é redonda (continue a leitura)
Para que a aliança tácita de classe constitutiva desse movimento fosse posta, era necessário, segundo ele, que “algumas imagens e palavras produzissem uma identificação”. Só essa mediação tornou possível que interesses tão diversos, desde aqueles dos trabalhadores informais, de setores das classes médias até dos capitalistas financeiros, fossem soldados politicamente.
Assim como o extremismo fascista, nos anos 20 e 30 do século passado, reunira indivíduos comuns – “filhos de uma sociedade liberal, competitiva e individualista, condicionados a manterem-se como unidades independentes” (Adorno, 2015, p. 158) –, os quais se sentiam impotente diante de uma realidade esmagadora, agora uma reunião de pequenos, médios e grandes empreendedores, movidos por um “otimismo cruel”, passou a se desenvolver como extremismo neoliberal.
Em ambos os casos barreiras estruturais ao sucesso dos indivíduos socializados como “sujeitos” econômicos se apresentam como barreiras existenciais, as quais são então manipuladas por extremismos de direita. Contudo, subsistem diferenças.
O extremismo fascista evolveu num momento em que se acirraram os conflitos imperialistas, no qual prevalecia o capital industrial já sob o domínio do capital financeiro, enquanto o segundo progrediu mais recentemente no capitalismo globalizado, sob hegemonia do imperialismo norte-americano, no qual passou a prevalecer – como se esclarecerá – a lógica do capital portador de juros e do capital fictício. Em artigo anterior, procurei distinguir esses dois momentos distinguindo o ordocapitalismo e o anarcocapitalismo (Prado, 2024-A)
No primeiro caso, note-se, o “operador ideológico” era distinto; consistia em um apelo à nacionalidade – princípio de igualdade abstrato e forma de unificação –, pois só assim era possível juntar indivíduos contrafeitos de diversas categorias sociais para formar uma massa que se projetava num líder totalitário. Os fascismos, como se sabe, surgem em potências industriais constrangidas que lutam para ampliar os seus domínios econômicos.
No segundo caso, os extremismos vem juntar indivíduos que se pensam como sujeitos dispostos a prosperar numa sociedade competitiva – posta e estabelecida já por meio de uma hegemonia imperialista global – e que se projetam em líderes arrivistas bem-sucedidos. O móvel psicológico aqui não é a realização coletiva por meio de um projeto posto pelo Estado, mas a obtenção de máxima liberdade econômica em um Estado policial que renunciou a qualquer forma de solidariedade.
A ubiquidade da “ideologia do empreendedorismo” nas últimas décadas tem diversas fontes, que vão desde o neoschumpeterianismo do teórico de gestão Peter Drucker até a generalização de “empreender” como praticamente sinônimo de toda ação humana por parte da escola austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek. Em países como o Brasil, “sua difusão desde os anos 1980 se deveu principalmente ao (…) domínio absoluto das ideias neoliberais no debate público (…), mas também pesaram muito a crescente penetração das igrejas evangélicas que pregam a chamada “teologia da prosperidade” e o boom da indústria da autoajuda e do coaching” (Nunes, 2024).
Numa perspectiva marxista heterodoxa, centrada de fato no conceito de ideologia levantado por György Lukács em Para uma ontologia do ser social, Medeiros e Lima escreveram também um texto bem relevante sobre esse tema (Medeiros e Lima, 2023). Apresentando uma conexão não apontada por Rodrigo Nunes, mostraram aí que existe uma afinidade entre a concepção de trabalho como atividade empreendedora e a concepção pressuposta de que o trabalhador pode e deve ser apreendido como capital humano.
Para eles, essas duas teorias, baseadas ambas numa “mesma visão de mundo conservadora e atomista”, deram forma a um modo de pensar socialmente validado que extrapolou o campo teórico em que nasceu, que se difundiu no capitalismo contemporâneo e se tornou senso comum.
Agora é preciso notar que, em perspectiva lukacsiana, esses dois autores entendem ideologia como sistema de ideias que tem a função de dirimir, ou seja, de obstruir o desenvolvimento dos conflitos sociais (em particular, os de classe) evitando que eles produzam transformações. Na base do fenômeno da ascensão das novas direitas, para eles, encontra-se a “ideologia empreendedora”; eis que ela tem a “possibilidade de gerar uma resposta pessoal (e, eventualmente, coletiva) a problemas cotidianos numa sociedade em que os indivíduos se opõem com sujeitos de diferentes classes, raças, gêneros, etnias etc.”.
Como essa concepção julga que “a função ideológica não depende do caráter de conhecimento das ideias” postas em circulação, ela difere – apontam os autores – da concepção marxista mais difundida segundo a qual ideologia é “pensamento falso socialmente necessário”.
Nessa perspectiva, esses dois autores condensam do seguinte modo o julgamento que fazem sobre o empreendedorismo: “O sucesso da internacional capitalista tem relação com o próprio poder do capital, que hoje domina de modo muito estreito a chamada indústria cultural, de formação e difusão simbólica, do jornalismo a todas as formas de arte. (…) a prática de trabalhadores e trabalhadoras (…) configura uma reação às condições brutais do capital que, em vez de obstá-las, as reforçam deliberadamente. A rigor, esse é justamente a função ideológica das teorias que aqui examinamos: elas são, em sua versão vulgarizada, formas de consciência destinadas a desarmar impulsos revolucionários ou mesmo reformistas (…) da classe trabalhadora”. (Medeiros e Lima, 2023, p. 51).
Uma crítica amigável desses dois textos precisa partir de uma compreensão de ideologia que não seja apenas superestrutural. Para apresentá-la, é preciso convir que as ideologias, enquanto modos de selar e ocultar as contradições, têm sempre uma base objetiva e que, a partir daí, elas se levantam como construções intelectuais quase-autônomas, que ganham força quando conseguem obter grande acolhimento na esfera pública.
A base objetiva das ideologias consiste, numa perspectiva bem marxiana, na aparência da prática social que, por isso mesmo, deve ser considerada como socialmente necessária. Enquanto formações que moram na cultura, ou seja, na superestrutura, as ideologias são produtos do entendimento que apreendem as relações externas entre os fenômenos, mas que não deixam de se valer também, para realizar esse fim instrumental, de elementos apenas imaginários, ou seja, falsos.[i]
Nesse sentido, por exemplo, tenha-se em mente as noções de homo oeconomicus, algo diversas entre si mesmas, que foram formalizadas nas diversas teorias econômicas (clássicas, neoclássicas, austríacas etc.). Considere-se, também, que elas estão assentadas em características presentes nos comportamentos dos indivíduos sociais que pululam na economia mercantil generalizada. Se são noções de um saber raciocinativo – e normativo –, elas têm uma base real na realidade social a que se referem.
Ora, esse produto “puramente intelectual da ciência, que pensa o homem como uma unidade abstrata, inserida num sistema científico” – segundo Karel Kosik – “(…) é um reflexo da real metamorfose do homem, produzida pelo capitalismo”. Não se está diante, portanto, nem de uma mera ideia livre flutuante nem de uma determinação antropológica geral, mas do produto de um sistema, qual seja ele, daquele que está nucleado no automatismo da relação de capital. Eis que “o homo oeconomicus” – explica esse autor – é o homem como parte desse sistema, como elemento funcional desse sistema e, como tal, deve estar provido das características fundamentais indispensáveis ao funcionamento desse sistema” (Kosik, 1969, p. 82-83).
Na verdade, como Karl Marx já explicara em O capital, o homem econômico é o personagem por excelência da esfera da circulação mercantil, dentro qual ocorrem as vendas e as compras de mercadorias, inclusive das vendas e das compras de força de trabalho. Desse modo, os seus atributos se figuram como naturais. E ele habita um mundo concorrencial que se denota como “um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem”. Se os homens aparecem aí como iguais, livres e auto-interessados, o próprio sistema figura como um “reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (Marx, 2013, p. 185).
Na verdade, nesse trecho de O capital, Marx apresenta as contradições que movem os sujeitos assujeitados que se apresentam como homo oeconomicus. E elas são duas: uma delas se encontra no capitalista que se julga um empreendedor, mas é, na verdade, apenas personificação do capital; a outra está no trabalhador que fica obrigado a se comportar como livre contratante de sua força de trabalho, mas que é, na verdade, um elemento explorável ou não, peça possível da “grande máquina” da relação de capital. Tenha-se presente, ademais, que essas contradições estão postas tanto na condição objetiva quanto na subjetividade dos “sujeitos” em geral que “prosperam” no capitalismo.
“Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já pode-se perceber certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da… despela”. (Marx, 2013, p. 185).
Note-se, agora, que essas duas dramatis personae assim se apresentam na interface da produção e da circulação mercantil, que nada mais é do que a aparência do capitalismo industrial na pujança que adquirira em meados do século XIX e que podia ser exposto assim teoricamente. Sendo assim, como a condição de empreendedor pode ganhar generalidade no desenvolvimento deste modo de produção, apresentando-se como condição existencial e subjetiva tanto de capitalistas quanto de trabalhadores assalariados ou por conta própria?
Pode parecer uma lembrança inesperada, mas é preciso apresentá-la aqui enfaticamente: a possibilidade dessa ilusão foi explicada por Marx muito antes que a onda do empreendedorismo assomasse na história, o que, como foi visto, aconteceu apenas após os anos 70 do século XX. Para melhor compreendê-la, note-se, já de início, que tal possibilidade depende da posição do capital portador de juros como forma de sociabilidade inerente ao modo de produção capitalista.
Na seção V do Livro III de O capital, encontra o seguinte: “a forma de capital portador de juros é responsável pelo fato de que cada rendimento determinado e regular em dinheiro apareça como juros de algum capital – ou não”, isto é, como ganho associado a uma soma que rigorosamente não é capital. Se um montante de dinheiro é emprestado por um banco ou outra instituição financeira para uma empresa da esfera do capital industrial ou comercial, trata-se sim, realmente, de capital portador de juros – ao final de certo período haverá o refluxo do principal acrescido de juros e esse acréscimo – juros – responde por parte do mais-valor gerado na produção de mercadorias.
Mas se um montante é emprestado por qualquer instituição financeira ao Estado, a bancos, a consumidores, então se tem o que Marx denominou de capital fictício, que parece ser, mas não é de fato portador de juros. O que ocorre aqui é que o fluxo de pagamentos se afigura – sem ser em efetivo – um refluxo do principal acrescido de juros. Eis como ele próprio explica para os casos do empréstimo ao setor público e do usurário: “para o credor original, a parte dos impostos anuais que lhe cabe representa juros de seu capital, do mesmo modo que para o usurário a parte que lhe cabe do patrimônio do pródigo, embora em nenhum desses casos a soma de dinheiro emprestada tenha sido despendida como capital”.
Eis que capital, a rigor – e isso é muito importante –, é a relação de exploração da força de trabalho que se manifesta de modo reificado, sucessivamente, como dinheiro, meios de produção, forças de trabalho e mercadorias.
Desse modo, Marx explica também a ilusão “capital humano” que chama de insana, sem usar, no entanto, essa nomenclatura consagrada depois. “A insanidade da concepção atinge aqui” – diz – “seu ponto culminante” – e ela já aparecera nos escritos de Willian Petty no século XVII. “Em vez de explicar a valorização do capital pela exploração da força de trabalho, procede-se de modo inverso, elucidando a produtividade da força pela circunstância de que a própria força de trabalho é essa coisa mística que se chama capital portador de juros” (idem, p. 523).
Dito de outro modo, como o ganho salarial se apresenta como um fluxo possível de remuneração futura do trabalhador, ele é tomado figuradamente como se fosse juros, os quais são então capitalizados, também de modo místico, para formar o “capital humano”.
É assim, pois, que a força de trabalho e o trabalhador passam a ser pensados, respectivamente, como capital humano e como empresário de si mesmo. Posto isso, resta explicar por que só a partir dos anos 1980 esse tipo de concepção invadiu e tomou a esfera pública nos países capitalistas em geral. A razão está em que, com a ascensão do neoliberalismo,[ii] o capital portador de juros – real ou aparente, ou seja, capital fictício – se tornou finalmente a forma por excelência do capital. Ao fim e ao cabo de um curso que se iniciou já nos primórdios do capitalismo com a criação das sociedades por ações, o que Marx denominou de processo de socialização do capital chegou então ao seu ponto de cume no Ocidente (Prado, 2024-B).
Nesse processo centenário, o grande capital industrial e comercial se tornou domínio do capital financeiro e o capitalismo como um todo se tornou financeirizado (Maher e Aquanno, 2014, contam essa história; Prado, 2024, tentou sintetizá-la). A ideologia empreendedora, agora oportunista, difunde-se na sociedade como uma nova naturalidade do homem econômico; a própria esfera da política se torna um domínio em que prosperam empreendedores políticos, eles mesmos insanos e, por isso, suicidários.
E aqui é preciso ver que uma diferença crucial entre o capital industrial e o capital de finanças em geral. Se o primeiro engendra uma sociabilidade voltada à transformação coletiva do mundo e, por isso, propensa à solidariedade (mas também ao autoritarismo), o segundo favorece um individualismo extremo que confia cegamente na capacidade do sistema econômico de gerar benefícios, como diria Friedrich Hayek, espontaneamente, a ponto de cair no ecocídio para “ganhar” mais-vida.
Eis que a perspectiva da circulação, dos mercados, domina o pensamento desse autor. Ora, se o primeiro capital cria o empreendedor construtivista, o segundo produz o empreendedorismo oportunista. Quando o segundo predomina como forma do capital, a figura central deixa de ser o industrialista para ser substituída pelo aproveitador de oportunidades de ganho, ou seja, o rentista.
De uma perspectiva global, vê-se que o imperialismo norte-americano, principal beneficiário da mundialização do capital e da dominância financeira ocorridas após o fim da II Guerra Mundial, parece disposto a destruir o mundo para manter a sua hegemonia. As novas direitas que operam nesse mundo, de qualquer modo, avançam mesmo porque a esquerda, representante do velho proletariado, parece ter perdido o rumo e a esperança. A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção.
Como encontrar uma fresta na história que leva a outro caminho? Quem pode compor um novo proletariado? Como as vítimas das catástrofes do capitalismo financeirizado podem ser mobilizadas para criar um modo de sociabilidade, superando assim as contradições dilaceradoras do modo atualmente prevalecente?
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).
Referências
Adorno, Theodor W. Adorno – Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora da UNESP, p. 153-189.
Kosik, Karel – Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
Maher, Stephen e Aquanno, Scott – The fall and rise of American finance – From J. P. Morgan to BlackRock. Londres/Nova York: Verso, 2024.
Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, Tomo I: 2013; Tomo III: 2017.
Medeiros, João L. e Lima, Rômulo – Contra a ideologia empreendedora: argumentos para uma crítica marxista. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, nº 66, 2023, p. 30-57.
Nunes, Rodrigo – As declinações do “empreendedorismo” e as novas direitas. Sitio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), 20 de agosto de 2024.
Prado, Eleuterio F. S. – Ordocapitalismo e anarcocapitalismo. In: A terra é redonda, 19/06/2024-A. Blogue Economia e complexidade, 21/07/2024.
Prado, Eleuterio F. S. – Sobre a socialização do capital. A terra é redonda, 12/09/2024-B. Blogue Economia e complexidade, 22/09/2024.
Safatle, Vladimir – A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
Notas
[i] Mesmo se a perspectiva do conhecimento se mostra insuficiente compreender o empreendedorismo, aqui não se deseja ir além dela, sob a finalidade mostrar a base estrutural dessa disposição psicopolítica. Mas que fique aqui registrado que as ideologias – e isso é bem importante – conjugam-se sempre com a propagação de normatividades no meio social, as quais configuram os indivíduos de fora e por dentro, ou seja, psicologicamente. Dito de outro modo, a compreensão mais completa desse fenômeno requer a) a ciência de como ele se sela e cala as contradições; b) o saber das regras e leis que põe e que constrangem os comportamentos dos indivíduos sociais; c) o conhecimento da psicologia que produz e conforma os indivíduos a assumirem “uma figura antropológica, fortemente reguladora, a ser partilhada por todos os indivíduos que aspiram a ser socialmente reconhecidos” (Safatle, 2023, p. 33).
[ii] O neoliberalismo, como se sabe, veio a ser uma resposta à crise de lucratividade dos anos 1970, a qual permitiu uma nova onda de mundialização do capital e, assim, de expansão do imperialismo norte-americano. Enquanto tal, ele é tanto uma ideologia quanto uma normatividade, tanto uma política econômica quanto uma política social com repercussões no modo de ser dos indivíduos sociais.
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Há uma guerra sem e com quarteis levada a cabo há pelo menos desde 11 de setembro de 2001, com o objetivo de transformar o capitalismo em um neofeudalismo. Luis Eustáquio Soares, A Terra é redonda.
Panorama
Com Marx e Engels, considerando o materialismo histórico-dialético, é preciso sempre e de modo dinâmico assumir a perspectiva epistemológica de que não seja a consciência que determina a realidade e também de que não seja a realidade em si mesma que determina a consciência (continue a leitura)
Pensar que seja a consciência que determina a realidade, ainda em interlocução com Marx e Engels, é acreditar em quixotescas ações imaginárias de não menos quixotescos sujeitos imaginários, convergindo com a teologia e, assim, com céu dos princípios, sem lastro nas relações sociais, econômicas e culturais de produção, históricas e materialmente situadas.
Adotar, por sua vez, o princípio de que a realidade determina a consciência é acatar, ainda em diálogo com Marx e Engels, que a história e com esta a civilização seja uma coleção de fatos mortos, porque assim tem sido a realidade do materialismo oligárquico ocidental dos últimos dois mil e quinhentos anos: guerras de saqueio, escravização, servidão e superexploração, colonização, genocídios.
Interagindo com a segunda e a terceira notas apresentadas, tem-se: (i) aquela diz respeito a formas de representação do mundo e da vida antirrealistas ou idealistas, típicas das circunstâncias históricas típicas da tradição oligárquica ocidental, sem relação de destino com a totalidade do ser social, tendo em vista as formações econômico-sociais concretas nas quais somos o que efetivamente temos sido, opressores e/ou oprimidos, a depender da posição que ocupemos na unidade da contradição das lutas de classes.
(ii) A terceira é empirista ou pseudorrealista pois recorta e reifica a realidade histórica, estando relacionada com formas de representação da natureza e das classes sociais exploradas, marcando-as como vulneráveis, manipuláveis e matáveis; (iii) ambas, a segunda e a terceira, ocultam a luta de classes em escala planetária, nacional e local.
(iv) Ambas naturalizam e eternizam o passado opressor no presente oprimido, desqualificando a práxis individual e coletiva baseada na consciência plena de que tudo é histórico e, assim, mutável, transformável; (v) ambas encarnam-se respectivamente nas classes opressoras e nas oprimidas (naturalizando-as), no processo histórico real que está na base de suas existências antirrealistas (oligarquias, pequena-burguesia) e pseudorrealistas (a classe operária, quando submetida).
A epistemologia e a estética marxianas se implicam, se consequentes e dialéticas, com a interface intrínseca, em cada época oligárquica, da relação entre antirrealismo e pseudorrealismo, para em processo situar materialmente o que importa no âmbito da economia política estética e epistemológica: o realismo científico e artístico, considerando as objetivas relações de produção de um dado período histórico.
O materialismo científico-estético é, pois, realista e ser realista não significa de forma alguma acatar a realidade existente. Pelo contrário, significa conhecê-la e objetivá-la, na sua totalidade dinâmica historicamente constituída, como condição para transformá-la coletivamente. Para isso é indispensável compreender como ocorrem, sempre objetivamente, as relações de produção antirrealistas e pseudorrealistas nas sociedades baseadas na polaridade, opressão e exploração de oligarquias contra a maioria da população e, no limite, contra, também, os ecossistemas.
Com isso se quer dizer o que está dito: as sociedades baseadas em relações sociais de produção, marcadas pela polaridade, opressão e exploração de uma minoria a sanguessugar parasitariamente a maioria, constituem-se alienadamente pela relação entre o antirrealismo e pseudorrealismo. O realismo é, pois, censurado tanto para as classes opressoras quanto para as classes oprimidas. E essa censura é efetiva, real e objetiva, porque advém das relações sociais de produção a um tempo, para ser redundante, antirrealistas (posição materialmente ocupada pelos opressores) e pseudorrealistas (posição efetivamente vivida pelos oprimidos, no âmbito do imediato-vivido, como se estivessem com as próprias mãos cegando os olhos).
Desde 2500 anos atrás, com o surgimento da oligarquia na Grécia antiga, em interação com Michael Hudson (2022), as economias do Ocidente passaram a se estruturar em torno da figura antirrealista do oligarca, que impôs ao mundo, a partir do período colonial, o estado de exceção contra os povos e a natureza em escala planetária, tornados empobrecidos e matáveis de modo pseudorrealista precisamente porque a realidade ( a própria sociedade), não lhes pertente, embora seja produzida pelo trabalho coletivo.
A dialética entre consciência e realidade pressupõe mais dialética, isto é, nem consciência autônoma, como ação imaginária de sujeitos oligárquicos imaginários antirrealistas; nem realidade não menos autonomizada, para não dizer reificada como coleção de fatos mortos antirrealistas.
A guerra de classes será sempre vencida pelos opressores quando estes forem o sujeito do antirrealismo e os oprimidos acatarem a condição de objetos passivos da coleção de fatos mortos, vivendo efetivamente como zumbis. Ob.: É evidente que, como classe oprimida, ser sujeito do antirrealismo é uma quimera pseudorrealista.
Em obras como Contribuição à crítica da economia política, de Marx, Anti-Dühring de Engels, Materialismo e empiriocriticismo, de Lênin, a epistemologia marxiana adquiriu consistência própria, opondo-se tanto ao antirrealismo oligárquico-burguês quanto ao pseudorrealismo das ciências e estéticas positivistas, tendencialmente predispostas a representar a natureza e os povos como coleções de fatos mortos e as classes opressoras como civilizadas, humanas, ideais de ego.
O fascismo nesse contexto não é a exceção, mas a regra latente do sistema oligárquico ocidental. Este, em tempos de crise ou de tendência da queda da taxa de lucro aciona os seus agentes ou lumpens, a fim de fazê-los agir fora dos referenciais ou sistemas de aparência legais e institucionais antirrealistas então existentes, impondo a coleção de fatos mortos como a regra expandida – que na verdade sempre foi, em contextos em que dominam o antirrealismo oligárquico e o pseudorrealismo positivista, na carne vida da natureza e dos povos.
O supremacismo oligárquico ocidental, na dialética entre antirrealismo e pseudorrealismo, impõe-se e se atualiza permanentemente ao protagonizar o estado de exceção não menos permanente contra os povos. Isto é: tem que matar, empobrecer, sacrificar, para se fazer como Deus, no pêndulo – e de modo antirrealista – perante os mortais pseudorrealistas no Pelourinho do cotidiano sequestrado pelas oligarquias nacionais e imperialistas.
As elites ocidentais têm ocupado uma dimensão supostamente teológica e transcendental da seguinte maneira: escondem o seu lado oligárquico, ao se apresentarem como aristocratas, civilizadas, letradas, democráticas, politicamente corretas, procurando de todos os meios se separar da coleção de fatos mortos que impõem sem trégua à maioria global e à biodiversidade da natureza, condenados ao empirismo da vivissecção sem fim.
A principal forma objetiva de fazê-lo, de ser o sujeito oligárquico do morticínio geral (sem se revelar ou se deixar apanhar em flagrante delito) tem sido desde sempre pela dominação financeira, porque esta garante-lhe a condição de classe parasitária, rentista, separada dos comuns mortais.
O machismo, o racismo e as mais diferentes formas de homofobia se tornaram na história do Ocidente oligárquico e patriarcal variações étnicas e de gênero das coleções de fatos mortos impostas contra a classe trabalhadora e contra a natureza.
O livro Poéticade Aristóteles ratificou, no campo estético, a relação oligárquica ocidental entre antirrealismo e pseudorrealismo ( idealismo e empirismo) da seguinte maneira: (a) gênero trágico-épico, analisado como da e para a nobreza (os oligarcas) interpretado como expressão estética da figuração, como heróis, da particularidade humanizada do varão oligarca belicista; (b) o gênero lírico (machistamente feminizado) reduzido aos segmentos sociais que vivem no ócio, à sombra das guerras de saqueio das sagas míticas do primeiro gênero; (c) a comédia e as variações do cômico referidas no geral à plebe, representada de modo pseudorrealista, empirista, vulnerável, risível, animalizada, matável.
A mimesis da divisão social do trabalho do gênero estético proposta por Aristóteles, além de ratificar a relação entre antirrealismo e pseudorrealismo, hierarquizando-a, mistifica o sujeito estético da ação histórica, replicando a interface machista entre ativo e passivo. Explicando melhor: a suposta nobreza do gênero trágico-épico ou épico-trágico masculinizada tem como inconsciente político a ideologia de que apenas a aristocracia (na verdade a oligarquia) pode enfrentar o destino, isto é, a história, forçando o porvir.
Por sua vez, o gênero lírico, como expressão de uma subjetividade sem chão, passou a ser concebido e produzido como pura fuga da história. No que tange à comédia, tendencialmente se expressa como empirista e passivo gênero que tem servido para desqualificar e desumanizar a mínima possibilidade do sujeito-plebe, como sujeito ativo do destino comum, da história de todos e de ninguém.
Da era da oligarquia europeia
Os oligarcas do Império Romano do Ocidente, ao concentrarem grandes extensões de terra, protagonizaram, não sem muitas guerras, o processo de formação econômico-social medieval, ocupando a posição de senhores feudais especializados em extorquir rendas de camponeses, então tornados servos. Com o navegador Cristóvão Colombo, em 1492, assim como com Vasco da Gama em 1498, a mentalidade ao mesmo tempo escravista e feudal da tradição oligárquica ocidental, iniciou a sua expansão para e contra os chamados, no contemporâneo, povos da maioria global, doravante concebidos epistemologicamente ( e esteticamente) como matáveis, pseudorrealistas, potencialmente servos e novos escravizados.
A expansão comercial colonialista do Ocidente europeu espalhou pelo mundo a sua tradição supremacista, atualizando a relação entre sujeitos imaginários, com suas ações imaginárias; e as coleções dos fatos-povos matáveis, potencialmente ( e genocidados em atos) tornados seus novos servos e escravizados.
O Ocidente oligárquico (uma redundância em si), na sua era greco-romana, foi logocêntrico (logos, a palavra, o pensamento, sopro de Deus), pois fez da prosódia oligárquica uma solução divinamente imaginária em interface mítica com a ancestralidade transcendental, heroica, divina.
Os períodos colonialista, capitalista e imperialista europeus foram fundamentalmente grafocêntricos, dividindo o mundo entre letrados (sábios, intelectuais, cientistas…) e iletrados (improdutivos, ignorantes, ingênuos), alfabetizados e analfabetizados.
Sob o ponto de vista antropológico-cultural, a pele branca cristocêntrica ocidental tornou-se a medida de todas as coisas. O outro ou a alteridade ( o não ocidental) transformou-se em etnias não-brancas, com a pele negra ocupando uma posição antípoda; e tornada o outro do outro ou a alteridade das alteridades, em relação às alteridades não-brancas indígenas da América Latina, da África do Norte, da Ásia, da Oceania.
A expansão colonial-capitalista-imperialista europeia, assim, foi a responsável pela absoluta condição de matável dos povos negros, escravizando-os e tornando-os o critério de “matabilidade” para todas as demais alteridades, não apenas étnicas, mas também de gênero, econômica, cultural, não-letrada, religiosa.
Matável, na tradição oligárquica supremacista ocidental, sempre foi e é a classe trabalhadora, escravizada, servilizada, superexplorada, desumanizada. O colonialismo ocidental a tipificou na pele negra. Essa observação é importante porque é fundamental não se deixar apanhar pela dominante ideologia sionista da era da dominação norte-americana, que separa de modo antirrealista gênero, etnia e classe, inventando hipócritas e não menos antirrealistas categorias como a que diz respeito à suposta interseção entre raça, gênero e classe, que nunca leva efetivamente em conta a classe social, a dos matáveis, as dos não oligárquicos, a da maioria global que também inclui a classe trabalhadora branca e heterossexual, sobretudo a dos países tornados países de povos matáveis, de modernização tardia, como os da América Latina, por exemplo; e também os países centrais do eixo imperialista estadunidense-europeu.
Sob o ponto de vista da epistemologia realista, há identidade e há alteridade em relação dialética na sociedade e na natureza. A primeira é a que se deixa visualizar, identificar, designar. Por exemplo, um botão de rosa. A segunda diz respeito à lei geral do movimento; lei universal e onipresente porque tudo que supostamente é deixa de ser permanentemente, nos níveis subatômicos, microscópicos, assim como no macro, cosmológico.
Tudo é antes de tudo, assim, alteridade de si mesma; um botão de rosa é o seu devir flor, que devém semente, que… O modelo de realização do sistema oligárquico europeu impôs-se como identidade única, colonizando todas as formas de alteridade, inclusive as europeias, forçadas, para dialogar com o livro Pele negra, máscaras brancas de Frantz Fanon, a mimetizar as máscaras da identidade oligárquica eurocêntrica, a fim de evitar serem concebidas como coleções de fatos mortos pseudorrealistas, uma vez que ser alteridade passou a ser visto como inferior, sacrificável, matável.
Uma observação
Considerando que a alteridade-mor do sistema oligárquico ocidental, desde a Antiguidade greco-romana, tem sido e é a classe trabalhadora, extorquida em escala planetária a partir do sistema capitalista europeu, é necessário recordar que este último não foi homogêneo, como de resto nada é. Em seu interior, o operariado foi se tornando uma classe gradativamente revolucionária, com vistas a se constituir como sujeito coletivo a disputar o futuro a partir do presente.
Nesse contexto, tornou-se a referência laica e imanente da emergência do pensamento marxiano, a partir do princípio científico (sim, o marxismo é a ciência das ciências humanas) de que a história, porque sempre em movimento, porque marcada pela luta de classes, não é um conjunto de ações imaginárias antirrealistas de sujeitos imaginários e tampouco uma coleção de fatos mortos pseudorrealistas.
A era da oligarquia europeia não foi, pois, unidimensional. Conheceu as lutas de classes protagonizadas pela alteridade-mor, a laboral, como as de 1848 e as de 1871, as da própria burguesia revolucionária e também as que se expressaram como lutas religiosas, tendo sido fundamentalmente expressões inconscientes de lutas de classes camponesas no final da Idade Média.
Foi essa Europa das alteridades operárias e mesmo burguesas (em sua fase revolucionária, com o Iluminismo) que se tornou a referência das revoluções anticoloniais do século XX, como, ainda no período colonial, a do bolivarianismo latino-americano, com seu Iluminismo da Pátria Grande anticolonial, como as dos soviéticos, a dos chineses, vietnamitas, norte-coreanos, cubanos no século XX. Foi, enfim e em começo, a Europa da Eurásia laica multipolar laboral, da maioria multipolar da atualidade.
No Livro VII de A República, com a alegoria da caverna, Platão antecipou o que viria a ser o sistema de mimesis ( representação) da oligarquia eurocêntrica. Para tratar da relação entre educação e ignorância, tendo Sócrates como personagem-narrador, descreveu uma caverna onde prisioneiros (presos desde a infância, amarrados nas pernas e nos pescoços) estavam condenados a olhar só para frente. Atrás deles, havia uma colina com uma fogueira; e entre eles e a fogueira, havia uma estrada ascendente que dava para o exterior (a luz do sol), com pessoas passando e carregando todos os tipos de objeto, animais.
Tudo que os condenados veem são imagens projetadas no fundo da caverna. Essas imagens seriam o simulacro, a cópia da cópia ou a forma de falso conhecimento dos néscios, ignorantes. Entretanto, se saíssem da caverna e vissem a luz do sol, poderiam ver o mundo e seus seres, tendo o sol como metáfora do Ser, e com este do bem, do belo e do justo. A oligarquia da era eurocêntrica se apresentou para o mundo colonizado como o próprio Ser, o belo, o bem e o justo, representando (mimesis) a maioria global como o sítio histórico-geográfico do simulacro, da cópia da cópia, da ignorância, dos condenados à “caverna” da inferioridade, distantes que estariam do sol oligárquico ocidental. É, assim, uma forma de mimesis que tem como figura de linguagem a metáfora por ter como fundamento a comparação: o sol ou o ser ou a oligarquia europeia e as suas cópias e simulacros.
Da era da oligarquia norte-americana
As inúmeras guerras religiosas ocorridas na Europa no decorrer do século XVI e no do XVII foram o sintoma do fim das relações medievais de produção e a emergência das novas forças produtivas oligárquicas ocidentais que iriam posteriormente protagonizar a formação econômico-social do capitalismo, a partir: (1) da acumulação primitiva do capital sobre os despojos do mundo medieval, com o inferno posto na matabilidade sobretudo dos camponeses.
(2) Da necessidade de unidade nacional razão por que os principados e feudos deveriam ser senão destruídos remodelados em torno de um só soberano, como o rei, a fim de, a partir de seus países, iniciar a expansão colonial como a segunda forma de acumulação primitiva do capital, às custas da maioria global. Nesse contexto, reproduzindo alegoricamente a fuga dos judeus do Egito pelo Mar Vermelho e manipulados pelo Coroa Britânica, a chegada dos primeiros Peregrinos europeus no chamado Novo Mundo, no navio Mayflower, em Massashusetts em 1620 definiu em perspectiva o advento da era norte-americana da oligarquia ocidental, considerando a seguinte particularidade: a fuga da luta de classes, tendo em vista o mito do Destino Manifesto para a conquista da Terra Santa, com o retorno de um excepcionalismo pré-adâmico, paradoxalmente no futuro de uma ilusão/catarse cinematográfica.
Na relação entre um excepcionalismo pré-adâmico projetado para o futuro do Destino Manifesto, tendo o presente alargado (a própria história humana) como instrumento de manipulação a um tempo antirrealista e pseudorrealista, o axioma da era da oligarquia estadunidense tornou-se: dinheiro nu (dólar), isto é, sem limites de quaisquer natureza; e trabalho nu, em dois sentidos interrelacionados: qualquer trabalho é trabalho para o dinheiro nu, trabalho de guerras sem fim, trabalho de saqueios, trabalho de prostituição, de ditadores, torturadores, nazistas, trabalho de manipulação de desejos, esperanças; todas as formas de trabalho existentes e a existir não devem oferecer a mínima resistência ou limite para a voragem sem fim do dólar nu, o que se traduziu na prática com o “trabalho” de genocídio dos “peles vermelhas” e a transformação da guerra de extermínio em gênero cinematográfico, o faroeste.
Um traço que distingue o capitalismo oligárquico ianque do europeu está intimamente relacionado com o fato de ter se constituído ao mesmo tempo como metaocidental ( a oligarquia das oligarquias do Ocidente, desde à Grécia antiga), metacapitalista e metaimperialista. Como ultraimperialista, ocupou e tem ocupado uma posição senhorial (uma oligarquia de sacada) relativamente às contradições de lutas de classes ocorridas no interior de países como Inglaterra, França, Alemanha. Aproveitando-se de seu excepcionalismo político-geográfico (Atlântico e Pacífico, separando-os da Europa) manipulou nos bastidores as disputas político-militares entre as principais potências europeias, ao mesmo tempo em que procurou por todos meios evitar que no interior de seu território os trabalhadores (negros, brancos, antes de tudo) se unissem, antecipando, manipulando e administrando a divisão entre a classe operária negra e branca, por exemplo, ao fomentar e financiar milícias supremacistas como Ku Klux Klan.
Seguindo o princípio imanente e absolutamente pragmático do dólar nu e tendo como trabalho nu a própria história cultural-material da humanidade, esse capital constante, a oligarquia estadunidense desenvolveu-se como revisionista de tudo que existe, já existiu. Diferentemente de Moisés, que proibiu o culto à imagem, fez e tem feito a base de seu complexo estratégico de dominação cultural planetária o culto à imagem, editada e reedidata ao infinito como a quintessência do antirrealismo. a transformar a realidade em pseudorrealismo a ser combatido, atacado, vilipendiado, genocidado.
Se a era da oligarquia estritamente europeia foi grafoesférica, a dividir o mundo em letrados e iletrados, a estadunidense tornou-se em processo iconoesférica, não sendo por acaso, a propósito, que tenha feito da indústria cultural um esteio fundamental de sua hegemonia, seja na era da televisão, seja na era das interconectadas infraestruturas físicas (fibra óptica, satélite, cabo, hardware, software) da telemática. Assumiu, assim, a vanguarda da materialidade dos meios de produção cultural, transformando a cultura em meio de produção de cultos sem fim aos “bezerros de ouro” do dólar nu, às expensas do trabalho nu, porque em seu interior tudo que reluz de modo antirrealista é fetichizado como se ouro fosse, o Ser em sua quintessência, razão suficiente (ou a sua absoluta falta), como veio a ocorrer, para romper com o lastro no ouro físico, de fato.
A era da hegemonia da oligarquia estadunidense se divide em credora e devedora. No primeiro caso, a do bem-estar social, havia capitalismo produtivo e havia classe operária. Havia, também, a partir da década de 60 do passado século, o desejo de alguns países europeus, como a França, de sair de sua esfera de domínio; e, sim, havia a URSS, o socialismo real. Nesse contexto, como resposta no âmbito do “bezerro de ouro”, os EUA editaram, como produto de sua indústria cultural, a seguinte e poderosa arma biopolítica: a invenção da juventude, com o epicentro em “Maio de 68” francês, uma revolução colorida contra a França do General Charles de Gaulle.
A invenção biopolítica da juventude semilaica, anárquica, empoderada e sexualmente desreprimida define o “bezerro de ouro” da fase de bem-estar social da hegemonia oligárquica ianque. Doravante, na sua imanente (corporal) dimensão revisionista, a esquerda das revoluções precedentes, em todos os quadrantes da Terra, foi transformada em velha, anacrônica, superada e autoritária (para não dizer totalitária), com a “nova esquerda” sem “confiar em ninguém com mais de trinta anos”, para lembrar a canção de Marcos Valle e Paulo Sérgio do Valle de 1971, bem à hora do dia, de modo antirrealista, como tem sido típico da pequena-burguesia brasileira.
No contexto brasileiro, o Tropicalismo e a chamada Poesia Marginal se tornaram a cópia da cópia dos “bezerros de ouro” da juventude transviada estadunidense, com seus empoderados, vaidosos, irracionalistas e anarquistas encarnados, no estilo de vida romântico-reacionário da época, como são o exemplo de Caetano Veloso, que compôs a canção que simbolizou essa fase da hegemonia oligárquica de Tio Sam no país, “É proibido proibir”, de 1968; e o poeta Paulo Leminski, com sua poética despojada, marcada por uma voz lírica convergente com a subjetividade típica das circunstâncias subjetivas típicas histórico-sociais típicas da juventude transviada.
O sistema de mimesisda era da oligarquia estadunidense não é platônico, não interatua no mundo pela relação comparativa, metafórica, mas pelo uso do procedimento metonímico. Seria mais certo designá-lo como aristotélico, de Poética, obra em que a mimesis está demarcada pela relação entre o gênero e a posição social das personagens ou voz lírica, no caso do poema, com formas de subjetividade vinculadas à posição de classe. Pensemos a respeito a partir de duas categorias: a de fetichismo da mercadoria e a de reificação.
No primeiro caso, o fundamento é metafórico porque pressupõe o “tal como” à época do fetichismo tribal; no segundo, por sua vez, está em jogo o deslocamento da totalidade para as suas partes autonomizadas. Nesse contexto, a canção citada de Caetano Veloso só superficialmente pode ser analisada como um protesto à ditadura militar ou ao AI-5. É, antes de tudo, uma reificação do ser da era da juventude ianque, o ser do ser ou a reificação da reificação.
A consequência da observação precedente distingue radicalmente o modelo de realização, via mimesis, do período europeu para o norte-americano. Este captura alteridade e as multiplica de modo reificado, marcando-as como a presença a si (ou não) do Ser da era oligárquica de Tio Sam. Aquela, por sua vez, condenando as alteridades à condição de simulacros, as inferioriza, desumaniza.
De forma alguma o modelo europeu é pior ou melhor que o estadunidense. São distintos e assim devem ser analisados dialeticamente, com o do Tio Sam marcando-se como um processo de subsunção/captura mais avançado e dinâmico que o eurocêntrico, além de ser realizado no âmbito da cultura ou dos meios de produção de “bezerros de ouro” da indústria cultural da oligarquia ianque. A própria cultura, assim, é reificada, separada da dimensão econômica e social, razão pela qual, sob o ponto de vista coletivo e tendo como base a dimensão econômica real, a miséria, a violência, o racismo, o genocídio, de maneira pseudorrealista, dominam implacavelmente contra os povos e a vida na Terra, com a tendência de ocultamento/esquecimento da memória das lutas de classes realistas protagonizadas pelas classes subalternas.
A segunda fase da hegemonia estadunidense é a atual, a da era do ultraimperialismo do cartão de crédito, improdutivo, parasitário. Diferentemente da primeira, nesta o processo de reificação/captura de alteridades se intensifica, multiplica-se, adquirindo uma dimensão messiânica, com dois eixos: (i) o do retorno à Mayflower (movimento para o passado pré-adâmico) com as alteridades de gênero e étnicas reificadas e transformadas nos novos Peregrinos da Terra Santa e, como tais, intocáveis, puros (puritanos), essências transcendentais do Ser antirrealista ocidental.
(ii) O da projeção/atualização do imaginário do Antigo Testamento, Deus-trovão, protagonizada pelo neopentecostalismo popularmente pseudorrealista, projetado para o futuro, sem receio de “sujar as mãos de sangue nas guerras santas” do presente, de modo empirista no plano do imediato vivido.
Considerando a relação entre dólar nu/trabalho nu e o efeito de cinema do complexo estratégico da dominação estadunidense, a era do ultraimperialismo devedor montou um estúdio de esquerda e outro de direita, com a finalidade de transformar a luta de classes real entre a classe trabalhadora e os donos dos meios de produção em luta messiânica entre puritanos e neopentecostais, com os primeiros ocupando o lugar da esquerda operária e os segundos substituindo a representação partidária dos burgueses por uma aliança populista e direta entre o líder (os pastores dos bezerros de ouro) e o povo de Deus de Israel, no contexto judeu-cristão; ou o líder e o povo em guerra santa pela conquista do Grande Califado, no que diz respeito à manipulação da escatologia árabe realizada historicamente pelas oligarquias britânicas (início do século XX) e estadunidenses (sobretudo de Ronald Reagan até à presente dada).
Chegamos, assim, à era da esquerda fake (puritana) e da direita fake (libertária) com algumas diferenças entre as duas escatologias da oligarquia da dominação estadunidense: a primeira, como antirrealista, encarna-se na ideia platônica como cópia intocável do sol ianque; a segunda, como pseudorrealista, assume-se como simulacro, vara de porcos; a primeira, sem relação direta com qualquer forma de religião, concebe-se entretanto como sagrada, divina; a segunda, sendo evangélica, neopentecostal, jihadista…, faz-se na prática como profana, mentirosa, artificiosa, dissimulada; a primeira acredita no ser-cópia do Ser, na verdade de sua identidade (cópia) essencialista; a segunda detém distanciamento, sabe manipular, é absolutamente pragmática.
Da dominação pela cultura
No livro A mais-valia ideológica, o filósofo e poeta venezuelano, Ludovico Silva, desenvolveu o conceito de mais-valor ideológico, diverso da categoria clássica de mais-valor. Enquanto este diz respeito à extração econômica, sob a forma de lucro, renda e juro, do excedente do trabalho do operário, o primeiro extrai “a mais-valia ideológica que se traduz como escravidão inconsciente ao sistema. […] Trata-se, em síntese, de um excedente de energia mental do qual o capitalismo se apropria. (SILVA, 2013, p.182)
É esse excedente de energia mental ao mesmo tempo individual e coletivo que é apropriado por Estados Unidos por meio de sua indústria cultural em escala mundial e multitudinária. Plataformas como Netflix, Amazon, HBO Max, entre outras,capturam e transmitem filmes do mundo inteiro, extraindo mais-valor ideológico deles, ao integrá-los à esfera da cultura oligárquica dominante do esquerdismo e direita fakes.
Situação semelhante ocorre, em tempo real, com os usuários dos stories de diferentes plataformas como WhatsApp, Facebook, Instagram, reforçando a separação ideológica entre segmentos da cultura woke e da neopentecostal, turbinando-os por meio de algoritmo e Inteligência artificial, essa ferramenta de potência revisionista ao infinitésimo que captura o mais-valor ideológico da cultura e ciência realistas, transformando-as em antirrealistas, se puderem estar a serviço da dominação oligárquica estadunidense; ou pseudorrealistas, sobretudo quando têm relação com a soberania nacional e a emergência da civilização multipolar.
E por falar nesta, é comum ouvir e ler por todos os lados que a oligarquia do mais-valor ideológico-cultural está em bancarrota, com a emergência de China, que superou economicamente EUA; e de Rússia, que s sobrepujou militarmente. Com o advento da IV Revolução Industrial, o conceito de forças produtivas se complexifica, sobretudo considerando os âmbitos da biotecnologia e da nanotecnologia, que potencializam a reconfirmação da natureza ( e com esta da vida) e da matéria; e a dimensão cosmológica, com a colonização do espaço sideral ocorrendo a olhos vistos, com a vanguarda de oligarcas como Elon Musk e Jeff Bezos.
A dominação pela cultura, particularidade soft da hegemonia ianque, encontra novos cenários de guerra. Não é correto afirmar que EUA perderam essa batalha. Pelo contrário. A maioria global precisa afirmar-se de modo realista, unindo-se e acumulando forças para enfrentar o que está em jogo, sob o ponto de vista da oligarquia ocidental, de modo semelhante ao que se seguiu com o protagonismo dos novos oligarcas do Império Romano em decadência: a constituição de relações feudais de produção. com os oligarcas, com seus butins de guerra, transformando-se em senhores feudais.
Há, enfim, uma guerra sem e com quarteis levada a cabo há pelo menos desde 11 de setembro de 2001, com o objetivo de transformar o capitalismo em um neofeudalismo. O projeto para um novo século americano não apenas não acabou ou está derrotado, mas também e sobretudo se propõe ser totalmente distinto da sociedade industrial do século XX.
É indispensável, pois, autossuficiência cultural acompanhada com a conquista da propriedade pública dos novos meios de produção da cultura coletiva soberana, a fim de impedir a extorsão do mais-valor ideológico.
*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de A sociedade do controle integrado (Edufes).
Referência
ECHEVERRÍA, Bolívar. Crítica de la modernidad capitalista. La Paz, 2011.
ENGELS, Friedric; MARX, Karl. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nelio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
Lênin, Vladimir. Materialismo y empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reaccionaria. Buenos Aires: Ediciones Estudio, 1973.
KARL, Marx. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010.
SILVA, Ludovico. A mais-valia ideológica. Trad. Maria Ceci Araújo Mosocsky. Florianópolis: Editora Insular, 2013.
Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão
Todo dia alguém diz que é mais importante lutar pelos direitos trabalhistas, pela política do salário-mínimo, pelo aumento do emprego e que esse negócio de representatividade, de linguagem neutra é só frescura, babaquice… Vamos pensar nisso?
O capitalismo é um sistema que enriquece alguns explorando os que só podem trabalhar para outro pra sobreviver, isso significa que só haverá bilionários se houver um número enorme de pobres. Hoje, o capitalismo está em uma crise profunda, como disse Lula, hoje há três mil pessoas que tem um patrimônio de 15 trilhões de dólares, o que é mais do que o PIB de muitos países, inclusive desenvolvidos, juntos. Essa desigualdade emperra a roda da exploração. # Elenira Vilela (A Terra é redonda)
Possibilidade de que a eleição no primeiro turno defina 2 nomes de extrema direita que disputariam a prefeitura da cidade projeta um cenário de dificuldades em todos os níveis. Nessa hipótese, é possível prever um período de obscurantismo, corrupção descontrolada, transferência do patrimônio público para a pirataria privada, retrocesso na Educação e na Saúde, recusa ao reconhecimento de direitos identitários fundamentais na consolidação da sociabilidade democrática. Sem exageros: Nunes e Marçal são dois patifes talhados para isso, qualquer um deles que seja eleito, e só a mobilização popular pode impedir que a SP fique nas suas mãos.
# Um patife quer ser prefeito. Reaja! (Felipe Salto) # Mídia tenta esconder sucesso de Lula na ONU (Nassif) # O relatório do CNJ que poderá mandar Moro, Dallagnol e Hardt para a cadeia (Nassif) # As ameaças da desinformação eleitoral na era da dromocracia (Conjur)
Voto Boulos!
Por uma São Paulo solidária e democrática
As mulheres têm sido, consistentemente, a maior barreira de contenção contra a extrema direita no Brasil e no mundo. Nas duas eleições presidenciais em que Bolsonaro concorreu, as mulheres — e principalmente as mulheres negras — foram a principal oposição. Muitos acreditaram que isso se devia exclusivamente ao Bolsa Família, recebido diretamente pelas mulheres. Não é errado afirmar que o benefício social é uma parte importantíssima desse fenômeno político, mas ele não explica, por exemplo, as eleições municipais. A última pesquisa do Datafolha...
O discurso radical da suposta direita antissistema se apoia na produção de discursos cada vez mais radicais e extremos produzindo uma polarização que torna cada vez mais narcísicos ambos os espectros políticos. Entrevista com Domenico Hur, IHU e Baleia Comunicação (acesse)
Quando Tom Jobim cunhou a célebre frase “O Brasil não é para principiantes”, ele foi capaz de sintetizar a complexidade que significa viver em um país continental e com contradições e potencialidades igualmente colossais. A afirmação cai como uma luva para pensarmos os nossos desafios políticos, sobretudo quando no cenário político recente e atual surgem figuras que ganham notoriedade dobrando a aposta do absurdo e investindo em afetos intensos como estratégia de visibilidade.
“É isso o que eles querem performatizando esses papéis: eles querem gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima ‘falem mal, mas falem de mim’ nunca foi tão atual como na política hoje, porque conseguem mais visibilidade, engajamento nas redes sociais e de certa forma povoam o imaginário popular”, descreve o professor e pesquisador Domenico Hur, em entrevista por videoconferência ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Por que será que há uma propaganda política tão baixa, primitiva, beligerante? Talvez seja porque a promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível. É um pouco do que o Byung-Chul Han fala: o capitalismo nos promete riqueza e felicidade, mas só nos trouxe cansaço e esgotamento”, complementa.
Em meio a esse cenário, a esquerda oscila entre um certo tradicionalismo narcisista dos homens de cabeça branca, símbolo máximo da falta de renovação política, e a ruptura encarnada na candidatura, por exemplo, de mulheres, pessoas negras e periféricas. “Então veremos que as propostas de esquerda são muito tradicionais, tirando as mulheres negras, que trazem um fator novo – mulheres feministas, negras da periferia como a Marielle [Franco]. Por isso que foi um choque o assassinato da Marielle, não só pela figura do que ela era, mas também como um extermínio da nova proposta da esquerda brasileira: feminina, da periferia e a associada à pauta da diversidade sexual”, analisa.
Em que pese nas votações e avaliações dos parlamentares mais destacados no Congresso, as deputadas e deputados de esquerda figuram nas primeiras posições da lista, a máquina estatal, de certa forma, domestica e engessa a efervescência das bases. “Como que o movimento social consegue viver no Estado por mais que o Estado seja governado por um partido de esquerda, centro-esquerda, visto que o Estado é uma máquina de moer carne? Aquilo que o Deleuze falava: o movimento social é de esquerda, mas o Estado sempre será de direita, conservador. As pessoas colocavam essa pergunta. Mas como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical? Essa é uma das grandes questões da esquerda”, destaca.
Domenico Hur é pesquisador em Esquizoanálise, Esquizodrama e Psicologia Política. Professor de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre (2005) e doutor (2009) em Psicologia Social pela USP, estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona (2008/2009). Tem pós-doutorado na Universidad de Santiago de Compostela (2017/2018). É professor visitante do programa de mestrado em Psicologia Social e de doutorado em Ciências Sociais da Universidad Pontifícia Bolivariana, em Medellín. Ex-diretor da Associação Ibero-Latino-americana de Psicologia Política (AILPP), gestão 2016-2020. Colaborador do Instituto Gregorio Baremblitt. É autor, entre outros, de Esquizoanálise e esquizodrama: clínica e política (Alínea, 2023, 2. ed.)
IHU – Permita-me começar com uma menção a um dos maiores livros de Dostoievski: O idiota. Nele, um homem puro se torna uma espécie de idiota, um sujeito inadaptado para uma sociedade de valores corrompidos. Olhando comparativamente, o que é o idiota e que tipo de idiota a nossa sociedade tem produzido?
Domenico Hur – O idiota vai ter várias configurações e visões. Mas, de forma geral, quando ele aparece na política, vai ter uma expressão de protesto: o idiota é o que subverte a ordem. Então, ele gera regimes de crise, de questionamento e gozação ao que está ocorrendo. O idiota sempre vai trazer essa ideia de um protesto, uma mudança, uma alteração e por isso acaba sendo muito sedutor. Portanto teremos várias figuras. O filósofo Gilles Deleuze cita o personagem Bartleby, criado pelo escritor Herman Melville (Bartleby, o escrevente: uma história de Wall Street. Autêntica, 2015), que é o idiota no escritório. E que tem uma frase clássica: I would prefer not to (eu preferiria não fazer). O chefe, por sua vez, sempre vai pedir para ele executar uma tarefa e ele sempre vai dizer: eu preferiria não fazer. Qual é a sacada do Deleuze? Essa recusa, a partir de uma figura como o idiota, instaura regimes de incomunicabilidade que trazem ruído na comunicação e fissuras que podem levar a transformações. Então, o Bartleby aparece como um protótipo de revolucionário porque traz regimes de desordem nos quais podem gerar alguma transformação no atual estado de coisas.
Na política, a figura do idiota é muito explorável. Na França, tinha o palhaço Coluche [Michel Gérard Joseph Colucci], que tentou se candidatar a presidente e teve muita adesão, principalmente da intelectualidade de esquerda. O Coluche também foi um pouco dessa figura do idiota para trazer essa irreverência, subversão, porém a candidatura dele foi indeferida. Mas, naquele momento, era o idiota como um candidato da esquerda – isso que era o interessante.
A direita utiliza o humor não de uma forma revolucionária, mas de forma oportunista de veicular a comunicação com público para atraí-lo – Domenico Hur
IHU – O idiota é um revolucionário ou um oportunista?
Domenico Hur – O idiota pode ser usado de várias formas. Creio que o principal é essa figura de insurgência, da irreverência, da gozação e do humor. Ele pode ter vários lugares. Mas na política brasileira, como coloquei no artigo, o idiota foi muito bem utilizado pelo palhaço Tiririca, que tinha o lema: “Você sabe o que o Congresso faz? Também não sei, mas vote em mim”. O chocante é que ele foi o mais votado naquelas eleições como Deputado Federal e, em seguida, foi o segundo mais votado, sempre explorando essa figura.
No Brasil, o grande problema é que a esquerda política não se reinventou. Ela ficou com uma certa superioridade moral, certa seriedade e certo ressentimento. Então veremos que as propostas de esquerda são muito tradicionais, tirando as mulheres negras, que trazem um fator novo – mulheres feministas, negras da periferia como a Marielle [Franco]. Por isso que foi um choque o assassinato da Marielle, não só pela figura do que ela era, mas também como um extermínio da nova proposta da esquerda brasileira: feminina, da periferia e associada à pauta da diversidade sexual.
A esquerda não se reinventa. Infelizmente veremos que muitos candidatos de esquerda, ou em convenções de partidos como o PT, são formados pelas “cabeças brancas”. Isso é muito triste porque não traz atrativos para a juventude. Estou falando isso porque se a esquerda ficar muito séria, sisuda e com uma superioridade moral – porque sabem o que é melhor para as pessoas – acaba o humor e a alegria. A política pode ser alegre e ter humor e a esquerda acabou esquecendo disso. A direita utiliza o humor não de uma forma revolucionária, mas de forma oportunista de veicular a comunicação com público para atraí-lo. Também como forma de protesto, nesse sentido de que, se para grande parte da população todos os políticos são iguais, mentirosos e corruptos, o palhaço ou um idiota acaba sendo essa figura que vai alterar as coisas.
A extrema-direita vem utilizando essas figuras – e de modo muito bem pensado. Como o Bolsonaro, que já em 2017 e 2018 fazia esse papel com um comportamento destemperado (somado à produção dos marqueteiros), uma pessoa aparentemente ensandecida, falando um monte de besteiras para atrair mais atenção e agenciar a raiva da população contra a corrupção e o PT. Queira ou não, houve corrupção no governo do PT, como também nos outros governos de direita.
Foi construída essa figura de idiota como forma de capturar o pensamento das pessoas. Não só o Bolsonaro, como o próprio [Javier] Milei, que também veremos esse oportunismo da extrema-direita. Podemos pensar em outros políticos, como o Nikolas Ferreira, que foi o mais votado no Brasil, que consegue polarizar muito bem, tem uma grande atração de uma parcela e consegue muito ódio da outra parte. É isso o que eles querem performatizando esses papéis: gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima “falem mal, mas falem de mim” nunca foi tão atual como na política hoje, porque conseguem mais visibilidade, engajamento nas redes sociais e de certa forma povoam o imaginário popular.
[A extrema-direita quer] gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima “falem mal, mas falem de mim” nunca foi tão atual como na política hoje – Domenico Hur
O oportunismo, ampliando um pouco mais o escopo da nossa discussão, nos ajuda a pensar a sensação política, que é o Pablo Marçal. Na entrevista do Flow Podcast, ele fala claramente: “Eu estou fazendo papel de idiota porque as pessoas gostam de ver coisas grosseiras, não é que eu curta isso, eu faço para aparecer”. Ele maneja as provocações e esse personagem espalhafatoso para gerar a atenção do público.
É uma gestão da heurística de acessibilidade com determinadas imagens de pensamento, com determinadas formas discursivas que vão tendo mais atenção do público. Quando o Marçal provoca repetidamente o Datena, que no dia 1º de setembro vai lá e finge bater no concorrente, ele está preparando o terreno para o que ocorreria no dia 15 de setembro, quando tomou uma cadeirada, o que foi perfeito para sua estratégia, pois o Brasil inteiro falou do Marçal, precisamente no momento em que [a pesquisa] DataFolha mostrou que ele estava caindo. Em várias pesquisas o Marçal está liderando entre os três, mas na [pesquisa] DataFolha da sexta [13-09-2024] ele caiu significativamente. Com isso, a campanha quis fazer algo mais agressivo para que no domingo eles conseguissem ter essa maior heurística de acessibilidade fazendo algo muito pungente que tivesse provocação ao Datena e ele caiu feito um pato. De forma que o Marçal conseguiu capitalizar e ele fala claramente que ele ocupa esse lugar de idiota.
Estou falando um pouco do Marçal porque as atenções estão indo para ele, por mais que o Marçal ocupe o lugar de idiota também, ele ocupa o lugar de pessoa muito bem-sucedida. Ele é o hipercoach que vai dar as palestras e escrever muitos livros, vai nos ensinar o caminho do sucesso. Então, os políticos sempre vão jogando com diferentes papéis. Isso que é interessante.
IHU – A rigor, esse não é um fenômeno só nosso, tampouco original. Há uma variedade de sujeitos ligados a esse tipo de arquétipo. Javier Milei, Boris Johnson, Donald Trump, Jair Bolsonaro. De qual caldo de cultura surgem esses personagens?
Domenico Hur – Na política parece que houve algum momento em que se rompeu o pacto da civilidade. Tinha um certo momento em que ainda se discutiam propostas, havia certo respeito, embora sempre tenha havido conflitos e atentados, mas parece que esse espaço ainda tinha um certo decoro. Mas ainda precisamos estudar melhor se a hipótese da intensificação do neoliberalismo – eu não duvido – ou a explosão das redes sociais digitais. Maurizio Lazzarato fala na existência de uma transição do povo, da população, para o público. Portanto, hoje, na sociedade de controle, o povo virou público. Se hipotetizarmos que o povo vira público com a explosão das redes sociais digitais, com aumento tecnológico e com a intensificação do neoliberalismo, isso na década de 1990, podemos hipotetizar que há um declínio do espaço democrático de decisão e negociação para que haja o desenvolvimento de tecnologias e performances para manejar os afetos desse público.
Vão manejar os afetos desse público por meio de tecnologias emocionais e psicológicas, psicopolítica, as mais sofisticadas possíveis para conseguir determinadas condutas. Não é apenas o voto, mas principalmente consumir determinados produtos. O que vemos com o Instagram e o TikTok é essa captura da atenção. Ficando mais tempo conectado à tela em que aparecem coisas que gostamos de assistir, como gatinhos bonitinhos, cachorros ou mulheres de biquíni, de modo que as pessoas ficam horas e horas e no meio disso aparece uma propaganda outra.
O desenvolvimento de tecnologias psicopolíticas para capturar a atenção e gerar determinadas condutas de forma espalhafatosa, grosseira e polarizada, sugerindo e incitando ódio às minorias e aos migrantes, afirmando que eles próprios são o povo oprimido e outros a elite corrupta. Isso pode ser feito tanto para o populismo de esquerda quanto para o populismo de direita.
Por que será que há uma propaganda política tão baixa, primitiva, beligerante? Talvez seja porque a promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível. É um pouco do que o Byung-Chul Han fala: o capitalismo nos promete riqueza e felicidade, mas só nos trouxe cansaço e esgotamento. Talvez, uma promessa política pelo crescimento, felicidade ou pela igualdade, como a esquerda coloca, valores mais abstratos, como “vamos amar à cidade”, não tem muita eficácia.
A promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível – Domenico Hur
Já se percebeu que uma eficácia maior é a polarização, incitação de ódio ao inimigo – qualquer que seja, esquerda, mulheres, imigrantes, minorias, pessoas pró-aborto. Isso gera uma raiva, uma ira e um sentimento de injustiça na população de uma forma mais rápida e eficaz. Por isso, talvez, com a transição do povo para o público, para ter respostas mais rápidas, é necessário gerir os afetos de ira e injustiça nas pessoas. Então a polarização acaba sendo muito eficaz e a pessoa parecendo com essa figura meio caricata, desmazelada, o que chama mais a atenção no público e força a identificação: ele é uma pessoa igual a mim, ele fala o que pensa. Por isso o Bolsonaro sempre tentava criar situações em que parecia uma pessoa simples, comendo no [restaurante] a quilo ou aquela imagem patética dele comendo frango assado e farofa no ponto de ônibus em Brasília, em que ele está todo babado. Eu gosto muito desta imagem, porque além de ser patética, ela mostra o preconceito que ele tem com o povo e principalmente porque tem o staff dele –umas 20 pessoas em volta dele filmando e fazendo a segurança – mostrando que é algo fake.
Aparecer desmazelado é uma forma de gerar a identificação dessa heurística da acessibilidade, que é a fixação do pensamento das pessoas. Quando escrevi esse artigo também fiz slides e peguei uma foto do Hitler, sabendo que a campanha, o nazifascismo, era (e é) muito psicopolítico, foi possível constatar que o bigode dele é praticamente igual ao do Chaplin, além de todos aqueles trejeitos no Hitler. Claro que não é um tema que eu estudei a fundo, mas creio que para a constituição da figura do Hitler também há uma criação meio caricata como forma de capturar a atenção do povo. Nós gostamos dessas coisas meio diferentes.
IHU – A esquerda se leva a sério demais? Qual pacto narcísico organiza a escolha de seus candidatos?
Domenico Hur – A esquerda tem um grande desafio, porque para a direita se congregar e aliar é muito mais fácil, porque eles fazem os cálculos dos lucros e da divisão. Já a esquerda tem todo esse trabalho da democracia, da participação, da decisão colegiada em plenários, assembleias, então é muito mais demorado e mais difícil. A esquerda se organiza de diversas formas, seja uma esquerda mais intelectual, que discute mais, seja a esquerda com alguns profissionais que estão nos seus sindicatos – já teve um grande declínio – e alguns movimentos sociais, sejam mais autogestionários ou institucionalizados e os partidos políticos. Os partidos são mais burocratizados, são “miniestados”. Como os partidos são mais burocratizados, hierarquizados e há um pouco mais de personalismo, o que afasta muito os ativistas de esquerda mais bem-intencionados. As pessoas acabam indo fazer movimentos sociais em outros lugares ou mesmo movimentos digitais porque não querem ficar submissos a outras pessoas nos partidos. Os partidos estão afastando as pessoas infelizmente.
Quando eu falo que nos partidos de esquerda há muita cabeça branca, não é nada contra, não estou sendo etarista, mas falo pela falta de renovação. Os partidos, infelizmente, estão muito ligados ainda a lugares de poder históricos, institucionalizados, não que não deva ter, mas isso gera o afastamento das pessoas e, com isso, há o afastamento também das bases. É por isso que se critica: o PT perdeu a relação com os religiosos, não tem relação com os neopentecostais. Mas no fim da década de 1970 o PT tinha uma relação muito boa com as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Geralmente quem se profissionaliza, principalmente em cargos de lideranças e no Estado, normalmente se afasta da base. Com isso, quem está no Estado se identifica mais com as classes dominantes, com a burguesia, do que com a própria base.
Na sexta passada, 13-09-2023, eu estava em Brasília em uma atividade com a secretaria de educação popular e tinham vários outros ativistas que estão no Estado, como feministas e movimento negro, e eles colocavam essa questão: como que o movimento social consegue viver no Estado por mais que o Estado seja governado por um partido de esquerda, centro-esquerda, visto que o Estado é uma máquina de moer carne? Aquilo que o Deleuze falava: o movimento social é de esquerda, mas o Estado sempre será de direita, conservador. As pessoas colocavam essa pergunta. E são pessoas com mais experiência do que eu. Mas como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical? Essa é uma das grandes questões da esquerda. Um militante que era da base e vira um político institucionalizado do Estado, tem um afastamento e muitas vezes se autoinveste de um poder meio imperial, estatal, soberano. Quando esse político de esquerda que era da base se investe nesse poder soberano, é que o círculo acaba, porque ele vai representar mais o Estado do que a base.
Entrando em uma seara um pouco mais difícil, que não está bem dentro do nosso tema, essa hipótese nos ajuda a pensar porquê o nosso ex-ministro de Direitos Humanos [Silvio Almeida], que é um grande representante e tem uma luta antirracista incontestável, um grande teórico, referência para muitas políticas afirmativas e para muita gente, supostamente cometeu tais infrações ao estar investido nesse poder de Estado. Por mais que falem que esse é histórico meio antigo, o que quero colocar é que, no âmbito psicopolítico, essa simbiose entre sujeito e lugar de poder faz muitas vezes com que haja um abuso do corpo dos outros. Onde quero chegar é que há, historicamente, essa questão dos déspotas das sociedades imperais há uma questão do incesto. Déspota é o Imperador que vai transar com a irmã porque para eles é como se não houvesse leis, eles poderiam fazer tudo. A pessoa vem de esquerda, mas o próprio investimento do poder vertical – Estado –, produz uma supressão da lei, como se ela não valesse para determinadas pessoas. Às vezes acontece isso com a esquerda no poder.
Como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical. Essa é uma das grandes questões da esquerda – Domenico Hur
IHU – Olhando para a esquerda que atualmente chega ao poder, percebemos que seus circuitos de fala são sempre muito moderados, condescendentes e com o desejo de agradar o mercado. Por outro lado, à direita, os oponentes costumam ter falas mais disruptivas que buscam sempre criar um curto-circuito, uma zona radical de não diálogo, com as minorias, mas também com mediadores sociais como as instâncias políticas e jurídicas. Os radicais de direita costumam ser mais eficientes em fugir do controle? Que consequências políticas isso tem?
Domenico Hur – Essa pergunta é muito boa. A esquerda tem que reinventar as práticas e é difícil. Eu vejo muito isso, até mais na academia: a esquerda acaba sendo muito discursiva. Temos aquele discurso perfeito da equidade, igualdade, vamos criar comunas e autogestão, mas na prática é onde as coisas não funcionam. Por quê? Alguns militantes falam que a esquerda tem um discurso revolucionário e uma prática conservadora. O que ocorre no âmbito eleitoral da plataforma política é que as campanhas são um pouco abstratas para o público. As pessoas até podem concordar com os princípios, mas vão se perguntar o que isso vai mudar na minha vida.
Já a direita é mais pragmática, tenta colocar mais ações de mudança, mesmo que sejam ações que não serão realizadas. O Bolsonaro colocava “vamos fechar o STF” e o Milei “vamos fechar o Banco Central”. O Bolsonaro tomou o poder, infelizmente, e se houve um presidente revolucionário – no sentido de trazer uma transformação – é ele. Estava fazendo essa revolução, a revolução da privatização, da terceirização, as reformas trabalhista e da previdência que foram aprovadas nos governos Temer e Bolsonaro. Além disso, Bolsonaro estava fazendo uma revolução molecular, não era só do mercado em acabar com o Estado, que é armar sua população, bem no modelo chavista. No caso chavista ele estava armando as classes pobres, as pessoas residentes nas favelas, já o Bolsonaro a classe média e a classe média alta, o “tiozão do pavê”. Já estava fazendo essa revolução molecular no sentido de que cada um deve se armar, ir para rua e fazer a mudança.
Quando chegamos no Natal de 2022 e tem aqueles dois senhores que estão com um caminhão de gasolina no aeroporto de Brasília, querendo explodir o lugar, e muito armados – existiam mais de dez armas pesadas. Eu estudei as guerrilhas de esquerda no meu doutorado. Se compararmos esses dois indivíduos com mais de dez armas cada um, entre metralhadoras e fuzis e um caminhão que queriam explodir, com a década de 1960 e os guerrilheiros que tinham uma pistola e poucas armas, quem estava próximo de fazer a revolução? Até uma das ações da expropriação de armas que foi muito exitosa na guerrilha de esquerda, com o Carlos Lamarca, foi quando ele roubou cerca de 15 fuzis do quartel de Itaúna, em Osasco, São Paulo. Comentava-se: o Lamarca roubou 15 fuzis. E se olharmos para esses caras [classe média e média alta bolsonarista] eles têm dezenas e dezenas de armas, muito dinheiro. Os acampamentos nos quartéis era superfinanciado. E com isso nos questionamos: quem está próximo da revolução? A guerrilha armada da década de 1960 ou os bolsonaristas de agora? Esse discurso da ação, do armar-se para a direita acaba sendo muito eficaz porque trabalha o próprio ressentimento das pessoas de meia idade e ocorreu o que ocorreu. Por isso que houve aquela invasão dos Três Poderes, mas ainda bem não teve a explosão do aeroporto de Brasília no Natal, porque isso seria catastrófico. Não acho que geraria um golpe, mas levaria dezenas de vidas, seria algo muito traumático.
Mas, infelizmente, essa gestão noopolítica essa política sobre o pensamento e sobre os afetos, que a extrema-direita vem trazendo, que é calcada na ira, no ódio, leva a essas possíveis disruptividades.
Essa gestão noopolítica e essa política sobre o pensamento e sobre os afetos que a extrema-direita vem trazendo, que é calcada na ira, no ódio, leva a essas possíveis disruptividades – Domenico Hur
IHU – O que é a noopolítica?
Domenico Hur – A noopolítica é um termo que visa substituir biopolítica. Se a biopolítica era uma política sobre o corpo, noopolítica é a política sobre o pensamento em que noo está associado etimologicamente a pensar. O Maurizio Lazzarato cunhou esse termo, noopolítica, para pensar esse governo sobre o pensamento, os afetos e a memória. Essa questão da figura do idiota, os extremismos têm uma alta eficácia política no governo sobre essa subjetividade, por isso podemos falar que hoje estamos mais em tempo de noopolítica, de política sobre o pensamento, os afetos e a subjetividade, do que aquelas políticas sobre o corpo, que o [Michel] Foucault escrevia muito bem no período disciplinar.
IHU – Até que ponto “fazer o idiota” é, concretamente, uma alternativa para as forças políticas realmente progressistas?
Domenico Hur – Pensando no contexto atual, se temos a extrema-direita fazendo o idiota, será que um idiota de esquerda poderia ser uma boa alternativa? Eu não pensaria em um idiota, mas pensaria um pouco na figura do Lula. É claro que ele está um pouco mais velhinho, mas ele é o “homem forte”, que é uma alternativa boa para o idiota. Mas o homem forte meio autoritário, como o Lula mesmo – temos o “Lulinha paz e amor”, mas sabemos que ele é um líder autoritário. Porque no cenário político, no campo eleitoral, o grande diferencial é o manejo das paixões, dos afetos. Então, quanto mais em crise estamos, mais os afetos são importantes para a escolha eleitoral. Em 2018, o candidato do mercado era o Alckmin, só que ele sempre foi muito anticarismático, e o Bolsonaro subiu feito um foguete. O pior equívoco do PT foi colocar o Fernando Haddad como candidato – isso eu sempre falo nas minhas aulas, palestras e para os petistas – porque ele é um gentleman, é a pessoa comedida, gentil, é um cara bacana, que gosto (eu votei nele), mas não funciona em períodos de crise. Por isso que ele perdeu e teve uma derrota homérica. O Haddad não deu em 2018, mas talvez em 2026 se a economia estiver melhor e tudo estiver mais apaziguado o Haddad possa funcionar sendo essa pessoa mais conciliadora. Mas me parece que não, o Haddad não será uma boa oferta da política.
Mas em tempo de idiotas, colocar um idiota de esquerda não funcionaria. Se for um Stálin de direita e colocarmos um idiota como forma de provocação, pode ser possível, mas o que funciona mais é essa história do “homem forte”. Por outro lado, temos essa transição dos perfis, porque o homem forte é essa política antiga. O Bolsonaro se colocou como política nova, mas ele é a política antiga.
Quando vemos Nikolas Ferreira tendo muitos votos, percebemos que esse é o novo perfil: influencer, jovem, que não tem papas na língua – Domenico Hur
Quando vemos Nikolas Ferreira tendo muitos votos, percebemos que esse é o novo perfil: influencer, jovem, que não tem papas na língua. E quando vemos o Marçal, mesmo que ele não ganhe e não vá para o segundo turno, ele consegue monopolizar os holofotes, com um outro perfil: o influencer, coach, o cara que é bem-sucedido.
Eu estava pesquisando para escrever um artigo sobre o Marçal e ele tem mais de 20 livros escritos. Na Wikipédia aparecem só 12 livros, mas esses são de 2022 e 2024, e esse ano não acabou, então ele publica quatro livros por ano [risos]. Todo esse discurso que ele tem sobre a venda do sucesso é paradigmático, até eu estava brincando com meus amigos e dizendo que a eleição de 2026 será Marçal contra Felipe Neto, os influencers.
Eu não vejo o idiota de esquerda como uma saída para 2026. Talvez o “homem forte”, se vão querer manter o Lula até os 90 anos, 100 anos, até quando ele puder respirar. Mas o Brasil tem essa tradição de manter políticos muito velhos na disputa. Aqui em Goiás o Iris Rezende foi colocado em todas as eleições até falecer [2021] e ele já tinha sido prefeito na década de 1960. Mas é uma grande questão: o que fazer na esquerda?
A Kamala Harris, as pessoas estão um pouco pessimistas com ela como alternativa ao Biden, está tendo uma ótima performance, pois ela é muito inteligente e hábil. Talvez um perfil como este possa ser bom: mulher, negra, com uma boa formação e muito segura de si, mas tem que ter essa questão da persuasão e do carisma, isso é indispensável. A Manuela [D'avila] é ótima, mas não sei se por questões pessoais ela deu um “bode” [Manuela afastou-se da política, entre outras razões, após as inúmeras ameaças a sua família]. Ela ainda seria uma boa alternativa, muito melhor que o Haddad e a [Gleisi] Hoffmann.
A questão é como conseguir massificar para o público não de esquerda esses atores e essas atrizes políticas – Domenico Hur
IHU – Até que ponto figuras como Felipe Neto são interessantes ou viáveis para uma política de esquerda?
Domenico Hur – O Felipe Neto é um personagem muito interessante porque ele é um jovem que foi muito anti-Dilma e anti-PT, mas fez a curva, estudou, pensou e reavaliou e hoje é bem de esquerda e se comunica muito bem com o público jovem. Por isso eu brinquei falando que em 2026 ou 2030 podemos ter Marçal contra Felipe Neto. Por um lado, ele é uma alternativa e, por outro, é essa expressão de que somos governados hoje pelas redes sociais digitais. Quem é grande influencer acaba tendo visibilidade, likes e votos, quem não é, não tem. Talvez seja esse o nosso futuro. Ao menos é melhor influencer do que esses bonecos criados por Inteligência Artificial, que não sabemos quem são ou o que serão [risos]. Mas, no âmbito da influência e da razão, a capilaridade do Felipe Neto é uma possibilidade.
Não sei se para essas pessoas que já têm muito dinheiro com o trabalho é interessante. Ir para a política é muitas vezes um desgaste, um estresse. O próprio Luciano Huck, não sei se ele seria um semi-idiota com o jeito dele, mas ele ficou pensando se seria o candidato do mercado mais responsável e preferiu continuar com os honorários da Globo. O próprio artista que não tem formação política é muito complicado quando entra no espaço político, porque muitos não entendem como é a lógica, padecem e até falecem de ataque cardíaco. O próprio Clodovil [Hernandes] durou cerca de oito meses no Congresso, ficava muito nervoso, estressado e teve um ataque cardíaco.
Essa é uma grande questão: que perfil a esquerda pode emplacar? Por enquanto são as mulheres negras, Erika Hilton, por exemplo, mas ela dificilmente teria grande aceitação das classes médias brancas masculinas. Estamos criticando um pouco a esquerda, mas temos parlamentares de esquerda muito bons. Inclusive, no Prêmio Congresso em Foco muitos deles são premiados e premiadas, e são possíveis alternativas. Mas a questão é como conseguir massificar para o público não de esquerda esses atores e essas atrizes políticas. Porque o Brasil é muito complicado, em qualquer país da Europa, que são países pequenos ou mesmo na Espanha, que tem cerca de 50 milhões de habitantes, conseguir emplacar um político de nome nacional é muito difícil. Se formos para Lituânia, que tem menos de 3 milhões, é muito mais fácil.
A ideia em síntese é essa: o idiota fazendo suas traquinagens e a população rindo, mas nutrindo essas alegrias do ódio – Domenico Hur
IHU – Voltando à questão dos discursos e seus curtos-circuitos. Quais são as principais imagens capturantes do pensamento que os idiotas utilizam?
Domenico Hur – As imagens são as mais descabidas possíveis. O que é mais exagerado e grotesco tem grande eficácia, coisas que saem do limite da civilidade ou quando político vai enunciar isso. Quando o Bolsonaro fala “Se você tomar a vacina da Covid-19 e virar jacaré, a culpa não é minha”. Nós nunca imaginaríamos que um Presidente faria uma fala dessas. Isso viralizou mundialmente, todos falavam mal do Bolsonaro, até o vocalista do Kiss [Gene Simmons], isso foi muito concertado. Quando a capitã cloroquina [Mayra Pinheiro] critica a Fiocruz, ela diz: “Vocês viram o símbolo da Fiocruz? Parece um pênis” [risos]. Algo descabido. E ela está sendo investigada e processada, isso tomou a opinião pública. Quando o Milei fala “Resolvi me tornar presidente porque meu cachorro morto me aconselhou” [risos], são essas coisas mais descabidas que todo mundo vai falar. O problema é que as pessoas simpatizam por esse desvario. Quando o Milei fala “Meu governo será tão liberal que as pessoas vão poder vender órgãos” e mesmo que isso não seja aplicável, todo mundo vai falar, porque é uma imagem de pensamento muito forte. Quanto mais descabido melhor para propagar para um público de 40, 50, 100 milhões de pessoas.
O que é louco é isso: eles querem o afeto intenso, a aceitação e a rejeição. O Pablo Marçal é o mais rejeitado atualmente no segundo turno, porque essa polarização vai remeter a isso e a chance de conseguir ir para o segundo turno. Eu assisto lutas de MMA/UFC e tem alguns lutadores escrotíssimos e que os amigos dizem que eles agem dessa forma para aparecer. É a mesma prática política, na luta é mais ainda, as pessoas são odiadas e o público fica com raiva e quer ver a luta da aquela pessoa para vê-la perder. Esse tipo de discurso aumenta o número de espectadores e se ganha mais porcentagem do pay-per-view. Trata-se de uma estratégia que é muito utilizada na política e no entretenimento e a pessoa acaba ganhando muita visibilidade.
A macropolítica está mudando tão rápido as estratégias, que é vertiginoso. Estamos falando do Bolsonaro e do Milei cumprindo o papel do idiota, mas isso já é velho, já tem novos personagens, novas práticas e outra lógica – no caso, o Marçal –Domenico Hur
IHU – Qual o papel do humor fatalista no circuito dos afetos da política radical da extrema-direita? Por que humilhar e fazer escárnio de adversários é capaz de angariar tantos votos?
Domenico Hur – O humor fatalista agencia o que Deleuze chama de “alegrias do ódio”, “alegrias da depreciação do outro”, “alegrias da autodepreciação”. Muito no sentido de que essa depreciação, esse ódio e escárnio vai ter uma função de descarga energética do mal-estar. Por exemplo, tinha a jornalista Cristina Rocha no SBT, que tinha aquele programa Casos de família, que sempre eram “tretas”, brigas de família que eram um “horror”, um escárnio, com uma audiência grande em que as pessoas gostavam de deplorar a família do outro. Da mesma forma, tinha aquela série americana dos anos 1990, Married... with Children (Um amor de família), em que a família só passava por desgraças e fez muito sucesso essa deploração do escárnio, e os atores falavam que o público que mandava cartas e mais gostava era o público de presidiários, que falava “Eu gosto muito de ver a série de vocês, porque acho que estou mais ferrado na vida, mas o personagem principal é mais ferrado do que eu. Rio demais”. Era tudo escárnio: com a vizinha feia, com o filho baixinho que não cresceu, era alegria do ódio total.
Temos essa função desse humor de escárnio como descarga energética. Por outro lado, ele não muda, não traz transformação social, não nos tira do lugar e cria uma certa catarse, mas os mantém no mesmo lugar. Então, está todo mundo ferrado, então vamos seguir juntos no fundo do poço. A lógica da extrema-direita é essa: camadas pobres sintam raiva, mas ficaremos todos no fundo do poço, porque quem vai lucrar muito são as grandes corporações de empresários, enquanto os pobres vão perder cada vez mais direitos. A ideia em síntese é essa: o idiota fazendo suas traquinagens e a população rindo, mas nutrindo essas alegrias do ódio.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Domenico Hur – A macropolítica está mudando tão rápido as estratégias, que é vertiginoso. Estamos falando do Bolsonaro e do Milei cumprindo o papel do idiota, mas isso já é velho, já tem novos personagens, novas práticas e outra lógica – no caso, o Marçal. É uma mudança que nunca vimos no cenário político e talvez essa produção de personagens será como Hollywood mesmo: novos produtos para captar a atenção das pessoas, novos modelos, mesmo que tenham a carne parecida, sempre serão oferecidos novos produtos para capturar a atenção.
Momento esperado por leitores e leitoras de Silviano Santiago está chegando: nesses dias será lançado o primeiro caderno de O grande relógio: A que hora o mundo recomeça (Editora Nós). Trata-se de um experimento de leitura em contraste entre Machado de Assis e Marcel Proust que atinge os fundamentos da literatura comparada eurocêntrica. Influência, cópia, original voltam ao alvo, mas problematizados em novas camadas de desconstrução.
Em entrevista exclusiva em uma parceria da Biblioteca Virtual do Pensamento Social e Outras Palavras, Silviano nos previne (ou provoca?): “Não se espere trabalho disciplinar nem multidisciplinar. É acionado pela indisciplina que, se devidamente instruída pela multidisciplinaridade, é a força que jorra a invenção e o pensamento em liberdade do artista”.
# Silviano Santiago entrevistado por André Botelho e Maurício Ayer, uma publicação conjunta de Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) e Outras Palavras (leia aqui).
# Datafolha: Nunes tem só 16% de eleitores comprometidos (Joelmir Tavares, Folha) # Futuro de São Paulo está nas mãos do eleitor indeciso (Josias de Souza, Uol)
# Depois de mais uma semana de ataques e até agressão física na campanha pela Prefeitura de São Paulo, a nova pesquisa Datafolha mostra um cenário de estabilidade. Ricardo Nunes (MDB), com 27%, e Guilherme Boulos (PSOL), com 25%, lideram a corrida. # Leia mais na Folha
Às vésperas do primeiro turno, 68% dos eleitores se dizem totalmente decididos a votar no candidato que escolheram para a prefeitura de São Paulo (# leia em Carta Capital)
Divisão da direita persiste e dispita permanece em aberto (# Boghossian, Folha). E mais um pouco: # A ficha religiosa de Marçal: Quartel General do Reino, o esconderijo dos canalhas (adapt GGN)
A base da extrema direita está rachando, e aparecem outros elementos importantes a serem levados em conta nessa eleição: os que se rendem ao extremismo, sem abandonar as aparências da moderação
Rafael Pepe Romano, Le Monde (acesse)
Agora, depois da cadeirada de José Luiz Datena (PSDB) em Pablo Marçal (PRTB) no debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo na TV Cultura, o debate promovido pelo Flow podcast terminou em pancadaria, literalmente.
A eleição em São Paulo certamente chama a atenção para o fato de que o grau de intolerância e violência atinge seu ápice desde a redemocratização. Ao mesmo tempo, a maioria dos eleitores também parece estar entendendo o risco que Marçal representa para a cidade mais importante da América do Sul, com um condenado na justiça por fraude e formação de quadrilha podendo sentar-se na cadeira de prefeito.
Isso sem considerar os indícios contundentes da ligação do seu partido com o PCC, além da ausência de respostas reais para enfrentar problemas complexos. Tudo isso se torna evidente em seu vômito de xingamentos e ressentimentos numa linguagem marginal. Não à toa, Marçal prega o 6 de outubro como o “dia da vingança”.
Nos principais tratados contemporâneos da Ciência Política, Marçal será classificado como um outsider que irrompeu em um mar de desilusões que inunda a nossa democracia, sempre mais ameaçada.
Marçal é, sobretudo, o produto do momento em que estamos vivendo. O discurso antissistema ao qual apela também apavorou o bolsonarismo, desvendando que Jair Bolsonaro é uma fraude substituível. A base da extrema direita está rachando, e aparecem outros elementos importantes a serem levados em conta nessa eleição: os que se rendem ao extremismo, sem abandonar as aparências da moderação.
A escola da barbárie
Ricardo Nunes (MDB) é um prefeito muito ruim para não precisar de alucinados que atentam contra a democracia para conquistar a sua reeleição. O prefeito de São Paulo, ciente disso, procurou Jair Bolsonaro para apoiá-lo. Jair indicou o coronel da Rota, Ricardo Mello Araújo (PL), para a posição de vice na chapa, sacramentando a aliança.
Como disse o sociólogo Celso Rocha de Barros, um defensor de Nunes poderia dizer que até aí tudo bem. Bolsonaro ainda não está preso e, então, ele tem o direito amparado na Constituição para participar da vida política. A aliança seria natural porque Nunes é um candidato de direita e Bolsonaro é uma liderança de massas. Contudo, se Nunes fosse um prefeito competente e popular, poderia atrair eleitores da direita sem fazer concessões ao golpismo. Mas Nunes está longe disso, assim como está a uma distância oceânica do centro democrático.
As pesquisas indicam que Marçal pode ter chegado ao seu teto de crescimento, enquanto a sua rejeição cresce consistentemente. A poderosa máquina da administração municipal, o terceiro orçamento do Brasil, passou a favorecer Nunes, que não deve seu crescimento a Bolsonaro. Nunes cresceu apesar do entusiasmo bolsonarista por Pablo Marçal.
Além disso, a postura de Marçal como um sujeito que não se senta à mesa para comer com garfo e faca, passou a oferecer para Nunes uma credencial de moderado. Em outras palavras: já na cadeira de prefeito e domesticado à política tradicional, Nunes passou a ser visto como uma opção de voto útil contra a má-fé de Marçal. Assim, o coach serve de escudo ao obscuro Ricardo Nunes, que passou a não precisar se explicar sobre a sua gestão incompetente e duvidosa.
Se Nunes fosse um democrata, com a virada da tendência que indicaram as pesquisas, seria a hora dele se distanciar dos golpistas, certo? Afastá-los do segundo turno em São Paulo seria o triunfo da democracia. Ele fez todo o oposto.
Mesmo quando ele descobriu que não precisaria de Bolsonaro para conquistar sua reeleição, deu uma entrevista ao fora da lei Paulo Figueiredo, que participou ativamente da tentativa de golpe de Estado entre 2022 e 2023. Neto do ditador João Baptista Figueiredo, que morreu em 1999, ele foi um dos alvos da Operação Tempus Veritatis, que investiga a tentativa de arrematar um golpe de Estado no Brasil para manter Jair Bolsonaro na presidência.
A participação é bem documentada pela Polícia Federal: Figueiredo leu na rádio Jovem Pan o manifesto golpista de oficiais da ativa das Forças Armadas e usou a rádio para “denunciar” generais que não aderiram ao golpe.
Na conversa, Nunes admitiu a possibilidade de impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes e disse se arrepender de ter defendido a obrigatoriedade da vacina durante a pandemia. Defendendo criminosos, Nunes já havia dito que o 8 de janeiro não foi uma intentona golpista.
O curioso é que Marçal havia combinado uma conversa com o mesmo Figueiredo. Não aconteceu. A versão dos bolsonaristas é a de que Pablo disse preferir não falar sobre Alexandre de Moraes. O encontro minguou. Nunes, ao contrário de Marçal, fala.
Em quem serve a pecha de extremista?
Vira e mexe o candidato Guilherme Boulos (PSOL) precisa esclarecer os contos mentirosos sobre a sua história militante. Boulos, assim como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto não tomaram e não tomam a casa de ninguém. Lutam pelo combate à fome e por direitos essenciais que estão na Constituição Cidadã de 1988: a moradia digna e a função social da propriedade.
Para Guilherme Boulos ficar tão longe do centro quanto Ricardo Nunes de 2024, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto já teria que ter, no mínimo, tentado explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília na véspera de Natal, como fez o bolsonarismo em 2022. Ainda, tentado abolir violentamente o Estado de direito democrático em 8 de janeiro de 2023. Quem, então, está fora da lei?
Antes de o debate do Flow podcast começar, Nunes e Marçal bateram boca aos gritos. O evento terminou com socos e sangue arrancado da cara entre os assessores dos candidatos. Palavras que fomentam a violência são atos de violência. E o que mais assusta é que Ricardo Nunes e Pablo Marçal guardam traços de delinquência em comum. A diferença é de escândalo: em um caso, fraude que tirava dinheiro de aposentados; no outro, fraude com as creches. Pablo Marçal e Ricardo Nunes são dois esquisitos que se ajudam com seus extremismos ameaçando a democracia.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais na FFLCH-USP e educador popular no Cursinho da FFLCH.
Relações sociais criadas nas últimas décadas remetem aos campos nazistas. Agora, explorados estão tão submetidos, material e psiquicamente, que a solidariedade torna-se quase impossível. Este inferno tragará até as classes médias do Ocidente
# Quem sustenta a civilização do plástico. Jayati Ghosh (Outras Palavras)
# Sangue e lucro no capitalismo de plataforma. Daniel Santini (Outras Palavras)
# Piroceno ameaça a espécie humana. Leonardo Boff (A Terra é redonda)
# Colégio Bandeirantes: a busca por respostas e reparações (Revista Piauí)
Na solidão da tela digital o indivíduo vive a ilusão de sua infinitude, o outro é percebido como potencialmente disruptivo em sua presença invasora. A injúria o protege, reforça as barreiras de seu narcisismo
Estado terrorista amplia genocídio contra árabes e ameaça a paz mundial
# O que Israel quer com o banho de sangue no Líbano (Intercept)
(Outras Palavras)
# Israel, um estado terrorista. (A Terra é redonda)
Masculinidade tóxica como estratégia política em SP
O uso de agressões e desqualificações como parte da estratégia eleitoral evidencia que, para muitos, o debate político se transformou em um campo de batalha onde a força física e verbal é valorizada, ao invés de propostas concretas e diálogo construtivo. # Liliane Rocha (Le Monde)
# Sobre Ernesto Geisel: méritos do general e comparações com Lula. Paulo Nogueira Batista (247)
# A independência do Banco Central Antecedentes históricos. Rodrigo S. Rodrigues (ATR)
Presidente não pode cometer o mesmo erro dos industriais brasileiros nos anos 90, que abraçaram a agenda neoliberal e cavaram a própria cova. Sanha pelo déficit zero implodirá o projeto de reconstrução — e pode desgastar o governo e desesperançar parte das lutas sociais
Fredric Jameson (1934-2024)
# Thomás Amorim, A Terra é redonda
O futuro incerto da Inteligência Artificial
Que gente é essa?
Nunes e Marçal têm a mesma origem e são feitos da mesma matéria orgânica de toda a direita. Respeite seu voto e vote limpo:
Vote Boulos por uma São Paulo solidária e democrática
# Quem venceu o debate? (Uol)
Na São Paulo de Nunes, 2 milhões passam fome e mais da metade vive em insegurança alimentar
Genocídio de Israel contra o povo árabe continua: mais de 500 mortos no Líbano
# Leia na Carta Capital # EUA anunciam envio de tropas ao Oriente Médio (G1) # Líbano vive dia mais sangrento desde 2006 (G1)
# A hora do Estado Bandido. Muniz Sodré (Folha)
# Rede Social é uma indústria cultural de propaganda fascista. Tales Ab'Saber (247)
# Teologia coaching tem discurso violento. Ranieri Costa (Pública)
Depois de produzir os podcasts A Sense of Rebellion e The Santiago Boys, Morozov está trabalhando em um manuscrito onde revisa o trabalho de pensadores como Marx, Hayek e Habermas para oferecer uma teoria crítica sobre o capitalismo contemporâneo e propor um sistema alternativo e inovador, focado na cultura, nos hábitos sociais, no desejo ou na criatividade do sujeito pós-moderno.
Voto Boulos!
Por uma cidade solidária e democrática
# Resultados da manhã desta 2a fazem Nunes mudar intenção de fugir do debate do Flow
Você compraria alguma coisa desses três pulhas que estão no alto da foto?
Com indiferença e deboche, sem projeto algum para a crise social do Brasil e de São Paulo, os desmandos bolsonaristas proliferam na gestão do governo do Estado, na administração de SP e na Câmara dos Vereadores. Varrer essa turma toda é o desafio das eleições deste ano...
# Morar nas ruas em SP, uma história que se multiplica # Com exceção de Boulos, questão racial não recebe atenção dos candidatos # Nunes se rendeu ao extrememismo # Serviçal do negacionismo de Bolsonaro, Nunes agora quer voltar atrás # Em São Paulo, 2 milhões passam fome e mais da metade vive insegurança alimentar
Todos os indicadores sociais pioraram desde que Nunes assumiu a prefeitura, e podem se agravar se ele for reeleito
A poucas semanas da eleição, precisamos trocar o destempero pelo equilíbrio e focar no que realmente importa para cuidar de uma cidade. Tomás Alvim e Marisa Moreira Salles, Piauí (acesse)
Quem ainda nutria esperanças de assistir a um debate qualificado na eleição para prefeito de São Paulo, maior metrópole do Hemisfério Sul, frustrou-se rapidamente. Já se sabia que alguns candidatos tentariam reproduzir o embate nacional entre Lula e Jair Bolsonaro, trazendo para si o peso dessas lideranças. A campanha a que estamos assistindo, no entanto, vai além da polarização: é uma sucessão de acusações sem provas, fake news, lacrações na internet e ataques pessoais de todo tipo. O mais recente foi feito com uma cadeira, em rede nacional.
Não é que alguns candidatos simplesmente prefiram a grosseria, o discurso de ódio, o radicalismo. Esse festival deplorável serve, na verdade, como uma cortina de fumaça para esconder o fato de que eles não têm conhecimento da cidade e do que é preciso para resolver problemas graves de segurança e saúde – os dois assuntos que mais preocupam os paulistanos, segundo o Datafolha. A estratégia por trás disso é cristalina. É espantoso que, ainda assim, postulantes com esse perfil liderem as pesquisas de intenção de voto.
Como escapar desse jogo sujo? De que maneira podemos escolher um bom prefeito?
Comecemos “pelas coisas primeiras”, como ensinou Aristóteles. Afinal, o que faz um prefeito? Podemos recorrer à frase seminal de André Franco Montoro, que governou São Paulo entre 1983 e 1987: “Ninguém vive na União ou no estado. As pessoas vivem no município.” A frase foi um tanto banalizada. Como atestou o diplomata Rubens Barbosa, que serviu como embaixador em Londres e Washington, Montoro a repetia “até em demasia, sempre para novas audiências” ou, às vezes, “para maior convencimento de antigos ouvintes”.
A reflexão do ex-governador, no entanto, ainda é atual e necessária. Ela resume o alto grau de responsabilidade dos prefeitos, que lidam com aspectos muito práticos da vida cotidiana dos brasileiros. Hoje, mais de 85% da população do país vive em aglomerados urbanos – estatística que, por si só, demonstra o quão importante é a administração das cidades.
As tarefas de um prefeito, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são:
Desenvolver as funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes;
• Organizar os serviços públicos de interesse local;
• Proteger o patrimônio histórico-cultural do município;
• Garantir o transporte público e a organização do trânsito;
• Atender à comunidade, ouvindo suas reivindicações e anseios;
• Pavimentar ruas, preservar e construir espaços públicos, como praças e parques;
• Promover o desenvolvimento urbano e o ordenamento territorial;
• Buscar convênios, benefícios e auxílios para o município que representa;
• Apresentar projetos de lei à câmara municipal, além de sancionar ou vetar;
• Intermediar politicamente com outras esferas do poder, sempre com o intuito de beneficiar a população local;
• Zelar pelo meio ambiente, pela limpeza da cidade e pelo saneamento básico;
• Implementar e manter, em boas condições de funcionamento, postos de saúde, escolas e creches municipais, além de assumir o transporte escolar das crianças;
• Arrecadar, administrar e aplicar os impostos municipais da melhor forma;
• Planejar, comandar, coordenar e controlar, entre outras atividades relacionadas ao cargo.
Vários itens da lista, como “garantir o bem-estar” das pessoas, cuidar do transporte, das praças, dos postos de saúde e das escolas resumem o que é ser prefeito na prática: zelar pela “vida como ela é”. É nas questões do dia a dia que um prefeito pode fazer a diferença.
Nem tudo está ao alcance do alcaide, é importante dizer. Um bom exemplo – que, com frequência, provoca confusão – é o policiamento. Eleitores cobram isso dos candidatos, que, por sua vez, se esquivam da responsabilidade. De fato, o comando das polícias militar e civil cabe aos governos estaduais. Mas a questão não é tão simples. Como ensina o jurista Júlio Cesar Machado, no livro Manual do Prefeito e Vereador, a segurança pública é uma atribuição “de todos os entes políticos (União, estados, Distrito Federal e municípios), sendo-lhes assegurados os meios necessários para que possam restringir os direitos e liberdades individuais dos cidadãos, em favor do interesse coletivo”.
A Constituição, por sua vez, diz no artigo 144 que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Esclarece, em seguida, que “os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”. Sancionado em 2014 pela presidente Dilma Rousseff, o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei nº 13.022) estabeleceu as normas gerais desse policiamento, que deve ser feito em complemento às “competências da União, dos estados e do Distrito Federal”.
A segurança é a maior preocupação de 23% dos paulistanos, segundo o levantamento feito pelo Datafolha em março. A proporção não deve ser muito diferente em outras grandes capitais. Faz sentido, por isso e pelo que prevê a Constituição, que questões de policiamento e combate ao crime estejam tão presentes na campanha eleitoral deste ano.
Seria normal esperar que candidatos investigados por crimes diversos se assustassem com menções à polícia. Não é o que ocorre. Na verdade, são esses políticos e seus aliados os que mais alardeiam a necessidade de dar armas de grosso calibre para os policiais, quando não aos próprios cidadãos. Em geral, oferecem programas de governo com pouco detalhamento e quase nenhum critério. Ora, armamentos utilizados para policiar mananciais como Guarapiranga e Billings não devem ser usados para vigiar o entorno de escolas.
Propostas desse tipo, genéricas e agressivas, acabam ofuscando o que realmente deveria ser debatido na eleição: o papel-chave dos prefeitos na articulação com os governos estadual e federal para aprimorar a segurança pública e combater de verdade a criminalidade.
A articulação política é crucial para o trabalho do prefeito, e não só devido à segurança pública. A saúde, a educação e outras áreas importantes podem se beneficiar de programas conduzidos em parceria com os governos estadual e federal. Espera-se do prefeito que ele seja capaz de dialogar com esses governantes, mesmo que não sejam do seu partido político. Como representante máximo da população de sua cidade, o prefeito tem a obrigação de colocar os interesses dela acima de suas convicções e interesses pessoais.
Um exemplo do que não fazer ocorreu em dezembro do ano passado, quando a prefeitura de São Paulo mandou suspender os procedimentos destinados à interrupção da gravidez no Hospital Municipal da Vila Nova Cachoeirinha, referência em casos de aborto previstos por lei. Alegou-se, na época, que havia suspeita de irregularidade em algumas operações, o que nunca foi comprovado. Mais provável é que essa medida tenha sido adotada pelo prefeito para agradar grupos políticos que se opõem radicalmente à prática do aborto.
O que o prefeito ou qualquer político pensa a respeito do aborto – em razão, digamos, de sua religião – não deveria influenciar a política pública do município. É papel do alcaide e dos vereadores garantir que o cidadão tenha acesso a todos os direitos previstos em lei.
Devemos ter um objetivo simples quando escolhemos um prefeito para nossa cidade: o bem comum. É aquilo que Aristóteles, novamente, chamou de “viver bem”, e que está na essência da política. É fácil, no entanto, perder isso de perspectiva. Se já vivíamos uma época de polarização devastadora no Brasil, como vimos na última eleição presidencial, hoje estamos cada vez mais reféns das redes sociais e de seu poder desconcertante de influenciar o debate público. Elas protagonizaram a campanha em São Paulo até aqui.
Seria ingênuo imaginar que a internet – nossa ágora contemporânea – não impactaria o modo de fazer política. A arena de debates públicos foi transplantada para o universo digital. Logo entende-se por quê: os brasileiros passam, em média, 3 horas e 37 minutos por dia nas redes sociais. Perdem apenas para os quenianos e os sul-africanos, segundo o relatório Digital 2024: Global Overviews Report, publicado pela consultoria Kepios.
Nenhum candidato minimamente sensato pensaria em ignorar as redes. É um poder que não se pode contestar, mas que tem feito grande mal ao debate público. Essa nova ágora, em vez de abrigar propostas que interessam ao bem comum, tornou-se um veículo de manipulações e abusos constantes, inclusive abuso econômico. Em São Paulo, a Justiça Eleitoral mandou suspender perfis de Pablo Marçal (PRTB), acolhendo a tese de que ele cometeu abuso econômico ao remunerar pessoas para veicularem seus vídeos editados.
A popularidade de Marçal, candidato que surpreendeu a todos ao disparar nas pesquisas, está amparada justamente no mundo digital (e assim deve continuar, já que outros perfis foram abertos em seu nome). Como o PRTB, seu partido, não tem representação no Congresso, Marçal ficará de fora da propaganda eleitoral em rádio e tevê. O que lhe resta são mesmo as redes sociais, os conteúdos impulsionados, os vídeos sensacionalistas.
O problema é que uma coisa é o mundo virtual; outra, muito distinta, é a realidade concreta. Parodiando a frase de Montoro, poderíamos dizer: “Ninguém vive no mundo virtual. As pessoas vivem no mundo real.” Existe uma São Paulo muito concreta, com mazelas de todo tipo, aguardando por um prefeito que saiba combatê-las com seriedade e eficiência.
Diante do nacional-radicalismo (fulgurante à direita e à esquerda) e do marketing digital eleitoreiro, o que o cidadão paulistano pode fazer? Nossa sugestão: recusar os extremos, as experiências fracassadas e os planos de governo baseados em likes – e, em vez disso tudo, apoiar a renovação com conteúdo, sempre lembrando-se do que é a verdadeira função da política: o bem comum. É pensando nisso que devemos eleger nosso prefeito.
Faltam poucas semanas para o primeiro turno. Tempo curto, mas suficiente para fazer valer o equilíbrio, não o destempero; o conhecimento, não a ignorância; as propostas realistas, sustentáveis e inclusivas para São Paulo – e não o sectarismo, o fracasso, o viral.
# Clipping sobre a disputa pela prefeitura da capital paulista
"Precisamos de coragem e vontade política para mudar" (Lula na Cúpula do Futuro, N.Y.)
Por que construir um movimento climático é vital para o futuro do país e do planeta. Como ele pode enfrentar o agronegócio e sua aliança com o governo
Mecanimos de monitoramento político, econômico, cultural, educacional e... técnico/operacional antes que a autonomia do ser humano desapareça por completo mostram sociedade civil em movimento.
Países devem fechar acordo para estabelecer limites para a IA e para as big techs
Deputado estadual do Novo em SP propõe PL que cria uma espécie de ‘Fies para o ensino público’; oposição vê afronta à Constituição
Fora da margem de erro com 19%, Marçal estaria fora do segundo turno se eleições fossem realizadas hoje.
# Análise de Igor Gielow (Folha) # Os cenários projetados para o II turno (Carta Capital)
# Toledo: Marçal foi benção para Nunes ao desviar foco dos podres do prefeito (Uol)
O desafio dos paulistanos é impedir que um inútil como Nunes continue à frente da prefeitura da cidade
Tive o prazer e a honra de conviver com ele. Sou testemunha do seu profundo amor pelos seres humanos, em especial pelos oprimidos – aqueles que, em suas palavras, foram "roubados do seu direito de ser". Leia o texto integral de Luiz Inácio Lula da Silva
Entrevista com Célio Turino publicada pelo site IHU. Para ele, o crescimento da direita tem a ver com o vazio deixado pela esquerda por não dizer a que veio. # Leia a íntegra da matéria aqui
Édouard Manet, O Suicida (1877-81)
Como a Alemanha, símbolo da força do Ocidente, entrou em declínio acelerado e está se rendendo à ultradireita. Por que a coalizão neoliberal no governo meteu-se numa camisa-de força-política. Que esperar de uma nova esquerda, que emerge. # Leia Antonio Martins (Outras Palavras)
Foi apenas a partir do século XVII, e graças a biólogos como o toscano Francesco Redi e o francês Louis Pasteur, que humanidade descartou a ideia de geração espontânea da vida. Prevalecia antes a noção, expressa entre muitos outros por Aristóteles, de que a matéria inanimada possui “princípios ativos”; e estes, em certas condições, germinam. Estas concepções estavam enraizadas não só no senso comum (acreditava-se que camisas sujas podiam dar origem a ratos), mas também nos meios científicos. Ainda no século XVI, o médico e filósofo renascentista Paracelso, um precursor da assepsia, descreveu a geração espontânea de seres complexos como sapos, roedores, enguias e tartarugas a partir de fontes como ar, água, madeira podre e palha… Uma crença semelhante parece cercar hoje a maior parte das análises sobre o crescimento de correntes políticas que ameaçam a democracia. Elas resultariam de uma espécie de “onda de ultradireita” que, assim como emergiu, algum dia retornará às profundezas – guardando pouca relação, portanto, com as escolhas políticas adotadas pelos governos dos países acometidos.
No início de setembro, a “onda” chegou forte a dois estados do Leste da Alemanha – a Turíngia e a Saxônia – que elegeram seu parlamento e governo. Pela primeira vez, desde Hitler, um partido de extrema-direita venceu um pleito estadual. Na Turíngia, onde 63% da população vive em áreas rurais, a AfD (Alternativa para a Alemanha, xenófoba e supremacista) foi a mais votada, saltando de 23,4% (em 2019) para 32,8%. Em seguida veio a direita tradicional (CDU, que se diz democrata-cristã, 23,6%). Na Saxônia, fronteiriça à Polônia e à República Tcheca, e onde estão as cidades de Dresden e Leipzig, o avanço foi menor, mas também expressivo: de 27,5% para 30,6%. Lá, a CDU venceu por pequena margem (atingindo 31,9%) e a AfD ficou em segundo. Trata-se, nos dois casos, de ramos especialmente agressivos do partido. Um de seus líderes, Björn Höcke, chegou a repetir em discurso a saudação das SA nazistas, e até mesmo dirigentes nacionais do partido pediram sua expulsão.
Como já ocorrera nas eleições europeias de junho, os eleitores castigaram os três partidos da coalizão que governa a Alemanha. Suas marcas políticas principais são o amplo envolvimento na guerra contra a Rússia e manutenção de um “ajuste fiscal” contra os serviços públicos. Os social-democratas (SDP) ainda conseguiram manter-se nos dois parlamentos, mas sua proporção de votos despencou para 6,1% na Turíngia e 7,3% na Saxônia (em 2019, o SDP alcançara 8,2% e 12,4%, respectivamente. Os liberais (FDP) estão fora dos dois parlamentos, tendo obtido em torno de 1% dos votos nos dois estados. Os verdes caíram fora do legislativo da Turíngia (3,2%, abaixo da cláusula de barreira de 5%) e mantiveram-se por muito pouco na Saxônia (5,1%, bem menos que os 8,6% em 2019).
Turíngia e Saxônia têm juntas apenas 6,2 milhões de habitantes – ou 7% da população alemã. Mas os sinais de que impopularidade grave do governo liderado pelo primeiro-ministro Olaf Scholz (SPD) estão em toda parte. As eleições para o governo federal ocorrerão em setembro de 2025. Se fossem realizadas hoje, social-democratas, verdes e liberais alcançariam, juntos, pouco mais de 30% dos votos – em queda brusca frente aos 51,9% obtidos em 2020 e sem possibilidade de formar coalizão majoritária. O declínio pode agravar-se já no próximo domingo (22/9), quando haverá eleições em mais um estado do Leste – o Brandemburgo. É provável que o SPD perca o governo (tem menos de 20% das intenções de voto) e que tanto Verdes quanto Liberais fiquem abaixo da cláusula de barreira e saiam do legislativo. Mas… e a esquerda?
II.
“Agora, entramos na cena política”, disse a escritora, filósofa e deputada alemã Sahra Wagenknecht na primeira entrevista coletiva que concedeu após as eleições na Turíngia e Saxônia. Nascida há 55 anos na então Alemanha Oriental, ela é a fundadora e líder de um partido de que se tornou exceção notável, numa Europa em que a esquerda vive, na grande maioria dos países, prolongado declínio. Batizado provisoriamente com o nome de sua criadora, a BSW (Bündnis Sahra Wagenknecht, ou Aliança Sahra Wagenknecht) surgiu em há apenas oito meses. Mas obteve 15,8% dos votos na Turíngia e 11,8% na Saxônia. Despontou como terceira força nos dois Estados, bem à frente dos social-democratas, verdes, liberais e da esquerda tradicional (o Linke). E já chegara a 6,2% em junho, nas eleições para o Parlamento Europeu.
Tão incomuns quanto a rápida emergência da BSW são as opiniões de Wagenknecht sobre dois temas contemporâneos cruciais. Ela acredita que a ascensão da ultradireita pode ser contida, precisamente por não se tratar de uma “onda” – mas resultado direto da camisa de força em que os partidos do establishment se meteram. Suas políticas impopulares levam-nos a sangrar – a perder apoio popular continuamente. Porém, sua rendição ao neoliberalismo impede-os de buscar saídas, ao contrário do que fizeram por cerca de três décadas, no pós-II Guerra. O poder econômico e a mídia ampliam a cegueira, pois bloqueiam qualquer tentativa de sair da ortodoxia. Abre-se assim uma avenida para os extremistas, por mais bizarros que sejam.
A esquerda não cresce – e aqui está a segunda opinião disruptiva de Wagenknecht – porque afastou-se de forma arrogante das maiorias. Incapaz de formular políticas para os novos dramas populares (a precarização, por exemplo), refugia-se em seu próprio círculo. Adota como programa prioritário pautas comportamentais, que seduzem principalmente os setores intelectualizados das sociedades (em geral, mais favorecidos que a média, em termos econômicos). Passa a ser vista como parte de uma elite esnobe e indiferente – daí sua impotência. As ideias centrais da fundadora da BSW estão expressas numa longa entrevista que ela concedeu à edição de março-abril da New Left Review. Dizem muito também à esquerda brasileira e seu labirinto.
III.
Ao longo do diálogo, Wagenknecht põe a nu as dimensões da crise alemã – algo pouco apresentado nas mídias ocidentais. O governo do chanceler Olaf Sholz aderiu sem críticas ou mediações à guerra na Ucrânia e, em especial, às sanções econômicas que visavam levar a economia russa ao colapso. Berlim é o segundo maior fornecedor de armas a Kiev (17,7 bilhões de euros até abril deste ano) e generais alemães já consideraram enviar seus soldados ao front – algo que sequer Joe Biden cogitou. Os gastos com armamentos, que haviam se mantido em patamares muito baixos por décadas, saltaram a 3% do PIB – o que contribuiu para achatar as despesas sociais. Porém o choque mais grave foi causado pela decisão de interromper a compra de gás natural russo, trocando-o pelo gás liquefeito norte-americano muito mais caro (e ambientalmente daninho, pois é transportado em navios).
As contas domésticas de eletricidade subiram cerca de 40%, em dois anos. E a antes poderosa indústria alemã foi especialmente atingida. O economista Michael Roberts registra: os altos preços da energia sufocaram os gastos em inovação, transição energética e mesmo nas atividades centrais da maior parte das indústrias. Além disso, aceleraram os planos de transferir fábricas para outros países. Em maio último, por exemplo, os executivos da emblemática Volkswagen anunciaram intenção de fechar fábricas na Alemanha, pela primeira vez nos 87 anos da empresa.
Muito mais devastador, acrescenta a deputada alemã, é o efeito sobre o núcleo do tecido industrial de seu país, aquilo que tornou o modelo alemão distinto, por exemplo, do anglo-saxão. Trata-se do chamado Mittelstand, constituído por milhares de empresas médias (normalmente, entre 100 e 200 empregados), altamente especializadas do ponto de vista tecnológico e imbricadas nas cadeias produtivas – como fabricantes de partes elétricas e autopeças, por exemplo. São, em geral, de propriedade familiar. Ao contrário das grandes corporações, sua cultura empresarial não é obcecada com o lucro do trimestre seguinte – mas com o longo prazo, a próxima geração. Por isso, procuram reter seus trabalhadores especializados. O acesso ao gás russo foi, por décadas, um dos fatores que permitiram seu sucesso e reputação internacionais. Entre 2022 e 23, porém aquelas que fazem uso intensivo de energia tiveram queda de 25% em suas receitas – algo sem precedentes. Agora, iniciaram demissões em massa, o que pode ter efeitos dramáticos sobre a média dos salários, o poder de compra dos trabalhadores e a própria coesão das comunidades.
Ainda que suas consequências sejam dramáticas, a submissão de Berlim à política de guerra dos EUA apenas tornou mais grave uma crise social que se armara antes, relata Wagenknecht. A resposta da Europa à Grande Recessão de 2008-09 e à longa estagnação que se seguiu tem sido um ataque permanente ao Estado de Bem-estar social e à infraestrutura, em nome da “disciplina fiscal” e dos “orçamentos equilibrados”. Na Alemanha, o fenômeno assumiu aos poucos tons dramáticos. No grupo populacional entre 20 e 34 anos (as gerações pós-2008), uma em cada cinco pessoas já não tem uma qualificação escolar formal. A cada ano, 50 mil estudantes, deixam a escola sem concluir seus estudos. Há um déficit habitacional de 700 mil moradias. Uma contrarreforma trabalhista adotada na primeira década do século criou um duplo mercado de trabalho. Agora, 25% dos assalariados tem direitos reduzidos e salários ao menos 33% inferiores ao mediano. O sistema de trens, antes impecável, sofre atrasos constantes e foi em parte privatizado. Há três mil pontes em estado precário, e sem reparo.
O desencanto com a democracia (e a brecha para a ultra-direita) crescem porque a degradação das condições de vida da maioria é acompanhada pela sensação de que já não há amparo nos partidos do establishment. No início deste século, as duas famílias políticas que deram sentido ao sistema institucional alemão – social-democratas e democrata-cristãos – abandonaram suas antigas convicções e o que as diferenciava, ao aderirem sem críticas à ortodoxia neoliberal. Começou com o SPD. Foi no governo do chanceler Gerard Schöeder (1998-2005), frisa Wagenknect, que se descaracterizou a “economia social de mercado alemã”. Marcada por regulação, participação ativa dos sindicatos na gestão das empresas e presença de bancos locais ou comunitários (que inclusive eram acionistas influentes das indústrias), ela deu lugar a um modelo tecnocrático, orientado apenas pelas lógicas de lucro. A descaracterização do SPD aprofundou-se com o tempo, de modo que hoje seus líderes “já não têm política própria e poderiam estar confortavelmente nas fileiras do CDU ou nos liberais”. Alguma semelhança com o Brasil?
Os democrata-cristãos (CDU) descaracterizaram-se igualmente. Wagenknecht lembra que também eles sustentavam posições favoráveis aos direitos e garantias sociais. Ao contrário do SPD (muito ligado aos sindicatos), as igrejas eram a base de seus laços sociais com a população, seu canal para dialogar com a “gente comum”. Fazia parte da “doutrina social da igreja”. A nova face do partido, porém, é a de Friedrich Merz, seu atual líder. Em relação à guerra, é ainda mais beligerante que Scholz, liderando com frequência, no Parlamento, pressões sobre o governo, por maior envolvimento na campanha contra a Rússia. No terreno interno, defende um capitalismo Black Rock (megafundo do qual foi executivo): elevação da idade de aposentadoria, congelamento do salário mínimo e fim de benefícios sociais.
A dissolução das referências fica completa quando se observa a tragédia dos Verdes, cuja origem (em 1980), está associada ao vastíssimo movimento anti-guerra nuclear daquela década. Duas posturas caracterizam o partido hoje, segundo a criadora do BSW. Primeiro, a atitude mais agressiva pró-guerra e pró-OTAN de todo o espectro partidário alemão – a ponto de a ministra (verde) das Relações Exteriores, Annalena Baerbock afirmar que sustentará a participação no conflito independentemente do que pensem os eleitores (segundo sondagem recente, 65% são favoráveis a um cessar-fogo e 68% a negociações de paz). Segundo, política “ambientalista” baseada não no investimento público (os fundos públicos para transição energética estão congelados), mas em relacionar a crise climática com decisões individuais e em impor à população o ônus da mudança.
Boa parte da impopularidade da coalizão no governo deve-se, aliás, à elevação do preços do diesel para agricultores e exigência de uso de bombas de calor, muito caras, para aquecimento das residências (a medida foi revogada por sua repercussão especialmente negativa). E tudo pode ficar pior. Às vésperas das eleições na Turíngia e Saxônia, sempre em nome do “déficit zero”, o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder do FDP liberal, insistia em novo corte nos gastos sociais, agora de 50 bilhões de euros…
Por fim, o próprio Partido de Esquerda (Die Linke), do qual a BSW surgiu no início do ano como dissidência, mostrou-se pouco capaz de confrontar o establishment, talvez por prezar demais seus vínculos como o poder. O governo da Turíngia, governado até as últimas eleições pela agremiação, somou-se, há muitos meses, ao movimento pelo envio de armas à Ucrânia.
“Até que lançássemos a BSW, a ultradireita era a única que criticava este leque de políticas”, diz Sahra Wagenknecht à New Left Review. A frase explica tanto o sucesso do novo partido quanto a cilada em que estão se trancando o antigo centro político e também a esquerda que insiste em mimetizá-lo – bem no momento histórico de seu colapso… O cientista político alemão Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck, descreve o fenômeno com ácida ironia, no livro Entre Globalismo e Democracia (ainda sem tradução para o português):
“A resistência das elites em crise e de suas escolas de pensamento desprovidas de senso de realidade parece não ter limites. Até mesmo em tempos de crise, elas insistem em manter a mesma rota, ocasião após ocasião, muito convencidas de poder arrombar o muro na próxima tentativa, com sua cabeça tão dura como o cimento”…
IV.
Sahra Wagenknecht é uma intelectual pública, um tipo cada vez mais raro nos parlamentos e governos contemporâneos. Formada em Filosofia e Literatura, publicou em 1988, ao graduar-se, o primeiro livro – um estudo sobre Goethe e sua poesia, em que ela vê uma crítica precoce do capitalismo. Chegou à militância após a leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Migrou para a Economia, tendo escrito duas dezenas de obras, entre as quais um exame da crítica do jovem Marx a Hegel, uma análise das conferências de Rosa Luxemburgo, e trabalhos teóricos voltados à intervenção política, como “Liberdade sem capitalismo”, “Os mitos modernizadores”, “Contraprograma para a comunidade e a coesão”, “Liberdade sem capitalismo” e “Contra a esquerda neoliberal” (nenhum deles foi ainda traduzido ao português). Mas este amor à cultura e à teoria não a impediram de afastar-se do que chama de esquerda lifestyle – cuja prepotência e desejo de diferenciar-se das minorias são, para ela, uma das causas do crescimento da ultradireita.
Esta atitude estaria na base do que Wagenknecht vê como ênfase exagerada nas pautas de costume. Por um lado, ela pensa, a esquerda renunciou compreender as novas realidades em que estão mergulhadas as maiorias, e a formular saídas para seus dramas atuais. Por outro, encantou-se com um novo público: a classe média que descola-se dos velhos preconceitos relacionados a sexo, gênero, “raça” e comportamento – mas que não está disposta a refletir (e, menos ainda, a agir) sobre as estruturas que produzem a desigualdade e a opressão.
O resultado é algo que – o leitor reconhecerá – ocorre também no Brasil. Salvo raras exceções, não há mais “trabalho de base”. Nas periferias, por exemplo, quase só atuam as igrejas evangélicas. Mas será fácil encontrar múltiplos “ativismos” críticos (dos partidários aos antirracistas e antipatriarcais) nos shows (às vezes caríssimos) de artistas bem-pensantes, em restaurantes e bares diferenciados (em especial, os étnicos), nas mostras de cinema, nos entrepostos de comida orgânica, nos lançamentos de livros que saúdam a condição LGBTIA+.
Surge uma cisão indesejável. Esta esquerda estilo de vida afasta-se do quotidiano popular e de seus símbolos (“Narciso acha feio o que não é espelho”…). “O ecossistema progressista rejeita tudo o que vem da cultura de massas”, como aponta, num vídeo inspirado, a comunicadora Débora Baldin. Ao mesmo tempo as maiorias, que identificam a esquerda com esta classe média descolada, veem-na não apenas como distante – mas como afetada, normativa e, em última instância, parte do establishment que as oprime.
“Ninguém gosta de que os políticos lhe ‘ensinem’ o que comer, que termos usar, como pensar”, frisa Wagenknecht. A ultradireita tem sido extremamente sagaz em preencher a brecha. No terreno comportamental, exalta seus vínculos com os aspectos mais sombrios da formação cultural e psíquica das sociedades. Ergue o espantalho da masculinidade e da branquitude supostamente ameaçadas. No campo das relações de classe, seus laços com o grande capital – e em especial, o rentismo – são notórios (vide a relação Bolsonaro – Paulo Guedes). Mas, como a esquerda não propõe outro horizonte às maiorias (por estar aprisionada por sua obsessão com a “disciplina fiscal”), é fácil aos neofascistas fazer discursos genéricos em favor do bem-estar. Ao conversar com os assistentes de um comício da AfD na Turíngia, o repórter da revista Economist notou que eles pareciam atraídos não pelo discurso de ódio aos imigrantes, mas pelo fechamentos de hospitais e ausência de professores nas escolas.
V.
A BSW e sus líder são às vezes acusados, por alguns setores de esquerda, de adotarem postura antiimigrante. Na entrevista à New Left Review, a deputada contra-ataca, ao classificar como “neoliberais” as políticas migratórias defendidas por seus opositores. ´
A partir de 2010, chegaram à Alemanha ondas sucessivas de imigrantes e refugiados. São hoje cerca de 15 milhões, pouco menos de 20% da população. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte deles tem, além de abrigo (majoritariamente, nos estados do Leste), direito a escolas e hospitais públicos. Todas as pesquisas de opinião apontam que este fenômeno está diretamente associado ao crescimento da ultradireita. Como ele coincide com o ataque ao estado de bem-estar social, abundam os casos em que os imigrantes disputam com os alemães mais pobres o acesso aos serviços sociais.
Wagenknecht pensa que a política de acolhimento fácil é generosa apenas na aparência – por dois motivos. Do ponto de vista imediato, o agigantamento da imigração, frisa ela, é resultado direto das guerras promovidas pelo Ocidente (com participação direta ou apoio da Alemanha). Os refugiados provêm, muito majoritariamente, de países (Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Yêmen, Ucrânia) em que as intervenções da OTAN destruíram as relações sociais, a infraestrutura e, em alguns casos, o próprio Estado nacional). De que serve receber alguns milhões de refugiados, depois de destruir seu país e deixar para trás um número muito maior de pessoas vivendo em condições indignas?
Numa análise a médio e longo prazos, prossegue a deputada, a “política neoliberal de imigração” reforça – ao invés de amenizar – as desigualdades internacionais e as relações colonialistas. Na Alemanha, ela devasta as condições de luta e barganha do conjunto dos trabalhadores. Os imigrantes são pressionados, pelas próprias políticas públicas que supostamente os favorecem, a encontrar qualquer trabalho, o mais rapidamente possível. Tendem a aceitar salários e direitos rebaixados.
Nos países de origem, a situação é ainda pior. A imigração priva as sociedades, em geral, dos trabalhadores mais capacitados, anulando o enorme esforço social dispendido em sua formação. Um dos casos mais dramáticos é o das enfermeiras. Há cerca de um ano, o site Peoples’ Health Dispatch mostrou, em matéria (traduzida por Outra Saúde) como, para tapar buracos em sua força de trabalho, governo alemão desfalca sistemas de saúde ao redor do mundo – violando inclusive códio de práticas da Organização Mundial de Saúde.
Wagenknecht frisa que sua posição não é xenófoba. Lembra que tanto a liderança quanto a representação parlamentar da BSW são as mais multiculturais do espectro político alemão (ela mesma é filha de uma alemã e um iraniano, e alterou seu nome – de Sarah para Sahra – para deixar claro o vínculo). Propõe alternativas concretas. Em primeiro lugar, tentar interromper as guerras do Ocidente, cessando completamente a participação da Alemanha na campanha da OTAN contra a Rússia na Ucrânia e o apoio (vultosíssimo) ao massacre de Israel contra ao palestinos. Além disso, inaugurar políticas de redistribuição internacional de riquezas, com transferência obrigatórias (e não “caritativas”) de recursos para financiar o desenvolvimento sustentável dos países do Sul.
VI.
O futuro da BSW é incerto. No curto prazo dos próximos doze mses, há três deafios. Obter, no próximo domingo, nas eleições do estado de Brandenburgo (que faz o entorno de Berlim), um novo resultado positivo, quer permita chegar ao Parlamento local. Participar, em seguida, de modo que impacte o eleitorado, das negociações para formação dos governos da Turńgia, Saxônia e do próprio Brandenburgo. (O partido é essencial para formar maioria que supere a AfD; mas tem dito que não busca cargos – e que não apoiará nenhum governo que não assuma posição clara contra a guerra. Nessas condições, um impasse parece contratado).
Por fim, o partido prepara-se para as eleições federais alemãs, que ocorrerão no máximo até setembro de 2025. Nelas, o multimilionário Friedrich Merz, que liderou o CDU para posições ultralibeerais, aparece hoje como favorito; mas mas políticas surpreendentes da BSW podem levá-la a exercer um papel destacado, como frisa o cientista político Antonious Souris, ouvido pela agência de notícias Deutsche Welle.
No médio e longo prazos é que tudo se complica. No Ocidente, a esquerda segue sem perspectivas claras, pelo menos desde a crise de 2008. Cada novo intento tem resultado em esperança seguida de rustração. Em 2011, a ocupação das praças espanholas levou à criação do Podemos – um partido-movimento que se embriagou com a possibilidade de dividir o poder; esqueceu sua base e sua proposta de sacudir a velha política com um banho de participação direta; e ao fazê-lo, terminou tragado.
Entre 2011 e 2013, houve gigantescas manifestações pelos direitos sociais em Portugal (1 2), na Turquia e no Brasil, mas os movimentos que as convocaram e dirigiram não tinham programa claro para continuá-las (e, no caso brasileiro, nem estofo organizativo para evitar que fossem caputuradas pela direita). Entre 2015 e 2020, Jeremy Corbyn manteve-se na liderança do Partido Trabalhista do Reino Unido, e ao fazê-lo transformou-o numa ferramenta de reflexão política e mobilização social (especialmente dos jovens). Porém, fracassou no plano tático, ao aceitar o desafio dos conservadores para disputar uma eleição que não poderia vencer. Em 2019, os jovens e os movimentos sociais chilenos enfrentaram repressão duríssima da polícia, provocaram o fim de um governo conservador e chegaram a eleger um presidente da República e uma Assembleia Constituinte em que as forças anticapitalistas tinham ampla maioria. Mas sucumbiram em poucos meses, devido à ausência de um programa claro de mudanças e à ilusão de que, à falta dele, poderiam bastar gestos simbólicos, como a eleição de uma mulher Mapuche para a presidência da Assembleia.
Exemplos semelhantes abundam – e não é algo inteiramente novo. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx lembrou Shakespeare para comparar o proletariado – a classe revolucionária de seu tempo – a uma velha toupeira. Ela avança com desenvoltura sob a terra, cava a possível ruína de seus opressores mas, uma vez emersa à superfície, mostra-se cega e incapaz de encontar os caminhos que levarão à transformação social.
Ainda assim, cada tentativa acrescenta uma peça ao quebra-cabeças da reviravolta possível. Com o Movimento Passe Livre brasileiro aprendemos que, em tempos de crise, vinte centavos podem levar milhões às ruas. O Chile mostrou a força das coalizões de movimentos sociais díspares, mas sintonizados na mesma busca de vida livre das lógicas neoliberais. Com Corbyn, soubemos que os mesmos Estados que imprimem dinheiro para multiplicar a riqueza dos rentistas podem fazê-lo em favor dos serviços públicos de excelência e da garantia de ocupações dignas para todos.
Seja qual for o futuro do BSW e de Sarah Wagenknecht, estamos compreendendo com sua emergência notável que a ultradireita não nasce por geração espontânea – mas das grandes brechas abertas pelas ausências da esquerda; que é possível reparar estes vazios; mas que, para isso, os movimentos empenhados em superar o capitalismo precisam, como disse certa vez Bertolt Brecht, “saber abandonar a si mesmos”
O capital inicial das famílias da elite foi de escravizados, o grande e escondido capital inicial de quase todos os grandes empresários brasileiros. Leonardo Sacramento. A Terra é redonda.
Um grande mal estar acomete a “burguesia progressista”.[i] Portadora autodeclarada do Iluminismo com i minúsculo, rejeita a pobreza social e, alguns, a desigualdade em termos particularíssimos. Seus membros assumem a função de uma parcela de classe “esclarecida”, exigindo taxação dos mais ricos e programas sociais aos mais pobres enquanto as instituições das quais são proprietários enviam lucros e dividendos às suas contas nacionais e offshores (continue a leitura)
Ao contrário do choro lacrimoso dos donos, suas instituições defendem a permanência dessa acumulação exigindo os fins dos pisos constitucionais da educação e da saúde e da vinculação dos Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e do salário mínimo à inflação.
Essa burguesia procura assumir o que fantasiosamente alguns autores do século XX depositaram sobre os seus antepessados oitocencistas, uma mentalidade burguesa que teria construido uma sociedade capitalista. Hoje bilionários, os descendentes dos escravistas do século XIX apresentam-se socialmente como filantropos, intelectuais e artistas enquanto recebem lucros e dividendos livres de impostos de uma classe trabalhadora racializada.
A sociedade brasileira é o que os seus antepassados construíram, e os seus descendententes são herdeiros com a responsabilidade de conservação, tal qual uma monarquia. Mas é uma monarquia cool, ao estilo da inglesa apresentada por tabloides e a Globo News.
Segundo reportagem publicada na Folha de São Paulo,[ii] Neca Setubal procurou curar o mal de ser burguesa com terapias. Imagine o psicólogo: “você não tem culpa de ser rica. Os seus antepassados Souza Aranha escravizaram africanos porque era a estrutura. O que poderiam fazer? Você é vítima! Repita: você é ví-ti-ma”. A constelação familiar chegou com força para a turma do bilhão.
A família Setubal é descendente direta da família Souza Aranha, ou mais precisamente do patriarca Francisco Egydio de Souza Aranha, um dos maiores escravistas do Brasil, quando o estado de São Paulo concentrou os escravizados do país por meio do tráfico interprovincial sob o ciclo do café. Na árvore genealógica do Itaú-Unibanco, Francisco Egydio de Souza Aranha teve 10 filhos, sendo 8 sem qualquer nominação. Quem são?
Fonte: https://www.itauunibanco90anos.com.br/pdfs/as_familias.pdf.
Em Rio Claro, a poucos quilômetros de Campinas, onde residia Francisco, o Barão do Grão Mogol era famoso por “orgias com escravas no porão”.[iii] É um país miscigenado, sem dúvidas! Que formação única, como diziam pessoas letradíssimas, de Gilberto Freyre (herdeiro de escravizadores) a Joel Pinheiro (herdeiro de escravizadores). Um país de proprietários que estupravam as suas mercadorias, as quais não podiam dizer não por serem coisas mercantis.
O Barão Grão Mogol era gente boa. Estuprava, mas quando o Estado começou a pagar indenizações a partir da promulgação da Lei do Sexagenário, promoveu um “alforriaço”. Warren Dean mostrou que, entre 1885 e 1887, ocorreram apenas três alforrias sem compensação. Por serviço, “inclusive a termo”, foram 181. Pela Lei do Sexagenário, ou seja, por indenização, 543.[iv] Deve ser o perfil fluído do lusotropicalismo misturado à mentalidade capitalista.
Um dos filhos assumido por Francisco Souza Aranha, Olavo tornou-se banqueiro com o capital da exploração de escravizados em suas fazendas. É a diversificação do capital cafeeiro em sua essência. Era tanto capital que a lavoura não representava um investimento sustentável. Seu filho Alfredo fundou o Banco Central de Crédito.
Nada novo: seu tio-avô, Joaquim Egydio de Souza Aranha, Marquês de Três Rios, fundou o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo em 1889. Sua filha Maria se casou com Eudoro Libânio Vilela, diretor do banco de Alfredo. Daí surgiu a família Vilela. Olavo Setubal trabalhava no mesmo banco como diretor. Olavo era filho de Francisca Egydio de Souza Aranha com Paulo de Oliveira Setubal. Olavo é pai de Maria Alice Setubal, a Neca Setubal, com Mathilde Lacerda de Azevedo, a Tide Setubal, a homenageada na famosa fundação. Tide era filha de Antônio Lacerda Franco, que é filho de Bento de Lacerda Guimarães, o Barão de Araras, escravista da região de Limeira, com a sua prima, Manuela Assis de Cássia Franco. O casamento é o negócio principal.
O mesmo acontece com os Moreira Salles, outro tronco do Itaú-Unibanco. Seria fácil relacionar a família à inversão de capitais de escravizados, à terra e ao café. No século XIX, um dos patriarcas da família era o Coronel Saturnino Vilhena de Alcântara, um dos grandes proprietários de escravizados e de terras em Pouso Alegre (MG), transformando-se em grande proprietário de terras na década de 1880. De 1890 a 1910, realizou 35 transações de propriedades,[v] especializando-se em compra e venda de imóveis.
A família Moreira Salles juntou-se com a família Saturnino Vilhena por meio do casamento entre João Theotônio Moreira Salles e Lucrécia Vilhena Alcântara. A origem da família Moreira Salles é estranhamente omitida. Passa-se a impressão de que seriam sitiantes, mas como lembra Brandão, “o seu casamento com uma filha de uma tradicional família da região, os Vilhena de Alcântara, é uma demonstração de que sua origem social, provavelmente, não era a de um simples filho de trabalhadores do campo”.[vi]
O capital inicial da família foi de escravizados, o grande e escondido capital inicial de quase todos os grandes empresários brasileiros, especialmente em São Paulo e Minas Gerais, que hoje se intitulam de empreendedores – segundo o infográfico dos troncos familiares, a “6ª geração de empreendedores” das famílias Setubal, Vilela e Moreira Salles. Muitos dos “grandes empresários” brasileiros são descendentes de escravistas. Os herdeiros herdaram – aqui o pleonasmo é útil – o capital da acumulação primitiva sobre a exploração e comercialização de africanos e descendentes de escravizados. Na estrutura da composição de riqueza dos seis maiores proprietários de Pouso Alegre, por exemplo, 43,5% correspondiam a imóveis rurais e 42,5% a escravizados.[vii]
Na década de 1890, Saturnino inverteu seus capitais em propriedades, especializando-se em compra e venda de imóveis. Com o tempo, preservou apenas uma propriedade em seu nome, vendendo todas as outras. Já João Moreira Salles, o patriarca mais reconhecido, trabalhou na Casa Ideal, de seu padrinho Adriano Colli. A bibliografia do Instituto Moreira Salles[viii] diz que “saiu-se tão bem que ainda adolescente assumiu a administração da loja”, mas é mais óbvio e provável que o afilhado tenha assumido a administração do padrinho, tudo em família pela relação de apadrinhamento social da época. Com as “recomendações do padrinho”, trabalhou em uma casa de armarinhos em São Paulo.
Em 1909, João retornou a Cambuí, onde se casou dois anos depois com Lucrécia Vilhena de Alcântara, filha do Coronel Saturnino Vilhena de Alcântara. De lá foram morar em Guaranésia, cidade pertencente à rota do café, onde abriu uma loja de secos e molhados e artigos de armarinhos, “beneficiados pelo antigo patrão”. Nesse momento, com o capital da família Vilhena de Alcântara, estabeleceu-se como representante comercial. Em 1917, mudou-se para Mococa, cidade do estado de São Paulo, onde abriu a Salles e Alcântara em sociedade como cunhado Pardal Vilhena de Alcântara. Com esse negócio de família, ampliou o leque de cidades oferecendo aos fazendeiros créditos bancários.
Quando se mudou para Poços de Caldas, em 1919, chegou a representar 13 bancos como comissário. Comprou a parte de seu cunhado quatro anos depois. No ano seguinte, recebeu a autorização para ser uma sessão bancária. Em 1931, recebeu a autorização para a abertura da Casa Bancária Moreira Salles. Pronto, o que inicialmente eram terras e escravizados foi convertido em capital bancário na acumulação ampliada de capitais vinculados ao café e à indústria. O pecado transformou-se em perdão, a doença foi extirpada e a vida tornou-se primaveril.
Walther Salles, filho de João, havia sido deixado para ser criado com os avós. Em 1939, Walther tornou-se acionista do Banco Machadense e Presidente do Conselho de Administração do Banco do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Em 1940, o Banco Machadense e a Casa Bancária dos Botelhos se juntaram. Da fusão nasceu o Banco Moreira Salles. A Casa Bancária Botelhos era pertencente à família Botelhos, escravista e grande proprietária da cidade de… Botelhos, que ganhou o nome da família por Joaquim Botelho de Souza ter doado o terreno onde foram construídas a vila e a matriz dedicadas a São José.
Como se pode notar, o casamento é um instrumento de acumulação de capitais:
Souza Aranha casou com Setubal
Que casou com Vilela.
Souza Aranha-Setubal-Vilela
Casou-se com Moreira Salles
Que já era casado com Vilhena de Alcântara
Que se casou com Botelho
Quando as carnes se fundiram.
Nessa história não há nenhum J. Pinto Fernandes.
É proibido!
Os capitais da família Moreira Salles possuem, ao menos, duas origens familiares do Brasil Imperial: a família Vilhena de Alcântara e a família Botelho de Souza. Na exposição do Instituto Moreira Salles, a cidade homônima à família Botelho é substituída por uma “cidade próxima”. Não é iluminista refletir uma realidade saudita. Mas nada que não possa ser corrigido.
O texto adulatório do Instituto Moreira Salles se vê obrigado a constatar que João Moreira Salles passou a investir no oeste paranaense, donde fundou uma cidade chamada… Moreira Salles. Mas, como justificar? Tornando-o em herói, pois “com pouco mais de 60 anos, João Moreira Salles resolveu que era hora de bancar o bandeirante e decidiu colonizar uma parte daquele ermo”. Faz sentido! Está aí uma coerência: um bandeirante.
Entidades do movimento negro, com correção, exigem reparação monetária e política ao Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal pela participação na escravidão e no tráfico transatlântico e interprovincial de africanos. O pedido é correto, mas incompleto. A consecução dessa incompletude, ou melhor, a permanência na denúncia exclusiva aos dois bancos públicos pode resultar em um evidente acovardamento diante de ações mais difíceis e complexas quanto ao capital privado. Os bancos públicos eram controlados por famílias escravistas. O resultado da acumulação de capitais no escravismo colonial foi a diversificação do capital cafeeiro. É preciso seguir o rastro do capital. O banco Itaú-Unibanco é um ótimo começo.
A acumulação que atrapalha os sonhos de Neca Setubal em seu travesseiro de penas de ganso e cetim
O banco Itaú-Unibanco possui uma longa e profunda trajetória de articulação de políticas públicas. Hoje, por exemplo, a Fundação Itaú Social tem como foco a educação e a sustentabilidade, demonstrando grande inserção nas secretarias estaduais e municipais e no MEC para a promoção de políticas públicas em consonância com o programa Todos pela Educação.
Uma das fundações que estabelecem “parceria” com a Fundação Itaú Social é a Fundação Tide Setubal. A família Moreira Salles comanda diretamente o Instituto Moreira Salles, focado em atividades e projetos culturais. Ambas as famílias possuem grande inserção nos famigerados “projetos sociais”.
Mas isso é cosmético. A verdade é que o banco Itaú-Unibanco possui uma forte articulação política durante todo o século XX – herança dos capitais simbólico e social dos “patriarcas” do século XIX. Sem a sua relação de apoio incondicional à Ditadura Civil-Militar, os Setubal e Vilela não teriam conseguido construir o banco Itaú como grande complexo financeiro. Com a Reforma Bancária de 1964-1965, iniciada dois meses após o Golpe, o Itaú “pôde construir o seu banco de investimento, concentrando-se com a compra de bancos menores, como o Banco Sul-Americano, o Banco Americano, o Banco Aliança, o Banco Português do Brasil e o Banco União Comercial. Tornou-se, em pouquíssimo tempo, em um dos maiores bancos do país”.[ix]
Como fiadores da financeirização da economia na década de 1990, as famílias do Itaú nunca lucraram tanto. Mas, mesmo assim, a junção dos dois bancos (Itaú e Unibanco) teve método. A remodelação estrutural dos dois bancos com a financeirização da economia baseada na rolagem da Dívida Pública incluiu Pedro Malan, ministro da fazenda de FHC, como Vice-Presidente do Conselho de Administração do Unibanco em 2003. Em 2008, Itaú e Unibanco se juntaram, fazendo com que Pedro Malan trocasse o cargo um ano depois para o de Presidente do Conselho Consultivo Internacional do novo banco. Missão dada é missão cumprida.
Os bancos brasileiros lucram em qualquer contexto. Quando do início da pandemia, o Banco Central liberou R$ 1,2 trilhão aos bancos privados do compulsório argumentando que a medida era uma precaução ante a uma provável crise de liquidez e de crédito. Contudo, como noticiado, os bancos não liberaram os recursos, uma vez que os critérios para a concessão de crédito dependeram da análise dos fatores de riscos. Como os riscos aumentaram, por óbvio que o crédito não foi liberado porque as condições objetivas eram piores às pequenas e médias empresas – uma desculpa, convenhamos. Os bancos privatizaram os compulsórios.
Em 2019, o lucro dos grandes bancos cresceu 18%, mesmo diante da estagnação econômica. Quando analisados os cinco principais bancos, três privados, o lucro teve alta de 30,3%, chegando a um total de R$ 108 bilhões. O maior lucro nominal foi o do Itaú- Unibanco, impressionantes R$ 28,4 bilhões. Os bancos fecharam 898 agências, puxado pelo Banco do Brasil, que passou a ser encaminhado por Paulo Guedes para a privatização, com destaque ao negócio fraudulento com o BTG Pactual em plena pandemia.[x]
As classes de renda D e E tiveram uma redução de rendimentos. A desigualdade aumentou nos últimos 17 trimestres até 2019. De 2014 a 2019, a renda do trabalho da metade mais pobre da população caiu 17,1% enquanto a renda do 1% mais rico subiu 10,11%. Já a renda da fatia da população considerada classe média de renda (posicionada entre os 40% intermediários) teve queda de 4,16%. Destrinchando os 10% mais ricos, constata-se que os 5% mais ricos aumentaram as suas rendas em 4,36%.
Em 2014, o lucro dos cinco principais bancos cresceu 20% (R$ 55 bilhões). Em 2015, apenas o Itaú-Unibanco obteve lucro de R$ 20 bilhões, aumento de 15,4%; os ativos totais chegaram a R$ 1,4 trilhão, aumento de 12,4% comparado a 2014. Em 2016, o lucro dos principais bancos saltou para R$ 60 bilhões, mesmo com a recessão de 3,6%.
Em 2017, o Itaú-Unibanco conseguiu um lucro de R$ 24 bilhões, e os principais bancos lucraram R$ 63 bilhões, aumento de 14,6% comparado ao ano anterior. Em 2018, o lucro do Itaú-Unibanco foi de R$ 25 bilhões e o lucro total do setor bancário chegou a R$ 100 bilhões, até então o maior da história. Por fim, em 2019, o lucro do Itaú-Unibanco chegou a R$ 26,5 bilhões. O lucro dos quatro maiores bancos, excetuando a Caixa Econômica, chegou a R$ 81,5 bilhões, outro recorde histórico.
Em 2016, cerca de 2,5 milhões de pessoas ganharam R$ 270 bilhões de lucros e dividendos sem qualquer taxação. Entre 2013 e 2017, a família Moreira Salles recebeu R$ 4,1 bilhões de lucros e dividendos como acionista do Itaú. Ao todo, as três famílias que controlam o banco receberam R$ 9 bilhões. Como não há taxação de lucros e dividendos no Brasil, em virtude da Lei nº 9.249/1995, os recursos foram transferidos integralmente.
Nem entremos no mérito do nióbio para a família, um objeto totêmico de Bolsonaro substituído pela cloroquina na pandemia, mas o fato é que, para além da exploração do capital sobre o trabalho, as famílias nadam de braçada nos mecanismos institucionais de transferência de renda de trabalho por meio do Estado, transformando-a em renda de capital.
Os 2,5 milhões de pessoas correspondem aproximadamente a 1% da população. Disso se segue que a renda de capital para o 1% mais rico é parte substantiva, ao menos, da composição de sua riqueza. Não estamos falando de meros trabalhadores que se aventuraram com alguns reais no mercado de ações, a despeito das patéticas propagandas das agências de investimento.
Estamos falando da alta burguesia financeira (incluindo o agronegócio), da classe média tradicional das capitais e grandes cidades, da burguesia industrial, que desistiu de produzir ou de enxergar a sua produção com alguma expectativa de expansão, e de poucos outsiders, a exceção transformada em regras nas propagandas de agências de investimento. Com alguma investigação, descobre-se uma nova Betina para o divertimento de todos, que seria uma outsider, mas que ganhou o seu capital inicial do papai da classe média tradicional.
Em 2020, logo antes da pandemia, os bancos dividiram R$ 52 bilhões em dividendos aos seus acionistas, com exceção do Itaú-Unibanco, que distribuiu pouco mais de 60% do lucro líquido de 2019 alegando que os tempos exigiriam aos bancos a abertura da carteira de crédito – o que não se comprovou, a carteira ficou fechada; como o próprio Paulo Guedes confessou, os bancos pegaram o dinheiro do compulsório e guardaram no cofre, fazendo com que as associações comerciais reclamassem publicamente dos bancos.[xi]
Traduzindo tudo da forma mais simples possível, o lucro bancário obteve recordes e mais recordes de 2014 a 2019, enquanto a renda dos mais pobres diminuiu ano após ano. Como um brinde a esse processo, os bilionários brasileiros ficaram US$ 34 bilhões ou R$ 170 bilhões mais ricos na pandemia, o que corresponde a 70% do aumento da riqueza de todos os bilionários da América Latina. No momento da maior queda do PIB brasileiro da história, da maior quantidade de desempregados, do crescimento da informalidade, de queda brutal da renda dos trabalhadores, os bilionários ficaram mais ricos.
A pesquisa da Oxfam Quem paga a conta? demostra que os bilionários brasileiros ficaram mais ricos com a pandemia justamente quando a indústria, os serviços e o comércio tiveram as suas maiores quedas da história recente. A recente pesquisa de Gobetti, da Fundação Getúlio Vargas, mostrou que os mais ricos aumentaram os seus rendimentos em 49% e a parcela de 0,01% mais rica, algo em torno de 15 mil pessoas, aumentou a sua renda em 96% de 2017 a 2024. No geral, os 5% mais ricos passaram a deter 40% da renda nacional. No mesmo período, os mais pobres, incluindo a classe média, aumentaram as suas rendas em apenas 1,5%.[xii]
Isso nos permite apresentar três aspectos do capital financeiro contemporâneo: (i) os grandes capitais estão predominantemente desvinculados dos capitais industrial e comercial; (ii) os grandes capitais estão mergulhados no rentismo; (iii) o rentismo vive de três condicionantes em seus capitais que se sobrepõem aos outros capitais (industrial e comercial):
(a) parte é transferência de renda de trabalho para rendas de capital por meio do sistema da Dívida Pública e do sistema tributário regressivo. (b) Parte é fictícia. (c) Parte vem de paraísos fiscais e da relação entre imposto não pago, inversão de capitais e lavagem de dinheiro.
Como essa disparidade é possível? Se o bolo crescesse, seguindo a fajuta tese do liberalismo brasileiro, é possível que a renda dos mais pobres caísse menos ou não caísse. Mas a tese fajuta costuma também defender que na recessão todos perdem. Não foi o caso. Na recessão, milionários e bilionários ganharam, e não só ganharam, como fincaram os pilares de um crescimento ordinário e sustentável por meio de contrarreformas, como a trabalhista e a previdenciária. Essa disparidade somente pode ser explicada pela exploração e desigualdade.
Se os bancos cresceram em meio à estagnação, recessão e baixo crescimento, é óbvio que cresceram em meio à apropriação da renda de trabalho. Da mesma forma, os segmentos de renda A e B não criaram mais valor (e nem poderiam); apropriaram-se de valor em forma de renda de trabalho. Portanto, os segmentos de renda A e B e os bancos se apropriaram da massa de valor produzida socialmente por meio de mecanismos institucionais de transferência de renda dos mais pobres aos mais ricos, do trabalho ao capital. Como lembra Thomas Piketty, se a renda de capital cresce mais do que o crescimento total, é porque houve concentração de renda de capital.
Mas, o que isso tem a ver com a raça? Como o mundo do trabalho é racializado, em que os mais pobres são negros, expressando-se em uma desigualdade de renda de trabalho de R$ 808 bilhões entre trabalhadores brancos e trabalhadores negros, segundo o Instituto Locomotiva;[xiii] como a maior perda de renda se deu entre os mais pobres e miseráveis; como é de conhecimento estatístico que proporcionalmente os mais pobres são mais taxados pelo Estado; como o Estado é um grande transferidor de recursos por meio da Dívida Pública (dívida pública oficial mais dívida compromissada) aos bancos e aos “investidores”, conclui-se que, proporcionalmente, os banqueiros (bilionários) e segmentos de renda A e B se apropriaram e se enriqueceram sobre a renda de trabalho dos trabalhadores negros.
É possível que banqueiro não seja racista? A depender de uma visão identitarista mercantil financiada pelas fundações dos próprios banqueiros, sim, pois o racismo pode ser superado por meio de uma educação antirracista e/ou sem preconceitos. O racismo seria uma questão cognitiva e psíquica. Sim, porque os bancos passam a ser responsáveis socialmente por colocarem negros em suas propagandas e em algumas posições de trabalho, mostrando a famigerada diversidade do povo brasileiro – Itaú-Unibanco é bastante competente nesse tipo de propaganda de forma muito semelhante à rede Globo.
Mas o dado científico é que os bancos nasceram do escravismo, sobre a exploração e genocídio dos africanos; e lucram com transferência de renda de renda do trabalho em rendas de capital, sobretudo dos trabalhadores descendentes dos africanos outrora escravizados pelos antepassados da “burguesia progressista” e da “burguesia orgulhosa”.
Fator Moreira Salles: o hobby cinematográfico para o alívio da culpa do banqueiro
Esse pequeno relato, por si, seria suficiente para constatar a relação histórica entre racismo e acumulação de capitais entre os bilionários e parte dos milionários brasileiros. Não, não são empreendedores que nasceram do nada, com suor e esforço. Descendem de famílias escravistas que comercializavam africanos e seus descendentes para a lavoura de café. Exploravam-nos até a morte. Essa é a origem do capital inicial das seis gerações de “empreendedores” do banco Itaú-Unibanco. Mas, além dos condicionantes econômicos e históricos, é preciso que analisemos os condicionantes sociológicos.
Falemos dos atuais João Moreira Salles e Walter Moreira Salles – a reprodução de nomes e controle sobre a família, incluindo o peso simbólico do nome, o casamento e a reprodução, são fatores econômicos, como ocorre com os atuais Paulo Setubal, Olavo Egydio e Alfredo Egydio, bem como com a família Marinho, em que o Roberto se transformou em sobrenome.
Os atuais herdeiros Salles trabalham como cineastas. A predileção por um instituto cultural pertence também a uma escolha profissional (sic!). João Moreira Salles é roteirista, documentarista e produtor. Criou a revista Piauí, teve grande relevância para o retorno da indústria audiovisual no fim da ditadura civil-militar e na hecatombe cultural do governo de Fernando Collor. Dirigiu os documentários Notícias de uma guerra particular – em parceria com Katia Lund –, crítico sobre a relação entre polícia, violência e tráfico de drogas; Entreatos, sobre os bastidores da eleição presidencial de Lula em 2001; e Santiago, uma peça sobre o seu mordomo que possuía 30 mil páginas transcritas de passagens sobre a aristocracia europeia.
Seu irmão Walter dirigiu Central do Brasil, um dos principais filmes da cinematografia brasileira. A jornada de Dora rumo à redenção, da indiferença a Josué à foto do monóculo dos dois juntos ao lado de Padre Cícero, é, sem dúvida, uma das jornadas mais bem retratadas sobre as adversidades brasileiras. Por mais que o filme não tenha sido roteirizado pelos irmãos, a direção de Walter expõe a sensibilidade, a complexidade, as contradições, os paradoxos e as agruras do texto, transformando-se em um texto sobre o texto.
Uma jornada da detentora de um poder (a leitura e a escrita) sobre os despossuídos, que inclusive pode decidir se envia ou não a carta, a uma mulher desesperada que é acolhida no colo do Josué, algo que somente poderia ocorrer após uma jornada ao centro do Brasil. Da Central do Brasil ao Centro do Brasil, um local de passagem à verdadeira Central do Brasil, um espaço de redenção e acomodação. Apenas depois desse (re)encontro, Dora pôde retornar.
Mas peguemos Santiago, onde a jornada da família é absolutamente explicitada. João Moreira Salles fez uma peça sobre si e o documentário, não à peça em si, mas ao processo. João consegue determinar o Ser-em-si e o Ser-para-si – é um bom objeto de estudo para entender Jean-Paul Sartre e a expressão da angústia e da náusea. O documentário foi rodado na década de 1990 e abandonado em 1992; foi retomado em 2005, quando João Moreira Salles percebeu o incômodo, o que o fez se transformar em documentado não como uma pessoa, mas como sujeito em uma relação de poder de polos antagônicos. O final do documentário é angustiante para o documentarista pois percebe que as cenas foram feitas com base na relação de poder entre o filho do patrão e o ex-mordomo.
João Moreira Salles tentou construir uma percepção no expectador que reproduzisse a sua náusea ao se ver dando ordens de encenação e desconsiderar a única tentativa do ex-mordomo de ser espontâneo, permitindo-se concluir que a relação de poder entre documentarista e documentado se transbordou na relação de poder entre trabalhador (empregado) e burguês (filho do dono, filho do patrão e herdeiro).
“Fica nessa posição, pensa um pouco na sua vó e na minha mãe” e “eu só quero que você fale…” mostram uma transubstanciação do desejo do documentarista no espírito documentado/dirigido de Santiago. Quando Santiago se propôs a contar por que “pertence ao núcleo de seres malditos”, o seu único momento espontâneo, registrado em áudio com a câmera desligada, João Moreira Salles responde que “isso não precisa”, repetido afirmativamente por Santiago: “isso não precisa”. Em seguida, contou a história que João quis, começando por um “Joãozinho”.
“Joãozinho” ou “maravilhoso Joãozinho” é o “nhonhô” de Prudêncio, em que, mesmo após ser livre, age cognitivamente com Brás Cubas sob imposição sugestionada da estrutura econômico-social usando os termos típicos da relação entre senhor e servo quando legalmente não é mais servo. Assim como Prudêncio, Santiago também não pôde se desvencilhar da relação constituída historicamente e economicamente.
João Moreira Salles conclui que a relação de poder não foi superada. É o vergalho da relação que se expressa não apenas entre Prudêncio e o seu escravizado, mas em Prudêncio livre que se vê servo de Brás Cubas, o antigo dono, enquanto açoita a sua mercadoria. O mordomo se viu mordomo diante do filho do patrão, mesmo não sendo mais mordomo.
A questão é que não pode, mesmo que João Moreira Salles quisesse ou queira. Não somente por causa de Santiago, mas por causa de João, que não deixou de ser o polo burguês na formação da visão de mundo de Santiago. João não deixou de ser o polo burguês para João, caso contrário não daria ordens de encenação. Como diz Sartre, é um fardo que poderia ser superado somente com uma nova sociedade. Se João pretende construir uma obra que representa o indivíduo que realiza o encontro do fenômeno com a essência, a angústia e a náusea serão as expressões da impossibilidade.
João Moreira Salles é banqueiro em uma sociedade capitalista. Essa é a sua profissão na reprodução das relações sociais. João é banqueiro. João não é cineasta. Tal atividade é um hobby de tempo integral, cumprido fielmente por ser um burguês que não trabalha – como todo burguês –, tendo tempo integralmente livre para as atividades de predileção.
Da mesma forma que João Moreira Salles constatou que a determinação econômico-social da relação de poder o impediu que chegasse à essência de Santiago, qualquer burguês supostamente progressista deve concluir o mesmo em relação aos trabalhadores e aos trabalhadores negros – o novo fetiche da publicidade neoliberal. Não há como ser antirracista sendo agente ativo de uma estrutura que reproduz a racialização como padrão superestruturante da acumulação de capitais.
O iluminismo de uma formação letrada não impacta na exploração e desigualdade racializada (economia) e na violência jurídico-policial (Estado). Se impacta, seria na apresentação da representação, o que tem a sua relevância sociológica e psíquica à população negra, mas, quando desvinculada da dimensão da reprodução da vida do negro (economia), não passa de um elemento conservador com os dois pés na naturalização do racismo.
Como atestam as pesquisas As implicações do sistema tributário brasileiro nas desigualdades de renda (2014) e Perfil da Desigualdade e da Injustiça Tributária: com Base nos Declarantes do Imposto de Renda no Brasil 2007-2013 (2016), de Elivásio Salvador, e dados da Oxfam, são as mulheres negras que mais pagam impostos proporcionalmente à renda. Com um sistema tributário regressivo, a alta burguesia paga em média menos de 8% do total de seu patrimônio e lucro, uma vez que há isenção de tributação sobre lucros e dividendos. Em estimativas, enquanto 10% dos mais ricos têm 33% de lucros e dividendos na renda total, os 0,2% mais ricos detém 70% de lucros e dividendos sobre a renda total.
A dívida pública tem como grandes credores os bancos, fundos de investimentos e fundos de pensão. Se a média de pagamento de juros, amortização e dívida nos últimos anos é de 50% do orçamento, conclui-se que os bancos e os segmentos de renda A e B se apropriam de boa parte do orçamento federal. Mas a questão não é somente essa. Para além da forma da dívida pública – a priori, não há problema em o Estado ter dívida pública –, está o problema de o orçamento ser constituído por impostos pagos por trabalhadores e proporcionalmente em montante maior por trabalhadores negros, com especial destaque às mulheres negras.
Eis o busílis: parte significativa dos lucros e dividendos distribuídos para as famílias Setubal e Moreira Salles é originalmente recurso proveniente dos impostos que incidem mais em trabalhadores negros. As instituições financeiras defendem a manutenção de tal estrutura, sendo, portanto, hipocrisia financiar pequenos projetos culturais e de movimentos sociais com “recursos próprios” quando são constituídos da apropriação por meio dos juros sobre a renda de trabalho.
A defesa do racismo como elemento cognitivo-comportamental permite que a classe média e a burguesia levem movimentos populares para uma posição progressista controlada, o que reforça e reproduz os mecanismos econômicos de reprodução do racismo, uma vez que deixa intacta a estrutura de reprodução da exploração e da desigualdade racializada. Em suma, ganha-se o super-herói antirracista quando os poderes do racismo continuam intactos para a acumulação de capitais do super-herói.
Lógico que a família Moreira Salles foi utilizada como tipo ideal (mas real) por ser intelectualmente bem superior à média cognitiva da burguesia e da classe média tradicional brasileiras, habitualmente medíocres. É muito provável que, individualmente, os irmãos Moreira Salles não sejam preconceituosos do ponto de vista do comportamento, e que sejam bastante regrados sobre o que falam e como se comportam de maneira crítica a qualquer prática racista, misógina e homofóbica. Contudo, é exatamente esse o paradoxo econômico-político da luta de classes que se transforma em culpa na burguesia autoproclamada progressista.
Denomino de Fator Moreira Salles a impossibilidade real e concreta de a burguesia ser antirracista,[xiv] mesmo que individualmente e comportamentalmente procure não ser preconceituosa ou racista. Uma espécie de conceito que sintetiza esse paradoxo. Em suma, não é qualquer branco que pode ser antirracista. Pelo contrário, potencialmente, mesmo que supostamente pudesse ser livre cognitivamente de preconceitos, o burguês – no Brasil, no planeta e no universo – é racista porque é agente ativo e apropriador de capitais sobre a classe trabalhadora racializada.
Essa regra vale para todos que envidam esforços para o controle sobre práticas individualmente racistas e a “democratização” da representação, mas que ignoram a necessidade de destruição dos mecanismos econômicos de exploração, da racialização e da desigualdade racializada, mantendo intacta a sua acumulação.
Esse dado sociológico não colide com o dado histórico, construído em boa medida por seus antepassados. Pelo contrário, só se tornaram banqueiros porque seus antepassados acumularam capitais sobre africanos escravizados, e só continuam banqueiros porque os mecanismos de exploração construídos historicamente por seus antepassados são reproduzidos positivamente por eles para si próprios.
As libertações sobre as culpas passam pela construção de uma outra sociedade, ou melhor, os bilionários progressistas que possuem culpa só deixarão de tê-la quando deixarem de ser burgueses. A outra solução é reproduzir, embora existencialmente com conteúdo antagônico, as mães africanas que pulavam com seus filhos ao mar do navio que as aprisionavam.
*Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo (Alameda). [https://amzn.to/3xPnjXq]
Notas
[i] O presente artigo é baseado no capítulo IV do livro Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo, lançado em 2023 pela Editora Alameda.
[ii] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2024/06/em-podcast-neca-setubal-fala-sobre-a-culpa-de-ser-rica-superada-com-terapia.shtml.
[iii] DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura (1820-1920). Tradução de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 130.
[iv] DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura (1820-1920). Tradução de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 133.
[v] VALE, Fernando Henrique do. Economia de abastecimento em uma economia agroexportadora: o município de Pouso Alegre/MG na transição para o século XX. (Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.
[vi] BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. Os Moreira Salles, os Setúbal e os Villela: finanças e poder no Brasil, p. 274. In: Os donos do Capital: a trajetória das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro. (Org.) CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. 1ª ed. Autografia: Rio de Janeiro, 2017, p. 271-314.
[vii] SAES, Alexandre Macchione; AVELINO FILHO, Antoniel. Escravidão e trajetória das elites locais: Campanha e Pouso Alegre no ocaso da escravidão. Cultura, História e Patrimônio. V. 1, n. 1, 2012.
[viii] PAULA, Sergio Goes de. João Moreira Salles, o patriarca. IMS, 9 abr. 2018. Disponível em: www.ims.com.br/por-dentro-acervos/joao-moreira-salles-o-patriarca. Acesso em: 10 de jul. de 2020.
[ix] SACRAMENTO, Leonardo. O Nascimento da Nação: como o liberalismo produziu o protofascismo brasileiro. Vol. II. São Paulo: Editora IFSP, 2023, p. 90. Disponível em https://editora.ifsp.edu.br/edifsp/catalog/view/106/46/1093.
[x] Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2020/09/01/o-que-esta-por-tras-da-venda-de-titulos-de-creditos-do-banco-do-brasil-para-o-btg.
[xi] Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/04/04/recursos-liberados-a-bancos-estao-empossados-no-sistema-financeiro-diz-guedes.htm .
[xii] GOBETTI, Sérgio Wulff. Concentração de renda no topo: novas revelações pelos dados do IRPF (Partes I e II). Observatório de Política Fiscal, FGV, 2024. Disponível, respectivamente, em https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/politica-economica/pesquisa-academica/concentracao-de-renda-no-topo-novas-revelacoes-pelos-dados-do e https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/politica-economica/pesquisa-academica/concentracao-de-renda-no-topo-novas-revelacoes-pelos-dados-0.
[xiii] Disponível em https://www.ibe.edu.br/desigualdade-salarial-entre-brancos-e-negros-gera-prejuizo-de-r-808-bilhoes/.
[xiv] No livro Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo, o Fator Moreira Salles é aplicado também à classe média tradicional.
# (rpt) A teoria crítica da Cultura de Thedor Adorno. Lucas Fiaschetti Estevez (A Terra é redonda)
# (rpt) Marx e a financeirização: o exuberante capital fictício. Renildo Souza (A Terra é redonda)
# (rpt) Benditas Leituras
# Decisão é fortemente criticada por empresários, entidades e pela área econômica do governo. Leia as matérias: 247, Carta Capital, Folha
# Rodrigo Ratier (Uol) # Adriana Ferraz (Uol) # Podcast Uol
Estudantes estão se endividando e alguns têm usado a verba recebida do programa federal Pé-de-Meia em jogos de azar. # Leia a reportagem da Pública
No mesmo Rio de Janeiro onde ardeu o Museu Nacional, casas que abrigaram Portinari e Carmen Miranda definham. Exemplos de Mário Quintana, em Porto Alegre, e Jorge Amado, em Salvador, mostram que não precisa ser assim. # Leia no DW
# A teoria crítica da Cultura de Thedor Adorno. Lucas Fiaschetti Estevez (A Terra é redonda)
# Marx e a financeirização: o exuberante capital fictício. Renildo Souza (A Terra é redonda)
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Nunes e Marçal: a dobradinha bolsonarista
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Ascensão da China. Revolução digital. Mudanças climáticas. Plataformização da economia. As relações de trabalho se reconfiguram – e exigirão mais que políticas de emprego. Repensar o modelo de desenvolvimento do país é crucial. # Erik Chiconelli Gomes, Outras Palavras
Variações: # Intelectuais divulgam manifesto contra Musk e de apoio ao Brasil (Opera Mundi) # Nova IA da OpenAI tira 10 em prova do ITA e 'passa' em residência médica da USP (Estadão) # A ilusão infernal: crescimento do empreendedorismo como inclusão social (Carta Capital) # Aos 83, Betty Faria diz que extrema direita é contra os velhos (Uol)
Espetáculo deprimente virou diversão. Florestan F. Jr (247)
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A maior impulsionadora de conteúdo político do Brasil. Dinheiro não falta, no seu trabalho de doutrinação do público. Luis Felipe Miguel (ATR)
# O dia em que a TV pública merecia direito de resposta na TV pública
Missão da EBC é “criar e difundir conteúdos que contribuam para o desenvolvimento da consciência crítica das pessoas” (GGN)
# O Paraná abre as portas das escolas públicas para as empresas privadas
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# O presidente em seu labirinto
A luta do legislativo para ampliar o seu poder de mando no país não tem prazo para terminar e o que está em jogo é algo mais profundo. Jean Marc Von Der Weid (ATR)
A formação de plataformas digitais lançou sujeitos produtivos que não existiam antes da década de 1980. O artigo é de Franco “Bifo” Berardi, filósofo, escritor e ativista italiano, publicado por CRXT.
Falhamos em mostrar que o capitalismo não tem processos de enriquecimento replicáveis, e estamos falhando em mostrar que o mundo digital não é uma cópia da e nem uma receita para a vida analógica
# Cadeirada implode candidatura Datena e dá a Marçal o que ele buscava. M. Pichonelli (Uol) # Detalhes do 'barraco' (G1)
# Datena e Marçal protagonizaram espetáculo de escandalosa mediocridade política em "debate" na TV Cultura de SP. Engana-se quem pensa que aquilo foi excepcional. O show tem a marca ideológica da direita cuidadosamente trabalhada para afastar a sociedade do debate político e da busca pelas soluções radicais que o Brasil exige
Num contexto de eleição de Trump nos EUA e de prefeitos como Pablo Marçal em São Paulo, que funciona como carta coringa das forças de extrema direita, a crítica dissidente voltaria a ser sitiada, assim como as instituições e culturas capazes de produzi-las.
"O projeto que enfrentamos foge às antigas categorias da política. Enraizou-se na competição sem tréguas, que o neoliberalismo tanto estimulou, e na mentalidade gaming – hiperacelerada e acrítica – a que conduzem as telas e seus algoritmos", escreve Franco Berardi, filósofo, escritor e agitador cultural italiano, em artigo publicado em Outras Palavras.
O termo difundiu-se, em especial com o avanço das redes sociais. Mas o que é exatamente uma narrativa? O que distingue o conceito de discurso ou ideologia, por exemplo? E qual sua complexa relação com as fake news e os sentimentos persecutórios?
# PL da anistia: CCJ vira trincheira do golpe de 8/1.
João Filho (Intercept)
# Paraisópolis celebra 103 anos com festa (TVT News)
# Jornalismo não deve usar linguagem de extema direita. Fabiana Moraes (Pública)
Durante sua participação no programa Giro das Onze da TV 247, o cientista do clima e professor da Universidade Estadual do Ceará, Alexandre Costa, fez duras críticas ao modelo agroexportador brasileiro e às práticas do agronegócio, especialmente no que tange às queimadas. Costa descreveu esse sistema como “um modelo de morte”, apontando que a pecuária extensiva e a produção voltada para exportação estão levando o Brasil ao limite ambiental # Leia no 247
# Ministra Marina Silva: "Não tem força humana que consiga conter se as pessoas não pararem de queimar" (Intercept)
“Eu entrevistei um trabalhador que me falou que trabalhou por 20 horas seguidas. Eu quase caí da cadeira. Perguntei então o que ele fez no dia seguinte e ele respondeu: “A mesma coisa, dormi 2 horas e comecei de novo”.
# Entrevista com Ricardo Antunes publicada no site do IHU em 12/9/24 (acesse)
Desde os anos 1970 o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisa as relações de trabalho. Acompanhou a ascensão dos movimentos sindicais do ABC Paulista e do trabalho feito em computadores, as mudanças provocadas pela pandemia e o home office. Autor de mais de uma dúzia de livros, nos últimos anos ele vem investigando as plataformas digitais como uber e ifood. E está consternado com o que está acontecendo.
A entrevista é de Maria Carolina Santos, publicada por Marco Zero, 10-09-2024.
Para o experiente pesquisador, a precariedade do trabalho nas plataformas digitais só encontra paralelo lá na Revolução Industrial, há mais de 200 anos. “O capitalismo de plataforma tem algo em comum com a protoforma do capitalismo: a exploração ilimitada do trabalho”, avalia.
Nas entrevistas que faz com esses trabalhadores para suas pesquisas, o comum é escutar que eles cumprem jornadas de 10, 12 horas. “Eu entrevistei um trabalhador que me falou que trabalhou por 20 horas seguidas. Eu quase caí da cadeira. Perguntei então o que ele fez no dia seguinte e ele respondeu: “A mesma coisa, dormi 2 horas e comecei de novo”, contou Ricardo Antunes, para uma plateia que lotou a sala Aloísio Magalhães, no campus do Derby da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), durante a abertura do I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao adoecimento mental, promovido na semana passada pela Fundaj e os grupos de pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE).
Para Antunes, estamos ingressando em uma nova era de subordinação do trabalho ao capital. Agora, sob o comando de ferramentas informacionais que tende a acentuar ainda mais o processo de desantropomorfização – retirando ao máximo o fator humano do trabalho. “No capítulo de O capital em que Karl Marx trata da grande indústria, ele diz que na indústria da revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, os trabalhadores e trabalhadoras se tornam autômatos e atentes da máquina. Hoje nós somos autômatos e atentes desta máquina digital (mostra o celular) que está controlando o nosso tempo. O trabalho humano que nós temos hoje, ele é ainda mais desantropomorfizador, ele perde ainda mais o seu sentido humano”, disse.
As longas jornadas do chamado “capitalismo de plataforma” trazem também formas mais sofisticadas de submissão dos trabalhadores. Há quem chame de subordinação algorítmica, mas a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Vanessa Patriota da Fonseca, que dividiu a mesa de abertura com Ricardo Antunes, prefere caracterizar como subordinação clássica, por entender que não há diferença no controle.
“Há uma parte que tem o capital e outra parte que tem a força de trabalho. Esses termos muito usados pelas empresas, como colaborador, economia de compartilhamento, parceria, foram criados para intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de pessoas exploradas às empresas que as exploram”, disse a procuradora. “As plataformas digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das trabalhadoras. Isso em um mundo onde as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas, e onde os Estados são capturados pelas grandes corporações”, completou.
Ricardo Antunes usou por algumas vezes a palavra “devastação” para falar do momento atual do mundo: devastação ambiental e devastação no trabalho.
“No século XX, a grande Rosa Luxemburgo nos disse certa vez que o dilema do seu tempo era socialismo ou barbárie. Acertou. Só que se Rosa Luxemburgo estivesse viva hoje, ela diria que não é mais esse, pois na barbárie nós já estamos. E o trabalho é a nossa autocracia dessa barbárie”, disse o professor.
A frase, atribuída aos filósofos Fredric Jameson e Slavoj Zizek, de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo” foi citada algumas vezes durante os dois dias de seminário. Mas Ricardo Antunes lembra que a história é imprevisível. E que a luta de classes é o que vai mudar a realidade de precarização de trabalhadores e trabalhadoras.
“Nós vamos ter que lutar. Porque se a gente não fizer isso, os nossos filhos e os nossos netos, se tiver mundo para eles viverem, serão escravos digitais. Então, nós, se não quisermos lutar por nós mesmos, é bom que comecemos a lutar por eles”, alertou.
Ricardo Antunes tem uma fala cativante: é direto e sem papas na língua, arrancando, aqui e ali, risadas da plateia. É também extremamente gentil. No evento da Fundaj não se furtou a nenhum pedido de autógrafos, fotos, selfies ou conversas rápidas com as dezenas e dezenas de leitoras e leitores que o abordaram.
Ao final da palestra, uma longa fila se formou para fotos. Logo em seguida, sem intervalo, ele participou do lançamento do livro Subordinação (mal) Camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais, da procuradora Vanessa Patriota da Fonseca, do qual escreveu o prefácio.
Enquanto a autora autografava os exemplares do livro, Ricardo Antunes arranjou uma brechinha para esta rápida entrevista abaixo.
Nela, afirma que a política de conciliação do governo Lula não vai fazer as mudanças que os trabalhadores e trabalhadoras precisam. “Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas, sociais etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. O capitalismo que está fazendo sucesso hoje é o que combina fascismo com neoliberalismo”, alerta.
Como a precarização e a falta de direitos atinge a saúde do trabalhador?
Quanto mais informalidade, melhor para as empresas. Ou seja, trabalha, ganha; não trabalha, não ganha. O mundo das empresas que ainda têm alguma regulação, como bancos e metalúrgicas, só têm regulação porque os sindicatos lutam. Explorar até o limite só tem um resultado: no caso dos motoqueiros, há a morte de mais de um por dia na cidade de São Paulo. Sem falar dos acidentes: esses motoqueiros quebram braço, perna, bacia, cabeça. É um vilipêndio. É uma morte a céu aberto.
A resiliência é trabalhar todo o possível para a empresa. Qual é o resultado da resiliência? É o burnout, é a depressão, é o assédio, é o sofrimento. E muitas vezes o suicídio.
Um bom exemplo do que é o capitalismo é o Japão. A sociedade japonesa é uma das que tem mais suicídios no mundo. Porque até os gerentes de cada um dos intermediários acham que se a empresa faliu ou está indo mal, a culpa é deles. Ficam trabalhando na empresa até morrer. Quando a Telefrance, na França, foi privatizada, aconteceram mais de 50 suicídios lá dentro. Porque a privatização hoje avança para quebrar direitos da classe trabalhadora. Uma classe trabalhadora sem direitos é uma classe trabalhadora empurrada para o sofrimento, para a depressão, para o burnout, para o assédio, para o suicídio e para a morte.
E como é que você muda isso? Tem que combater o capitalismo. E lutar por políticas públicas sociais, etc. Mas não pode ter ilusão. Porque o capitalismo não aceita mais nem regulamentação, nem políticas sociais. Ele quer a neoliberalização geral. No capitalismo, hoje o que está fazendo sucesso é a combinação de fascismo com neoliberalismo. O exemplo mais evidente é a boçalidade indigente e inqualificável do Javier Milei na Argentina. Este é o boçal do nosso tempo: um burguês ilimitado que está destruindo a classe trabalhadora argentina dizendo-se neoliberal e libertário.
Explorar até o limite só tem um resultado: no caso dos motoqueiros, há a morte de mais de um por dia na cidade de São Paulo – Ricardo Antunes
Como é que o senhor avalia o que o terceiro governo Lula tem feito para os trabalhadores?
A primeira coisa importante para avaliar o governo Lula é entender que ele pegou um país de terra arrasada. Fundamentalmente, Michel Temer deu legalidade à aberração do arcabouço fiscal, ou seja, não se amplia recursos para saúde, educação e previdência pública. Um país que não amplia recursos para saúde, educação e previdência pública é o país que comete um crime contra a sua população.
E por que não amplia recursos? Porque os bancos querem dominar o capital financeiro. A primeira coisa que teria que fazer é cortar o domínio e a hegemonia dos bancos e do capital financeiro na política econômica do país. E isso o governo Lula não conseguirá porque é um governo politicamente débil e frágil. Mas, por exemplo, o governo Lula está tentando, ao seu modo, lutar por uma coisa importante, que é retirar a autonomia do Banco Central.
O segundo fator é que, politicamente, para derrotar o Bolsonaro, que foi a expressão do neofascismo do Brasil, evidenciou-se que era preciso eleitoralmente ampliar uma frente. No segundo turno, a diferença de Lula para Bolsonaro foi de menos de 2 milhões de votos. O que o Bolsonaro fez nos últimos seis meses do seu governo foi a devastação total para comprar votos dos eleitores pobres. Lula tomou posse e viveu um golpe oito dias depois da eleição, seria então um milagre que nós tivéssemos no paraíso.
Outro ponto é que Lula foi eleito com um programa moderado de conciliação de classes. É sempre bom lembrar que Geraldo Alckmin era o homem do neoliberalismo do Brasil até ontem e continua sendo. É que o Alckmin não é fascista e o Bolsonaro é. E, claro, que Alckmin também estava muito fragilizado no PSDB, que praticamente tinha desaparecido.
Dito isto, o Lula que ganhou a eleição está muito aquém do que ele poderia fazer, mas reconheço ações importantes.
No capitalismo, hoje o que está fazendo sucesso é a combinação de fascismo com neoliberalismo. O exemplo mais evidente é a boçalidade do Javier Milei na Argentina: um burguês ilimitado que está destruindo a classe trabalhadora dizendo-se neoliberal e libertário – Ricardo Antunes
Quais? Na área do trabalho?
Não na área de trabalho. A área de trabalho até agora é lamentável. Reconheço, por exemplo, a tentativa de combater o crime organizado na Amazônia e tentar minimizar as condições de sofrimento e adoecimento do povo indígena. Não é fácil você fechar a Amazônia para o crime porque é uma fronteira aberta imensa, o crime entra por todos os lados. Uma parte da polícia estadual muitas vezes é vinculada ao crime, basta pensar que os milicianos que nascem dentro da polícia e se tornam criminosos e outras tantas dificuldades.
Agora, no que diz respeito à questão do trabalho, o governo Lula não fez nada do que poderia. Claro, não estou falando aqui da política econômica, é evidente que tem havido já uma redução do desemprego razoável. Acabamos de ver agora que houve o crescimento do PIB, então há uma tentativa de retomada do crescimento econômico, mas, por exemplo, o que o Lula disse em campanha? Que ia debater com seriedade a “contra-reforma” trabalhista de Michel Temer. Não só não debateu e não fez a revisão, como o PL 12/2024 (o projeto de lei 12/2024 cria a categoria “trabalhador autônomo por plataforma” e atualmente está fora de pauta no congresso) do seu governo é a continuidade do projeto Temer de destruição do trabalho.
O senhor está se referindo ao projeto de lei que estabelece 12 horas de trabalho diário por aplicativo?
Isso, 12 horas para cada aplicativo. Não fala das mulheres – não há uma nota sobre as trabalhadoras! – e não fala da questão crucial. A questão crucial é que quando você avalia o trabalho em plataformas é se é um trabalho que é verdadeiramente autônomo, ou seja, o trabalhador faz o que quer e não faz o que não quer, ou se ele é um assalariado sem direitos.
No artigo terceiro deste PL do Lula, se diz que esses trabalhadores são “autônomos”, que trabalhadores de plataformas de automóveis são autônomos. É criminoso, porque não é verdadeiro, é falso. Você acha que quem trabalha 12, 14, 16, 18 horas por dia é autônomo?
Autonomia é outra coisa. Se eu sou um eletricista autônomo, eu faço o serviço da sua casa, e eu quem vou dizer quanto eu cobro, quando eu posso fazer, quantos dias eu vou levar e como eu quero receber. Você fala que só vou pagar quando terminar, eu falo que não, eu preciso que você me pague antes uma parte para eu comprar material. Isso é que é ser autônomo, é elementar.
No que diz respeito à questão trabalhista, dos direitos do trabalho, o Lula tem algumas questões cruciais e urgentes a enfrentar: extinguir o trabalho uberizado da “contra-reforma” de Temer; recuperar o mínimo de força sindical que a “contra-reforma” de Temer também arrebentou, tentando minar economicamente os sindicatos; acabar com as tantas formas de precarização, inclusive, do trabalho feminino na “contra-reforma” trabalhista, porque você desobrigou as empresas de uma série de obrigações que ela tinha, até do transporte de levar trabalhadores e trabalhadoras; e quarto elemento, que diz respeito ao trabalho em plataforma, é inaceitável que um ex-operário que durante décadas trabalhou em fábrica, faça um projeto de lei do seu governo que atende a Uber e iFood, que estão contentes e felizes na vida.
Os entregadores não aceitaram essa proposta do PL?
Felizmente, há luta de classes e há resistência. E, neste caso, além de toda a denúncia que muitos fizeram – eu também fiz, porque era inaceitável – os jovens entregadores e entregadoras de motos e bicicletas repudiaram essa proposta e a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos, chamada de Aliança, disse: “não aceitamos”. E saiu da negociação, deixando o Lula levando o pau do bolsonarismo, que é de extrema direita e é fascista, mas levando críticas também dos setores de esquerda que lutam em defesa dos direitos da classe trabalhadora.
Os motoristas aceitaram, não foi?
Os motoristas aceitaram em parte. Não é que eles aceitaram, mas os que estavam lá aceitaram. Mas se você for fazer uma enquete entre eles, a maioria não aceita. E não é por bons motivos que eles não aceitaram, né? Mas quem é o motorista nos aplicativos hoje? Um era veterinário, outro era engenheiro, outro era motorista de caminhão, outro era operário metalúrgico, outro era trabalhador da construção civil, outro era estudante, outro era gestor de pequena empresa, é um compósito heterogêneo de categorias sociais que, de repente, tem um carro ou aluga, tem uma moto ou aluga, tem uma bicicleta e aluga e vai trabalhar.
E é muito importante entender que esta categoria, além de ser heterogênea, fragmentada, ela vem de experiências diferentes. Um operário metalúrgico, por exemplo, que virou um uberizado, ele tem a experiência das greves.
O operário, o antigo motoqueiro, tinha a experiência do sindicato dos motoqueiros. Já um engenheiro que está desempregado, ou um pequeno empresário, eles não querem saber. Os mais jovens nasceram – e a maioria é muito jovem, especialmente os entregadores – sob o signo de que o sindicato atrapalha, política é negativa e a CLT é um horror.
E isso é tudo construção ideológica das empresas para poder ter uma classe trabalhadora disponível para a exploração ilimitada. Mas muito importante uma coisa: a luta de 1º de julho de 2020 mostra que os trabalhadores, quando a porca torce o rabo, perceberam que há um problema e aí começaram a lutar.
O trabalhador só vai começar a perceber o problema se ele se acidenta e para de trabalhar, porque aí ele não tem um centavo para sobreviver. Aí ele começa a refletir – Ricardo Antunes
O senhor é otimista com esse movimento Breque dos apps? Porque já faz quatro anos que aconteceu…
Não estou sendo otimista, porque nenhum movimento operário, em toda a história do movimento operário, nasce no primeiro, segundo, terceiro ou quarto ano. Quantos anos o ABC Paulista levou para fazer greve depois das greves de Contagem e Osasco? (em abril de 1968, a primeira grande greve no Brasil após o golpe de 1964). Dez anos. Por quê? Por que eram bobos? Não. Porque era uma ditadura. Veja, pense o seguinte: se eu estou endividado, se eu alugo um carro ou compro um carro, se eu alugo uma moto ou compro uma moto, eu compro um celular e fico endividado, eu vou chegar nessa plataforma e vou começar a lutar contra ela? Não, a primeira coisa que eu quero é ganhar dinheiro e trabalhar que nem louco para pagar o carro, a moto ou o celular.
Quanto tempo a Uber está no Brasil? Ela chegou em 2014. Ela só ganhou corpo na pandemia. Em 2016, 2017 ela era pequenininha, mesmo na Inglaterra, mesmo em outros países. É que com a explosão do desemprego na pandemia, as plataformas se expandiram.
É por isso que a Uber, a 99, a Cabify, a Lyft, a Deliveroo, como exemplos generalizados, pagavam muito mais antes. Quando você tem 10 trabalhadores ou trabalhadoras, você paga X. Quando você tem 100, você paga X menos tanto. Quando você tem 1.000, você paga 100 menos X menos Y. Quanto mais trabalhadores e trabalhadoras disponíveis, desempregados, menor é o seu salário.
Se a economia do Brasil melhorar, o número de trabalhadores de aplicativos também pode diminuir?
Não dá para dizer isso porque os salários médios do Brasil hoje estão muito baixos. Então, por exemplo, todos os trabalhadores que eu entrevistei até hoje, todos eles dizem que preferem trabalhar 12, 13 horas e tirar R$ 5 mil, R$ 6 mil do que trabalhar numa empresa e ganhar R$ 3 mil, com descontos. O trabalhador só vai começar a perceber o problema se ele se acidenta e para de trabalhar, porque aí ele não tem um centavo para sobreviver. Aí ele começa a refletir. Eu tenho acompanhado as movimentações dos trabalhadores em aplicativos em Portugal, Inglaterra, Espanha, Itália, Argentina, Uruguai, Brasil. É uma categoria nova, tem apenas alguns anos.
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Escolha diante de cada eleitor não se resume apenas a quais discursos melhor refletem suas preferências ou quem apresenta as melhores propostas. Márcio Moretto Ribeiro, Folha (acesse)
Márcio Moretto Ribeiro
Professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), é coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital
As eleições de outubro para a Prefeitura de São Paulo revelam as narrativas morais que os candidatos constroem para moldar suas visões sobre a cidade e seu futuro. Para entender melhor essas narrativas, recorremos às abordagens teóricas que elucidam o papel da moralidade na política.
Em "Moral, Believing Animals: Human Personhood and Culture", Christian Smith argumenta que os seres humanos são essencialmente "criadores de histórias" —seres cujas identidades são moldadas por narrativas morais que dão sentido ao mundo. No contexto político, cada candidato constrói uma narrativa específica para convencer os eleitores de que sua visão é a mais legítima.
Os candidatos à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL), Pablo Marçal (PRTB), Ricardo Nunes (MDB), Tabata Amaral (PSB) e José Luiz Datena (PSDB) - Bruno Santos/Folhapress
Guilherme Boulos (PSOL), por exemplo, apresenta uma narrativa de uma cidade marcada por profundas desigualdades sociais e econômicas, onde o espaço urbano reflete injustiças estruturais. Ele vê São Paulo como uma cidade de extremos —com riqueza concentrada em poucos bairros e precariedade nas periferias. Sua proposta é reconfigurar a cidade, com forte intervenção pública para garantir moradia, saúde e educação. Boulos defende um espaço de acolhimento, inclusão e justiça social, rompendo com a lógica do privilégio.
Em contrapartida, José Luiz Datena (PSDB) vê São Paulo como uma cidade à beira do caos, assombrada pela violência e pela corrupção. Sua narrativa é de uma cidade sitiada, onde a ordem precisa ser restaurada com medidas punitivas. Ele defende um governo focado na segurança pública, no combate ao crime e à corrupção, para que a lei e a ordem prevaleçam.
Tabata Amaral (PSB), por sua vez, adota uma abordagem intermediária, reconhecendo tanto as desigualdades da cidade quanto seu potencial de inovação. Propõe uma narrativa de reconciliação, onde a educação de qualidade e a inclusão digital rompem com a desigualdade. Sua ideia é uma São Paulo conectada e moderna, com uma administração eficiente e próxima das necessidades da população.
Segundo Jonathan Haidt, em "A Mente Moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião", progressistas e conservadores enfatizam diferentes eixos morais. A narrativa de Boulos é progressista por se alinhar aos eixos de cuidado/dano e justiça/trapaça, focando em proteger os vulneráveis e combater a desigualdade. Em contraste, a narrativa de Datena é conservadora, destacando os eixos de autoridade/subversão, lealdade/traição e santidade/degradação, com apelo à ordem e à segurança.
Ricardo Nunes (MDB), atual prefeito, previsivelmente defende a continuidade e a estabilidade administrativa. Sua abordagem é de um conservadorismo moderado, que prioriza a eficiência e a manutenção das estruturas existentes, evitando mudanças radicais. Ele se posiciona como o candidato capaz de assegurar a eficiência na administração pública, sem recorrer a retóricas extremas.
Por fim, Pablo Marçal (PRTB) é o candidato mais enigmático. Embora se apresente como conservador para atrair eleitores bolsonaristas, sua retórica mistura rebeldia e empreendedorismo, aproximando-se mais da teologia da prosperidade do que dos valores conservadores tradicionais. Como outsider, ele defende que São Paulo precisa se libertar das amarras do "sistema" e se reinventar com inovação, mentalidade empresarial e eficiência. Marçal promete transformar a metrópole, promovendo uma visão em que o sucesso depende principalmente da iniciativa empreendedora e da determinação individual.
Tanto as visões progressistas quanto as conservadoras representam opções legítimas para o eleitor. Contudo, é diferente quando um candidato recorre a estratégias que desestabilizam o processo democrático, deslegitimam as instituições e fomentam a polarização e o caos.
Assim, a escolha diante de cada eleitor paulistano não se resume apenas a qual narrativa melhor reflete suas preferências ou quem apresenta as melhores propostas para a cidade, mas também a quem demonstra respeito pelos eleitores, pelos adversários e pelos ritos democráticos.
# Leia análise de Igor Gielow (Folha) sobre a penúltima pesquisa eleitoral
Se Bolsonaro e outros líderes da extrema direita aprenderam, progressivamente, a se apropriar das redes para suas lutas ideológicas, Marçal encontra nas redes seu habitat natural, pois é um filhote desse ambiente
# Clipping sobre a disputa pela prefeitura da capital paulista
Agonia da criação, de Leonid Pasternak
Texto de Diego Cuevas publicado no site espanhol Jot Down
Ya se sabe cómo funciona la industria de las letras, 50 sombras de Grey vende unas toneladas de ejemplares y a la mañana siguiente tenemos, en la primera fila de las estanterías de cada librería del universo, una docena de novelas con amantes jugando a meterse bolas de billar por el culo. (continue a leitura)
El código Da Vinci arrasa entre las lecturas del metro y nos llueve el marketing salvaje de cientos de thrillers que exploran el significado oculto de las dieciséis estampas de perros jugando al póquer de Cassius Marcellus Coolidge. Crepúsculo consigue aflojar la goma de las bragas de medio planeta y de repente tenemos legendarias criaturas terroríficas convertidas en pálidos adolescentes que suspiran profundo con mirada intensa y pinta de tener una rave en los intestinos. Los hombres que no amaban a las mujeres se corona como blockbuster y una colección de escritores de suspense brotan de golpe en los helados paisajes de Europa del norte. Paulo Coelho publica en papel la copia de seguridad de sus conversaciones de Whatsapp, se convierte en un éxito y sus lectores sentencian que tanta profundidad les ha cambiado la vida mientras miccionan en tonos arcoíris. Alguien escribe un flyer de bienvenida al pensamiento new age, lo titula El secreto, contrata al maquetador de Geronimo Stilton y acaba amontonado bolsas con el símbolo del dólar estampado. Un yuppie dice que una fábula sobre productos lácteos sustraídos es indispensable para cualquier empresa y una muralla de cuentos para críos, disfrazados de revelaciones para encorbatados, acabará atrincherando la sección Actualidad.
¿Cómo ser un escritor de éxito? ¿Quién coño lo sabe? Y sobre todo ¿a quién le importa?
Paso 1: Buscar un editor
En 1887 un poema titulado «Like a Giant Refreshed» llegó a las mesas de cinco editores. Tres lo rechazaron y dos aceptaron publicar la obra si el autor se hacía cargo de los gastos. Entre las respuestas oficiales recibidas se encontraban un «El mercado está lleno de cosas similares», un «Tenemos cubierta nuestra lista de ediciones para la siguiente temporada» y un «Es evidente que tiene algo especial, pero no lo suficiente para asegurar ventas». La persona que había enviado el manuscrito era un corresponsal de St. James’s Gazette, pero lo cierto es que no era el verdadero autor de la obra. En realidad había copiado palabra por palabra el poema «Samson Agonistes» que aparecía en Paradise Regain’d, una obra del poeta John Milton, para algunos el segundo literato más notable de las letras anglosajonas después de William Shakespeare. El objetivo era obvio, demostrar que los ojeadores de nuevos talentos no tienen olfato para detectar la genialidad.
Cien años más tarde, un ocioso Chuck Ross reescribió la novela Steps de Jerzy Kosinski. Firmó la obra como Eric Demos, metió el texto en catorce sobres y los lanzó a los buzones de catorce editoriales. A pesar de que el Steps de Kosinski se había llevado un National Book Award For Fiction, y que más adelante David Foster Wallace se pondría las rodilleras a la hora de elogiar esa obra y trazarle líneas paralelas con Kafka, el texto no pasó el primer corte de ninguna editorial, entre las que para más guasa se encontraba la que había editado originalmente Steps. Y entre las respuestas de rechazo Ross se encontró con esto:
Muchos de nosotros hemos leído tu novela admirando el estilo de escritura. Encontramos un punto de comparación con Jerzy Kosinski cuando leemos los crudos y escalofriantes capítulos que has construido. El problema del manuscrito, tal como está, es que no consigue llegar a ser una obra redonda. Tiene momentos muy espectaculares, pero da la impresión de ser un boceto incompleto. No vemos la manera de publicar este trabajo en particular en su estado actual.
En los ochenta la escritora Doris Lessing, futura nobel de literatura en 2007, sospechaba que su editorial aceptaba sus manuscritos por llevar su nombre estampado y no por la calidad de los mismos. Para corroborar esto presentó dos novelas bajo seudónimo (Jane Somers) y el resultado fue el esperado: ambas fueron rechazadas. En 1991 un periodista de The weekly llamado David Wilkening encargó a su secretaria (evidenciando un conocimiento borroso de las labores administrativas) que copiase la novela The Yearling de Marjorie Kinnan Rawlings, ganadora de un Pullitzer en 1939. El volumen se paseó por veintidós editores (incluyendo al editor original) retitulado como A cracker comes to age, para coleccionar hasta trece respuestas de rechazo. Solo una de las editoriales, Pineapple press, se dio cuenta de la fotocopia y reconoció la obra original. The Sunday Times repitió en 2006 la prueba con cuarenta editoriales, envió los primeros capítulos de dos obras ganadoras del premio Booker, In a free state de V.S. Naipaul y Holiday de Stanley Middleton, cambiando nombres de personajes y el autor. El resultado: una veintena de negativas y solo una respuesta interesada por una de las obras.
Paso 2: Autopublicación = Profit.
«Móntate un blog». Con la autopublicación online comenzó Manel Loureiro narrando un apocalipsis zombi en un blog y hoy el hombre pasea tres libros de la saga Apocalipsis Z y vende montañas en Estados Unidos. Erika Leonard (E.L. James) comenzó a escribir una fan fiction erótico-pornográfica-festiva de Crepúsculo (titulada Masters of the universe y sin relación aparente con He-Man) y la publicó en internet bajo el nick Snowqueen’s Icedragon. El éxito de visitas la animaría a retocar el trabajo para eliminar a los personajes crepusculianos y convertirla en una obra propia llamada 50 sombras de Grey. Aquella creación, pese a su prosa de Cash Converter y de ser una obra calificada despectivamente como mommy porn, le favoreció un contrato editorial y arrasó en ventas (arrebatando el puesto de best-selling author en el Reino Unido a la mismísima J.K. Rowling). Otra que tuvo suerte fue Amanda Hocking, una desconocida que se forró de golpe al poner a la venta sus párrafos en Kindle.
Y luego está el porno con dinosaurios.
Un género completamente nuevo y revolucionario, la dinosaur erotica. De repente varias historias con portadas terroríficas y títulos tan sugerentes como Taken by the T-Rex, Ravished by the Triceratops, Taken by the Pterodactyl o Dino Park After Dark se presentaron en los catálogos de lectura online y empezaron a cosechar lectores sedientos de un nuevo y dilatado tipo de erotismo: aquel que solía orbitar alrededor de dinosaurios montando damiselas.
El caso es que toda esa orfebrería literaria que encamaba lo sensual con lo primitivo era obra de Christie Sims y Alara Branwen, los seudónimos de dos veinteañeras universitarias y compañeras de habitación que, cansadas de sufrir para costearse los estudios, decidieron probar suerte con la autopublicación de la literatura erótica más absurda que se les ocurrió (basada en sus propias experiencias, aseguran). Entregas de extensión ridícula, algunas apenas llegan a las veinte páginas, y que obviamente se basan más en explotar lo disparatado de follar con una criatura prehistórica que en contar algún tipo de historia. El producto tuvo un éxito inesperado (las críticas en Amazon de los lectores de Taken by the T-Rex suelen ser descacharrantes) y como resultado las dos chicas comenzaron a amasar suficiente dinero como para dejar de lado los trabajos basura y dedicarse exclusivamente al noble arte de la escritura, abriendo su producción a nuevas entradas de protagonistas mucho más exóticos: Taken by the Pegasus, Riding the Dragon o Taken by the Gryphon.
A la vista de los beneficios, a las visionarias no les faltaron imitadores: desde la inquietante adaptación a la acera de enfrente de Turned Gay By Dinosaurs de Hunter Fox hasta lo descarado de alguna versión española del fenómeno.
Paso 3: Hacerse un nombre
En 1983 la televisión británica comenzó a emitir un ingenioso anuncio de las Páginas Amarillas de aquellas tierras. En el mismo se mostraba a un anciano recorriendo varias librerías de segunda mano preguntando por un mismo libro: Fly fishing de J. R. Hartley. Al no obtener ningún éxito en su redada librera, el protagonista del spot se refugiaba en su casa entristecido hasta que su hija le arrimaba una copia de las Yellow Pages. El anuncio finalizaba con el octogenario hablando por teléfono con una librería en la que había localizado el perseguido Fly fishing. Y entonces el espectador asistía al desenlace revelador cuando el hombre solicitaba que el libro le fuese reservado y escuchábamos su respuesta a una pregunta del otro lado del teléfono: «¿Mi nombre? Oh, sí. Me llamo J. R. Hartley».
La campaña era original pero para Roddy Bloomfield, escritor de deportes, era mucho más que eso. Era una maniobra publicitaria paralela y enorme de algo que ni siquiera sus responsables habían tenido en cuenta: otro libro. Bloomfield encargó a Michael Russell, un experto en pesca con mosca, la tarea de escribir en 1991 un libro. Lo tituló Fly fishing y lo publicó bajo el seudónimo de J. R. Hartley. En la cara de hormigón de Bloomfield se dibujó una sonrisa cuando el texto se convirtió en best-seller. Aprovechando la inercia y junto a Russell perpetraría otras dos secuelas: J.R. Hartley Casts Again: More Memories of Angling Days en el 92 y Golfing by J. Hartley en el 95, otros dos best-sellers.
J.K. Rowling, intentando despojarse de la maternidad del niño mago, se lanzó a construir una de detectives para un público adulto. El libro llamado The Cuckoo’s Calling (El canto del cuco) fue publicado bajo el seudónimo de Robert Galbraith y pese a las críticas favorables vendió una miseria (presumiblemente unos quinientos ejemplares de una tirada de mil quinientos). Cuando un columnista del Sunday Times investigó un poco se descubrió que el agente del tal Gralbraith era el mismo que el de la señora Rowling; y una vez arrebatado el disfraz (que muchos acusaron de maniobra publicitaria) las ventas de The cuckoo‘s calling se dispararon de manera demencial: de ocupar el puesto número 4.709 en la lista de ventas de Amazon saltó directamente a la primera posición.
Paso 4: Trolling
A mediados de los cincuenta el locutor Jean Shepherd se colaba en los hogares a través de un late night radiofónico. Y se daba el caso de que Shepherd estaba cabreado con el sistema mediante el cual se confeccionaban las listas de best-sellers literarios en aquella época, utilizando tanto los datos de venta como las demandas de libros que estaban a punto de salir. A Shepherd se le ocurrió burlarse de este tipo de listas aprovechando las ventajas de la radio e invitó a todos sus oyentes a encaminarse hacia las librerías y preguntar por un libro que no existía de un autor que tampoco era real. Para hacer las cosas más fáciles el locutor ideó una sinopsis de la trama, un autor ficticio (Frederick R. Ewing) y lo enmarcó todo con un título prometedor: I, libertine. Los oyentes tomaron la empresa tan en serio que al final la obra ficticia acabó realmente entrando en la famosa lista de best-sellers del New York Times.
Cierto tiempo después, Shepherd compartía mesa con el editor Ian Ballantine y el novelista Theodore Sturgeon cuando el primero de ellos se ofreció a publicar una novela escrita por Sturgeon y basada en la falsa obra ideada por Shepherd. En 1956 I, libertine se convertiría en realidad y su portada (obra de Frank Kelly Freas) incluiría un chiste privado delicioso: en un cartel se podía distinguir un esturión y el bastón de un pastor. O lo que es lo mismo, Sturgeon (esturión) & Shepherd (pastor).
Mike McGrady era un columnista del Newsday de los sesenta que estaba convencido de que la cultura americana había abrazado un estándar de vulgaridad tal que cualquier texto de mierda podría llegar a ser un éxito monumental si se le añadían suficientes escenas de sexo. Para demostrar su teoría McGrady reunió a más de una veintena de colegas de profesión delante de una mesa, entre ellos a dos premios Pullitzer (Gene Goltz y Robert W. Greene), y propuso escribir entre todos un libro premeditadamente malo y espantoso. Cada participante se encargaría de un capítulo y eximiría cualquier tipo de calidad de las letras mientras lo rebozaba todo de sexo gratuito. Los implicados se esforzaron todo lo posible en divertirse construyendo un monstruo de Frankenstein incoherente sobre una esposa infiel de gira por las camas de vecindario, aunque hacerlo intencionadamente mal no resultaba sencillo: varios capítulos tuvieron que ser revisados por estar tan bien escritos como para no ajustarse al criterio de calidad en negativo exigido. El resultado final sería una pieza repleta de pasajes descriptivos vergonzosos: «En ese momento ella estaba masajeando su punto de mayor altitud suavemente con una botella de Johnson & Johnson baby lotion de color rosa» o «Entonces él la despojó de sus pantis negros, hubo un sonido de celofán como si estos hubieran sido pelados de las rodillas». Y como remate una soberbia dedicatoria en la primera página: «Para papá».
El grupo tituló la obra Naked came the stranger y atribuyó su autoría a una ficticia Penelope Ashe. La hermanastra de McGrady se atrevió a ceder su cara como imagen de la misteriosa escritora y se animó a pasearse por las editoriales con el libro en las manos y cara de buena persona. Lyle Stuart, conocido por fomentar una línea editorial con mucha teta suelta, accedió a publicarla y puso en marcha su procedimiento habitual de edición: mangó sin permiso una foto del culo de una chavala a una revista húngara, la estampó en la portada como reclamo de carnes prietas e imprimió aquello en 1969. El libro zarpó hacia las librerías y semanas más tarde la mujer que ponía rostro a la ficticia autora se paseaba por talk shows y entrevistas.
Cuando Naked came the stranger había vendido más de veinte mil copias, y McGrady ya empezaba a tener agujetas de tanto descojonarse en privado de lo cateto de la sociedad americana, se decidió que ya iba siendo hora de desvelar la broma y el responsable del hoax junto con el resto de implicados dieron la cara para explicar la naturaleza y origen del producto. El público lejos de tomarse a mal que lo hubiesen tratado como idiota reaccionó como era de esperar: saliendo disparado a reservar una copia. Mes y medio después la novela había cuadruplicado el número de ventas. Y unos años más tarde alguien rodaría una versión porno del material original a cuya proyección asistiría la autora de la Naked came the stranger original. O más bien diecisiete pedazos de ella.
Mucho tiempo después, inspirados por la iniciativa de McGrady, un grupo de escritores de fantasía y ciencia ficción acordarían escribir entre todos una obra tan horrenda e incoherente como les fuese posible con un único objetivo: demostrar que en PublishAmerica, una empresa que se jactaba de publicar solamente textos de calidad elevada, no tenían ni zorra sobre la exquisitez literaria. ¿La razón? Que dicha casa había menospreciado a los autores de ciencia ficción y fantasía.
James D. Macdonald escritor y crítico, dirigió el proyecto y coordinó metódicamente a cuarenta autores para gestar un libro prodigiosamente horrible. Se trataba de Atlanta Nights y las imperfecciones de su esqueleto eran una maravilla de la planificación: personajes que cambiaban de raza o género de golpe o resucitaban sin explicación alguna, un par de capítulos distintos creados por diferentes escritores explicando lo mismo, un chaparrón de faltas de ortografía, dos capítulos idénticos letra por letra, un capítulo ausente (el libro salta del 20 al 22) y otro cuyo número se repite (hay dos 12), un capítulo generado enteramente por un programa de ordenador que remezclaba secciones anteriores, un giro de guión en su etapa final que sentencia que todo ha sido un sueño para continuar como si no lo hubiese sido. Y la mofa definitiva: las iniciales de todos los personajes bautizados en la historia deletrean la frase: «PublishAmerica is a vanity press». Alguien definió perfectamente Atlanta nights: «El mundo está lleno de libros malos escritos por amateurs, pero este es un libro malo escrito por expertos».
PublishAmerica, ajena a todo esto, recibió la pieza y dio el visto bueno para publicarla en 2004. Los autores decidieron no seguir adelante con la gesta rechazando el contrato y revelando públicamente la trampa. PublishAmerica dijo que había mirado mal y que mira, que mejor no, nunca, nada.
Paso 5: Intentar no morir siendo objeto de mofa
En 1970 Jim Theis escribió con tan solo dieciséis años una de las novelas de fantasía heroica más emblemáticas de la historia. Publicó su criatura en un fanzine y de algún modo esta llego a las manos del escritor de sci-fi Thomas N. Scortia, quien fascinado con el descubrimiento lo remitió a otra escritora, Chelsea Quinn Yarbro, que a su vez enseñó el manuscrito a otro grupo de autores. Y así, poco a poco como una bola de nieve, el texto de Theis empezó a circular de forma furtiva entre los más selectos clubs de ciencia ficción y fantasía. Aquella novela se llamaba The eye of Argon y encandilaba a todo aquel que la leía. Pero por las razones equivocadas.
The eye of Argon era un accidente de tren literario, un desastre heroico, una pieza tan mal escrita (Theis parecía puntuar a ciegas y usaba tan erróneamente las palabras que muchos dudaban que el autor fuera una persona real y no un chiste) que su lectura resultaba involuntariamente cómica. Era el Ed Wood de la fantasía. Y lo mejor de todo es que la novela llegaría a convertirse en un party-game muy celebrado en el que un grupo de personas se turnaban para leer el texto en voz alta con una única norma: en cuanto el orador no pudiera contener la risa perdía su turno. Dave Langford explicaba cómo funcionaba el juego en las convenciones más importantes de sci-fi: «El reto de la muerte consistía en leer The eye of Argon en voz alta, con gesto serio y sin descojonarse. El reto Gran Maestro consistía en hacerlo tras haber inhalado helio».
Alguien localizó a Theis para entrevistarlo y este declaró que el cachondeo y la burla con los que se había recibido a algo que escribió treinta años antes le cabreaba hasta quitarle las ganas de volver a escribir cualquier otra cosa en un futuro. Theis murió en 2002 pero su obra alcanzo la inmortalidad, entre las carcajadas y convulsiones de sus lectores, por ser increíblemente mala pero involuntariamente jocosa.
Cómo ser un escritor de éxito
¿Cómo ser un escritor de éxito? Preguntádselo a alguien que lo sea.
O poneos a escribir, lo que sea, ahora mismo. Y dejad de perder el tiempo con artículos tramposos que plantean una pregunta para la que ni tienen respuesta, ni les interesa tenerla. Vosotros podéis ser el próximo Jim Theis, eso es lo único importante.
Os bons empresários e a transição climática
O bolsonarismo contém ideologias fascistas, extremismos de direita na política e na economia, mas seu lado mais complexo nas catacumbas das redes é o lado que envolve o crime organizado (Tarso Genro, A Terra é redonda)
Elon Musk quis fazer do Brasil um exemplo de “república bananeira”. Não deu certo. Maurício Thuswohl (Carta Capital)
# A Starlink e a soberania nacional
Brasil depende de uma empresa estrangeira que viola a soberania nacional. Liszt Vieira (ATR)
Os bastidores de um engenhoso drible à ditadura. Há 50 anos, o “compositor da Rocinha” dava sua única entrevista. Chico inventou alguém que sonhava em gravar seu próprio disco e falava até os cotovelos, ao contrário de seu tímido criador
Inteligência Artificial: sem controle social sobre seu desenvolvimento e aplicação, o risco é o de um novo Projeto Manhattan
Agronegócio segue extremamente poderoso no Brasil, mesmo sob Lula. O estado brasileiro segue gastando muito mais com grandes fazendeiros do que com a agricultura familiar, social e ambientalmente melhor.
# Para combater as queimadas, Brasil precisa se libertar do agro. Sabrina Fernandes (Intercept)
# Por um novo internacionalismo (Outras Palavras)
# Neoliberalismo com 43 graus de febre (A Terra é redonda)
# Kamala põe Trump na defensiva (Carta Capital)
Esvaziamento do confronto ideológico abre espaço para a imbecilidade na representação política
Por trás do avanço de candidaturas bizarras está a lógica ultra-imediatista e infantilizante das redes sociais. Mas há outro fator: um contingente cada vez maior de órfãos do Estado, para quem a esquerda ainda não propõe horizonte real
# Leia Glauco Faria (Outras Palavras)
Jonathan Haidt, autor de "A Geração Ansiosa", está no centro do debate sobre uso de tecnologia, especialmente vídeo games e redes sociais. Ele compilou, de forma ágil e acessível, uma série de estudos e observações empíricas que mostram uma correlação, com forte pretensão causal, entre uso de tecnologia e crise de saúde mental
# Leia e ouça Christian Dunker (Uol)
# Bolsonaro perde as redes e as ruas. Josué Medeiros (Carta Capital)
# Bolsonaro, o reincidente. Rafael Mafei (Piauí)
# Justiça eleitoral nega impugnação e mantém candidatura de Marçal (Carta Capital)
# O Bolsonarista atualizado (Jornalistas Livres)
Aluga-se
# A mão invisível que redige a PEC da privatização do Bacen (247)
Link para acesso ao texto original publicado na Folha
Professor e presidente do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSP) e da Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp)
Reportagem desta Folha ("Alunos bolsistas de escolas de elite de SP relatam discriminação e segregação", 1º/9) joga luz forte sobre declarações segregacionistas proferidas em sessão do Conselho Estadual de Educação (CEE) no dia 14 de agosto, referindo-se inclusive às bolsas de estudos para professores e funcionários não docentes.
"Há que considerar o impacto negativo [desse benefício] na vida social. Sustento isso há anos, desde que meu filho, numa escola particular, tinha como coleguinha o filho do porteiro (...). É óbvio que aquele menino, socialmente, não tinha condições de acompanhar a vida que todos os demais tinham (...). Estamos causando um mal no aspecto social, que traz flutuações no aspecto emocional, que acabam acarretando esse tipo de problema".
O "problema" a que Cláudio Mansur Salomão, mantenedor de escolas de educação básica da região de Avaré (SP), estava se referindo era a tragédia acontecida com um menino de 14 anos, aluno bolsista do Colégio Bandeirantes (na reunião, outro conselheiro, ligado ao colégio paulistano, também se manifestou de forma deplorável). As declarações estão no YouTube, do 18º ao 24º minuto da sessão do CEE.
São falas repugnantes e preconceituosas, que negam a diversidade e a democracia. Se não bastasse, são palavras ditas por conselheiro do CEE —órgão que tem como uma de suas funções "fixar posições que expressam diretrizes fundamentais de uma política educacional para o Estado".
De forma mesquinha (ou oportunista, pois tem interesse na eleição do sindicato das escolas), o empresário-conselheiro se aproveitou não só para investir contra conquista histórica de professores e funcionários não docentes, consagrada em convenções coletivas de trabalho, mas também para perpetrar mais uma violência contra bolsistas de baixa renda que participam de projetos sociais em colégios de elite na capital. Eles não podem ser usados como produtos de marketing pelas escolas. Precisam, todos, ser acolhidos por redes pedagógicas e de solidariedade, inclusive com atenção à saúde mental.
Também preocupante: naquela audiência, nenhuma voz se levantou para condenar a fala. Afinal, os membros do CEE são educadores. Ou não? Por ironia, a conselheira Maria Eduarda Sawaya, em nome da Abepar (Associação Brasileira de Escolas Particulares), ofereceu convites para (pasmem) o congresso "Convivência pacífica e inclusiva nas escolas: pelo fim da intolerância, do racismo e da discriminação no ambiente escolar".
A divulgação da reunião sugere ainda necessária reflexão sobre a composição do CEE, que funciona como monopólio dos interesses dos empresários do ensino. É preciso democratizar o conselho, conforme preconiza projeto de lei 178, do deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP) e que "dormita" nas gavetas da Assembleia Legislativa de São Paulo desde 2019. É fundamental que governantes e sociedade se comprometam com o direito à educação inclusiva, democrática, de qualidade, para todas e todos, sem exceções ou privilégios.
Por fim, nossa solidariedade aos familiares e amigos do adolescente.
# Contra o assédio e contra os tribunais de exeção. Reinaldo Azevedo (Uol)
# A condenação perpétua de Sílvio Almeida. Luiz E. Soares (ATR)
# O triste fim de Sílvio. Daniel A. da Silva (ATR)
# O choque das narrativas. Faustino Teixeira (IHU)
# Os problemas não acabaram. Alex Solnik (247)
# Sílvio Almeida: entre o espetáculo e o vivido. Antonio David (ATR)
Jamil Chade: Maduro suspende o cerco à embaixada argentina, mas submete Brasil a constrangimento diplomático e aumenta pressão sobre oposicionistas - que agora têm nas mãos o trunfo de Edmundo Gonzalez no exílio espanhol (leia no Uol).
Num documento construído coletivamente, e que reflete alta elaboração política, a visão de lideranças das quebradas sobre a permanência de relações coloniais na metrópole – e os caminhos para a busca de uma cidade do Comum (leia mais em Outras Palavras)
# Clipping sobre a disputa pela prefeitura da capital paulista
Papai, papai, papai!!!!
Na Piauí, Fernando de Barros e Silva traça o perfil de um dos maiores embustes que a sociedade brasileira gerou no território da representação política.
Preterido até segunda ordem por Jair Bolsonaro e seus filhos, Pablo Marçal, apesar disso, pertence à família. Podemos chamá-lo de Zero Um e Meio. Ele é uma espécie de filho bastardo, capaz de provocar crises de ciúme nos irmãos, sobretudo em Carlos, o Zero Dois, a quem chamou de “retardado”, e atrapalhar os planos do pai, por ora (e cada vez menos) oficialmente aliado a Ricardo Nunes na disputa de São Paulo (continue a leitura)
Se fosse apenas um transtorno na vida do clã Bolsonaro, não precisaríamos perder tempo com Marçal. O coach, no entanto, virou o grande assunto e o maior problema da eleição paulistana. Foi, de longe, o candidato que mais cresceu nas pesquisas em agosto. No final do mês, dividia a liderança da corrida à prefeitura com Guilherme Boulos, do Psol, e Nunes, do MDB. Algo inusitado para alguém que concorre pelo nanico PRTB contra o prefeito, montado na máquina e amparado por uma coligação de doze partidos, e o candidato das esquerdas, apoiado pelo PT e apadrinhado pelo presidente da República.
Já vimos esse filme. Sem partido forte nem conexões políticas nos estados, praticamente sem tempo de televisão ou dinheiro do fundo eleitoral, Jair Bolsonaro venceu a eleição de 2018. Sua coligação quixotesca, chamada “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, reunia o obscuro PSL e o mesmo PRTB de Marçal, que na ocasião abrigava o general Hamilton Mourão.
Marçal, que despreza os partidos e defende as candidaturas avulsas, proibidas pela legislação brasileira, não tem nem coligação. Sua chapa é puro-sangue. No lugar do general, a vice-candidatura agora é ocupada por uma policial militar. Além de trazer Jesus no nome, Antônia de Jesus Barbosa Fernandes é uma mulher negra. “Negra, da periferia, de Pirituba. Entrou nesse cenário para trazermos essa igualdade entre as raças. Não tem nenhum vice negro aqui, a não ser na minha candidatura”, gabou-se Marçal, dirigindo-se aos demais candidatos no debate promovido pelo Estadão. (Em protesto ao comportamento do coach, que desrespeitou seguidas vezes as regras daquele encontro, Nunes, Boulos e José Luiz Datena, do PSDB, decidiram não participar do debate seguinte, da revista Veja, deixando para Tabata Amaral, do PSB, a tarefa de enfrentar sozinha o franco atirador.)
Chegamos a esse ponto. Datena, o arquiconhecido apresentador do circo televisivo, um tipo demagogo e grosseirão, juntando-se ao coro dos indignados com a falta de compostura de um dos adversários, justamente aquele diante do qual ele, Datena, ficou parecendo peça de museu, uma figura do passado. Na cidade em que foi gestado, e de onde vieram seus principais quadros, o PSDB merecia um fim menos constrangedor, menos patético. O contraste entre o candidato da tevê, obsoleto, e o candidato das redes sociais, hiperconectado ao espírito do tempo, não podia ser mais didático.
Até 6 de outubro, data do primeiro turno, ainda há muita coisa para acontecer. E em São Paulo pode acontecer tudo. Enrolado com a Justiça Eleitoral, Marçal ainda pode ter sua candidatura cassada. Abatê-lo pela via judicial a essa altura, no entanto, só iria reforçar a tese já disseminada entre os bolsonaristas de que a política brasileira é um jogo de cartas marcadas. O PT e Lula sabem o que isso significa. Permanecendo na disputa, Marçal pode ainda sucumbir à artilharia pesada dos adversários, que irão usar a tevê para bombardeá-lo de todas as maneiras, e derreter na reta final. Esse seria o cenário Celso Russomanno. Mas Marçal pode também seguir competitivo e forte, como demonstrou nas últimas semanas, chegando ao segundo turno e eventualmente se elegendo prefeito da maior cidade das Américas. Seria o caso de ainda considerá-lo um azarão?
Depois que Bolsonaro foi eleito (e perdeu a reeleição por um triz), depois que entregamos o país ao pior de nós, depois de descobrir diante do espelho que somos, que nos tornamos ou admitimos ser também isso, ninguém tem o direito de subestimar o potencial político e a capacidade de predação de nenhum aventureiro de extrema direita.
A candidatura de Pablo Marçal nada tem de acidental. Não parece episódica, não é inconsistente nem, muito menos, café com leite. Ele não é o Padre Kelmon da autoajuda. Se foi escalado na largada para difamar Boulos e servir como linha auxiliar de Nunes, Marçal rasgou o script. Ao ascender, provocou uma reviravolta num jogo que parecia encaminhado, instalando uma cunha profunda na aliança entre o prefeito e Bolsonaro. Marçal é uma versão atualizada do bolsonarismo e hoje representa uma opção de poder, por difícil que seja digerir tal fato.
A Faria Lima já está digerindo. Como informou Ana Clara Costa, minha parceira no Foro de Teresina, o podcast da piauí, o movimento de revoada de Nunes para Marçal começou antes do final de agosto. Um desses investidores disse a ela que o Brasil pobre precisa abraçar urgentemente o credo do empreendedorismo que Marçal encarna e vocaliza. É hora de deixar de lado não só a luta de classes, essa velharia, mas também o estado assistencialista, os programas de transferência de renda, toda a tralha que estimula a indolência e inibe a ambição. Na cabeça do farialimer, a faxineira, o servente de pedreiro, o catador de lixo – todos precisam despertar o vencedor que dorme dentro de si.
À luz do que aconteceu na sociedade brasileira nos últimos anos, da vitória da mentalidade de província, do encurtamento do horizonte histórico do país, da deterioração da política e do sentimento antissocial que vende o “cada um por si” (e daí?) como ideal de vida –, à luz de tudo isso seria estranho que na esteira de Bolsonaro não surgisse alguém da mesma laia. Um tipo descompromissado com a verdade, refratário à civilidade, que incita a intolerância em nome da família e delinque gritando liberdade, um bárbaro que se apresenta como instrumento (mito? coach?) de uma cruzada político-religiosa contra “o sistema corrompido”. Marçal é esse tipo.
Como o BolsoDoria de 2018, que elegeu o governador de São Paulo, o BolsoNunes é um casamento de conveniência. As noivas dizem sim no altar de olho no dote do rapaz, mas se julgam superiores ao noivo sem modos. O bolsonarismo de raiz as trata como prostitutas e não costuma perdoá-las. Marçal é hoje o porta-voz desse sentimento, à revelia do próprio Bolsonaro. O pobre capitão está em apuros, precisa do apoio do Centrão para manter viva a esperança de ser anistiado politicamente e afastar, ou ao menos reduzir, a possibilidade de ser preso por seus crimes.
Marçal não tem esse problema. Inclusive porque já foi condenado por integrar uma quadrilha que limpava a conta bancária de pessoas incautas usando a internet. Ele era o sujeito que conhecia os meandros tecnológicos do desfalque. Chegou a passar alguns dias preso, mas o crime prescreveu. Essa foi a origem de sua bem-sucedida carreira nas redes sociais, que ele sabe manobrar como poucos.
Um currículo assim notável pede uma pós-graduação no crime organizado para ficar completo. Temos isso também. Uma reportagem da Folha de S.Paulo trouxe à tona uma gravação na qual o presidente do PRTB, fiador da candidatura de Marçal, declara envaidecido ter sido o responsável pela soltura do traficante André do Rap, um dos líderes do PCC. Em outra passagem da conversa, ele sugere que seu motorista seria aliado de Francisco Antônio Cesário da Silva, vulgo Piauí, ex-chefe do PCC na favela de Paraisópolis.
Assim como o então tesoureiro do PL na época do escândalo do mensalão se chamava Jacinto Lamas, o presidente atual do PRTB se chama Leonardo Avalanche. Lamas e Avalanche. Não falta poesia à nossa desgraça. Fica a sugestão para uma dupla caipira.
Todos sabemos que o PL de Jair Bolsonaro e o PRTB de Pablo Marçal são legendas de fachada. Na vida real, o partido de Bolsonaro sempre foi a banda podre da polícia, a milícia, o partido do amigo Adriano da Nóbrega. Até nisso Marçal é o legítimo herdeiro do pai que hesita em assumi-lo. Afinal, o Escritório do Crime e o PCC empreendem no mesmo ramo de negócios.
O que está em andamento no Paraná não é um ensaio para a racionalização da gestão do ensino que permita ao estado destinar recursos para outros setores tão importantes quanto a Educação. Não é isso. Também não é uma política corrupta para transferir o patrimônio público para interesses privados, embora tenha muito disso. O "experimento" paranaense é um projeto que tem a ver com a subversão da inteligência, uma determinação para o seu cancelamento... O aniquilamento da escola para transformá-la numa pastagem sem sentido ou função... exceto o proveito vil e descompromissado com o qual a quadrilha que está à frente dos governos paranaense e paulista atua.
O Paraná abre as portas das escolas públicas para empresas privadas. Reportagem de Felippe Anibal, Piauí
O burburinho dos alunos do terceiro ano do Colégio Estadual Anita Canet, no Paraná, levou a professora de matemática Leticia Fernanda Lecy Rocha a interromper a explicação que dava sobre juros e pedir silêncio aos alunos. De nada adiantou. Eles continuaram a falar em voz alta, a tensão na sala aumentou, e a professora de 26 anos teve uma crise de pânico. Começou a chorar na frente dos alunos. Rocha contou o episódio para a direção da escola, que fica na cidade de São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. Ela diz que, em vez de ser acolhida, foi repreendida. “A diretora foi supergrossa comigo, como se desse a entender que, se eu não estava conseguindo dar aula, que largasse”, afirma Rocha à piauí.
Menos de um mês depois, em 7 de julho do ano passado – último dia letivo antes das férias –, Rocha estava no meio de uma aula quando sentiu uma dor aguda. Correu ao banheiro e constatou que estava tendo um sangramento. Ficou apavorada: um mês antes, ela tinha descoberto que estava grávida. A professora então avisou à direção que precisava deixar a escola e telefonou para o marido, que foi buscá-la. Ela perdeu o bebê. Em 20 de julho, quando se reapresentou no trabalho, ao fim das férias, foi demitida (continue a leitura)
“Fiquei com aquela cara de choque. Eu não larguei os alunos lá. Avisei que estava passando mal. Como ia ficar com os alunos se estava tendo um aborto?”, espanta-se Rocha. “Só depois da demissão é que o diretor da empresa me perguntou o que tinha acontecido naquele último dia de aula. Ele nem sabia o que estava acontecendo comigo. Simplesmente, me demitiu.”
A empresa a que Leticia Rocha se refere é o Consórcio Espaço Mágico/Sudeste, vinculado à Rede de Ensino Apogeu, de Juiz de Fora, que atualmente administra o Colégio Estadual Anita Canet. A escola é um dos dois colégios da rede estadual paranaense que participam, desde fevereiro de 2023, do projeto-piloto do programa Parceiro da Escola, destinado a testar a privatização da administração de colégios estaduais. Rocha pôde ser demitida porque não era concursada, nem professora temporária selecionada pelo governo. Ela tinha sido contratada pelo consórcio.
A outra escola que participa do teste da privatização é o Colégio Estadual Anibal Khury Neto, em Curitiba, cuja gestão foi entregue à Tom Educação, empresa que faz parte do Consórcio Insígnia Social do grupo Rede Educacional Decisão, de São Paulo. Em início de junho passado, o governo do Paraná deu um passo adiante: conseguiu aprovar na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) um projeto de lei que autoriza a privatização da gestão de 204 escolas estaduais, num universo de 2,1 mil colégios – o equivalente a 10% de toda a rede. É um experimento em larga escala, inédito na rede estadual de escolas públicas no país. Nenhum outro estado terá tantas escolas sob gestão privada.
O contrato com o governo define que a ação dos consórcios privados é limitada à gestão administrativa e ao fornecimento de uniformes e merendas aos alunos. “O custo do governo com essa terceirização é equivalente, ou até menor, à média de custo por aluno nas demais escolas do estado”, argumenta o diretor executivo do Consórcio Espaço Mágico/Sudeste, Isaac de Paula Carvalho. O diretor executivo da Tom Educação, César Cunha, também chama a atenção para as vantagens financeiras. “Vale a pena comparar as despesas atuais da escola com as de anos anteriores, assim como gastos das demais escolas públicas do Paraná para garantir que nossos custos sejam equivalentes aos demais, porém com resultados melhores”, diz. Cunha não apresentou dados comparativos. A Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed-PR), indagada pela piauí, também não forneceu a informação.
A experiência do Anita Canet e do Anibal Khury Neto, porém, mostra que a atuação das empresas vai além do gerenciamento administrativo e financeiro – está afetando o próprio campo pedagógico. O professor de filosofia Edson Mosko, de 50 anos, foi um entusiasta de primeira hora do projeto Parceiro da Escola. No fim de 2022, a Seed-PR fez uma consulta pública à comunidade escolar – pais, professores e funcionários – de 27 colégios, perguntando se as unidades deveriam privatizar a gestão. A resposta foi amplamente negativa, mas com duas exceções: os colégios Anita Canet e Anibal Khury Neto aderiram à proposta.
Mosko é um dos que votaram a favor da privatização. Foi convencido por diretores escolares a fazer campanha pela iniciativa, com o argumento de que os colégios terceirizados seriam geridos por grandes grupos educacionais particulares do Paraná. Ele foi induzido a acreditar que isso poderia abrir caminho para os docentes serem contratados no futuro por escolas privadas do estado. “Imagine: num ano, você é professor temporário, e no outro, trabalha para o Positivo, o Dom Bosco ou o Bom Jesus [redes privadas de ensino do Paraná]. Isso seria bom para o currículo”, diz. Mas a empolgação deu lugar à desilusão. “Quando apareceram as empresas para visitar as escolas, a gente viu que não eram o Positivo nem o Dom Bosco… Eram de fora do estado.”
Em 2023, Mosko foi contratado pelo Consórcio Espaço Mágico/Sudeste para dar aulas de filosofia no Colégio Anita Canet. No último dia do semestre escolar, em 19 de dezembro, foi convocado com outros professores para participar de um conselho de classe. O professor conta que, na reunião, a diretora da escola e o gestor administrativo ligado ao consórcio fizeram um pedido incomum. “Eles disseram: ‘Temos quarenta alunos reprovados e precisamos diminuir esse número’”, recorda Mosko. “Então, para os alunos que tinham sido reprovados por nota, a gente acrescentou nota. Para os que tinham sido reprovados por falta, a gente entrou no Registro de Classe Online e retirou faltas. Isso foi feito exatamente porque a Anita Canet é uma escola-piloto [do projeto Parceiro da Escola], que ia ser um espelho do que está acontecendo agora.”
No dia seguinte, Mosko foi chamado ao colégio para assinar o aviso de férias. Quando chegou à escola, teve uma surpresa: ele e mais sete colegas foram dispensados pela empresa terceirizada. Como a demissão ocorreu antes de eles completarem um ano no cargo, não tiveram direito a sacar o FGTS, nem o seguro-desemprego. Indagado se houve interferência pedagógica por parte da empresa no Anita Canet, ele diz: “Claro! É um fato. Existe o diretor administrativo, funcionário da empresa, que chama a gente para conversar, para dar orientações. E foi ele que nos demitiu.”
O Consórcio Espaço Mágico/Sudeste contesta. Diz que as demissões no Anita Canet foram feitas em comum acordo com a direção pedagógica da escola. “Todas as decisões de demissões foram fundamentadas e comunicadas adequadamente, seguindo as normas e regulamentos aplicáveis”, afirma o diretor executivo Isaac Carvalho, em nota enviada à piauí. Ele também nega interferência da empresa no conselho de classe, “que é de responsabilidade única do departamento pedagógico”, e afirmou que seguiu o padrão adotado na escola. “Reafirmamos nosso compromisso com um ambiente de trabalho saudável e respeitoso, independentemente da forma pela qual os profissionais são contratados”, diz.
A expansão do programa Parceiro da Escola para duas centenas de colégios do Paraná é mais uma das experimentações do governo Ratinho Júnior (PSD) na educação. Foi tudo encaminhado às pressas, com o apoio maciço da Alep, presidida há dez anos por Ademar Traiano, correligionário do governador. A Seed-PR enviou o projeto de lei aos deputados em 29 de maio – em menos de uma semana estava aprovado.
A Associação dos Professores do Paraná, conhecida como APP-Sindicato e os deputados de oposição foram surpreendidos pela proposta. Mesmo os parlamentares da base governista só tomaram conhecimento da iniciativa um dia antes de a Alep receber o projeto. Souberam da proposta, em linhas muito gerais, numa reunião a portas fechadas, feita no Palácio Iguaçu, sede do governo paranaense, com o secretário de Educação, Roni Miranda. À piauí, a Seed-PR diz que os deputados puderam discutir o tema “dentro do processo legal”, ou seja, em plenário, e que não discutiu o projeto antes com os professores porque “não houve receptividade” da parte deles ao diálogo.
A pressa e a falta de debate prévio provocaram reações ruidosas. “Nós, deputados de oposição, ficamos sabendo do projeto pela imprensa. Foi aquele susto. Dissemos: ‘Que história é essa?’ Não teve discussão alguma. Foi um tratoraço”, diz a deputada Ana Júlia Ribeiro (PT), de 24 anos, a mais jovem parlamentar da história da Alep. A diminuta bancada paranaense de oposição anunciou que ajuizaria uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (o documento foi protocolado pelo PT em 11 de julho). Os professores então se mobilizaram para deflagrar uma greve, marcada para começar em 3 de junho, dia em que o projeto seria votado na Alep.
O governo do Paraná logo contra-atacou. Pediu à Justiça que a greve, antes mesmo de ser iniciada, fosse declarada ilegal. Em decisão liminar, no dia 1º de junho, um sábado, a desembargadora Dilmari Helena Kessler proibiu a paralisação e estipulou multa diária de 10 mil reais ao sindicato, em caso de descumprimento. Enquanto isso, nos bastidores, o governo tentava esvaziar a greve. A Seed-PR fez disparos em massa de um vídeo apócrifo para mais de 2,1 milhões de pais de alunos via SMS e para 4 mil pelo WhatsApp, valendo-se de dados cadastrais dos estudantes. O vídeo dizia que a paralisação era “injusta” e que poderiam ocorrer “manifestações repletas de violência”, colocando os alunos em risco (o Ministério Público do Paraná instaurou depois uma investigação para apurar “as circunstâncias de custeio, da produção e do envio” do vídeo).
Na segunda-feira da votação, 3 de junho, Curitiba experimentava um veranico incomum em pleno outono, com temperaturas acima de 18°C. Em frente à Assembleia Legislativa, o clima estava ainda mais quente. Milhares de professores estavam reunidos ali em protesto contra a votação do projeto de lei. Por volta das 14h30, alguns dos manifestantes conseguiram remover uma grade móvel e romper a barreira policial que bloqueava o acesso à Alep. Os policiais reagiram, lançando bombas de gás lacrimogêneo. Mas os professores avançaram até uma grande porta de vidro, que, pressionada por eles, estilhaçou. Centenas de pessoas conseguiram então entrar na Alep e ocupar as galerias do plenário.
Lá dentro, os manifestantes redobraram os gritos de protesto. “Ladrão, ladrão!”, bradavam, referindo-se ao deputado Ademar Traiano. Com o tumulto, a sessão foi suspensa por algumas horas. Empenhado em votar o projeto de lei a qualquer custo, Traiano e a mesa diretora determinaram – valendo-se de um precedente criado durante a pandemia – que a sessão seria realizada de modo híbrido naquele dia mesmo, às 17 horas: os deputados poderiam votar ali mesmo ou por videoconferência.
A maioria dos parlamentares havia se refugiado em seus gabinetes no momento em que os manifestantes entraram na Alep. Outros acharam melhor ir embora. Apenas os políticos de oposição e mais uns poucos, declarados independentes, permaneceram no plenário. A votação foi realizada: alguns votaram dos seus gabinetes, outros de suas casas ou até de dentro dos carros, com celular em punho. A APP-Sindicato calcula que 20 mil pessoas participaram do protesto. Nos confrontos com a polícia, três manifestantes e dois policiais tiveram ferimentos sem gravidade. Dois manifestantes foram presos. A Secretaria de Segurança não quis informar quantos policiais foram mobilizados, nem quantas bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas na multidão.
Pouco antes das 19 horas, com as galerias lotadas de manifestantes, o projeto foi aprovado em primeiro turno por 39 a 13. No dia seguinte, ocorreu o segundo turno, com resultado de 38 votos a favor e 13 contra. Ratinho Júnior não perdeu tempo: sancionou a lei no mesmo dia da aprovação. A Seed-PR disse à piauí que pediu urgência na tramitação porque o governo pretende abrir um processo licitatório o quanto antes, para que a expansão do Parceiro da Escola ocorra a partir do início de 2025. A explicação se resume a uma tautologia: pediu urgência porque o assunto era urgente.
A investida do governo contra os manifestantes continuou nos dias seguintes ao protesto. A Procuradoria-Geral do Estado centrou fogo na presidente da APP-Sindicato, Walkiria Olegário Mazeto, pedindo a sua “imediata prisão” e aumento da multa contra a app de 10 mil reais para 100 mil reais por dia de paralisação. O processo foi encaminhado ao Núcleo de Conciliação do Tribunal de Justiça. Até o fechamento desta edição, no fim de agosto, as audiências ainda estavam acontecendo e sempre sob segredo de Justiça.
O governo também descontou do salário dos professores todos os dias parados – foram três, ao todo – e removeu do cargo quatro diretores de escola que participaram da greve. (No início de agosto, uma diretora demitida e que atuava em escola prevista para ser gerida por consórcio privado foi reconduzida ao cargo, por decisão judicial.) O sindicato dos professores afirma que houve perseguição nos colégios. “Ficamos indignados com a forma como o estado tem feito o assédio a professores e trabalhadores nas escolas”, protesta Walkiria Mazeto. Ela enumerou os tipos de ameaças: “Rompimento de contratos temporários com professores, cancelamento das aulas extras, retirada de diretores de suas direções e abertura de processos administrativos.” A APP-Sindicato afirma que todas as escolas aderiram, com pelo menos uma turma sem aula em cada uma delas. Já a Seed-PR diz que 87% das escolas não participaram da paralisação. Houve registro de manifestações nas principais cidades do Paraná.
Traiano, o presidente da Alep, acompanhou o governador na represália. Classificou as manifestações de “atos antidemocráticos”. No mesmo dia da ocupação do plenário, determinou que a Procuradoria da Alep entrasse com medidas contra os manifestantes. Um relatório identificou os professores que participaram da ocupação pelas imagens das câmeras de segurança. O documento foi entregue à Polícia Civil para que essas pessoas sejam responsabilizadas criminalmente. A APP-Sindicato diz que propôs ressarcir a Alep pelas portas quebradas, mas, até agora, não se encontrou uma solução negociada.
Antes mesmo da aprovação definitiva do projeto de lei, o secretário Roni Miranda comemorou em sua conta no X: “Passamos por um processo democrático. Enfrentaremos qualquer judicialização para seguir com o melhor para a Educação do Paraná.” Professor de carreira, Miranda foi diretor-geral da Seed-PR durante a gestão de Renato Feder, no primeiro mandato de Ratinho Júnior (de 2019 a 2023). No segundo mandato do governador, Miranda foi efetivado como secretário da Educação com a saída de Feder, que foi convidado pelo governador Tarcísio de Freitas para comandar a educação em São Paulo. Ouvido pela imprensa local depois da votação, Ratinho Júnior disse, sorridente, que a nova lei serviria “para ajudar o diretor e todo o sistema pedagógico a ter mais liberdade para trabalhar e não ficar cuidando de lâmpada apagada, não ficar cuidando de descarga estragada no banheiro…”.
A nova lei autoriza a Seed-PR a contratar empresas para gerir 204 escolas, onde estudam 114,7 mil estudantes. Para o colégio se integrar ao programa é preciso que sua comunidade escolar referende a adesão em consulta pública, que é feita presencialmente e na qual votam professores, funcionários da escola, pais e estudantes com mais de 18 anos. O texto da lei é bastante genérico, no entanto. Não esclarece os limites de atuação de cada uma das duas partes envolvidas – a escola e a empresa. A definição só deve ocorrer quando a lei for regulamentada pelo próprio governo.
Desde o início da tramitação do projeto de lei, as campanhas de marketing do governo apresentam o Parceiro da Escola como uma iniciativa que vai reduzir os serviços mais burocráticos feitos pelos diretores dos colégios. As peças de propagandas – veiculadas no principal horário noturno das tevês – dizem que as empresas privadas farão apenas o gerenciamento administrativo e da infraestrutura. As campanhas nada dizem sobre as implicações pedagógicas. “Vamos contratar um parceiro, um parceiro de experiência na área de educação para apoiar na gestão escolar”, afirmou o secretário Roni Miranda, em um vídeo publicado pelo portal JBA Notícias. “O parceiro vem [para atuar] na área administrativa, na alimentação escolar, na manutenção do prédio, na compra de materiais de custeio. Tudo isso fica na responsabilidade dos parceiros da escola.”
A piauí teve acesso a uma cópia dos contratos assinados com os dois consórcios privados que administram colégios no projeto-piloto do Parceiro da Escola. Os dois contratos são executados pelo ParanaEducação, uma entidade de serviço social autônomo vinculada à própria Secretaria de Educação. O documento prevê que as empresas façam a gestão administrativa – o que inclui serviços burocráticos, pequenas obras e a manutenção dos espaços (a tal troca de lâmpadas) e forneçam uniformes e merendas.
Mas não é só. Um dos pontos mais sensíveis dos contratos diz respeito ao corpo docente. A empresa deve “realizar a contratação e gestão administrativa de profissionais, incluindo professores(as) e pedagogos(as)”. Todo esse processo é conduzido pelos consórcios, sem participação da Seed-PR. A seleção dos contratados inclui a análise de currículo, uma carta de motivação, prova online e aula-teste. A etapa final é uma entrevista, da qual participam o diretor administrativo da empresa privada e o diretor pedagógico da escola. Os especialistas que estudaram esse modelo advertem que, tal como está, o processo abre espaço para a interferência privada em questões pedagógicas.
Nos contratos, não há nada sobre critérios de avaliação do desempenho dos professores empregados por esse meio. Portanto, a empresa pode demiti-los quando quiser, ao contrário do que ocorre com os contratados pelo estado, sejam eles concursados (também chamados efetivos) ou temporários, cujas demissões precisam ser justificadas.
Os contratos entre a empresa e os educadores são firmados com base na CLT: por 40 horas semanais, os professores empregados pelo novo sistema recebem 6 226,70 reais. É pouco mais que os 6 158,19 reais dos docentes temporários contratados pelo governo, mas é bem menos do que os 7 148,39 reais pagos para um professor concursado em início de carreira, sem contar gratificações e outros benefícios. Assim, se no lugar de um docente concursado, a gestão privada da escola resolver contratar um professor pela CLT, conseguirá uma economia de pelo menos 921,69 reais mensais.
A app-Sindicato e deputados estaduais têm recebido denúncias de que professores concursados que lecionavam nas escolas Anibal Khury Neto e Anita Canet passaram a ser pressionados a pedir transferência para outras escolas. Para o lugar deles, as empresas contratam professores com salários mais baratos. A piauí conversou com dois docentes efetivos, que confirmaram que sofreram coações para pedir transferência. Eles pediram para não serem identificados nem ter seus relatos publicados em detalhes por receio de represálias.
“As empresas têm lucrado na precarização do trabalho dos professores. Elas têm feito pressão e ‘convidado’ professores do quadro próprio para se retirar. Aí, contrata outros professores por valores menores. A diferença fica com a empresa”, diz a deputada Ana Júlia Ribeiro. “É um programa que mexe na autonomia pedagógica. A contratação por uma empresa é uma amarra. Os contratados ficam sujeitos, têm que rezar pela cartilha de quem os contratou. Eles não têm segurança nenhuma, tanto que temos relatos de demissões absurdas.”
Dados obtidos pela piauí na Seed-PR comprovam a redução de professores concursados nos dois colégios. Em abril de 2023, o Anibal Khury tinha 22 docentes concursados. Em junho deste ano, o número havia caído para 14, o que corresponde a 34,2% dos professores lotados na unidade. No Anita Canet, a redução é ainda maior: despencou de 18 para 8. Com isso, agora, apenas 22,3% dos professores do colégio são concursados. O índice nas duas escolas está muito abaixo da média nacional, que é de 46,5% de professores concursados.
“Se você tem um quadro em que quase 80% dos professores não são efetivos, isso é muito preocupante”, diz Gabriel Corrêa, diretor de Políticas Públicas da ong Todos Pela Educação. “Acaba tendo impacto na aprendizagem dos estudantes, porque os professores temporários têm muita rotatividade, a cada ano estão em uma escola. Assim, não conseguem estabelecer vínculo e dão aula em várias redes de ensino. Tudo isso gera um ambiente em que o professor já chega esgotado, com menos condições de trabalho e com dificuldade para se desenvolver ao longo da carreira.”
Além disso, os contratos estabelecem que as empresas devem “apoiar indiretamente atividades de fomento às ações pedagógicas”. Em uma live realizada em 28 de maio no YouTube, o diretor-geral da Seed-PR, João Luiz Giona Junior, revelou que a remuneração dos grupos empresariais está atrelada a “indicadores quantitativos de ganho”. “Então, ele [o consórcio contratado] vai ter que perseguir vários indicadores de resultado, relacionados à frequência dos alunos e, inclusive, de aprendizagem”, disse. Entre esses indicadores estão uma meta de desempenho anual dos alunos (aferido por prova diagnóstica, com uma tabela de notas a serem atingidas); um índice bimestral de desempenho e índices de frequência escolar.
Caso consiga bater a meta de desempenho anual, a empresa ganha uma bonificação de 10% sobre o valor que recebe por aluno matriculado, além da renovação do contrato por mais doze meses. A piauí perguntou à Seed-PR por que a remuneração dos “parceiros” prevê o pagamento de bônus com base em frequência e em aprendizagem, se as empresas, nas palavras do governador Ratinho Júnior, vão cuidar apenas de lâmpada queimada e descarga entupida. A secretaria não respondeu.
Para o Todos Pela Educação e deputados de oposição, essas ambiguidades abrem caminho para a interferência pedagógica das empresas nas escolas. “Se a empresa contrata os professores e tem metas de aprendizagem a serem cumpridas, não é só a gestão administrativa a que ela vai se ater. Você fala: ‘Opa! Essa organização parceira vai querer entrar no pedagógico!’”, diz Gabriel Corrêa. “Fica um modelo complexo e disfuncional.”
Em uma ação civil pública que pede o fim da gestão privada do Anibal Khury e do Anita Canet, o Ministério Público do Paraná assinala que a educação “constitui atividade-fim” e, por isso, não pode ser terceirizada, “pois transferir tal incumbência aos particulares representaria um verdadeiro esvaziamento da própria função do Estado”. Segundo o Ministério Público, a própria contratação direta de professores pelas empresas é inconstitucional, viola o princípio do concurso público e interfere na autonomia dos educadores. “A ausência de estabilidade representa, inclusive, uma ameaça à liberdade de cátedra dos docentes, especialmente frente a um cenário no qual, cada vez mais, tem se buscado sufocar o ensino crítico, amarrando os profissionais da educação às visões de um ou outro gestor”, escreveu a promotora Cláudia Cristina Rodrigues Martins Maddalozzo.
A remuneração das empresas parte de uma base fixa: 800 reais por aluno. Do montante a ser repassado como pagamentos aos consórcios, no entanto, são descontados eventuais gastos do governo com as escolas – como despesas com energia elétrica e, principalmente, com o pagamento de funcionários e professores concursados do quadro próprio, que continuem a atuar nesses colégios. Ou seja: quanto menos concursados a escola tiver, menos desconto terá na sua remuneração. Se o Parceiro da Escola for aplicado ao conjunto das 204 escolas previstas na lei, os contratos podem chegar a um valor global de 91,7 milhões por mês, o que passa de 1 bilhão de reais por ano – sem considerar os eventuais descontos.
Os pagamentos às empresas, no entanto, se tornaram uma caixa-preta, a tal ponto que é impossível dimensionar com exatidão o impacto da privatização aos cofres públicos. O Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) obteve apenas informações genéricas. Sabe, por exemplo, que a Tom Educação recebeu pouco mais de 10 milhões de reais pelos serviços prestados no Colégio Estadual Anibal Khury no ano passado. Sabe, também, que o Espaço Mágico/Sudeste, responsável pela gestão do Anita Canet, embolsou 8,5 milhões do governo. Mas não tem dados detalhados de nada além disso.
A piauí pediu à Seed-PR a relação dos valores repassados mês a mês a cada um dos consórcios, mas não obteve resposta. Em 26 de julho, depois de tentar em vão obter informações mais substanciais do ParanaEducação, o conselheiro Maurício Requião, da Segunda Inspetoria de Controle Externo do TCE-PR, instaurou um processo de tomada de contas extraordinária – uma espécie de investigação que visa apurar eventuais danos aos cofres públicos. Ainda na fase preliminar da apuração, o TCE-PR pediu que o ParanaEducação – uma entidade, é bom lembrar, vinculada à Seed-PR – apurasse os “riscos de superfaturamento” eventualmente ocorridos na execução dos contratos. O órgão também pediu dados que permitam fiscalizar desde manutenção e obras realizadas até a qualidade da merenda servida aos alunos.
De acordo com a Segunda Inspetoria, “houve sonegação de documentos imprescindíveis à fiscalização, como comprovantes de pagamentos realizados pelas empresas credenciadas, folhas de pagamento dos empregados, com comprovantes de recolhimento de encargos sociais e relação de servidores temporários terceirizados cujos salários estão sendo pagos pela Secretaria Estadual de Educação e pelo ParanaEducação”. Nos documentos a que teve acesso, o TCE-PR já havia encontrado inconsistências, como diferenças entre os repasses autorizados às empresas e os valores efetivamente depositados. Por exemplo, no primeiro trimestre de 2023, os despachos do governo autorizavam o repasse de 1,8 milhão de reais ao Consórcio Espaço Mágico, mas as transferências bancárias somam 1,6 milhão.
Outro conselheiro, Ivan Lelis Bonilha, ao analisar os números de 2023, já havia apontado “impropriedades” no procedimento licitatório que selecionou as empresas terceirizadas, entre elas, o pagamento das empresas. Segundo Bonilha, o governo não detalhou os custos envolvidos no projeto, nem esmiuçou como se dá a “formação de preços” – ou seja, o cálculo de remuneração das empresas. “Essas falhas na etapa de licitação prejudicam o acompanhamento e a gestão contratual, seja pelo ente licitante ou pelo próprio controle externo”, escreveu o conselheiro.
Outro ponto destacado pelo TCE-PR e pelo Ministério Público é que as despesas do Parceiro da Escola correm por uma dotação orçamentária que tem, entre suas fontes, recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (Fundeb). A legislação proíbe o repasse de dinheiro do Fundeb para empresas privadas, mesmo que o montante seja usado na gestão de escolas da rede pública estadual. O processo ainda tramita na 4ª Vara Especial de Fazenda Pública de Curitiba.
Todos esses argumentos foram levados ao plenário da Assembleia Legislativa pelos deputados de oposição quando a expansão do Parceiros da Escola foi aprovada. Na correria em que se deu a votação, porém, nenhum ponto foi aprofundado. “É um cheque em branco aprovado na Assembleia Legislativa, assinado pelo governador e que vai ser preenchido pelos empresários. É um negócio da China”, diz o deputado estadual Professor Lemos (PT), que logo se corrige: “Aliás, nem na China tem um negócio desses…”
Em sua defesa, a Seed-PR argumenta que o estado pode usar recursos do Fundeb na execução do programa, porque os contratos são executados pelo ParanaEducação. Mas esse ponto está sub judice: na ação civil pública, o Ministério Público sustenta que a natureza do ParanaEducação “impede a gestão de verbas públicas externas ao seu patrimônio”. O superintendente do ParanaEducação, acionado pela piauí, não quis se manifestar.
A Seed-PR, em nota à revista, disse que os alunos das duas escolas privatizadas apresentaram melhor rendimento na aprendizagem, que o número de matrículas aumentou 14%, os índices de reprovação e evasão caíram, e os prédios dos colégios passaram por melhorias. A revista pediu mais informações, sobretudo a respeito do modo como se mediu a melhora na aprendizagem, mas a secretaria não respondeu.
Assim, o Paraná se prepara agora para ampliar largamente um experimento sem que os indicadores das escolas-piloto tenham sido mostrados e debatidos com a comunidade. “Faltam dados”, diz Gabriel Corrêa, da ong Todos Pela Educação. “Está muito mal amarrado, tem pouca transparência sobre o que levou à expansão de um modelo que nos preocupa.”
Iniciativas parecidas de terceirização na educação estão em vias de sair do papel, sobretudo em São Paulo. O governador Tarcísio de Freitas anunciou o projeto Novas Escolas, por meio do qual pretende construir 33 colégios – equivalente a 0,6% da rede estadual –, que serão administrados por empresas terceirizadas durante 25 anos. Na capital paulista, o prefeito Ricardo Nunes pretende conceder a gestão de vinte unidades educacionais à iniciativa privada. Outros doze Centros Educacionais Unificados (CEUs) estão sendo construídos por meio de parcerias público-privadas. Por um quarto de século, as empresas ficarão responsáveis pela manutenção, limpeza e vigilância das unidades.
Em todos esses modelos, a ideia é que os serviços pedagógicos continuem com as respectivas secretarias de educação. Em Minas Gerais, porém, o governo de Romeu Zema resolveu fugir à regra e entregou à gestão privada também a administração pedagógica de três colégios estaduais, em uma iniciativa batizada Programa Somar. Diz a Secretaria de Educação de Minas Gerais que os índices de aprovação nas três escolas aumentaram. Na Escola Estadual Francisco Menezes Filho, em Belo Horizonte, subiu de 86,9% para 95,4%. Na Escola Estadual Maria Andrade Resende, também na capital mineira, foi de 92% para 95,2%. O maior salto deu-se na Escola Estadual Coronel Adelino Castelo Branco, em Sabará, onde saltou de 62% para 93%. A secretaria afirmou que houve aumento na satisfação da comunidade escolar, redução dos índices de reprovação e melhoria na frequência dos alunos. Não houve denúncia de que, nos conselhos de classe dessas escolas, tenha havido manipulação de notas e faltas, como no caso do colégio Anita Canet.
Em agosto, o governo de Minas anunciou a expansão do Programa Somar, que alcançaria oitenta escolas. A exemplo do que ocorreu no Paraná, a ampliação da privatização não passou por consulta à comunidade escolar. A porta-voz do Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação de Minas Gerais (Sind-UTE), Marcelle Amador, diz que a categoria não teve acesso a dados de desempenho das escolas privatizadas. A entidade entrou na justiça com um pedido de impugnação do edital para credenciar empresas para fazer a gestão das novas escolas.
“Para a educação, esse projeto é uma tragédia. Não tem transparência, não tem números reais e não houve um processo de transição com a comunidade escolar. Não se sabe nem quais serão as escolas privatizadas”, diz Amador. “É absurdo pensar em gestão privada de escolas mantidas com verba pública. Sem falar dos professores, que estão sofrendo e adoecendo. Eles não podem ser representados por nós [Sind-UTE], nem pelo sindicato das escolas particulares.”
O Parceiro da Escola não foi o primeiro experimento heterodoxo na área de educação do governo do Paraná. No primeiro mandato de Ratinho Júnior, quando o secretário de Educação era Renato Feder, o estado lançou um programa focado na aprendizagem por intermédio de telas – de computadores, celulares e slides. Contratou uma série de plataformas digitais que continham materiais didáticos de matemática, inglês, programação e leitura, que poderiam ser acessados pelos alunos via celular. Os contratos com as empresas de tecnologia ultrapassam 102 milhões de reais.
Ao mesmo tempo, a Seed-PR criou um núcleo que prepara apresentações didáticas em slides, fornecidos aos professores da rede de todas as disciplinas. O material é apresentado na sala de aula por meio de um equipamento chamado Educatron, que nada mais é do que uma tevê de tela plana afixada a um pedestal e com teclado, mouse, webcam e acesso à internet. Todos esses dispositivos estão conectados a um sistema de business intelligence que permite à secretaria obter dados quantitativos e qualitativos em tempo real, além de saber quantas vezes professores e alunos acessam cada plataforma.
Com isso, a Seed-PR pode fiscalizar o uso e estipular metas aos professores e diretores. “Eles obrigam o uso, mesmo que não tenha relação com a aula daquela semana”, diz Walkiria Mazeto, da APP-Sindicato. “O problema não está na tecnologia, mas no uso que foi dado a ela. Virou um modelo de sucesso, que o Renato Feder sai vendendo para estados e municípios.” (Ao fim da primeira gestão de Ratinho Júnior, em 2022, Feder levou para São Paulo o modelo de centralizar a produção de materiais didáticos na secretaria, o que gerou forte reação negativa, depois que a imprensa noticiou que os slides das aulas continham erros grosseiros.)
Quando a Seed-PR ainda estava sob a batuta de Feder, o Paraná foi deixando de lado a lousa, o caderno e os livros didáticos distribuídos por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) – classificados por ele como de “péssima apresentação, mal organizados e carregados de pautas ideológicas”. As redações passaram a ser feitas exclusivamente em uma plataforma desenvolvida pela secretaria, a Redação Paraná. O aluno digita suas composições diretamente na plataforma, por um computador ou pelo celular. “O aluno aprimora sua escrita a partir de um programa de inteligência artificial. Nela, são corrigidos questões [sic!] de ortografia em geral, auxiliando o aluno em questões básicas e complexas da língua portuguesa”, diz um texto publicado no site da secretaria, que afirma que a plataforma é utilizada por mais de 1 milhão de alunos e mais de 8,1 mil professores. Segundo o sindicato, também há metas de uso para o Redação Paraná.
Gabriel Côrrea, do Todos Pela Educação, critica o uso maciço de telas por crianças e adolescentes. “A ciência mostra que a escrita à mão ainda é muito importante, porque o aluno consegue consolidar melhor os conteúdos e sistematizar a aprendizagem. Fazer esse experimento com os estudantes da rede pública é muito crítico”, diz. Corrêa menciona o exemplo da Suécia, que foi um dos primeiros países a apostar no ensino por plataformas digitais, mas voltou atrás em razão de reflexos negativos na aprendizagem. Ele também questiona a imposição de metas no uso dos dispositivos digitais. “Os dados gerados pelas plataformas são utilizados apenas para monitorar, fiscalizar e incentivar o uso da própria plataforma. Com isso, acaba sendo uma utilização artificial. Os professores usam porque são obrigados a usar.”
E m 2019, o então presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que incluiu militares na gestão dos colégios. As leis de aplicação da medida ficaram a cargo dos estados. Bolsonarista fiel, Ratinho Júnior tratou logo de implantar o programa no Paraná. Em 2020, a experiência começou em duzentas unidades escolares. Embora administrados por equipes pedagógicas da Seed-PR, os colégios passaram a incluir policiais militares inativos na função de monitores – com salário de 5,5 mil reais, bem mais do que um agente escolar de nível I, que ganha 1,9 mil reais (por 20 horas semanais).
Essas escolas, que estão ainda em funcionamento, precisam seguir um manual que prega “a valorização das atividades cívicas e de cidadania diferenciadas”. É um conceito vago, mas, na prática, as “atividades diferenciadas” incluem, por exemplo, a formação de filas para cantar hinos, como é habitual nos quartéis. Além disso, os diretores das escolas cívico-militares são indicados pela Seed-PR, e não pela comunidade escolar, como é feito em outros colégios. Em 2023, o governo Lula acabou com o programa. Mas Ratinho Júnior continuou com a versão local e até ampliou o modelo. Agora, em vez de 200, são 312 colégios.
Desde 2021, a lei das escolas cívico-militares no Paraná é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo PT, Psol e PCdoB. A Seed-PR afirma que os alunos desses colégios têm frequência 3% maior que a média estadual e que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) apresenta média de crescimento superior a 3% em relação a outras unidades. A secretaria ressalta ainda que o percentual de acertos na Prova Paraná para os alunos das escolas cívico-militares (em uma avaliação aplicada pelo governo em toda a rede) subiu de 44,3% para 51,2%.
O governo do Paraná costuma justificar suas políticas educacionais com base nos últimos resultados do Ideb, calculado a partir da taxa de rendimento escolar e de médias de desempenho em exames aplicados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Em 2017, o Paraná estava em sétimo lugar, com índice de 3,7. Em 2021, o estado chegou ao topo da lista, com nota 4,6. Examinado pelos números, o resultado parece realmente efetivo.
Os especialistas em educação, no entanto, veem esses dados com ressalva. O Ideb é calculado com base nos resultados da prova do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), com testes de língua portuguesa e matemática. Professores e diretores das escolas avaliadas também respondem a questionários, que coletam dados demográficos, perfil profissional e condições de trabalho nos colégios. Para Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador honorário da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Ideb não consegue mensurar de fato a qualidade de ensino.
O índice é falho, segundo ele, porque não leva em conta fatores como as condições da escola e seu entorno, a formação dos professores e outros aprendizados não contemplados pelo Saeb. Além disso, Cara aponta que o Paraná saiu de um patamar baixo, o que facilita a ascensão. “Quando se compara o Ideb, apenas se compara o Ideb”, diz Cara. “Avaliar proficiência em prova é pouco. Há outros aprendizados igualmente importantes, como ética e valores morais. É possível dizer que, no máximo, ele é um índice, um componente de qualidade. Dito isso, sou contrário ao Ideb? Não. Mas tampouco aceito que ele seja equivalente à qualidade.” E acrescenta: “Um Ideb aceitável seria de 6. Subir de 5,8 a 6,0 é mais difícil que subir de 3,7 a 4,6. Comemorar [um Ideb de] 4,6 é pouco para qualquer governante. Eu teria vergonha.”
Para o professor, também é impossível fazer comparações entre os estados. Por isso, Cara defende um modelo mais amplo de avaliação, como o Sistema Nacional de Educação, que está previsto no Plano Nacional de Educação 2014-2024, mas que nunca foi regulamentado. “Comparar é menos inteligente e relevante do que obter informações para replanejar.” Talvez a ressalva mais consistente diga respeito ao período em questão – de 2017 a 2021. Coincide com dois anos de pandemia, que teve enormes reflexos no ensino e na aprendizagem, capazes de produzir leituras equivocadas sobre a evolução educacional dos estados.
“Apenas 60% dos estudantes de ensino médio fizeram as provas do Ideb de 2021. E as condições iniciais dos estados para lidar com a pandemia foram absolutamente diferentes”, diz Corrêa, do Todos Pela Educação. “Comparar resultados entre redes de ensino sempre exigiu um olhar muito cuidadoso e, em 2021, isso se tornou ainda mais difícil. Não dá para comparar, fazer rankings. O Paraná tem algumas políticas interessantes de ensino, mas tem outras que vão contra o que as evidências apontam como boas práticas.”
Em 14 de agosto, o Inep divulgou os dados mais recentes do Ideb, referentes a 2023. O Paraná perdeu a liderança. Aumentou seu índice em 0,1, chegando a 4,7 pontos. Ficou longe da meta estipulada pelo MEC para o estado, que era de 5,1. Com isso, o Paraná foi alcançado pelo Espírito Santo e ultrapassado por Goiás, que agora lidera o ranking com 4,8. Outros estados que também privatizaram a gestão de algumas escolas não tiveram evolução no Ideb, como Minas, que ficou estacionado nos 4 pontos. Em São Paulo, porém, a situação piorou. O índice recuou de 4,4, para 4,2.
O governo do Paraná preferiu ignorar esses dados e continua divulgando em seus órgãos de comunicação oficiais que segue na liderança do ranking do Ideb. Para não perder o discurso, o estado aplicou uma mudança na referência: passou a trabalhar com a nota do Ideb Total, que leva em conta também o desempenho da rede privada e dos institutos federais.
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"Ao ler o editorial da Folha (Política econômica de Lula volta a perder credibilidade) chego à conclusão de que nosso Brasil caminha para a catástrofe: o governo é irresponsável, gastador, único culpado pelos juros altos (...) No mesmo dia, no Valor Econômico, o Brasil é outro". Qual é o Brasil da Folha? (A Terra é redonda)
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Dos 47 mil polos de Ensino à Distância (EaD) que existem no Brasil, 46% são terceirizados. Ou seja, além de entregar uma péssima qualidade, essas unidades não são sequer geridas por quem as criou. São outorgadas a terceiros desqualificados, mediante a concessão de aproximadamente 30% do valor arrecadado em mensalidades. Trata-se de um negócio nefasto, que transforma a educação em mera especulação financeira. Os dados são do próprio Ministério da Educação (MEC) e foram levantados pela Folha de S. Paulo
"Educação não é mercadoria", diz o grito de guerra tradicional das manifestações estudantis. Embora cheio de nobres propósitos, o protesto mira no passado. Para a maioria da população, a única educação disponível é a mercantilizada. Divulgados na semana passada, os resultados do Enade de 2022 apontam os efeitos nocivos da explosão de matrículas na modalidade EAD no ensino superior. Para surpresa de ninguém, os alunos desses cursos apresentam desempenho pior do que os alunos dos cursos presenciais.
A grande promessa da IA para a educação é a personalização do ensino. Muitos pesquisadores da área argumentam que com o avanço da IA generativa criaremos agentes inteligentes para atuar como tutores customizados de cada estudante em um percurso pedagógico. E, para ser sincero, eu sou um deles (Diogo Cortiz, no Tilt do Uol)
# O risco do fator Pablo Marçal (Carta Capital)
# 3 ângulos para compreender a disputa eleitoral de 2024 (Le Monde, para assinantes)
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) reconheceu em nota a força do modelo econômico do governo Lula, em sua terceira gestão iniciada em janeiro de 2023, e celebrou o impacto positivo no crescimento econômico do país. O avanço de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre de 2024 foi atribuído, em grande parte, ao forte dinamismo do mercado de trabalho, que tem gerado elevação dos salários e fortalecido a renda das famílias. Segundo vários economistas, o desempenho deste ano deve ultrapassar os 3%, impulsionado pela ampliação da massa salarial (leia em 247)
Desigualdade e frustrações deslocaram o eixo da política para o campo dos valores – onde opera uma aliança entre interesses financeiros, preconceitos de gênero e religião. Hipótese: esquerda pode (e precisa!) disputar este território. # Leia em Outras Palavras.
O regime fascista sempre pesa sobre a língua e a própria linguagem, como pesa originalmente sobre o psiquismo disponível ao passado simplificado do fascista
Tales Ab'Saber (A Terra é redonda)
Clara Mattei: “O melhor aliado do capitalismo é a austeridade fascista", uma ferramenta necessária na repressão às pessoas
Fernanda Forverini (Opera Mundi)
A era Tarcísio: privatização, falta de água, mas jorram lucros
Primeiro balanço das concessões em Saneamento. Fundos e corporações neoextrativistas correm para controlar o setor. Receitas disparam e tarifas sobem acima da inflação. Atendimento às maiorias continua miserável e excludente
# Musk e Moraes: morte anunciada (Opera Mundi)
# Elon Musk e a defesa do Brasil (A Terra é redonda)
Anais do racismo e da segregação social
# O problema do negro e o marxismo no Brasil
Florestan Fernandes (A Terra é redonda)
# Fui bolsista em um colégio de elite em São Paulo e vi a segregação de perto
Suzana Petropouleas (Folha)
# Filho nativo: Um clássico da litartura afro-diaspórica
A saga do jovem negro na Chicago dos anos 30 (Piauí)
# Social-democrata, feminista e anti-racista: o que podemos aprender com Kamala Harris
Ricardo Taperman (Piauí)
*Dos tempos em que o jornal enfrentava o desafio de acompanhar a velocidade dos fatos e atualizava seu noticiário com a reedição de suas capas: duas, três e mais versões num mesmo dia. Nossas práticas digitais inverteram esse processo: são os fatos que não podem perder de vista a rapidez e a celebração dos veículos pois eles é que são notícia e espetáculo. Se os acontecimentos ficarem para trás... não aconteceram...
# A grande ideia do segundo clichê (Mídia Mundo) # Segundo clichê (Dicionário de Jornalismo) # Clichê (Wikipedia)
O debate na Gazeta
Marçal e Nunes empurram debate para o terreno da escatologia política e transformam sucessão paulista em arenga fascista. # Leia a cobertura do Uol
Leia ainda: # A feitura de um viral eleitoral (Daniel Bergamasco, Piauí). Assista também: A dimensão do 'fenômeno' Marçal: # Vídeo com João Cézar de Castro (247)
Sem projeto e sem futuro, o que é que a elite brasileira sabe fazer além de conspirar?
A vergonhosa elite nacional: melhor o gangster Musk do que toda a legitimidade e legalidade brasileiras. Soberania para quê?
# Entenda a decisão de Moraes e seus desdobramentos (G1) # Pablo Marçal e Musk não estão acima da lei (Intercept) # A tara secreta dos capitalistas digitais (Outras Palavras) # Elon Musk não desafia apenas o STF, mas a própria soberania nacional (Intercept) # Elon Musk, neofilibusteiro (A Terra é redonda) # Milionários verde-amarelos também desafiam Moraes (247) # Quem está sendo atacado não é Moraes, somos nós, diz Pedro Serrano (Fórum)
Eleitores de extrema direita são mais tristes (leia aqui)
Sempre à beira de uma explosão violenta, governador espalha medo e deixa rastros de desmandos e de irregularidades na sua gestão.
Como ele chegou até aqui? O que tem feito em sua gestão? Quem são alguns de seus secretários?
# Quem é o cunhado do governador que acaba de ser presenteado com cargo milionário? (Folha) # Na mesma matéria: A intrigante história do domicílio eleitoral de Tarcísio # Operação Escudo: os métodos da polícia do governador (Uol) # Secretário de Educação ou mascate? (Apeoesp) # Secretário da Segurança? (piauí) # Privatização da Sabesp ou maracutaia? (Intercept)
#Apocalipse: teses para a era das redes sociais (Outras Palavras)
# Rodolfo Walsh: cartas de um pai revolucionário (Blog da Redação)
# O desafio do pensar diante do outro decolonial (Outras Palavras)
# A. Latina: insensibilidade diante da barbárie (Outras Palavras)
# Cultura e militância: experiência da SMC de SP (A Terra é redonda)
"O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia" (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
Filme de Walter Salles sobre a morte do deputado Rubens Paiva e o impacto do assassinato sobre sua família, exibe a tragédia dos crimes cometidos pela ditadura e emociona o público em Veneza. # Texto de Teté Ribeiro (Uol)
Decisões do ministro do STF recebem apoio e podem significar o fim das atividades do X no Brasil
# Moraes tira a estrela de xerife e acerta ao imtimar o X de Musk (Walter Maierovitch, Uol)
# Moraes estaria prevaricando se não ameaçasse X de suspesão (Sakamoto, Uol)
# O que vale para todas as plataformas, vale também para o X (Camila Bomfim, G1)
# Sem representantes da rede no Brasil, Moraes bloqueia contas da Starling, empresa que também pertence a Musk (Valdo Cruz, G1)
# Intimação do STF para Musk é absolutamente legal (Wilson Gomes, Uol)
# Adeus, Twitter (G1)
Malafaia e o último ato de vexame de um extremista evangélico (Leia no Uol)
Vociferante como um animal doente e acuado, o 'bispo' é uma das personalidades que agravam os padecimentos da sociedade brasileira. A galeria de gente desse tipo abjeto é grande...
# Paulo Gonet, o criador de Marçal # 'Faria Lima' apoia Marçal para derrotar Boulos # Tarcísio recomenda voto nulo # Tarcísio quer tirar R$ 10 bilhões dos recursos para a Educação em SP
# Acesse o clipping do site sobre a disputa pela prefeitura da capital paulista: # as últimas pesquisas # as etratégias das campanhas # as manobras ilegais de Marçal
Francisco Everardo Oliveira Silca, Tiririca, deputado federal por São Paulo em 4 mandatos, filiado ao PL. Foi o quinto mais votado em toda a história do Brasil.
Tiririca estava errado e sabia disso: pior do que estava ficou. E muito. Não demora o dia em que parte expressiva dos congressistas defenderá o fim do Estado laico
O senso comum brasileiro está bem familiarizado com chavões que denotam certo otimismo compulsório. Rifões como “é melhor pingar do que faltar”; “do chão não passa”; ou “pior do que está não fica” – este, transformado em slogan por um candidato do Paraná há alguns anos – exprimem um modo superficial, porventura ingênuo, de antever as consequências tenebrosas de incertas escolhas.
Texto do Prof. Jen Pierre Chauvin publicado em A Terra é redonda (continue a leitura)
Seja por leviandade, seja por desilusão com o cenário nacional, o fato é que nos habituamos a conviver com candidatos sem qualquer relevância social, cultural e política, projetados por certas legendas partidárias (e financiados por grandes empresários), com o fito de obter votos graças à sua exposição na assim chamada grande mídia.
Votos irresponsáveis em figuras dessa estirpe já trouxeram consequências nefastas, tanto local quando federalmente. Não seria necessário recordar a fala grotesca de seres inomináveis que zombaram da morte; negaram a ciência; criaram uma lista de inimigos (contrários ao patriotismo de araque); fizeram pactos com facções criminosas; ofenderam pessoas (já vitimadas por variados preconceitos); estimularam violências físicas e simbólicas; articularam máquinas de produzir ódio; divulgaram fake news; participaram de esquemas de corrupção em todas as escalas (das rachadinhas à apropriação indébita de joias); privatizaram empresas lucrativas etc.
Um candidato em campanha para prefeitura da capital paulista, neste ano, reedita parte das estratégias da extrema direita, ao maldizer e disseminar pseudoinformações, sem respaldo em quaisquer dados verificáveis. Não bastassem os ataques infundados aos adversários, desferidos por esse candidato de ocasião, forrado de clichês do universo coaching, parte da imprensa corporativa age em direção parecida ao abrandar as responsabilidades do ex-presidente e daqueles que o tratam como “líder” ou “chefe”.
A despeito disso, neste momento, dezesseis por cento dos entrevistados paulistanos declaram apoio ao sujeito. Como alguém pode levar a sério as mentiras propaladas por um tipo investigado criminalmente (por conta de suas falas sem fundamento) pelo Ministério Público? Como alguém pode acreditar que os apaniguados do bolsonarismo, feito ele, ajam “contra o sistema”?
Tiririca estava errado e sabia disso: pior do que estava ficou. E muito. Não demora o dia em que parte expressiva dos congressistas defenderá o fim do Estado laico e naturalizará as falas delirantes de pseudorreligiosos que vivem às custas da boa-fé de seus fiéis.
*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas. [https://amzn.to/4bMj39i]
Aumento da vantagem tem forte presença de mulheres e de latinos. # Matéria do G1
Foi com prazer que li o excelente livro de Yohann Douet, intitulado L’hégémonie et la révolution. Gramsci, penseur politique. [“Hegemonia e Revolução: Gramsci, pensador político”]. O autor busca esclarecer o pensamento do famoso líder comunista italiano. Ele detalha como Gramsci concebe o conceito de hegemonia, o que lhe permite criticar de forma convincente as interpretações reformistas e populistas desse mesmo conceito.
Em cada discurso, uma verdade
# Artigo de Seraphim Pietroforte (A Terra é redonda)
O que distingue a estatura não é o formato, mas às vezes as duas coisas andam juntas
No capitalismo de cassino, todas as apostas são castelos de cartas. Como o homem mais rico do mundo defende seus lances temerários aliando-se à ultradireita, deformando a internet e esperando que uma contra-revolução o socorra...
# Leia O grande blefe de Elon Musk (Outras Palavras)
# O perigoso cinismo de Kamala Harris
Os apoiadores de Kamala Harris plantam as sementes de sua própria destruição (Andrew Fishman, Intercept)
# Deputada aliada de Millei revela projeto para libertar torturadores da ditadura argentina
Proposta teria como objetivo defender a liberdade de repressores maiores de 70 anos (Opera Mundi)
# Nova Frente Popular defende impeachment de Macron
Partido França Insubmissa acusa presidente de barrar Lucie Castets, indicada pela coalizão que venceu as eleições (Opera Mundi)
Documento endereçado ao presidente Franklin Roosevelt levaria à criação da bomba atômica (BBC)
# Maduro anuncia reforma ministerial para fortalecer governo popular
Para presidente reeleito, país atingiu ‘um ponto de maturidade suficiente’ para construir novo Estado baseado na democracia direta (Opera Mundi)
# Israel recebeu 50.000 toneladas de armas desde 7 de outubro
EUA não mostram sinais para implementar embargo de armas enquanto número de palestinos mortos continua aumentando (Opera Mundi)
# A meritocracia é uma grande mentira do neoiiberalismo (João Paulo Pacífico, IHU)
# A linguagem da ultradireita, de Olavo de Carvalho a Pablo Marçal (Luis Nassif, GGN)
# A queda de Ícaro: Os fundamentos míticos do capitalismo (Hernandez e Marti, IHU)
# Mercedes Sosa. As vozes dos valores fundamentais (Urariano Mota, GGN)
Os diversos episódios de emergência climática que têm ocorrido no Brasil ao longo de 2024 não têm sido suficientes para os parlamentares colocarem a pauta ambiental como prioridade no Congresso. Pelo contrário: os congressistas estão dando tração ao chamado "pacote da destruição", um conjunto de mais de 25 projetos de lei e três PECs (propostas de emenda à Constituição) que reduzem a proteção ambiental do país (# leia aqui a matéria da Folha)
# Tragédia antes da aula: a morte do jovem Pedro Henrique Oliveira dos Santos, de 14 anos, revela valores refratários ao discurso da inclusão. É a realidade social e todos os fundamentos que a estruturam que dão a última palavra. Afirmações de Mauro Aguiar, diretor do colégio, em reunião do Conselho Estadual de Educação, nesse sentido, são contundentes e estarrecedoras (leia as matérias da Piauí e da Folha). Leia ainda: # Ex-bolsistas repudiam declarações de Aguiar (Uol)
# Sete anos depois da reforma trabalhista, 70% dos informais querem carteira assinada (Wanderley P. Sobrinho, Uol)
# Escolas militares triplicam no Brasil e consolidam o maior crime contra a educação dos jovens (Adriana Ferraz, TAB/Uol)
# O ódio político nacional: dos anos 50 ao século XXI (Luis Nassif, GGN)
Passaram pelos bancos da melhor universidade brasileira, mas a ditadura militar interrompeu seus caminhos. Recebem agora os diplomas que sonharam ter nas mãos
Desempenho do candidato diante da saraivada de perfuntas dos entrevistadores foi excelente e confirma: São Paulo tem em Boulos nas eleições de outubro a melhor escolha para uma administração municipal comprometida com as questões sociais e com a humanização da metrópole (acesse a íntegra do programa)
O jornal Folha de São Paulo, um decadente porta-voz da direita neoliberal, publicou no último sábado (24) um editorial enaltecendo as privatizações já realizadas no país e defendendo a entrega das estatais remanescentes, com destaque para as gigantes Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal
Por Adilson Araújo, presidente da CTB (contine a leitura)
O veículo, propriedade de uma tradicional família da burguesia paulista (Frias), faz uma apologia dos empreendimentos privados, comandados por grandes capitalistas nativos e estrangeiros, e reitera o mantra da “ineficiência da gestão pública”, associada a “conveniências políticas dos governos de turno”.
EUA já descartaram neoliberalismo
Cabe, em primeiro lugar, constatar que o conteúdo do referido editorial é uma receita velha e fracassada.
O neoliberalismo fracassou, conforme explica em aula o professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, Luiz Carlos Bresser Pereira.
Este fracasso é reconhecido hoje até mesmo pelos EUA, onde o neoliberalismo teve sua mais famosa e perniciosa tradução programática: o chamado Consenso de Washington.
Na tentativa de recuperar a hegemonia econômica, que perdeu para a China, o governo Joe Biden promove uma política de reindustrialização sustentada por investimentos públicos orçados em trilhões de dólares.
Ou seja, a alma do programa de incentivo à indústria da Casa Branca, a solução que preconiza para reverter a decadência, é “Estado na veia”, como diria a ex-presidenta Dilma Rousseff.
Washington certamente está de olho no exemplo de seu principal rival geopolítico, sediado em Pequim.
O Estado na maior economia do mundo
Voltemos os olhos para a China, a nação que produziu a experiência de desenvolvimento mais exitosa da história universal.
Os quatro maiores bancos do mundo (por ativos) são empresas estatais da grande potência asiática: Industrial and Commercial Bank of China (ICBC); China Construction Bank Corporation; Agricultural Bank of China e Bank of China LTD.
Muitos economistas sabem que o sistema financeiro centraliza a poupança ou o excedente econômico produzido pela sociedade e tem o poder de definir, em larga escala, o destino e a direção dos investimentos produtivos.
O controle estatal dos bancos permite ao Estado implementar uma política desenvolvimentista que já transformou a China na maior potência econômica do globo.
Além disto, fornece ao governo chinês, sob a firme direção do Partido Comunista, as condições necessárias para levar a cabo sua audaciosa Iniciativa Cinturão e Rota, também batizada de Nova Rota da Seda, que está desenhando as linhas mestras de uma nova ordem mundial, ao lado do Brics, hoje um grupo geopolítico bem mais relevante economicamente do que o bolorento G7.
A verdade está nos fatos e estes não têm maior correspondência com o canto da sereia neoliberal.
Lucro e tragédia
São muitos os malefícios das privatizações promovidas por governantes neoliberais, sejam estes provenientes do voto popular, como foi o caso do tucano Fernando Henrique Cardoso (o FHC), ou de um golpe de Estado, caso do usurpador Michel Temer.
Vou me limitar a citar os casos emblemáticos de duas grandes empresas privatizadas, Vale e Eletrobras.
Comecemos pela gigante da mineração, entregue por FHC na bacia das almas por um preço bem abaixo do valor real da empresa, um crime contra o patrimônio público brasileiro abençoado pelas classes dominantes.
Depois que a empresa foi transferida à “competência” da burguesia, a maximização dos lucros passou a ser o objetivo exclusivo e o critério absoluto de suas ações.
O resultado não poderia ser mais trágico.
A empresa descuidou da segurança, deixando de investir na manutenção das barragens de mineração, e cometeu dois dos maiores crimes contra o meio ambiente e a classe trabalhadora registrados em nossa história.
O rompimento da barragem de Brumadinho (MG) em janeiro de 2019 derramou 13 milhões de metros cúbicos de lama tóxica sobre o meio ambiente mineira, 270 pessoas morreram e três pessoas continuam desaparecidas.
O desastre em Mariana (MG) ocorreu antes, em 2015.
Estima-se que 47,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram liberados com o rompimento, provocando a inundação das áreas urbanas próximas, a morte de pessoas e animais e a poluição do solo e de cursos d’água.
Entre os rios que receberam substâncias poluentes e tóxicas destaca-se o rio Doce, um dos mais importantes da região, que banha parte de Minas e do Espírito Santo.
Até hoje a pesca é proibida na região afetada e a recuperação da qualidade das águas do Rio Doce ainda é um trabalho em andamento.
A Eletrobras também foi vítima de uma infame privataria.
“Na verdade, não a privatizaram. Cometeram um crime de lesa-pátria contra o povo brasileiro, entregando uma empresa dessa magnitude”, ressaltou o presidente Lula.
O resultado concreto da entrega do sistema elétrico a empresas estrangeiras foi a eclosão de inúmeros apagões pelo país, em especial na capital de São Paulo.
“Esse negócio de destruir tudo o que o Estado pode fazer, achando que o setor privado é melhor, é mentira”, afirmou o chefe do Executivo.
Artigo de fé
Convém assinalar ainda que, ao contrário das promessas neoliberais, as privatizações não elevaram as taxas de investimentos e de crescimento do PIB.
Pelo contrário, o entreguismo provocou redução dos investimentos, desindustrialização, estagnação econômica e aumento do desemprego.
Por outro lado, as privatizações ampliaram os lucros dos tubarões capitalistas, contribuindo para maior concentração e centralização do capital, exacerbando as desigualdades.
Em outras palavras, as políticas neoliberais são péssimas para a sociedade, mas em contraste garantem generosos lucros para os grandes capitalistas.
Este último efeito é a razão que orienta o jornal da família Frias, mascarada com uma profusão de frases ocas e a satanização do Estado e da política.
O editorial da “Folha” dispensa os fatos, escarnece da realidade e carece de objetividade, é apenas mais um anacrônico artigo de fé neoliberal
Convocação para ato bolsonarista publicada nas redes sociais do pastor foi interpretada como “apito de cachorro”.
Pois então...
Na edição deste domingo, em desfaçatez inédita para os padrões ambíguos que a Folha adota em outros assuntos, proposta de privatização geral do patrimônio público e de alienação da soberania nacional, é feita sem atenuantes e com cinismo deslavado (leia aqui). Ao que tudo indica, levando em conta a determinação da velha imprensa em arquitetar contextos críticos para este governo federal, o texto pode ser um balão de ensaio ou... pode ser mesmo o início de uma campanha selvagem pela desestruturação do Estado brasileiro. Seja como for, o ultraliberalismo não consegue contornar a realidade: não há um único setor que foi submetido à privatização que apresentou quaisquer resultados positivos para o interesse público. A própria Sabesp, cuja privatização o jornal se entusiasma em elogiar na campanha que já iniciou por Tarcísio em 2026, é um exemplo de maracutaia a serviço de empresa desqualificada que recebeu o complexo sistema da distribuição de água de mão beijada e com claros sinais de irregularidades em todos os níveis do processo.
Leia mais: # Ministra Esther Dweck contesta lógica dos argumentos da Folha # Gleisi: jornal está a serviço de interesses poderosos que não são os do Brasil # Lindberg: Editorial é afronta à nossa soberania # Para Lula, entrega da Eletrobras não foi privatização, foi crime de lesa-pátria # Folha defende receita velha e ultrapassada
Nas mãos de Nunes ou nas mãos do bolsonarismo, cidade é pastagem dos interesses privados
O que há de novo na campanha eleitoral: Clipping com o monitoramento do desempenho dos candidatos e o festival de denúncias que promete dias de fúria até outubro
# Maringoni adverte: falta garra e contundência na campanha de Boulos # Marçal racha o bolsonarismo # Boulos assume a liderança no primeiro turno, mas no segundo... # Denúncias de Flávio Bolsonaro: o feitiço contra o feiticeiro # Tendência mostra Nunes em queda livre (acesse aqui e leia mais)
Crimes cometidos por incorporadoras contra a população e a cidade de São Paulo devem ser capitulados como genocídio
Aliás, não contemplam coisa alguma, exceto a natureza predatória da construção civil
VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)
O adensamento urbano tem estado nos debates sobre o planejamento da cidade de São Paulo e nas discussões sobre o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014, que propôs redistribuir pequena parte dos ganhos decorrentes da valorização imobiliária para o conjunto da sociedade, especialmente às camadas mais pobres da população, através de instrumentos como a outorga onerosa do direito de construir e as zonas especiais de interesse social.
Nas recentes revisões parciais do PDE e da Lei de Zoneamento, foi duramente criticado o adensamento urbano associado à construção de prédios altos denunciados como parte da "cidade como negócio", com garantia de lucros combinados com muita destruição de tecidos urbanos pré-existentes e do meio ambiente e a expulsão da população mais pobre para áreas com pouca infraestrutura da cidade.
Operários trabalham em prédio de Perdizes (zona oeste de SP); com alteração na Lei de Zoneamento, edifícios não possuem limite de altura neste e em outros bairros valorizados - Danilo Verpa - 9.abr.24/Folhapress
Essas revisões parciais garantem maiores possibilidades de exploração econômica da terra urbana, principalmente nas áreas ampliadas dos eixos de estruturação da transformação urbana (eixos de transporte público de média e alta capacidade).
Agora, na revisão da revisão retomou-se uma prática perniciosa de alteração pontual e injustificada da Lei de Zoneamento. Lotes específicos foram favorecidos com regras de uso e ocupação do solo que atendem interesses privados individuais. Tudo feito com aumento de potencial construtivo encoberto sob o argumento falacioso do adensamento e da verticalização em áreas supostamente com boa infraestrutura em que se propõe realizar a "cidade de 15 minutos" com habitação de interesse social para a população de baixa renda. Por que esse argumento é falacioso?
Primeiro porque o adensamento e a verticalização defendida por incorporadores imobiliários servem para a construção de grandes empreendimentos destinados a adquirentes privilegiados de alta renda que garantam altos lucros almejados com a comercialização do máximo de área construída possível. Os aumentos das densidades construtivas ocorrem desacompanhados de aumentos nas densidades populacionais, pois "os incrementos nas quantidades de áreas construídas não são preenchidos com habitações e moradores". Entre 2010 e 2022, os domicílios sem ocupação aumentaram 91,10% na metrópole.
Segundo porque a "cidade de 15 minutos" construída com esse adensamento e com essa verticalização é, na verdade, para poucos endinheirados, pois a população da periferia continua vivendo na cidade de quatro horas de viagem entre a casa e o trabalho.
Terceiro porque os empreendimentos habitacionais de interesse social produzidos por incorporadores imobiliários são "fake", já que não vão para a população de baixa renda —apesar de serem produzidas com benesses da legislação urbanística, como isenção de outorga onerosa e aumento de potencial construtivo. Muitos desses empreendimentos são apropriados por adquirentes com renda alta e por agentes da exploração imobiliária rentista.
Acreditamos e defendemos o direito de construir a cidade sem destruir seu patrimônio histórico e ambiental, com distribuição de ganhos da produção imobiliária, com proteção do direito à moradia digna, com ampla participação da sociedade civil, de direito e de fato, na definição dos rumos de uma cidade justa para todos.
Tereza Beatriz Ribeiro Herling
Anderson Kazuo Nakano
Francisco João Moreirão de Magalhães
Maria Laura Fogaça Zei
Benedito Roberto Barbosa
Os demais integrantes do Coletivo da Sociedade Civil Não Empresarial do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) subscrevem este artigo
# O Alerta de Lula para a campanha de Boulos em SP. M. Schinchariol (Carta Capital)
# O amor e não Marçal é pode derrotar Boulos. Gilberto Maringoni (Fórum)
# Por que Boulos ainda não deve entrar no jogo de Pablo Marçal. Josué Medeiros (Carta Capital)
# Nunes: a fantasia que deu errado. Prefeito está desesperado
Joice (Poder 360)
# Jamil Chade: Guerra entra em escala alarmante (Uol) # "Essa história não acaba aqui", diz 1o ministro de Israel (Folha) # Potência e Prudência no Líbano (Le Monde)
# Quem é Edmundo Gonzalez, o rosto oculto do opositor venezuelano (Opera Mundi)
A extrema direita já foi normalizada pelos políticos e pelos formadores de opinião Vladimir Safatle (A Terra é redonda)
Cresce entre mulheres o desencanto com o amor romântico. E emerge uma ideia nova: talvez o modelo atual de família não seja o melhor Núria Alabao (Outras Palavras)
"E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.“
UM PRESIDENTE QUE SABIA O SIGNIFICADO DE SOBERANIA
O Brasil teve pelo menos um gigante na presidência da República. Como qualquer um sabe, seu nome era Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954). Diante deles - talvez à exceção de Juscelino - todos os demais são figuras menores. Notáveis, mas menores. Vale ressaltar isso num 24 de agosto, 66 anos depois do suicídio, quando um meliante fascista ocupa o cargo.
Acompanha este post a mais expressiva fotografia de todas as que conheço do ex-presidente.
UMA IMAGEM, UMA LIÇÃO DE PODER
A foto é mais do que manjada. A data é 28 de janeiro de 1943 e o calor é tórrido. Nela aparecem Franklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA, e Vargas, chefe do Executivo brasileiro.
A imagem vale por um curso de como funciona o poder.
Trata-se de um símbolo de quem não tem postura subserviente diante do mais forte. Vargas sabia que seu país estava na periferia do sistema. Não tinha indústrias e nem geração de conhecimento capaz de alavancar a produtividade do trabalho em larga escala.
Contudo - surpreendentemente -, o gaúcho exibia espinha ereta.
Getúlio Vargas jamais foi aos Estados Unidos pedir a benção do presidente de turno. Mas forçou o mais importante líder estadunidense do século XX vir ao Brasil para realizar uma tensa negociação.
Foi assim que em 27 de janeiro de 1943, Roosevelt se desviou da rota Casablanca-Washington e desceu em Natal, então uma cidadezinha de 50 mil habitantes. O quadrimotor Boeing B 314 que o transportava cumpriu secretamente arriscado voo pelo Atlântico Sul. Após participar de uma conferência no Marrocos francês com Winston Churchill e Charles de Gaulle, em plena II Guerra Mundial, o mandatário dos EUA veio finalizar as tratativas para a instalação de quatro bases militares em solo brasileiro. Pela proximidade com a África, suas localizações eram estratégicas para a força aérea norteamericana.
Vargas, na mesma tarde, decolara do Santos Dumont, rumo ao Nordeste. Para todos os efeitos, o presidente estaria em São Paulo, no hospital das Clínicas, ao lado do filho caçula, que enfrentava um quadro gravíssimo de poliomelite. O chefe da Revolução de 1930 ainda se ressentia de dores em uma das pernas, devido a um sério acidente automobilístico sofrido meses antes.
Foi com esse quadro de problemas que o chefe de Estado aterrissou na capital do Rio Grande do Norte.
Lira Neto, no segundo volume de sua magistral biografia de Getúlio, informa como se deu o encontro:
“Ao meio-dia de 28 de janeiro, Getúlio e Roosevelt almoçaram juntos e trocaram impressões sobre a guerra. Ao sentarem à mesa, ambos vestiam paletó de linho branco e gravata preta. Roosevelt estava com uma tarja negra em torno do braço, em sinal de luto pela queda de um avião de sua comitiva. Parte do diálogo foi feita em francês, língua que os dois dominavam”.
(...)
“Depois de muito relutar em ceder trechos do território nordestino a uma nação estrangeira — ato inicialmente considerado ‘uma violência contra a soberania nacional’ —, Getúlio enfim sucumbira às injunções de Washington, impondo o financiamento da siderurgia como uma contrapartida honrosa”.
Estavam dadas as condições para o término da construção da usina de Volta Redonda, vital para nosso salto industrializante.
É importante examinar a fotografia que ficou para a posteridade (vai aqui uma versão colorizada da original). Apenas naquele momento, a população de Natal – e a opinião pública mundial - soube da presença dos dois líderes na cidade.
De forma ousada, Getúlio indicou a Rossevelt o banco dianteiro, ao lado do motorista. Com dificuldades para caminhar, o norteamericano foi carregado até o jipe. O brasileiro sentou-se atrás, lugar de destaque em qualquer condução oficial. Assento de quem manda e indica o caminho. Roosevelt teve de se virar para conversar. Getúlio impõe-se como figura proeminente.
Exatamente o oposto do atual ocupante do Planalto, que é capaz de implorar para que Donald Trump lhe cavalgue.
Ao final daquele dia, cada um partiu para seus postos. Vargas permaneceu dois dias no Rio e logo voou para São Paulo para acompanhar seu menino. Getúlio Vargas Filho morreria aos 23 anos de 2 de fevereiro de 1943.
Ah, as bases militares foram desativadas logo após o conflito. Volta Redonda seguiu como mola mestra de nossa indústria, até ser criminosamente privatizada exatos 50 anos depois.
Parece que Getúlio já não era mais presidente...
No fragmento da foto, a multidão que ocupou a orla do Rio de Janeiro na manifestação que levou o corpo de Vargas ao aeroporto no seu retorno a São Borja
# Leia aqui o registro do PDT sobre o significado da carta-testamento de Vargas nas lembranças de Leonel Brizola # 70 anos da morte de Vargas: o maior de todos os presidentes (Paulo Nogueira Batista Jr, 247) # O juízo de Vargas (o significado da agressão da burguesia brasileira contra os direitos dos trabalhadores (Ruy Braga, Boitempo)
# A mordida certa do Leão
A mais importante etapa da reforma tributária: a taxação da renda e do patrimônio (Carlos Drummond, Carta Capital)
# Moraes e os ritos constitucionais que o cargo de ministro do STF exige
(Luiz Gonzaga Belluzzo e Élida Graziane, Carta Capital)
# A triste (im) potência dos super-ricos
Compulsão por velocidade, ruído e ego. É preciso suprimir os muito ricos e seu vazio, por um mundo de luxos públicos
(George Mobiot, Outras Palavras)
Prefácio de Ricardo Antunes escrito para o livro de Vanessa Patriota, recém-lançado (A Terra é redonda)
Victor Farinelli (Opera Mundi)
Wesley Bichoff (G1) e # página do site
Seja nos seus ataques aos movimentos sociais, seja na defesa de negócios escusos de seus donos, o sistema de TV brasileiro não cumpre seu papel social. # Leia em Intervozes
Denúncia contra ministro mostrou o quanto setores da sociedade e da mídia tentam se alinhar com a nova face do bolsonarismo, que respondem pelo nome do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. # Leia em A Terra é redonda
# Ainda sem estudos que o expliquem com bons fundamentos, fenômeno dos influenciadores na esfera pública transforma-se em pêndulo eleitoral à margem de projetos políticos e ideológicos. # Leia o artigo de Amarilis Costa (Carta Capital)
Fábio de Sá e Silva (Intercept)
Nós estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.
Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente. Marinetti, Manifesto Futurista – 1909
Reflexões filosóficas sobre o futuro de uma tecnologia que emula sujeitos, razão e até afetos. Estaria na desumanização das sociedades digitais o grande risco? Por que a limitação, que gera vida em comunidade, é crucial para uma ética na IA? Leia Luz Vianna Sobrinho, Outras Palavras
Estamos todos imersos nesse momento histórico. Tanto aqueles que pesquisam e desenvolvem as novas tecnologias de informação, quanto os que participam em toda a cadeia de produção e gestão destas, até a chegada ao usuário no sistema de informação, ou simplesmente no ambiente social comum. No meio acadêmico, observamos também uma gama variável de interesse nessa virada tecnológica; desde a reflexão mais básica, dos fundamentos teóricos de uma nova epistemologia (Floridi, 2011) – que alcançará até as raias extremas da questão cibernética, com a IA Geral (Bostrom, 2011) e o transhumanismo (Kurzweil, 2005) – passando pela ampla discussão do impacto político-econômico e as atuais questões de regramento legal e ético, chegando aos que já assumem orientar-se no ordenamento desse futuro (continue a leitura)
O que proponho observar é que toda essa ‘ecologia’ (cosmologia?) atual está envolta permanentemente, com uma intensidade muito marcante, que quase se destaca por si, na expectativa permanente do futuro. O zeitgeist que permeia o nosso ponto de observação da realidade factual, principalmente quando abordamos as tecnologias de informação e de IA seria o sentimento onipresente de futuro.
Assim, em toda reflexão epistemológica, no cerne da expectativa metodológica da pesquisa, em cada planejamento de processo de gestão, no escopo das discussões de regulamentação legal e ética para a aplicação prática das novas tecnologias1, vai se manifestar a dificuldade em capturar o ritmo acelerado do avanço tecnológico-informacional. Este ritmo que marca o desenvolvimento exponencial das capacidades computacionais está sendo espelhado em uma sensação abstrata de corrida pela compreensão de algo que ainda não temos. Uma promessa empírica, ainda de limites indefinidos, por conseguinte com alguma semelhança ao conceito epistêmico de infinito. Essa imprevisibilidade do futuro vem no entanto amparada na perspectiva dos olhos da ciência2.
Chama-nos a atenção a referência quase explícita a este momento, que fez o escritor de ficção norte-americano William Gibson por volta ainda da virada do milênio, quando vaticinou que “O futuro já está aqui, só não está distribuído de maneira muito uniforme” (Chatterton; Newmarch, 2017) Há de se questionar se sua sentença pressupõe apenas uma crítica de caráter político à iniquidade social no acesso aos bens tecnológicos e avanços que o futuro já trouxe para uma parte da população. Mas há espaço para uma interpretação mais sutil, onde a sensação do que será o futuro já esteja presente na compreensão e sensibilidade de alguns, e mantenha a grande maioria na latência virtual de entender o que pode acontecer. No fundo tratamos de um sentimento de futuro que se impõe e afeta a todos.
Para uma adequada reflexão de como estamos sendo afetados pela expectativa dessas tecnologias que se apresentam, o pensamento de Spinoza, em sua filosofia dos afetos, nos parece a referência mais ajustada nesse momento. Spinoza esclarece que somos afetados por coisas do passado ou do futuro da mesma forma que podemos ser afetados pelas coisas com que vivemos no presente; em ambos os casos, as imagens também podem nos levar ao sentimento de alegria ou tristeza (Parte 3 – Proposição 18)3. Naturalmente, tendemos a manter o sentimento de que esta coisa passada ou futura está no presente, mesmo que ela ainda não exista. Assim, inicialmente poderíamos interpretar que a expectativa de novas tecnologias que ainda estão por surgir nos afetam como se já existissem no presente.
Nessa expectativa, podemos reagir com esperança de que nos beneficiarão, sentindo assim o que ele denomina uma alegria instável; ou de outra forma podemos ter medo de que nos prejudiquem, com o que reagiremos com uma tristeza também instável. Em ambos os casos, o caráter instável do sentimento se dá porque nada ainda se concretizou. (Parte 3 – Proposição 18 – Escólio 2)4. É com esse modelo que temos reagido com expectativa às coisas futuras porque a situamos no nosso tempo presente.
Esse poder de pensar coisas do futuro, ele também afirma, está relacionado à nossa imaginação e esclarece que podemos assim imaginar essas coisas futuras, mas sempre de forma contingente (Parte 2 – Proposição 44 – Corolário 1)5. Não sendo uma necessidade sua ocorrência, essa sensação permanece e mantêm a nossa expectativa; com a incerteza de concretização, enquanto vamos tratando de considerar todas as possibilidades, sejam aquelas que nos atemorizam, ou as que nos estimulam esperançosamente.
O fato a ressaltar é que ao nos afetarmos de forma contínua quando experimentamos muitas coisas como expectativa, esses afetos não são tão estáveis e nos deixam inseguros e indecisos; e esta é a situação que observamos no nosso referido momento histórico, em que tratamos das novas tecnologias, com a possibilidade de realização futura. A sobreposição frequente e exposição à multiplicidade de objetos imaginados futuros nos traz a permanência instável de sensação de contingência, que não mais nos alinha no presente, mas sim “a imagem ligada a um tempo futuro” (Parte 3 – Proposição 18 – Demonstração e Escólio 1)6.
Ao acompanhar os fatos que se instalaram no cenário de uso social das novas tecnologias na última década, com a chegada principalmente dos modelos de IA, fomos capturados para a mesma velocidade da evolução na qual caminha o mundo computacional. Uma velocidade que migrou do mundo externo das máquinas e foi internalizada pela tecnologia informacional (Berardi, 2019, p.16). Nesse sentido, sabendo que somos moldados pelas tecnologias que criamos e com as quais lidamos, a dimensão colossal e em contínua expansão das tecnologias de IA e a Big Data extrapolam qualquer possibilidade de acompanhamento pelas capacidades humanas. Então, essa pode também ser uma interpretação para o que pensava Gibson, de um futuro que já está aqui, embora não seja uniformemente distribuído.
O futuro contínuo – por fim, resulta que nos sentimos todos ultrapassados; o nosso presente está não só em permanente expectativa do que virá, do que ainda não se concretizou, da promessa ou aposta tecnológica máxima, inexplorada, ainda irrealizada, no tempo inalcançável do futuro, como está sempre superado pelo que ainda nem demos conta de que já está sendo realizado… somos habitantes do passado no nosso tempo presente, que é pura presença do futuro, de forma contínua.
Um futuro que desaponta em sua expectativa, pois não se concretiza nunca por completo, seria uma chave para compreender o que frustrou o pensamento do mundo moderno? Franco Berardi nos traça uma panorâmica das propostas futuristas que preencheram o século XX; desde o Manifesto Futurista, de Filippo Tommaso Marinetti, que enfatiza os valores estéticos e políticos da máquina, da velocidade, da violência e da guerra de uma Itália em construção (Berardi, 2019). Do movimento futurista italiano, ao russo e ao japonês, Berardi desemboca no século XXI, onde estamos “rodeados e penetrados por máquinas internas, máquinas infobiotécnicas, cujo funcionamento e cujos efeitos sobre a evolução cultural da espécie humana não somos ainda capazes de avaliar plenamente” (Berardi, 2019, p.14).
Esse pensador da sensibilidade nos aponta esse momento de expectativa como futurabilidade. Uma pluralidade de futuros possíveis inscritos num presente preenchido pela utopia virtual que caracterizaria a depressão contemporânea – tanto psíquica quanto econômica – resultado da “consciência de que nenhuma projeção do futuro é verdadeira” (Berardi, 2019, p.143). Apesar do tom, ele fecha o discurso do seu texto lançando, com esperança (ou militância?), um ‘Manifesto Pós–Futurista’, onde convoca a ironia, o perigo do amor, a autonomia, a lentidão veloz(!) para, ao final, cantar uma infinidade presente que não necessite mais do futuro (Berardi, 2019, p.138).
O que aparece como ponto em comum em todas essas perspectivas de futuro é a sua própria presença contínua, no sentimento marcado da permanente expectativa. Estamos desta forma pensando com medo ou com esperança? O que podemos fazer da nossa expectativa?
Este mito muito antigo, tratado por Hesíodo em suas duas obras – Os trabalhos e os dias e Teogonia – é uma referência simbólica quase insuperável do processo de fundação da humanidade para a cultura ocidental. Considerado o primeiro poeta da Grécia Arcaica que canta em primeira pessoa, Hesíodo nos descreve com mais detalhes no primeiro poema o mito de Prometeu, no que se refere ao aspecto que nos inspira a pensar na caixa de Pandora. Comenta-se mais o seu segundo poema, porque ali é que se dá a aventura de Prometeu roubando o fogo celeste e trazendo o dom divino aos homens; no entanto, é nos ‘Erga’ que podemos ter uma melhor interpretação da herança que Zeus concede aos seres mortais (Hesíodo, 1996). Com a caixa ou jarra (píthos) de Pandora instaura-se definitivamente a humanidade, pois dali sairão todas as habilidades que terão os homens; a potência de tudo o que virar a ser, e caracteristicamente todos os dons comparáveis às capacidades dos deuses. Zeus, porém, revoltado com o engodo de Prometeu, que lhe roubou o fogo natural, devolve em retribuição aos homens um fogo artificial, um arremedo técnico. Na caixa estará ainda, com o conjunto dessas habilidades copiadas dos deuses, o trabalho como técnica (Hesíodo, 1996, p.63); carregado da ambiguidade de todo o bem e o mal que darão potência à raça dos homens.
A ambiguidade que demarca o saber e o domínio da técnica instala-se para sempre como uma predição deste destino; e não é a esperança que nos resta no fundo da caixa de Pandora, como normalmente se interpreta numa leitura apaziguadora que destoa do espírito agônico grego. A Élpis, que permanece na caixa depois desta novamente ter sido tampada, tem o sentido muito mais próximo ao da expectativa, da espera (Stiegler, 1996, p.196/197). Mas mantém-se a marca ambígua de uma espera, “temor e esperança a uma só vez, previsão cega, ilusão necessária, bem e mal simultaneamente” (Hesíodo, 1996, p.74). A expectativa que carrega em igual medida o medo e a esperança é a grande marca do tempo futuro.
Nos mesmos moldes do mito inaugural da humanidade, parecemos estar vivenciando o nascer de uma nova geração de habilidades que transformarão o mundo como o conhecemos. A excitação de alguns deuses no Olimpo da ciência contemporânea aparentemente dá como certa a possibilidade de já estarmos assistindo o que será essa nova potência manifesta dos dados na realidade virtual. Desde as previsões de um marco histórico de singularidade (Kurzweil, 2005), até as declaradas demarcações de uma nova era, como o período de Hiper-história, no conceito de Floridi (Floridi, 2014). A propulsão transformadora da revolução informacional a partir da chegada das tecnologias de IA nos apresenta o cenário deste futuro, onde cogitamos pela primeira vez na história a presença de alguma coisa a que se possa definir como pós-humano.
Assim, como se poderia esperar, uma forte ambiguidade se revela nas possibilidades dessa promissora ampliação do conhecimento e o discurso que se apresenta traz muitas vezes a marca de uma disputa entre o bem e o mal que se confunde com o entendimento do próprio objeto tecnológico. Em parte, porque diferentemente de outras tecnologias de grande potencial transformador nas descobertas dos últimos séculos, como o domínio da eletricidade, da energia nuclear e da engenharia biomolecular, a informação é a única que se comporta como insumo tecnológico, mas também como instrumento ideológico, o que aumenta consideravelmente o seu poder de controle sobre a sociedade.
Por dentro desse debate, está a tentativa de fugir do maniqueísmo de polaridades de uma postura tecnofóbica ou tecnofílica relacionada às tecnologias de IA, que pretende um posicionamento neutro, em geral voltado às características puramente objetivas do mecanismo do objeto técnico. O que nos parece uma posição que não enfrenta criticamente o problema. Ora, diante da grande expectativa atual, tornou-se muito comum argumentar que o desenvolvimento tecnológico sempre produziu ondas de rejeição conservadoras ao longo da história, que exacerbam o seu risco frente ao futuro da humanidade, e que isso nunca se consumou, mantendo o desenvolvimento tecnocientífico no seu curso de progresso contínuo. Obviamente discordamos, pois nos parece haver duas fortes objeções a esse argumento.
A primeira é que, do ponto da realidade factual, a história se esgota no presente em que estamos vivendo e não tem essa determinação como uma lei natural. Essa interpretação somente é possível pelo evidente viés de ‘discurso dos vencedores’ que sustenta esta tese, e que não dá conta da extinção de povos, culturas e… outras histórias; fato que pode ser claramente exemplificado no enfrentamento basicamente tecnológico, por exemplo, entre europeus e ameríndios nos últimos séculos. Sempre um massacre, que se sucedeu entre outros tantos, tem sido o exemplo da força das tecnologias para dar fim a muitas histórias. Notadamente, as tecnologias de IA tem demonstrado já o seu potencial para o extermínio dos mais fracos no refino das guerras. Não podemos desprezar o uso dos drones e reconhecimento facial na matança de civis no Iraque e Afeganistão (Khan, 2021), nem as sofisticadas engenharias de vigilância, seleção e extermínio no atual genocídio de Gaza ( Abraão, 2024).
A outra objeção é que se não reconhecermos os grandes riscos de nossas tecnologias, devemos ignorar totalmente o nosso temor de extinção e autodestruição pelo arsenal nuclear, que ainda assombra as bases da geopolítica mundial; os riscos de criação de quimeras incontroláveis, pelo desenvolvimento de engenharia genética, que motivaram o conferência de Asilomar (Mukherjee, 2018); e mais evidente ainda, esquecer todo o debate atual do antropoceno e do desastre climático, uma consequência direta da escalada tecnológica industrial (Gabriel, 2018).
Logo, devemos explorar esta expectativa do fundo da ‘caixa da IA’ projetando as possibilidades que se apresentam, sabendo que não estamos mais transformando tecnologicamente uma força da natureza, como a hidráulica; ou desenvolvendo braços mecânicos, que indistintamente funcionam da mesma forma em tantos animais. Nem aprendendo a usufruir de outras propriedades físicas como a eletricidade, ou a energia nuclear, que passamos a dominar com desejável segurança. Nem mesmo a matéria biológica, onde descemos aos dados básicos da bioquímica que codifica as formas de seres vivos. Mas lidamos agora propriamente com algo que nos caracteriza como humanos, que situa nosso lugar ontológico em qualquer concepção de universo que possamos considerar do momento sócio-histórico que vivemos. Estamos projetando na nossa criação tecnológica a emulação da nossa capacidade cognitiva, das nossas formas de razão e até mesmo do afeto. Desde o início da caminhada do pensamento ocidental, desde os antigos gregos as relações entre o humano e suas tecnologias nunca foram a ponto tão extremos antes, onde aquilo que propriamente nos caracteriza, a capacidade cognitiva, é apresentado em objetos técnicos que “se tornam independentes porque são tão perigosamente semelhantes a nós” (Malabou, 2019).
Qual marca nos deixará essa nova onda tecnológica? Diante da concepção de que somos todos moldados pelas tecnologias que criamos e pela nossa relação com a técnica, o que esperar do processo evolutivo humano com objetos que simulam o sujeito, substituem os atos cognitivos e assumem o controle da realidade? Qual será a herança epifilogenética para a humanidade a partir das tecnologias de IA, onde a hegemonia do cálculo ameaça a reflexão e o pensar (Stiegler, 2019)? Qual o risco de estarmos caminhando para uma redução de nossas capacidades estéticas (Berardi, 2019)?
Assumindo que todo trabalho tem algum grau de protecidade, as propostas do futuro já estão abertas para o caminho de práticas com participação cognitiva da IA. Como esperado, diante das potencialidades deste novo universo tecnológico, um amplo espectro de abordagens para exploração e utilização de tecnologias de IA começam a delinear e traçar os caminhos a se seguir. Nas práticas assistenciais intersubjetivas, há correntes que prescrevem uma automação condicional, subordinada à decisão humana, escalonada em níveis de responsabilidade (Topol, 2019). Uma abordagem que, no entanto, não garante uma precisa demarcação das fronteiras dos sujeitos, pois com a chegada dos programas de Large Language Model o conflito ético se impõe, pela imprecisão nos limites da responsabilidade cognitiva (Lee, Goldberg, Kohane, 2023).
Outro grande desafio é o avassalador desenvolvimento de dispositivos – sejam os wearables ou cognitive devices, chatboots, robots. A partir do imenso interesse da indústria de insumos tecnológicos na produção de novidades para o mercado de consumo, o ímpeto científico não tem definido barreiras muito claras para seus projetos de pesquisas. Assim, tão audaciosos quanto foram os trabalhos com engenharia genética no século passado, ameaçando o controle sobre os limites do mundo biológico, as pesquisas com simulados protéticos biológicos como o Human Brain Project e o American BRAIN Initiative abrem as portas para um controle sem precedente sobre a cognição e sua automação (Malabou, 2019). Esse poderá ser o novo pensar cibernético? Como lidar com a dissolução, ou indefinição ontológica do humano e seus reflexos no seu autoconhecimento? Até onde a protecidade e extensão tecnológica, no modelo previsto por McLuhan, poderá nos levar, se já apontamos para modelos de fusão e simbiose (Do, Maes, Mueller, Semertzidis, 2023)?
Aberta a Caixa de Pandora da IA, podemos já ter contato com alguns dos futuros possíveis, pensados em realidade no nosso tempo presente. É possível expandir para um polo, na defesa ampliada de “todas as formas de senciências, incluindo humanos, animais não humanos e quaisquer intelectos artificiais futuros, formas de vida modificadas ou outras inteligências às quais o avanço tecnológico e científico possa dar origem” (Baily et al, 2009, s/p). Aqui, teremos a “oportunidade de explorar os domínios transumanos e pós-humanos” […] “na defesa de que a natureza humana pode ser modificada” [e haja] “garantias para a escolha individual acerca de tecnologias de melhoramento” (Bostrom, 2005, p.13). Para esse futuro, já está presente a consideração de que “a ciência e a tecnologia estão agora mudando radicalmente os seres humanos e podem também criar futuras formas de vida sapientes e sencientes avançadas, os transumanistas estabelecem esta Declaração de Direitos Transumanistas para ajudar a orientar e promulgar políticas sensatas na busca pela vida, liberdade, segurança pessoal e felicidade” (U.S. Transhumanist Party, 2018, s/p.). Essa corrente manifesta a epítome de desejos de superação humana com o auxílio de tecnologias inovadoras, seja lá o que podem lhe significar essa superação humana. É a linguagem da eficiência produtiva da era industrial que os estimula. Mais anos de vida, mais capacidades produtivas, mais qualidades cognitivas; é já o desejo de correr atrás das potencialidades computacionais. Uma disputa que já se inicia perdida. Em todo o manifesto, que se tornou uma forte corrente política, perpassa o direito individual a essa superação baseada na tecnologia encarnada, assume uma versão cibernética do Übermensch e deixa à governança das organizações estatais o cuidado com os riscos e com a coletividade, em alguns de seus poucos artigos.
Mas podemos buscar na Caixa o florescer de abordagens no extremo oposto, que se voltam para as tensões do capitalismo digital, o necropoder e a descolonização do pensamento acadêmico no estudo da informação, da automação e da inteligência artificial. As perguntas que dão os fundamentos para se construir uma ética digital seriam: “O que é uma boa sociedade? O que precisa ser feito para estabelecermos uma boa sociedade? Quais foram os principais fatores que impediram o estabelecimento de uma boa sociedade? O que devemos fazer para promover uma boa sociedade?” (Fuchs, 2022, p.43). Assim, nos parece que começamos pelo interesse que se pretende por sociedade humana; a tecnologia virá na mira desse horizonte. E não precisamos nos ancorar em um arcabouço histórico da natureza humana, o que pode nos deixar sem consenso e nos tirar o tapete. É preciso assumir o nosso momento e perceber que “a desumanidade é o problema central das sociedades digitais contemporâneas” (Fuchs, 2022, p.45). Devemos nos voltar para a grande expectativa de possibilidade e buscar um avanço definitivo sobre a dívida histórica de fixar valores universais (Gabriel, 2022).
Nesse contexto, é possível enfrentar a tarefa de construção de modelos que partam desses princípios e incluam no seu design uma IA centrada no ser humano, que ofereça “uma visão de tecnologias futuras que valorize os direitos humanos, a justiça e a dignidade” (Shneiderman, 2022, p.21). Buscar um alto nível de controle humano para um alto nível de automação estaria desde o início nas metas do design para o futuro; buscando sempre “distinguir entre pessoas e computadores, o que aumenta o respeito pela responsabilidade humana e orienta as pessoas nas maneiras apropriadas de usar o poder do computador” (Shneiderman, 2022, p.45). Nota-se que, nesse projeto, abre-se uma perspectiva de que “os computadores desencadeiem novos níveis de criatividade humana, mas não substituam a criatividade humana” (Shneiderman, 2022, p.77).
Começa a se desenhar uma corrente ética para a Era Digital, na composição de uma proposta política onde o homem e seus valores estão novamente no centro da atenção. Como uma tentativa de vasculhar na expectativa da Caixa de Pandora da IA aquilo que desejamos: uma demarcação antropológica que defina que “não somos robôs, nem inteligência(s) artificial(is), e assim por diante, e que não devemos ser tratados como tal”; que nós é que “devemos manter o controle sobre a tecnologia digital”; e que essa tecnologia “deve estar alinhada com os objetivos e valores humanos, […] uma ética centrada no ser humano”. A proposta do Humanismo Digital assumidamente tem uma “dimensão política que não nos deveria surpreender, uma vez que as tecnologias digitais, como todas as tecnologias, já são políticas: não são apenas utilizadas para fins políticos, mas também têm consequências políticas e tomam forma dentro de constelações políticas e sociais específicas” (Coeckelbergh, 2024). Este autor já nos advertia que responder a questões éticas e políticas sobre como viver, como lidar com nosso ambiente e como nos relacionarmos melhor com seres vivos não humanos “requer mais do que inteligência humana abstrata (por exemplo, argumentos, teorias, modelos) ou reconhecimento de padrões de IA” (Coeckelbergh, 2020).
Este humano presente deve esperar para o futuro o direito de manter-se limitado em suas capacidades, imperfeito em seus comportamentos, inseguro em suas relações, ter necessidades e depender da nossa comunidade – o simples e intrasferível direito de pertencer a humanidade (Vianna Sobrinho, in press) . O propósito de esperar pela singularidade num processo abstrato da história nos mantém num futuro incerto e permanente; enquanto a busca de sentido na expectativa que nos encontramos pode ser uma melhor proposta para seguir no que temos nós de singular, nas nossas vivências individuais e coletivas, e na legítima vontade de qualificar a humanidade como detentora de valor em si.
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Notas:
1 O conceito de Tecnologias de Fronteira remete à característica necessidade de capturar o ritmo rápido de seu desenvolvimento, explorando a difícil tarefa de normatização política e legal, frente aos seus efeitos potenciais em larga escala sobre as economias e sociedades. (UN Department of Economic and Social Affairs, 2018.)
2 Dentro de suas concepções de filosofia da ciência, Niels Bohr teria afirmado que “não há algo mais difícil do que prever o futuro em ciência” (Bazzan e cols, 2023)
3Spinoza, B. Ética – pg.111
4Idem – pg. 111-112
5Idem – pg. 84
6Idem – pg.111
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No dia 29 de julho próximo passado, por volta do meio-dia, na cidade de Southport, no noroeste da Inglaterra, um jovem de 17 anos irrompeu numa festa infantil numa escola de dança e ioga, organizada por uma de suas professoras. Armado de faca, o jovem provocou a morte de três crianças, de seis, sete e nove anos, feriu outras oito e mais dois adultos que tentaram protegê-las, inclusive a professora que organizara o evento.
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“Seu chefe adoraria demitir você e colocar um chatbot no lugar.”
Seu chefe comprou o canto da sereia da inteligência artificial, e está descobrindo que ela não funciona como promete.
# Leia no Intercept (matéria originalmente publicada no site Pluralistic. Traduzida em parceria com Cory Doctorow)
Topa tudo por dinheiro. Que título genial é esse capaz de resumir o primado ético que esse capitalismo periférico e capenga construiu enre nós? Silvio Santos percebeu isso em toda a sua amplitude...
O ídolo que talvez tenha sintetizado da forma mais evidente - muito mais do que Hebe, Faustão, Chacrinha e outros - a definição de Raymond Williams sobre a TV: uma forma cultural, mais do que entretenimento ou informação. Uma associação simbólica que responde pela popularidade permanente de Sílvio: tantos anos ele vivesse, tantos seria uma unanimidade imaginária. Essas marcas têm sido objeto de muita pesquisa e quase todas, invariavelmente, quando dispostas ao mergulho nas raízes da nossa formação social, apontam para uma hipótese temerária: o Brasil é o que a TV constrói através dos signficados que emite, nos valores que reproduz, na ideologia que dissemina. Ainda que tenha sido de forma involuntária, Silvio Santos fez disso a razão de seu sucesso.
Sugiro a leitura da matéria com Marcela Magalhães publicada no portal 247: Silvio Santos representava "o populismo midiático da pobreza"
O escritor e jornalista carioca é o homenageado da feira literaria de Paraty deste ano. Uma mistura de repórter e ficcionista, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (seu nome verdadeiro), foi o narrador do Rio de Janeiro que nascia em sua época para a modernidade; cenário plural de tipos e costumes que tentavam romper com a forte herança colonial da qual nunca de verdade nos livramos. João, no entanto, captou as mudanças do cotidiano e, ao registrá-las, produziu uma narrativa que vai do jornalismo à literatura, sempre com sensível percepção. A Folha deste domingo publica O telefone - um precursor da destruição tecnológica das intimidades variadas como testemunhamos hoje. Vale a pena ler. E vale a pena ler também essa verdadeira antologia que está disponível na rede:
* A Amante Ideal * A Aventura de Rozendo Moura * As crianças que matam * A Galeria Superior * A Mais Estranha Moléstia * A Menina Amarela * A Parada da Ilusão * A Peste A Reforma das Coristas * Aventura de Hotel * Coração * D. Joaquina * Dentro da Noite * Duas Criaturas * Emoções * Gente de Music-Hall * História de Gente Alegre * O Bebê de Tartalana Rosa * O Carro da Semana Santa * O Monstro * Os Livres Acampamentos da Memória * Penélope * Uma Mulher Excepcional
Leviandade e inconsistência nas denúncias contra o ministro Alexandre de Moraes exibem um jornal comprometido com o resgate do bolsonarismo. A irresponsabildade dessa postura deposita no agravamento da crise política brasileira a aposta no colapso da constitucionalidade. O resultado é o que se vê: a indignação generalizada de amplos setores da sociedade civil como reversão das expectativas golpistas que a Folha alimenta contra a Democracia. Rabo preso é isso...
# O jornalismo bizarro contra Alexandre de Moraes (GGN) # Até Ives Gandra diz que não há ilegalidade nas ações de Moraes (Fórum) # Miguel Reale: "Alexandre de Moraes não inventou os fatos" (Uol) # Entidade vê em críticas a Moraes tentativa de desgastar Judiciário (Folha) # Nova ofensiva bolsonarista tem efeito rebote pró-Moraes # Alexandre de Moraes tem que ser criticado, mas não por isso (Intercept) # O morde e assopra da bolsonarista Folha (247) # Folha e bolsonaristas rosnam contra Moraes (247) # O problema não é bem Moraes (Piauí)
Sylvia Moretzsohn, jornalista, pesquisadora da Universidade do Minho, em Portugal, e professora aposentada da Universidade Federal Fluminense
Texto de Sylvia Moretzsohn publicado no Facebook em 17/08 e reproduzido aqui com o consentimento da autora
O articulista Hélio Schwartsman publica em sua coluna na Folha uma defesa do jornal no caso do Vaza-Xande que remete, como previsível nessas horas, ao papel da imprensa como “quarto poder”, embora não faça referência a esse conceito (continue a leitura)
Em resposta a críticas que recebeu de leitores, relativas às (óbvias) consequências do caso, ele diz basicamente que a missão da imprensa “não é tentar manipular desfechos, mas publicar tudo aquilo que passe no duplo teste da veracidade aferível e do interesse público. O que a sociedade faz com as informações é algo que compete a ela decidir através de outros canais institucionais como o debate público, a Justiça e a política”. Isso porque não vivemos “num mundo unidimensional, onde as causas e seus efeitos fossem todos cognoscíveis de antemão”.
No mundo em que o articulista vive, a imprensa paira numa espécie de Olimpo, não tem interesses econômicos nem se filia a qualquer ideologia, apenas “relata fatos” para que o público tire suas próprias conclusões. Nesse mundo ponderado, onde o debate público é kantianamente (e, também, habermasianamente) racional, não existem manipulações nem redes antissociais, gabinetes de ódio, organizações dedicadas a espalhar mentiras em todos os canais disponíveis pelas plataformas, nem essas plataformas fazem qualquer pressão sobre os governos.
Nesse mundo, o X não teria tomado a decisão que tomou agora, agorinha mesmo (na tarde deste sábado, 17 de agosto), de encerrar suas operações no Brasil alegando necessidade de defender sua equipe das ameaças do ministro e suas “ordens de censura”. Nem teria a desfaçatez de concluir o texto com a afirmação de que o Brasil estaria diante da escolha entre “democracia ou Alexandre de Moraes”.
Há muito tempo, chamei de “jornalismo de mãos limpas” à prática da imprensa de “ouvir os dois lados” e lavar as mãos, deixando o público concluir, como se os dois (ou três, ou mais) lados fossem equivalentes e como se a forma de relatar os fatos não interferisse na conclusão do público. O mesmo argumento se aplica aqui.
Nesse caso, de fato as causas não são conhecidas, porque (ainda) se ignora a fonte do vazamento, mas as intenções e os efeitos são perfeitamente “cognoscíveis”.
O articulista conclui assim:
“Tremo só de pensar na possibilidade de os responsáveis pelos principais órgãos de comunicação se darem o direito de decidir para onde o país deve caminhar e só publicarem notícias e opiniões que estejam de acordo com esse objetivo. Só fica pior se esses editores se aliarem às autoridades para ensinar aos cidadãos como eles devem pensar.”
A julgar pelo que aconteceu na cobertura do Mensalão e da Lava Jato, deve estar tremendo até hoje.
P.S.: Ontem, Schwartsman publicou artigo sobre a "incômoda semelhança" entre os casos Moro e Moraes, quando ele está farto de saber que não há semelhança alguma. Mas este é o objetivo da Folha, do premiado jornalista que há tempos se aliou explicitamente às extremas-direitas nativa e norte-americana: forçar a barra para estabelecer um paralelo entre as duas situações.
Novo livro desafia o tecnofatalismo com duas hipóteses não convencionais. Ordem do capital está ruindo – logo, as novas tecnologias não precisam ser distópicas. E o Brasil pode ter papel relevante numa Economia Digital Solidária. Será verdade? (Outras Palavras)
Exame de uma contradição. Quanto mais produzem desastres, mais as megaempresas dizem-se “conscientes”. Que relações sustentam esta hipocrisia? E como explicar o crescimento da ultradireita, em meio ao “capitalismo verde”? (Outras Palavras)
A Terra é redonda
Daniel Afonso da Silva
Daniel Brasil
Júlio Tude D'Ávila
Armação da Folha de S.Paulo contra Alexandre de Moraes - com apoio de Musk e de toda a camarilha bolsonarista que articula para tentar impedir a prisão do ex-presidente - exibe o colapso da ética e da competência jornalística. Mais que isso: a reação dos setores e segmentos de maior expressão no campo da representação política às denúncias feitas pelo jornal mostra também vitalidade pública que dificilmente será deslegitimada. Acompanhe nas matérias postadas abaixo a reversão das expectativas da extrema direita.
# O que as denúncias da Folha quiseram mostrar? (MídiaNews) # Moraes: "procedimentos foram oficiais" (Uol) # Gilmar Mendes: "Moraes enche de orgulho a nação brasileira" & "Comparar com Lava Jato é irresponsaabiiidade" (247) # Acusações contra Moraes não vão reverter a inegibilidade de Bolsonaro (Uol) # Poder de polícia da Justiça Eleitoral foi usado corretamente (Uol) # Moraes: "nenhuma matéria de jornal me preocupa" (Uol) # Gonet exalta "coragem, diligência, assertividade e retidão" nas decisões de Moraes contra bolsonaristas após ataques ao STF (247) # Ministros do STF se unem em desagravo a Moraes: 'Tempestade fictícia' # Reale Jr.: Moraes não inventou fatos; impeachment seria ir muito além (Uol).
Eleições 2024: o debate no Estadão
Eleições 2024: o debate na Band
A eficiência técnica do ex-ministro - e sua destreza na manipulação dos argumentos em favor do anti-nacional, dos interesses privados e dos privilégios do capital sobre o trabalho - transformaram-no em referência política conservadora, exemplo de um funcionário das elites que superou a si próprio no engano que sua passagem pelo poder representou para a história do Brasil. Nesta postagem abaixo, uma pequena antologia de textos sobre essa habilidade que provocou elogios até mesmo de seus adversários (# A notícia sobre a morte de Delfim no Valor # A biografia de Delfim, por Rafael Cariello, na Piauí)
Delfim Netto, o segundo na ponta direita da mesa, em 1968, no momento em que assina, com todo o ministério de Costa e Silva (na ponta esquerda), o Ato Institucional 5, instrumento que sacramentou a ditadura militar no Brasil
# Lula lamenta: "adversário inteligente" (Valor)
# As frases marcantes de Delfim Netto:
"Eu voltaria a assinar o AI5" (Metrópoles)
# Beluzzo: Palavras de Delfim e sua crítica à globalização (Carta Capital)
Durante seis anos, conversei com Delfim Netto duas vezes por dia, de segunda a sexta. Trocávamos informações e impressões. Nessa troca, invariavelmente, eu saía ganhando - desde que não entrasse de mãos abanando. Uma pergunta do tipo "quais as novidades?" encerraria as negociações antes que elas começassem.
"Professor Delfim" - como costumava ser chamado - foi o mais prolífico, hábil e profissional mercador de informação com quem lidei como jornalista. "Mercador" pode soar ofensivo. Muito ao contrário. O princípio da informação é a troca. Troca implica receber, avaliar e repassar a mercadoria. Nessa orquestra Delfim era maestro...
# Leia José Roberto de Toledo (Uol)
# Lula vai devolver as joias para não favorecer Bolsonaro (Poder 360)
# TCU usa Lula para proteger Bolsonaro (Intercept)
# Escolas militares: Tarcísio e Ratinho vão no STF juntos em favor dos quarteizinhos (Folha, só para assinantes)
Eleições São Paulo, 2024
# Encontros piauí: Para André Singer, eleição em SP será decisiva para todas as forças políticas
# Historiador explica máquina de autopromoção de Marçal: "evolução da extrema direita"
# Acompanhe o clipping do site sobre a disputa pela prefeitura de São Paulo
Na Argentina, com as bênçãos e dinheiro de Milei, ódio salta da internet para as ruas. Linchamentos virtuais. Invasão de casas. Ameaças a adversários e familiares. Sabotagens. País é laboratório do que a ultradireita quer para o mundo (# Outras Palavras)
O governo do Brasil condenou “nos mais fortes termos” o ataque de Israel contra uma escola que abrigava deslocados pela guerra na Faixa de Gaza, que deixou mais de 90 mortos no último sábado (10/08).
“O Brasil expressa profunda solidariedade às famílias das vítimas, ao governo e ao povo do Estado da Palestina” e “recorda a exigência, de acordo com o Direito Internacional Humanitário, de que Israel atue com base no princípio da proporcionalidade, tomando as medidas necessárias para proteger a população civil nos territórios ocupados“, diz o comunicado do Ministério das Relações Exteriores (# Leia no Opera Mundi)
Os EUA não têm autoridade política ou moral alguma para denunciar o regime venezuelano como uma ditadura (# Valério Arcary, em A Terra é redonda)
Justiça da Venezuela avalia atas e afirma que decisão sobre resultado eleitoral será irrecorrível e obrigatória (# Opera Mundi)
A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, tem vantagem sobre o magnata Donald Trump em três estados-chave antes das eleições de novembro, de acordo com novas pesquisas divulgadas neste sábado 10, revertendo aparentemente a distância que o ex-presidente havia alcançado no ano passado nesses estados (# Leia em Carta Capital)
O projeto que enfrentamos foge às antigas categorias da política. Enraizou-se na competição sem tréguas, que o neoliberalismo tanto estimulou, e na mentalidade gaming – hiperacelerada e acrítica – a que conduzem as telas e seus algoritmos
➥ Contra golpe, Maduro suspende X na Venezuela (O. Mundi)
➥ Hitler: os bastidores da tomada do poder (Le Monde)
A primeira experiência de democracia representativa ampliada no Brasil, entre 1946 e 1964, não recebeu por parte dos historiadores a mesma dedicação que outros períodos republicanos. Os estudos sobre a Primeira República, o primeiro período do governo Vargas e a ditadura militar despertaram amplo interesse, com pesquisas em vários enfoques e muitas publicações. Não foi o caso da República de 1946.
# Em A Terra é redonda, prefácio de Jorge Fereira para o livro recém-lançado por Alexander Hecker
Com a presença de Babi Domingos, a final individual geral da ginástica rítmica em Paris acontece nesta sexta-feira (9/8), às 9h30.
A atleta curitibana teve nota de 33.100 com a bola. Com o arco, fez uma apresentação perfeita, ao som da música-tema do filme “O Rei Leão” e tirou 34.750, a maior nota na segunda rotação
# Leia no Uol e no Metrópoles # Assista no Globo Play # Leia também o comentário de Jamil Chade (no Uol): "Rebeca Andrade, Bia Souza e a hipocrisia olímpica"
"Eu acho que os pretos sempre mostraram a sua capacidade, mas essa Olimpíada tá sendo uma Olimpíada que tá tendo muito mais visibilidade. A gente conseguiu mostrar, sim, que a gente pode avançar, que a gente pode chegar. E ser uma mulher preta no Brasil é algo que me orgulha muito, e que as pessoas também sempre mostram orgulho, independente do meu resultado. Isso pra mim foi algo que mudou minha forma de viver, minha forma até mesmo de competir", disse Rebeca (# leia mais no Uol)
"Mulherada, pretos e pretas, é possível". Com um sorriso estampado no rosto, a judoca Beatriz Souza mandou o recado a milhões de brasileiros logo após conquistar a primeira medalha de ouro do país nos Jogos Olímpicos de Paris 2024
# A autocrítica amarga de André Lara Rezende (Luiz Nassif, GGN)
# Lara Rezende a meio caminho (Marcelo Manzano, Monde Diplomatique, via Instituto de Economia da Unicamp)
Sérgio Barbo, Pública
O estado de São Paulo, apesar de ter o maior Produto Interno Bruto (PIB) do país, é proporcionalmente o que pior remunera seus cientistas. Continue a leitura.
O dado é um levantamento da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC)
No setor da saúde, por exemplo, um pesquisador do Instituto Butantan recebe, em média, metade do que ganha um colega da Fiocruz. Na agricultura, um pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), fundado em 1887 por dom Pedro II, recebe um terço do salário de um pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
No mês de maio, Otávio Marques, pesquisador do Instituto Butantan, redigiu uma carta de reivindicação de aumento salarial de pesquisadores paulistas. O texto, que teve mais de mil assinaturas de cientistas de diversas instituições do estado, justifica-se: desde 2013 não ocorre um aumento real de salários. Na ponta do lápis, isso representou uma perda de 47% no período, segundo índice de inflação do IPCA. Concursos públicos não ocorrem há mais de 20 anos para pesquisadores e há 30 anos para funcionários.
Além disso, a principal fomentadora da pesquisa no estado, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), recebeu um duro golpe no final de junho: um corte de 30% de recursos, por obra do projeto de lei orçamentária expedido pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) e aprovado na Assembleia Legislativa (Alesp), por 46 votos a favor e 12 contra.
Para se ter uma ideia, em 2023 cerca de 60% dos recursos que chegaram aos grupos de pesquisa no estado de São Paulo vieram das fundações estaduais. Na última semana de junho, durante o evento Fapesp China Week, cientistas do Butantan e colaboradores apresentaram uma nova vacina contra tuberculose, a BCG recombinante, cujo índice de proteção alcança 99%.
POR QUE ISSO IMPORTA?
Emergências em saúde, como a pandemia da covid-19, são um dos exemplos mais claros da importância do investimento em ciência e pesquisa. Sem a consolidação de centros de pesquisa no país, torna-se mais difícil dar respostas a situações como essa.
O projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2025 do governo estadual previa também repartição do orçamento das universidades paulistas com outras entidades, mas, após pressão das universidades, o governo recuou da decisão em maio.
Cientistas enfrentam salários defasados, ausência de concursos e cortes de pesquisas
Em abril, o governador Tarcísio já havia esboçado outro ato de desmonte da ciência ao publicar na internet um anúncio da venda de inúmeros imóveis públicos, entre os quais constavam o Instituto Butantan, o Instituto Pasteur e o Hospital das Clínicas, entre outros. Após denúncia do deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL), o governo retirou a página dos destaques do site, alegando ser apenas um teste. “Creio que foi um prenúncio dos planos de privatizações desse governo”, disse o deputado. Os imóveis ainda não foram vendidos.
“As instituições públicas de pesquisa vêm sendo dilapidadas há tempos. É a lógica do neoliberalismo, que enxuga o patrimônio para depois privatizá-lo”, declara Patrícia Bianca Clissa, primeira-secretária da APqC. “Tentamos conversar com o governador, mas fomos recebidas pelo secretário de Governo, Gilberto Kassab, por apenas dez minutos.”
A disparidade entre salários ocorre mesmo dentro do estado de São Paulo, entre pesquisadores de universidades e de institutos: um docente da USP em início de carreira (equivalente ao nível I) ganha R$ 7 mil, enquanto um pesquisador paulista de mesmo nível ganha em média R$ 5 mil. A carreira de pesquisador científico foi criada em 1975, com seis níveis e salários idênticos aos dos docentes das universidades estaduais, em face da congeneridade existente entre essas atividades. Contudo, ao longo do tempo, a equivalência salarial não foi assegurada de forma definitiva. Atualmente, 16,3% dos pesquisadores recebem essa isonomia salarial como resultado de ganho judicial individual.
Uma breve esperança de correção dos vencimentos dos servidores surgiu no final de maio, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu recurso da APqC e manteve a equiparação de salários entre as classes de pesquisadores de universidades e de institutos. Um recurso especial do estado de São Paulo tentava anular a decisão sobre uma ação coletiva proposta pela associação em 2014. Mas, como esperado, o estado recorreu da decisão do STJ, no início de julho, o que poderá arrastar o processo por tempo indeterminado.
Se a correção dos vencimentos dos cientistas é uma novela, a reposição do quadro funcional dos institutos remete a um longa-metragem.
Atualmente, o estado conta com pouco mais de 900 servidores que pertencem à carreira de pesquisador científico. Dados apurados pela APqC mostram que a falta de concursos – aliada às perdas salariais e orçamentárias – tem comprometido as estruturas e levado a um apagão da ciência. Hoje, São Paulo tem quase 1.400 cargos de pesquisadores não preenchidos. Se somadas as carreiras de apoio, o número de cargos vagos passa de 8 mil.
“A ausência de pessoal é visível. O último grande concurso para pesquisadores ocorreu há 20 anos e, para funcionários, há 30. Desmotivado, um pesquisador com nível de doutor vai fazer outra coisa, trabalhar em empresas privadas, em outro setor ou vai para o exterior”, avalia Clissa.
Corte na Fapesp
Foi por meio da Fapesp que, em 1997, o Projeto Genoma foi implantado no estado de São Paulo, permitindo o sequenciamento de uma bactéria que impactava a produção de citros. “Esse sequenciamento da bactéria possibilitou, em tempo recorde, anos mais tarde, que o vírus SARS-CoV-2 (coronavírus) fosse sequenciado no estado”, destaca Addolorata Colariccio, vice-presidente da APqC.
A Fapesp apoia, em média, 20 mil projetos por ano, e sua importância vai muito além da saúde pública. Nos últimos 27 anos, a agência financiou de startups a grandes empresas em temas como aeronaves e produção de hidrogênio de baixo carbono, além de projetos na Amazônia. As empresas criadas por profissionais qualificados somente pela Unicamp, em Campinas, geram um produto anual de aproximadamente R$ 26 bilhões. Além disso, cada R$ 1 investido em pesquisa na agricultura paulista gera um retorno de R$ 10 a R$ 12 para o estado, de acordo com dados da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
“O corte na Fapesp me parece ser o maior golpe contra a pesquisa, não só para São Paulo, mas para o Brasil ”, considera o pesquisador Otávio Marques.
Tarcísio sinaliza reajuste para pesquisadores, mas do agro
Após uma promessa de reajuste salarial e reestruturação de carreiras feita por Tarcísio no ano passado, por ora nada foi concretizado. O governador, entretanto, tem se referido preferencialmente a pesquisadores que trabalham em benefício da agricultura e pecuária, sem mencionar outras categorias. “Não é justo que o nosso pesquisador ganhe menos que o pesquisador da Embrapa”, disse Tarcísio em evento da categoria realizado em abril.
Essa possível “reestruturação de carreiras”, sem consulta aos profissionais, também preocupa os pesquisadores, especialmente os das áreas de saúde e meio ambiente, uma vez que as três categorias são unificadas e regidas por uma única lei.
No final de maio, foi publicada uma resolução do secretário de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo que determina a criação de um Grupo de Trabalho destinado à elaboração de estudos com vistas à reestruturação, valorização e modernização da classe de pesquisador científico no âmbito da Secretaria de Agricultura e Abastecimento.
Consultada, a assessoria do órgão informou: “A Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA) esclarece que é prática comum do órgão formar grupos de trabalho para discutir assuntos estratégicos. Nesse sentido, comunicamos que foram criados grupos de trabalho especificamente para discutir as leis das carreiras pertencentes à SAA. Esta iniciativa atende a uma demanda do atual Governo, que prioriza o estudo das carreiras do Estado”.
“Até o momento, o que temos são compromissos (firmados apenas por palavras) de que as mudanças que acontecerem na SAA também serão estendidas para as outras secretarias”, explica Clissa.
Institutos fechados por todo o estado
Em 2021, três instituições da Secretaria do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística – os centenários institutos Geológico, Florestal e Botânico – foram extintas e fundidas no IPA, Instituto de Pesquisa Ambiental. Entre outras funções, o Instituto Geológico fazia o mapeamento de áreas de risco de desmoronamento, essencial em períodos de chuva, enquanto ao Florestal e ao Botânico cabiam a preservação ambiental e a pesquisa de espécies nativas e exóticas.
A Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) deixou de existir há dois anos, no governo de Rodrigo Garcia (ex-PSDB, atualmente sem partido), quando foi absorvida pelo Instituto Pasteur – especialista em estudos sobre raiva. O órgão que pesquisava a dengue em São Paulo tem seus laboratórios sem manutenção em meio ao aumento de casos da doença. No total, 14 laboratórios deixaram de estar vinculados a uma instituição, o que impede a compra de materiais e manutenção de estruturas fundamentais para o trabalho dos pesquisadores. O estado de abandono, inclusive, foi denunciado ao Ministério Público e um procedimento foi instaurado.
A APqC alerta que o maior herbário de São Paulo e terceiro do Brasil, localizado no Jardim Botânico, está ameaçado pela falta de investimentos. Vídeos gravados no local mostram salas sendo invadidas pela água durante as chuvas dos primeiros meses de 2024. Com 550 mil amostras de plantas catalogadas desde o século XIX, seu acervo reúne a documentação original da flora do estado, essencial para o desenvolvimento dos mais variados estudos que envolvem plantas. A concessionária Reserva Paulista, que venceu a concorrência do Jardim Botânico e do Zoológico, é responsável pela manutenção de todos os prédios da área de pesquisa, segundo a associação. “A zeladoria de prédios de pesquisa foi relegada a uma concessionária sem experiência na área de pesquisa ou conservação da biodiversidade”, observa Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.
“As instituições foram extintas sob alegação de economia, mas elas tinham uma estrutura que funcionava e jamais tiveram déficit. Institutos também geram receitas, como o Florestal, que fazia manejo de áreas dedicadas à pesquisa”, explica Lutgens. A APqC defende a reversão do processo de extinção das quatro entidades, assim como defende a pesquisa pública. “A pesquisa pública tem compromisso com o Estado. A pesquisa privada tem compromisso com a empresa”, aponta Patrícia Clissa.
O desmonte se dá também pela venda do patrimônio público: setores do Instituto de Botânica e grandes áreas de preservação do Instituto Florestal vêm sendo entregues à iniciativa privada.
Em 2022, o governo de São Paulo publicou um edital para conceder cinco áreas dedicadas à pesquisa e à preservação ambiental – as Estações Experimentais de Itirapina e Itapeva, e as florestas de Angatuba, Piraju e Águas de Santa Bárbara – para a iniciativa privada. O edital confirmava que a permissão de uso beneficiaria grandes empresas que produzem matéria-prima para papel e celulose, justamente no momento em que o ex-governador João Doria era contratado por uma empresa do setor. As cinco áreas estão impedidas, por decisão da Justiça, de serem concedidas, mas evidenciam o interesse do estado em abrir mão de áreas de conservação.
“Todo este cenário demonstra a displicência das políticas de vários governos estaduais para com a ciência no estado de São Paulo. É um processo de asfixia, que começa com a desvalorização do pesquisador servidor público, falta de concursos e, por fim, no sucateamento de toda uma infraestrutura de pesquisa”, declara Helena Lutgens.
No mês de maio, pesquisadores do Instituto Butantan publicaram carta de reivindicação de aumento salarial, sem aumento real desde 2013
Pandemia “salvou” Instituto Butantan da privatização
Uma das mais importantes instituições científicas do país, o secular Instituto Butantan também estava no radar das privatizações do ex-governador João Doria. A epidemia de um vírus, entretanto, mudou seu destino.
“Foi salvo de ser privatizado pelo governo por conta da emergência da pandemia de Covid. O Doria dependia do Butantan para ser presidente”, afirma o pesquisador científico Rogério Bertani. “Mas o Butantan está praticamente privatizado: são 400 funcionários trabalhando no instituto e 3.500 na fundação. A fundação tem o controle, mas é conveniente manter o instituto, porque depende do poder público. Não há licitações”, assegura ele, que ingressou na instituição em 1989 – mesmo período da criação da Fundação Butantan.
O Butantan possui uma problemática própria: o conflito entre a fundação (privada) e o instituto (público). A fundação derrubou mais de 2 mil árvores da mata nativa da centenária instituição com o intuito de construir prédios, fábrica de vacinas, restaurante e edifício-garagem, alterações que fogem do objetivo da entidade científica e ameaçam a flora e o córrego Pirajussara Mirim. As reformas avançaram também em patrimônio histórico: um conjunto de casas foi derrubado para dar lugar a um estacionamento, e parte da antiga Estrada de Osasco, localizada dentro do instituto, foi asfaltada.
A reconfiguração foi consequência do Plano Diretor de Industrialização feito pela Fundação Butantan, que consumiu mais de R$ 1 milhão em um projeto arquitetônico da FGGN Arquitetos, que efetivamente ainda não assentou um tijolo. A área desmatada de 14 mil metros quadrados está abandonada. O Ministério Público contestou o projeto.
Dono do escritório de arquitetura que realizou o projeto, Carlos Augusto Mattei Faggin foi diretor do conselho que tombou o Butantan e assinou um parecer autorizando a demolição de parte do patrimônio tombado. Faggin é presidente do Condephaat desde 2017 e foi condenado por improbidade administrativa pela participação em destombamento de um casarão histórico – demolido para ceder espaço para um estacionamento – em Guarulhos.
Edição: Bruno Fonseca
Link de acesso à matéria na Pública
O segundo lugar fica com o atual prefeito, Ricardo Nunes, que soma 24,9% da preferência dos eleitores; Marçal, Tabata e Datena empatam tecnicamente na terceira posição (leia mais em Carta Capital)
Na noite de 22 de janeiro de 1995, assaltantes liderados pelo então cabo do Exército Celio da Silva Cabral renderam 37 passageiros de um ônibus na rodovia Belém-Brasília, na altura de Nova Olinda (TO). O grupo era formado por estudantes e professores que voltavam a Crixás (GO) após uma excursão pelo litoral nordestino.Os criminosos armados estupraram quatro mulheres — três menores de idade —, agrediram cinco homens e roubaram bens, talões de cheque e dinheiro. A tragédia não resultou em punição…
Enquanto o mundo está absorvido pelo drama das eleições dos EUA, a bomba-relógio dos derivativos continua a tiquetaquear ameaçadoramente nos bastidores. Ninguém sabe o tamanho real do mercado de derivativos, já que uma parte significativa é negociada over-the-counter, escondida em veículos de propósito específico fora do balanço dos bancos. No entanto, quando Warren Buffet chamou os derivativos de “armas financeiras de destruição em massa” em 2002, seu valor nocional foi estimado em US$ 56 trilhões. Vinte anos depois, o Banco de Compensações Internacionais estimou esse valor em US$ 610 trilhões. E comentaristas financeiros calcularam esse valor em até US$ 2,3 quadrilhões ou até US$ 3,7 quadrilhões, muito além do PIB global, que era cerca de US$ 100 trilhões em 2022. Ellen Brown, Outras Palavras (acesse)
A maior parte deste cassino é administrada pelos mesmos bancos que guardam nossos depósitos supostamente em segurança. Os derivativos são vendidos como “seguro” contra riscos, mas na verdade acrescentaram uma grossa camada de risco, porque o mercado é tão interconectado que qualquer falha pode ter um efeito dominó. A maioria dos bancos envolvidos também é considerada “grande demais para falir”, o que significa que nós, o povo, seremos responsáveis por resgatá-los se eles falirem.
Os derivativos são considerados tão arriscados que, nos EUA, a Lei de Falências de 2005 e o Código Comercial Uniforme lhes concedem (junto com as operações repo, de recompra de títulos públicos) “super-prioridade” em falências. Isso significa que, se um banco falir, os proprietários de derivativos e operações de recompra são pagos primeiro, retirando recursos do mesmo poço de liquidez que contém nossos depósitos. (Veja The Great Taking, de David Rogers Webb, e meus artigos anteriores aqui e aqui.) Uma crise de derivativos poderia facilmente drenar esse poço, não deixando nada para nós como depositantes — ou para os credores “garantidos”, incluindo governos estaduais e locais.
Conforme detalhado por Pam e Russ Martens, editores do Wall Street on Parade, em 31 de dezembro de 2023, os bancos Goldman Sachs, JPMorgan-Chase, Citibank, e Bank of America detinham um total de US$ 168,26 trilhões em derivativos, de um total de US$ 192,46 trilhões. Isso significa que quatro bancos detinham 87% de todos os derivativos em todas as 4.587 instituições seguradas federalmente então nos EUA.
Em junho de 2024, a Corporação Federal de Seguros sobre Depósitos (Federal Deposit Insurance Corporation FDIC) e o comitê de diretores do banco central dos EUA (Federal Reserve) divulgaram conjuntamente suas conclusões sobre os “testamentos em vida” dos oito mega bancos dos EUA – seus planos de resolução ou encerramento em caso de falência. O Fed e a FDIC criticaram todos os quatro maiores bancos de derivativos por deficiências em seus planos de encerramento de derivativos.
Os bancos não são apenas intermediários no mercado de derivativos. Eles são jogadores ativos, que assumem posições especulativas. Neste século, escreve a professora Saule Omarova, os maiores bancos comerciais dos EUA tornaram-se “uma nova espécie de super-intermediário financeiro — um distribuidor atacadista de risco financeiro, conduzindo uma ampla variedade de atividades de mercados de capitais e derivativos, negociando commodities físicas e até mesmo comercializando eletricidade.” Ela observa que o Federal Reserve permitiu que várias empresas financeiras adquirissem e vendessem commodities físicas (incluindo petróleo, gás natural, produtos agrícolas e eletricidade) no mercado à vista para proteger suas atividades de derivativos de commodities, e tomassem ou entregassem essas commodities para liquidar as transações.
Não foi o Congresso dos EUA que autorizou essa expansão das atividades bancárias permitidas. Foi o Escritório do Controlador da Moeda (Office of the Comptroller of the Currency — OCC), parte do “deep state administrativo,” um corpo permanente de reguladores não eleitos que permanecem em seus postos, enquanto os políticos vêm e vão. Como Omarova explica:
Por meio de ações administrativas aparentemente rotineiras e muitas vezes não transparentes, o OCC efetivamente capacitou os grandes bancos comerciais dos EUA a se transformarem de instituições tradicionalmente conservadoras de captação de depósitos e concessão de empréstimos (cuja segurança e solidez eram protegidas por restrições estatutárias e regulatórias contra atividades potencialmente arriscadas) em uma nova espécie de “super-intermediários” financeiros, ou distribuidores atacadistas de puro risco financeiro…
Além disso, algumas das decisões mais cruciais escaparam ao escrutínio público porque foram tomadas no mundo subterrâneo das ações administrativas invisíveis ao público, através da interpretação de orientação política.
A autoridade do OCC para regular bancos remonta, nos EUA, à Lei Nacional dos Bancos (National Bank Act) de 1863, que concede aos bancos nacionais autoridade geral para se engajar em atividades necessárias para conduzir o “negócio bancário”, incluindo “os poderes incidentais que sejam necessários para conduzir o negócio bancário.” O “negócio bancário” não é definido na lei. Omarova escreve:
A Seção 24 (Sétima) da Lei Nacional dos Bancos concede aos bancos nacionais o poder de exercer todos os poderes incidentais necessários para conduzir o negócio bancário; descontando e negociando notas promissórias, saques, letras de câmbio e outros documentos de dívida; recebendo depósitos; comprando e vendendo câmbio, moedas e metais preciosos; emprestando dinheiro com garantia pessoal; e obtendo, emitindo e circulando notas.
Nenhuma menção é feita ao comércio ou negociação de derivativos.
Os poderes dos bancos foram ainda mais limitados pelo Congresso na Lei Glass-Steagall, de 1933, que explicitamente proibiu os bancos de negociar títulos de capital corporativo; e por outras normas aprovadas posteriormente. No entanto, a parte da Lei Glass-Steagall que separa a captação de depósitos do banco de investimento foi revertida pela Lei de Modernização dos Futuros de Mercadorias (Commodity Futures Modernization Act) em 2000. Omarova escreve que isso permitiu que o OCC articulasse “uma definição excessivamente expansiva do ‘negócio bancário’ como intermediação financeira e negociação de risco financeiro, em todas as suas formas, e … esse padrão de análise permitiu que o OCC expandisse a gama de atividades permitidas aos bancos virtualmente sem qualquer restrição estatutária.”
Tornou-se agora consenso que a crise financeira de 2008 foi em grande parte uma crise de derivativos. Mas os grandes esforços de reforma financeira nos anos seguintes falharam em corrigir o problema subjacente. Em um artigo da Forbes intitulado “Big Banks and Derivatives: Why Another Financial Crisis Is Inevitable”, Steve Denning escreve:
Os bancos hoje são maiores e mais opacos do que nunca, e continuam a negociar derivativos por meio de muitas das práticas adotadas antes da crise – porém, em uma escala maior e com exatamente os mesmos riscos desconhecidos.
A maior parte dessa negociação de derivativos é conduzida pelos maiores bancos. Uma suposição comumente mantida é que o risco real dos derivativos é muito menor do que o “valor nocional” declarado nos balanços dos bancos, mas Denning observa:
Como aprendemos em 2008, é possível perder uma grande parte do “valor nocional” de uma negociação de derivativos se a aposta der muito errado; e particularmente se ela estiver ligada a outras apostas, resultando em perdas simultâneas sofridas por outras organizações. Os efeitos em cadeia podem ser maciços e imprevisíveis.
Em 2008, os governos tinham recursos suficientes para evitar uma calamidade total. Os governos de hoje, com recursos escassos, não estão em posição de lidar com outro resgate maciço.
Dennin conclui:
A regulamentação e a fiscalização só funcionarão se acompanhadas de uma mudança de paradigma no setor bancário que mude o contexto em que os bancos operam e a forma como são administrados, de modo que eles mudem seu objetivo de ganhar dinheiro a qualquer custo e passem a agregar valor às partes interessadas, especialmente aos clientes. Isso exigiria ação do Legislativo, da SEC, do mercado de ações e das escolas de negócios, bem como, é claro, dos próprios bancos.
Em um artigo de setembro de 2023 intitulado “Rebuilding Banking Law: Banks as Public Utilities,” o professor de direito de Yale, Lev Menand, e o professor de direito de Vanderbilt, Morgan Ricks, propõem mudar o objetivo dos bancos para que os bancos privados com carta patente não sejam meros negócios com fins lucrativos; eles têm obrigações afirmativas para com o público. Os autores observam que, sob o arcabouço do New Deal, que estava enraizado no National Bank Act de 1864, os bancos eram em grande parte governados como serviços públicos. As cartas eram concedidas apenas onde consistentes com a conveniência e necessidade pública, e apenas bancos com carta patente podiam expandir a oferta de dinheiro concedendo empréstimos.
A proposta Menand/Ricks é bastante detalhada e inclui muito mais do que regular derivativos, mas sobre essa questão específica, eles propõem:
Enquanto os bancos membros têm permissão para celebrar swaps de taxa de juros para proteger contra riscos de taxa, não têm permissão para se envolver em negociação de derivativos (intermediação ou criação de mercado) ou fazer apostas direcionais nos mercados de derivativos. A negociação de derivativos e a especulação não avançam a função monetária dos bancos membros. Além dos compromissos de empréstimo, os bancos membros não estariam no negócio de oferecer garantias ou outras formas de seguro.
Isso significaria o fim do cassino de derivativos? Não – ele apenas seria movido para fora dos bancos encarregados de proteger nossos depósitos:
O plano acima não diz nada sobre quais atividades podem ocorrer fora do sistema bancário membro. Diz apenas que essas atividades não podem ser financiadas com dívidas propensas a corrida [significando principalmente depósitos]. Em princípio, poderíamos imaginar um grau muito amplo de latitude para empresas não bancárias, sujeito, é claro, a padrões apropriados de divulgação, antifraude e proteção ao consumidor e ao investidor. Assim, empresas de valores mobiliários e outras instituições não bancárias poderiam ter liberdade para se envolver em finanças estruturadas, derivativos, negociações proprietárias, e assim por diante. Mas não teriam permissão para “financiar a curto prazo”.
Por “financiamento a curto prazo”, os autores significam basicamente “criar dinheiro,” por exemplo, através de operações de recompra em que empréstimos de curto prazo são rolados continuamente. Em sua proposta, apenas bancos com carta patente têm o poder de criar dinheiro como empréstimos.
Expandindo o modelo
O professor da escola de negócios da Universidade de Southampton, Richard Werner, que escreveu extensivamente sobre esse assunto, acrescenta que os bancos deveriam ser obrigados a concentrar seus empréstimos em empreendimentos produtivos que criem novos bens e serviços e evitem inflacionar ativos existentes como habitação e ações corporativas.
Derivativos especulativos são uma forma de “financeirização” – dinheiro fazendo dinheiro sem produzir nada. Os vencedores apenas tiram dinheiro dos perdedores. Jogar não é ilegal sob a lei federal, mas as fichas no cassino não deveriam ser nossos depósitos ou empréstimos feitos com o respaldo de nossos depósitos.
A proposta Menand/Ricks é para bancos privados, mas os bancos também podem ser transformados em “serviços públicos” através da propriedade direta pelo governo. O modelo exemplar é o Banco da Dakota do Norte, que não especula em derivativos, não pode falir, faz empréstimos produtivos e tem sido altamente bem-sucedido. (Veja artigo anterior aqui.) O modelo de serviço público também poderia incluir um banco nacional de infraestrutura, como proposto no H.R. 4052, que atualmente tem 37 co-patrocinadores.
O “negócio bancário” pode incluir ganhar dinheiro para acionistas privados e executivos, mas esse negócio deve ser subordinado ao interesse público, que prevaleceria quando entrassem em conflito.
Infelizmente, apenas o Congresso pode mudar a linguagem do estatuto controlador; e o Congresso tem sido historicamente motivado a fazer grandes mudanças no sistema bancário apenas em resposta a uma Grande Depressão ou Grande Recessão que expõe as falhas fatais no sistema existente. Com a reversão da “deferência de Chevron”, no entanto, as regras do OCC agora podem ser contestadas no tribunal. Um poderoso movimento de cidadãos poderia ser capaz de catalisar as mudanças necessárias antes que a próxima Grande Depressão atinja.
Uma economia financeirizada não é sustentável nem competitiva. A ênfase deve estar no investimento na economia real. Esse é o tipo de mudança de paradigma necessária se os EUA quiserem sobreviver e prosperar.
# Leia mais na matéria do G1 e # Saiba quem é o vice indicado por Kamala
Assasinato de lider do Hamas mobiliza resistência popular entre os árabes
Cathrin Schaer
Israel tem um longo histórico de controvertido método antiterrorista contra aqueles que considera seus principais inimigos. É muito possivelmente o caso da recente morte do líder político do Hamas Ismail Haniyeh (# leia mais no DW)
Eleições São Paulo, 2024
# "Esse prefeito está desesperado pela reeleição porque corre o risco de ir para a cadeia" (Datena, no G1) # Clipping do site sobre as eleições de outubro
Operações violentas na favela completam cinco meses. Disparos por agentes chegaram a atingir criança de 7 anos. Há denúncias de tortura e invasão a domicílios. Moradores articulam comitê de crise e cobram fim do terror no bairro (# Ponte Jornalismo, via Outras Mídias)
Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, numa demonstração cruel de seu poderio atômico-militar, os EUA jogaram bombas atômicas nessas duas cidades japonesas. O objetivo não era propriamente a derrota do Japão - que já estava a um passo da rendição - mas anunciar a nova era do imperialismo que se impunha em todo o globo. O resultado dessa insanidade foi a morte de milhares de seres humanos, civis e militares, e a política de terror que se estabeleceu no globo durante a Guerra Fria. Nem Truman - presidente dos EUA na época - nem qualquer um dos bandidos que o instruíram a cometer o crime - jamais foram julgados, sequer responsabilizados. Na verdade, o exemplo de Hiroshima e Nagasaki tem servido até hoje de referência como instrumento de perpetuação do medo e da destruição. Foi assim no Vietnã, na Coreia, tem sido assim em Gaza e em todo o Oriente Médio. Os episódios de 1945 formam uma doutrina em torno da qual se alimenta a extrema direita em todos os seus projetos de poder.
# Acesse aqui a matéria sobre Hiroshima e Nagasaki produzida pela BBC
Simone Biles alfineta Trump com piada sobre "trabalho de negro"
Depois de fazer algumas das apresentações mais notáveis da ginástica artística nos Jogos Olímpicos de Paris-2024, Simone Biles projeta sua sombra na candidatura de Donald Trump à Presidência.
Eleições São Paulo, 2024
# Tábata Amaral fala ao G1 sobre Ricardo Nunes # Nunes é aconselhado a não ir ao debate da Band (Uol) # Clipping do site sobre as eleições de outubro
María Corina Machado e Edmundo González... os dirigentes da oposição venezuelana (Deus livre os venezuelanos desses dois)
# Edmundo González se autoproclama vencedor (Folha) # Governo abre investigação criminal contra oposição (Carta Capital) # União Europeia pede apuração independente (Opera Mundi)
Não deixe de ler em A Terra é redonda: # A Venezuela mudou # A Venezuela é uma ditadura? # Aliança político-militar não dá legitimidade a ninguém
# Evandro e Arthur Lanci detonaram a dupla holandesa pelas oitavas de final do vôlei de praia masculino. A vitória do Brasil por 2 x 0, neste domingo (4/8), leva os brasileiros para quartas de final que será disputada no outro domingo (10/8). Leia no Metrópoles e assista no youtube
Dora Longo Bahia. Revoluções
O desprezo pela soberania popular perpassa toda a história da América Latina. Francisco Parandi, A Terra é redonda
“Para cederme un lugar en su parnaso\ Me vienen a convidar a arrepentirme\ Me vienen a convidar a que no pierda\ Me vienen a convidar a indefinirme\ Me vienen a convidar a tanta mierda\ Yo no sé lo que es el destino\ Caminando, fui lo que fui\ Allá Diós, ¿Qué será divino?\ Yo me muero como viví.” (Silvio Rodríguez).
O desprezo pela soberania popular perpassa toda a história da América Latina. Em 2019, um intenso bombardeio midiático após a vitória de Evo Morales bastou para que uma subserviente OEA declarasse em alto e bom som: “fraude”. Fraude essa que não só nunca se comprovou como também se revelou falsa com o passar do tempo (continue a leitura).
Tudo era um pretexto para iniciar o que interessava de fato: tirar do governo um representante do movimento popular que havia colocado indígenas e camponeses em postos-chave do Estado e que havia estatizado os hidrocarbonetos do país, coisa que faria com outra riqueza ainda mais valiosa: o lítio. Não faltaram intelectuais de fachada progressista que chancelaram um golpe sangrento, que buscavam refinados conceitos sociológicos enquanto indígenas eram massacrados, a whipala era incendiada, assim como a casa de militantes e dirigentes dos movimentos populares.
Agora, novamente, é a vez da Venezuela. Afinal, como é possível que um sangrento ditador, com bigode de vilão de filme americano, com “toda a comunidade internacional contra”, leia-se, com 930 sanções econômicas impostas há dez anos, como esse sujeito aparentemente tão desqualificado ganha as eleições mais uma vez? Só pode ser fraude.[1] O que escapa aos olhos dos especialistas de última hora é um fato incontornável: A Venezuela mudou. A Venezuela das longuíssimas filas, da escassez, da falta de soberania alimentar não existe mais. Há pobreza, há trabalho precário e tudo o que demais o capitalismo traz consigo, como também há em nosso país, é bom dizer. Mas a fase crítica já passou.
Com 80% dos votos apurados, Maduro foi eleito com 51,2% dos votos contra 44,2% para o opositor Edmundo González e os demais votos válidos se repartiram entre os demais opositores. O sinal, no entanto, ainda é amarelo. 44% do eleitorado demonstrou preferência pelo setor mais extremista da oposição, capitaneado por Maria Corina Machado.
Além disso, os pouco mais de cinco milhões de votos conseguidos por Nicolás Maduro demonstram que o chavismo ainda não recobrou a força que tinha antes, haja vista que o Partido Socialista Unido de Venezuela, o principal dos 13 partidos que apoiaram Maduro, registrava 7,7 milhões de filiados em 2020.[2][3] Essa queda também afetou a oposição que caiu de 7,3 milhões de votos em Capriles (2013) para pouco mais de 4 milhões neste ano.
Quais elementos novos, afinal, ajudam a compreender a vitória eleitoral de Nicolás Maduro?
Recuperação econômica
Desde que o bloqueio foi imposto à Venezuela pelos Estados Unidos em dezembro de 2014, a estimativa é a de que o país perdeu 29 bilhões de dólares ao ano até 2023.[4] Some-se a isso outros episódios como a vertiginosa queda dos preços do petróleo, matéria-prima em torno da qual gira a economia venezuelana desde o início do século XX, o roubo do ouro venezuelano pelo Banco da Inglaterra, ocasionando a perda de mais dois bilhões de dólares para o país.[5] É certo, porém, que o bloqueio também traz consigo certa confusão, na qual é muito difícil distinguir e mensurar o que são erros do governo, o que são as limitações estruturais desse país e o que são as consequências desse bloqueio.
Ainda assim, não é honesto um debate sobre a economia venezuelana que não dê o devido destaque a um bloqueio que, por exemplo, durante a pandemia da COVID-19 não permitiu que o país realizasse o pagamento de vacinas, retardando o processo de imunização com todas as consequências que nós, que tivemos um governo negacionista conhecemos muito bem.[6] O histórico recente de violência, como as guarimbas em 2013, 2014, 2017, 2018, a tentativa de invasão estrangeira em 2019, tampouco tornam o ambiente seguro para investimentos.
A primeira resposta ao caos econômico certamente frustrou a esquerda, como reversões de expropriações que haviam sido feitas por Hugo Chávez, privatizações e aumento da participação do capital internacional (sobretudo russo e chinês) em setores econômicos estratégicos. As medidas ortodoxas adotadas pelo governo, que tinham como fim poder respirar em meios às sanções, cobraram o preço da perda de apoio popular, já comprometido pela queda vertiginosa das condições de vida, lastro no qual a revolução bolivariana se apoiava nos tempos áureos, com ganhos econômicos e índices sociais incontestáveis.
Essas medidas corroeram ainda mais o já baixo poder de compra dos setores populares que são a base social fundamental do chavismo. Com o passar do tempo, o governo tentou compensá-lo não com aumentos salariais, mas com bonificações, programas sociais como os CLAP’s (Comités Locales de Abastecimiento y Producción), por exemplo, que distribuem cestas básicas na tentativa de combater a insegurança alimentar, bem como a especulação e o mercado paralelo. Também é importante reconhecer os avanços em matéria de soberania alimentar.
Desde fevereiro deste ano, a Venezuela produz 97% dos alimentos para consumo interno, um feito inédito na história de um país acostumado a usar as divisas petroleiras para importar comida.[7] Além disso, a guerra entre Rússia e Ucrânia não apenas aumentou enormemente o preço do petróleo como também fez com que os Estados Unidos aliviassem algumas sanções e permitisse empresas como a Chevron de comprar petróleo do país, que ficou 14 meses sem vender petróleo a ninguém.
Aos trancos e barrancos, o fato é que o insuspeito FMI projetou para o ano de 2024um crescimento econômico de 4% para a Venezuela, o maior da região, tendência que segundo a instituição se manteria para o ano que vem. No mês passado, o mandatário venezuelano entregou 5 milhões de casas populares na Gran Misión Vivienda Venezuela, o equivalente ao nosso Minha Casa, minha vida.
O país vive sua inflação mais baixa desde 2015, 68% ao ano, o que é alto, mas muito menor do que os 862% em 2017, pico da hiperinflação no país e menor do que a estimada na Argentina (271%/ano) que segundo a imprensa monopolista está indo muito bem. No país de Javier Milei, enquanto a cesta básica para quatro pessoas chega aos 851,35 US$, na Venezuela ela chega a 554,26 US$, some-se a isso que enquanto a capacidade de consumo se retraiu em 35% na Argentina, ela subiu 86% na Venezuela.[8]
A comparação com o país vizinho ao nosso é importante por um motivo que passou ao largo de boa parte da campanha eleitoral e do comentário de muitos que debatem o tema no Brasil. O programa político da oposição.
O programa da oposição
A MUD (Mesa de la Unidad Democrática) não é a única oposição no país, mas foi a que alcançou 44% da preferência do eleitorado, deixando para trás os outros oito candidatos oposicionistas. Ela é também seu braço mais radical. Enquanto os outros oito candidatos de oposição, assim como o próprio Maduro, compareceram a um ato no Conselho Nacional Eleitoral no qual se comprometeram a aceitar os resultados, a candidatura da MUD foi a única que não só não compareceu como não enviou representante. Nada incoerente para um campo político que gritou “fraude” em todas as vitórias chavistas, enquanto não contestou o mesmo sistema que lhe deu duas vitórias nacionais (2007 e 2015) e lhes dá outras tantas regionais.
Também foi a MUD e seu corpo dirigente que caracterizou os momentos mais extremistas da oposição. Veio de Capriles Radonski, candidato derrotado em 2013 o chamado para descarregar a arrechera (raiva) nas ruas, dando início às guarimbas que apareceriam de novo em 2014, quando Leopoldo Lopez, Maria Corina e Antonio Ledezma chamaram à insurreição, 2015, 2017, 2018, 2019… É justamente esse o setor mais violento da oposição, o que não só publica hashtags na internet, como também persegue e lincha aqueles que têm “cara de chavista” (negros, pobres, gente com roupa vermelha), queima hospitais públicos, queima os estoques de alimentos dos CLAP’s, farmácias populares, e que passou os últimos anos pedindo mais sanções contra o seu próprio país. Sanções essas que têm apenas uma grande vítima: os mais pobres.
Infelizmente, não é de agora que o debate programático parece ser secundário nas eleições venezuelanas. Neste ano, a oposição disse muito pouco sobre o que faria no governo, escamoteando o conteúdo socioeconômico do seu programa em palavras contra o “regime”, “pela democracia e a liberdade” e com um discurso muito pouco conciliatório de que iriam “cobrar” os anos de chavismo. Foi apenas recentemente, na reta final da campanha que o escritor Luis Britto García trouxe a público um artigo chamado Do you speak english? ,[9] no qual denunciava o verdadeiro programa da oposição venezuelana. Como caricatura pouca é bobagem, o programa, disponível no site de seu partido Vente Venezuela, está em inglês e possui o nome de Venezuela land of grace. Terra da graça, aliás, era o termo que o conquistador Cristóvão Colombo se referiu à América em interlocução com a coroa espanhola.
O programa não é nada diferente do habitual receituário da extrema direita mundial, que promove o casamento do neofascismo com o neoliberalismo, como Jair Bolsonaro, no Brasil, Javier Milei, na Argentina, e outros tantos embalados pelo Foro de Madrid, organização da extrema direita mundial promovida pelo Vox da Espanha. Maria Corina Machado, que já apareceu ao lado de Javier Milei gritando “Viva la libertad, carajo”, defende nesse programa a privatização de toda a indústria de petróleo e gás, a privatização maciça de empresas e bens públicos, privatização da educação e saúde públicas com o sistema de vouchers, desregulamentação trabalhista, privatização do sistema previdenciário no estilo chileno.
Há também um trecho que diz diretamente que o dinheiro levantado com as privatizações tem um único e exclusivo fim: pagamento da dívida externa e interna.[10] O “capitalismo popular” do qual Maria Corina Machado diz ser partidária, tendo Margaret Thatcher como modelo, tem muito de capitalismo e nada de popular, como se vê. Como Marx e Engels diziam no Manifesto, a burguesia onde ascendeu ao poder “resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos do comércio”, a isso se resume a liberdade capitalista.
A ameaça da perda daquilo que a Revolução Bolivariana teve de mais avançado em seus melhores tempos, com a possibilidade real de vitória eleitoral da oposição, levou muitos descontentes com Nicolás Maduro não apenas a votar como também a se mobilizar de forma mais contundente. Com efeito, diversas vezes ao longo dessa campanha, Maduro se colocou em um tom defensivo, de candidato de uma frente contra a extrema direita e o neofascismo.
Reativação da mobilização popular: a invisibilização dos “pata en el suelo”
Aqui chegamos ao ponto mais importante e fundamental da nossa intervenção. “Pata en el suelo” significa em bom português: pé descalço. É com esses termos pejorativos que boa parte da oposição sempre se referiu aos chavistas, essa gente trabalhadora e pobre organizada em partidos e movimentos, disposta a lutar pela soberania de seu país e construir uma nova sociedade, com seus erros e acertos, como é de todo e qualquer processo.
Para aqueles interessados em manter a ordem vigente, um dos grandes pecados de Hugo Chávez foi não apenas apostar na mobilização popular permanente, como também em sua organização e politização. Isso ficava evidente nas “marés vermelhas” que enchiam ruas, avenidas e mais avenidas nas cidades do país cada vez que ele ia fazer um discurso, encampar uma nova batalha, fazer novas propostas, celebrar vitórias etc. Também ficou evidente nas vezes em que foi necessário responder rapidamente à violência e às tentativas de golpe, como em 2019, quando até mesmo a GloboNews teve de reconhecer que Nicolás Maduro possuía uma gigantesca base social e um poder de mobilização tamanho que pode repelir uma tentativa de invasão estrangeira, como naquele 23 de fevereiro de 2019.
Desde os tempos dos Círculos bolivarianos, entidades de base que foram fundamentais no combate ao golpe de abril de 2002 contra Hugo Chávez, o líder da Revolução Bolivariana sempre deu muito peso à organização popular. O PSUV, diferente dos partidos tradicionais, é um partido profundamente enraizado nos bairros, através das chamadas Unidades de batalha Hugo Chávez, cujas lideranças são eleitas pelas bases. É o maior partido de esquerda da América Latina. Também existem os chamados coletivos e os conselhos comunais, destinados à discussão e resolução de problemas das comunidades, isto é, formas embrionárias de poder popular.[11]
Entretanto, os conflitos, as graves crises pelas quais o país passa e passou, os anos à frente do poder, o congelamento do momento de conquistas sociais e de “avançar em direção ao socialismo” em prol da sobrevivência, são elementos que também atingem a própria base social chavista. Uma base social que viu perder muitas das conquistas que teve com a revolução, mas que não estava disposta a perder mais ainda para as privatizações, as desregulamentações e à subserviência ao imperialismo. Essa base se pôs em movimento.
Se bem o chavismo nunca teve problemas em fazer atos de massa, é muito interessante comparar a quantidade de pessoas presentes no ato de inscrição da candidatura de Nicolás Maduro no CNE, em 25 de março de 2024 com a quantidade de pessoas que encheram a Avenida Bolívar e seus arredores no comício de encerramento da campanha em 26 de junho. Há muitos e muitos anos o chavismo não promovia uma concentração tão grande, que chegou mesmo a lembrar os épicos comícios de Hugo Chávez. Ao se comparar as imagens dessas concentrações com concentrações, também expressivas realizadas pela oposição em seu encerramento de campanha, é possível evidenciar a diferença na composição social entre as duas.
Não há dúvidas de que essa mobilização organizada, característica mais essencial desse movimento político, foi a grande determinante para alcançar os pouco mais de cinco milhões de votos de Nicolás Maduro contra os pouco mais de quatro milhões para o principal oposicionista, Edmundo González, candidato indicado pela inabilitada Maria Corina Machado. Como dissemos anteriormente, isso está muito distante dos sete milhões de filiados que o PSUV tinha em 2020.
A participação de 60% nas eleições, lembrando que o voto é facultativo no país, também não foi das mais altas da história do chavismo. Em termos de voto, Nicolás Maduro havia tido 6,2 milhões de votos em 2018 e 7,5 milhões em 2013. Entretanto, a oposição também caiu de 7,3 milhões de votos em 2013, quando Capriles quase venceu a hegemonia chavista para pouco mais de quatro milhões neste ano. Dessa forma, não é apenas o chavismo que tem uma severa autocrítica a fazer. As oscilações da MUD que já entrou e saiu do jogo institucional inúmeras vezes, bem como a violência que promoveu também a desgastaram com uma população que já está cansada de guerra.
No entanto, uma coisa que passa desapercebida por muitos comentaristas, inclusive de esquerda, é que a primeira coisa que os gritos de “fraude” fazem é justamente invisibilizar essa base social. Trabalhadores da massa marginal, operários, camponeses organizados em comunas e cooperativas, homens e mulheres que lá como cá são acusados de terem “vendido” sua consciência em troca de um programa social. Dirigentes que, nesse momento, enquanto o mundo brinca com a soberania nacional e popular desse país correm risco de ter o mesmo destino que outros tantos companheiros em momentos em que a violência política tomou conta do país.
Comparado com as arremetidas da extrema direita venezuelana, o show bolsonarista que culminou com um quebra-quebra em 8 de janeiro de 2023 em Brasília parece brincadeira de criança. O esforço de todo um povo em contra-arrestar essa ofensiva reacionária simplesmente não existiu. Alguém com um botão manipulou todo mundo. O fato é: existem razões materiais que explicam a vitória de Nicolás Maduro nas últimas eleições.
Sempre há uma razão nobre para invisibilizar os trabalhadores que se organizam e suprimir sua vontade política quando o imperialismo considera que estão “equivocados”. O problema é que, novamente, isso custará mais vidas e mais sangue, como também custou na Bolívia em 2019, como também custou tantas e tantas vezes ao longo da história da humanidade.
*Francisco Prandi é mestre em sociologia pela USP.
Notas
[1] Sobre o sistema eleitoral venezuelano e o caráter democrático do regime vigente no país recomendamos: Tudo sobre as eleições na Venezuela – Análise de Breno Altman; Joana Salém: as eleições na Venezuela e o Brasil.
[2] Cabe ressaltar a dificuldade de encontrar cifras confiáveis sobre a crise migratória vivida na Venezuela. Entretanto, podemos observar com os dados do CNE a evolução do número de eleitores aptos a votar: 15 milhões (2013); 9 milhões (2018); 13,6 milhões (2024).
[3] Neste link.
[4] Neste link.
[5] Neste link.
[6] Neste link.
[7] Neste link.
[8] Neste link.
[9] Neste link.
[10] Venezuela: land of grace.
[11] Dois bons trabalhos sobre as comunas e o poder popular na Venezuela podem ser encontrados em Construindo a comuna, de George Ciccariello-Maher (Ed. Autonomia literária, 2020) e A construção do poder popular na Venezuela, de Jair Pinheiro (Ed. Lutas Anticapital, 2022).
# Leia a matéria de Helton Simões Gomes (Uol) e o # Relatório sobre o estrago que o EAD provoca na educação Brasileira (Confen)
Ao lado de Bolsonaro, Tarcísio e Temer (!!!), sem proposta alguma para a cidade e vociferando feito um louco contra a candidatura de Guilherme Boulos, o atual prefeito discursou para uma variada plateia de indiciados por corrupção e golpe. Como sempre acontece com Nunes, ninguém prestou atenção ao que ele disse...
# Leia a matéria da Folha e no clipping do site saiba mais sobre as eleições municipais de outubro e sobre as candidaturas em disputa.
Na Folha
# Quem defende a democracia na Venezuela (Breno Altman) # Venezuela: anatomia de uma fraude (Dalson Figueiredo e Ernani Carvalho) # Escalada autoritária de Maduro apaga legado social do chavismo (Daniel Buarque)
# Eleitores que detestam o ex-presidente têm medo de dizê-lo em público, esses é que vão decidir a eleição (Rodrigo Zeidan) # Efeito borboleta: Kamala aviva as chamas da democracia (Muniz Sodré) # O atirador e o candidato a ditador (David Frum)
Dos 47 mil polos de Ensino à Distância (EaD) que existem no Brasil, 46% são terceirizados. Ou seja, além de entregar uma péssima qualidade, essas unidades não são sequer geridas por quem as criou. São outorgadas a terceiros desqualificados, mediante a concessão de aproximadamente 30% do valor arrecadado em mensalidades. Trata-se de um negócio nefasto, que transforma a educação em mera especulação financeira. Os dados são do próprio Ministério da Educação (MEC) e foram levantados pela Folha de S. Paulo.
# Leia no boletim do Cofen (via SinproSp)
# Quem é a "medalha de ouro" do Brasil? (Carta Capital) # Vale a pena ver de novo: a histórica luta entre Bia e sua companheira de modalidade, a israelense Raz Hershko (Youtube). Leia mais: Globo - G1 - Uol
O sucesso da abertura dos Jogos Olímpicos de 2024 é um bom exemplo sobre como a crise na qual estamos é tudo menos estética por si só. Ela representa as tensões entre o secularismo e o conservadorismo
➥ # Para o Brasil, posição dos EUA prejudica solução diplomática da crise (Folha) # Milei segue Washington (247) # Conselho Eleitoral atualiza atas e reafirma vitória de Maduro (Opera Mundi) # Como a oposição venezuelana se preparou para questionar resultado das urnas (BBC) # Atas podem ser publicadas em 30 dias (GGN) # As esquerdas diante das eleições na Venezuela (A Terra é redonda) # EUA e Europa dão ultimato a Maduro (247)
Provocação a um estudo indispensável e instigante. Em três grandes pensadores do século XX – Foucault, Arendt e Fannon – três visões distintas, atravessadas pelo debate sobre o sentido da política, as relações coloniais e a (contra-)violência. Aaron Benanav, Outras Palavras
As distinções conceituais entre liberdade e libertação vão além do conflito canônico entre liberalismo e socialismo. De acordo com Michel Foucault, a liberdade não é um domínio ontológico, mas sim uma forma de vida socialmente produzida e, como tal, não se opõe ao poder, mas, ao contrário, está inscrita nele por meio de múltiplas tensões e práticas (continue a leitura)
Por Enzo Traverso, no Nuso | Tradução: Glauco Faria
Existem “práticas de liberdade” que transformam as relações sociais, modificam as hierarquias consolidadas e afetam as estruturas dos aparatos estatais dominantes, agindo assim dentro da “microfísica” de um poder difuso, rizomórfico e onipresente1. Se o poder é um conjunto de relações e redes que nos moldam e nos constroem e, portanto, disciplinam nossos corpos e guardam nossas vidas como “um pastor protege seu rebanho”, a oposição entre poder e liberdade não faz sentido, já que o primeiro não pode ser destruído por uma ação “libertadora”. Na visão de Foucault, a libertação como um confronto violento entre um Estado soberano e um sujeito insurgente era um relato mítico que apresentava a liberdade como uma espécie de substrato original coberto, escondido e acorrentado pela autoridade política. A liberdade não pode ser “conquistada”, ela deve ser construída por meio da introdução de práticas de resistência nas relações de poder; ela é o resultado de um processo, a consequência da construção de novas subjetividades. Por exemplo, a sexualidade não pode ser “liberada”, mas sim receber uma nova forma pelas “tecnologias do eu” apropriadas; em outras palavras, por novas práticas de existência – feitas de desejos, força, resistência e movimentos – por meio das quais os sujeitos podem se constituir2.
Essa distinção foucaultiana entre liberdade e libertação é frutífera e problemática. É um lembrete valioso de que um “reino de liberdade” não pode ser simplesmente proclamado ou estabelecido por um ato de vontade: todas as revoluções estavam presas ao legado do passado, um fato que moldava profundamente qualquer tentativa de construir uma nova sociedade. Mas Foucault não foi totalmente original ao criticar o fetichismo da libertação: desde meados do século XIX, Karl Marx havia alertado contra a ilusão de Mikhail Bakunin de alcançar a liberdade por meio da “abolição” do Estado e contra a tentação de Louis-Auguste Blanqui de reduzir a revolução a um tipo de técnica insurrecional. O ponto crucial da questão é que, ao criticar uma concepção tão ingênua de liberdade, Foucault simplesmente suprime a questão da libertação.
Vale a pena refletir seriamente sobre suas observações, e sua oposição comprometida com a condição prisional dos anos 1970 é a prova de que suas “práticas de liberdade” não eram uma fórmula vazia. No entanto, sua rejeição da libertação em nome da liberdade levanta um ceticismo legítimo. É claro que a ligação entre os dois não é teleológica e não traça uma curva linear ascendente para representar uma expansão contínua e irreversível de capacidades e prazeres, conforme descrito por Nicolas de Condorcet em seu famoso Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano (1795)3. A liberdade não é o resultado de uma autorrealização providencial e inelutável. No final do século XX, Eric Hobsbawm não acreditava mais nesse relato teleológico. No início da década de 1960, ele havia começado sua tetralogia sobre a história dos séculos XIX e XX como uma sucessão de ondas emancipatórias: 1789, 1848, a Comuna de Paris em 1871, depois a Revolução Russa e, finalmente, a partir da Segunda Guerra Mundial, as revoluções na Ásia e na América Latina, da China a Cuba e Vietnã. A história tinha um telos e a liberdade era seu horizonte natural. Ela implicava progresso e o movimento trabalhista era sua ferramenta. Depois de 1989 e do colapso do socialismo real, Hobsbawm reconheceu que essa periodização não refletia nenhuma causalidade determinística nem descrevia uma trajetória linear, mas que, apesar disso, as experiências de libertação que perpassavam seu relato histórico haviam existido. Sob o ancien régime, liberdade significava uma série de “liberdades” concretas: isenções, permissões e privilégios concedidos a determinados grupos4. As revoluções atlânticas estabeleceram uma nova ideia universal de liberdade, inscrita tanto nos direitos naturais quanto nas leis positivas, que cresceu na imaginação coletiva e mobilizou um poderoso simbolismo por mais de dois séculos. As rupturas revolucionárias investigadas por Hobsbawm em sua tetralogia sobre os séculos XIX e XX provam que essa ideia universal tinha um caráter performativo.
Foucault elaborou sua dicotomia entre liberdade e libertação na década de 1980, o estágio final de sua trajetória intelectual, época em que, de acordo com muitos críticos, ele expressou uma clara inclinação para o individualismo e o neoliberalismo. É verdade que, em alguns textos marginais, ele não excluiu as revoltas das práticas de liberdade – “Há revoltas”, escreveu ele, e “é assim que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) entra na história e lhe dá fôlego ”5 -, mas foram exceções. Em nenhum lugar sua obra expressa qualquer interesse em revoluções, sejam elas clássicas ou de seu próprio tempo (com a estranha exceção da Revolução Iraniana, sobre a qual ele concordou em escrever uma crônica para o jornal italiano Corriere della Sera). Um uso frutífero de Foucault talvez consista em re-historicizar sua visão de liberdade para reconectá-la desta forma com a libertação. É possível argumentar que, no século XIX, o surgimento de um novo poder biopolítico – o que ele chamou de “governamentalidade” – finalmente substituiu as formas anteriores de soberania: a administração de corpos, populações e territórios em vez do “direito de decidir sobre a vida e a morte ”6. A governamentalidade reformulou a soberania sem esgotá-la. A história do século XX, com suas guerras e revoluções totais, apresenta a arrogância apocalíptica do poder soberano. Muitas categorias foucaultianas são inúteis para os historiadores se não estiverem conectadas com as de Marx, Max Weber e Carl Schmitt7. Entendida historicamente, a liberdade surgiu como um poder constituinte que teve de enfrentar e rejeitar um poder soberano anterior.
De forma análoga a Foucault, embora partindo de premissas filosóficas diferentes, Hannah Arendt traçou uma linha entre libertação e liberdade. Em seu famoso ensaio Sobre a Revolução (1963), ela descreveu a libertação como um ato de voluntarismo – transitório e efêmero por definição – que pode criar liberdade, mas também gerar despotismo. Já a liberdade, Arendt apontou, é um status permanente que exige um sistema político republicano. A liberdade permite que os seres humanos interajam como cidadãos, ou seja, participem como sujeitos iguais em uma esfera pública comum. Arendt estava interessada na revolução exclusivamente como um momento fundamental da liberdade republicana, uma constitutio libertatis. Com base nisso, ela comparou as revoluções americana e francesa como dois modelos antagônicos. Sua intenção não era comparar duas experiências históricas, mas sim justapor dois tipos ideais conflitantes. E sua conclusão foi clara: enquanto a Revolução Americana conseguiu estabelecer a liberdade republicana, a Revolução Francesa fracassou devido à sua ambição de combinar a conquista da liberdade com a emancipação social. Além da liberdade, ela buscou libertar a sociedade da exploração e da miséria. Mas isso implicou intervenções autoritárias no corpo social e, como a revolução foi incapaz de preservar a autonomia do campo político, ela produziu autoritarismo, despotismo e, finalmente, totalitarismo. “A Revolução Americana permaneceu comprometida com a fundação da liberdade e o estabelecimento de instituições duradouras”, escreveu Arendt, enquanto a Revolução Francesa “foi condicionada pelas exigências de libertação não da tirania, mas da necessidade” 8. Ao separar radicalmente a política da sociedade como duas esferas irreconciliáveis, Arendt considerou “fútil” e “perigoso” “libertar a humanidade da pobreza por meios políticos” e, portanto, viu a Revolução Francesa como um fracasso geral: o resultado, escreveu ela, “foi que a necessidade invadiu a esfera política, a única esfera em que os homens podem ser verdadeiramente livres”. 9 É interessante notar que seu ensaio não analisa a Revolução Russa, que conscientemente buscou o objetivo de mudar as próprias bases da sociedade abolindo o capitalismo.
Em As Origens do Totalitarismo (1951), Arendt dedica várias páginas a Edmund Burke, o primeiro crítico conservador da filosofia dos direitos humanos, e o apresenta como um precursor do regime totalitário10. Dez anos depois, ela o avaliaria como um lúcido detrator da Revolução Francesa. Em sua opinião, a crítica de Burke aos direitos humanos não é “nem obsoleta nem reacionária”, pois ele entendia que o Iluminismo francês reprovava o Ancien Régime por ter privado os seres humanos, não da liberdade e da cidadania, mas dos “direitos da vida e da natureza ”11. Da Revolução é um texto contraditório. Por um lado, ele defende uma concepção de liberdade próxima ao anarquismo, especialmente em sua visão da república como uma forma de democracia direta que tem suas encarnações na Comuna de Paris, nos sovietes de 1917 e na revolução húngara de 1956. Por outro, sua crítica à Revolução Francesa reproduz muitos dos lugares comuns do liberalismo conservador, que sempre detratou a utopia democrática radical de Jean-Jacques Rousseau como uma premissa do totalitarismo. Vale a pena explorar essa contradição.
De acordo com Arendt, a liberdade implica participação direta e ativa na vida pública; é uma forma “agonal” ou “ocular” de democracia, que rejeita o princípio da representação: um campo de ação no qual “o ser e o parecer coincidem”12 . Ela não designa o pluralismo democrático como uma multiplicidade de partidos políticos representados em um parlamento; em vez disso, espera uma esfera pública animada pela interação de cidadãos livres. Na concepção de Arendt, a política é o reino do infra, que é uma reformulação do conceito heideggeriano de ser (Sein) como “ser com” (Mitsein)13. Em uma obra anterior, A Condição Humana (1958), Arendt distinguiu três formas principais de existência humana: o labor, que envolve uma troca primária e quase metabólica entre os seres humanos e a natureza; o trabalho, que cria o mundo material e nosso ambiente social; e a ação, o reino da liberdade que não está sujeito a nenhuma dialética entre meios e fins, porque é seu próprio fim (14). Em outras palavras, a liberdade, a forma mais elevada e nobre de política, é um campo autônomo radicalmente separado da sociedade, e qualquer interferência nela representa a ameaça do despotismo. Consequentemente, a república de Arendt carece de qualquer conteúdo social: liberdade não significa emancipação da opressão econômica e social, significa cidadãos livres flutuando livremente em um vácuo social.
Sua distinção radical entre liberdade e necessidade exclui implicitamente da política todos aqueles cujo principal interesse é satisfazer suas necessidades vitais antes de participar da esfera pública, e simplesmente ignora aqueles que não o fazem por falta de tempo, conhecimento, educação etc. Mas as revoluções são exatamente os momentos em que os excluídos não têm mais voz e clamam para serem ouvidos. Marx definiu o comunismo como um “reino de liberdade” que poderia ser estabelecido além do campo de produção. Arendt era hostil às revoluções sociais, que, em sua opinião, eram pré-políticas ou antipolíticas. Em sua opinião, a responsabilidade final por esse trágico mal-entendido recaiu sobre Marx, um pensador cujo “lugar na história da liberdade humana será sempre equívoco”, uma vez que, concluiu, “a abdicação da liberdade aos ditames da necessidade” encontrou nele “seu teórico”.15 Ao criticar seu conceito de revolução, Hobsbawm apontou que, como historiador, ele não podia dialogar com ela. Eles falavam línguas diferentes, como os teólogos e astrônomos no início da Europa moderna (e pode-se imaginar quem, nessa analogia, encarnava Galileu e quem a Inquisição)16.
Esse conflito simplesmente remonta à aporia original da liberdade moderna: a contradição interna entre homem e cidadão que molda toda a cultura do Iluminismo e que o jovem Marx analisou em 1842 em seus escritos sobre os cercamentos de campos da Renânia. Os mais ricos e os mais pobres são “iguais” como cidadãos, mas não, é claro, como “indivíduos privados”, ou seja, como proprietários de imóveis, uma condição que é o núcleo da liberdade, conforme definido pelo liberalismo clássico. A Constituição Francesa de 1793 procurou superar essa dicotomia entre homem e cidadão: todos os seres humanos (incorporando direitos universais e inalienáveis) eram cidadãos (desfrutando de direitos positivos, instituídos e concretos) e a propriedade estava subordinada ao “direito à existência”. Em outras palavras, a liberdade e a igualdade andavam juntas; não era a propriedade individual que as ligava, mas as necessidades da comunidade. Étienne Balibar descreve essa união com o conceito de egaliberté17.
Ao comparar as revoluções americana e francesa, Alexis de Tocqueville provavelmente foi mais lúcido do que Arendt. Enquanto a Revolução Americana foi dirigida contra um poder externo e não buscou destruir nenhuma estrutura econômica e social herdada do passado, a Revolução Francesa foi dirigida contra o Ancien Régime; sua emancipação política não poderia ocorrer sem destruir todo o edifício do absolutismo, um sistema de poder que governou por séculos e moldou mentalidades, culturas e comportamentos18 . A revolução não podia separar a emancipação política da emancipação social: ela foi forçada a inventar uma nova sociedade para substituir a antiga. A Revolução Americana resolveu a questão social por meio da fronteira: o espaço era o horizonte de sua liberdade e a democracia foi concebida como uma conquista, com o estabelecimento de colonos e proprietários de terras. A fronteira era um horizonte inesgotável de apropriação19 . Para idealizar a Revolução Americana, Arendt foi forçada a ignorar seus estigmas originais: o genocídio dos povos indígenas e a aceitação da escravidão. Um século depois, entretanto, a Guerra Civil foi tão violenta e letal quanto o Terror havia sido ou seria nas revoluções francesa e russa. Arendt defendia uma estranha concepção de liberdade, oscilando entre Rosa Luxemburgo e Tocqueville, outro grande admirador da democracia americana.
Em um famoso e controverso artigo sobre Little Rock, escrito em 1957, no auge da batalha pelos direitos civis nos Estados Unidos, Arendt denunciou vigorosamente todas as formas de discriminação legal contra os afro-americanos, mas considerou sua segregação social como um fato inevitável e, em última análise, aceitável, que não poderia ser resolvido por meio de medidas políticas. “A questão”, escreveu em 1959, “não é como abolir a discriminação, mas como mantê-la confinada na esfera social, onde é legítima, e evitar que invada a esfera política e pessoal, onde é destrutiva”.20 Deve-se observar que a exclusão da questão social da esfera política é precisamente o argumento pelo qual o liberalismo clássico sempre procurou legitimar privilégios e poderes relacionados à propriedade. No século XIX, a democracia era vista como a “invasão da esfera política pela questão social”, um sistema perigoso que os mais proeminentes pensadores do liberalismo, de John Stuart Mill a Benjamin Constant, rejeitaram ao vincular o direito de voto à propriedade. É certo que a cegueira de Arendt para a questão social não se originou da tradição filosófica do liberalismo clássico, mas sim de uma concepção existencialista da “autonomia” do político21 . O resultado, no entanto, é o mesmo: seja sacralizando a propriedade (Constant e Mill) ou ignorando-a (Arendt), todos eles excluíram os pobres do reino da política.
Como podemos explicar a visão polêmica de Arendt sobre a liberdade? Como ela escreveu em várias ocasiões, ela descobriu a política por meio da “questão judaica”, no sentido de que era a questão de uma minoria politicamente discriminada e perseguida, mas socialmente integrada. Arendt escreveu páginas poderosamente esclarecedoras sobre como o antissemitismo havia transformado os judeus em párias, apátridas privados de cidadania e, portanto, de qualquer existência legal e política; ela via isso como um reflexo das contradições internas do Iluminismo – a divisão não resolvida entre seres humanos e cidadãos – e a crise do Estado-nação no século XX. O fato é que, nos EUA, a segregação dos negros tinha sua própria história e não podia ser interpretada pela ótica judaica.22 Quando os nazistas promulgaram as Leis de Nuremberg em 1935, os guetos judeus haviam deixado de existir na Alemanha havia mais de um século. A abolição da discriminação legal foi certamente um progresso, mas não pôs fim nem ao racismo nem à opressão social que, na prática, esvaziou a própria emancipação legal.
De modo mais geral, Arendt era indiferente a qualquer forma de revolução anticolonial. Como observou David Scott, “para Arendt, há apenas duas revoluções do século XVIII, a francesa e a americana”, enquanto a Revolução Haitiana era simplesmente impensável23. Em seu ensaio Sobre a Violência (1970), ela observou “a escassez de rebeliões e levantes de escravos entre os deserdados e oprimidos” e acrescentou que, quando ocorriam, geravam uma “fúria louca” que “transformava sonhos em pesadelos para todos ”24 . A violência dos colonizados era pior do que a opressão que sofriam, escreveu, contra Jean-Paul Sartre, pois era uma “explosão vulcânica” pré-política que não poderia produzir nada de proveitoso além da substituição de líderes sem mudar o mundo. O “Terceiro Mundo” não era “uma realidade, mas uma ideologia” e sua unidade era um mito tão perigoso quanto o apelo de Marx pela unidade dos proletários, independentemente de sua nacionalidade25 . Em vez de serem os líderes de um processo revolucionário de descolonização, Mao Tse Tung, Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara e Ho Chi Minh, com seus “discursos pseudo-religiosos”, eram os “salvadores” dos acadêmicos desiludidos com o Oriente e o Ocidente, enquanto o Black Power foi fundado na ilusão de criar uma aliança entre afro-americanos e o mítico “Terceiro Mundo” (em outras palavras, um movimento antibranco potencialmente racista). Escrever isso em 1970 não era simplesmente impreciso ou chocantemente desdenhoso: era a expressão de uma cegueira intelectual surpreendente, sem mencionar um preconceito nitidamente eurocêntrico e orientalista.
Ao des-historicizar a revolução, Arendt aderiu a clichês conservadores sobre a barbárie de raças inferiores e continentes atrasados. Na realidade, a violência extrema estava longe de ser uma característica exclusiva das revoluções coloniais. Ao executar o rei, as revoluções inglesa, francesa e russa tentaram canalizar e controlar uma onda espontânea de violência vinda de baixo. De acordo com Arno J. Mayer, o grande historiador do Terror nas revoluções francesa e russa, a violência era consubstancial a elas, duas “fúrias” que varriam qualquer ordem ou poder dominante26. Em 1834, o jornal satírico francês Le Charivari apresentou a revolução como uma “torrente” que inundou tudo com uma força elementar irresistível. As revoluções geralmente seguem uma dinâmica autônoma, como espirais fora de controle que visam obliterar o passado e inventar o futuro a partir do zero. E como seu poder constituinte entra em conflito violento com a antiga soberania, elas precisam destruir seus símbolos. Não há liberdade sem a execução do rei. Como já vimos, as revoluções empregam uma carga iconoclasta espetacular que transforma a libertação em uma realização visível e tangível. O dia 14 de julho marca a tomada da Bastilha, que foi sistematicamente demolida. A Comuna de Paris também precisava de seu ato iconoclasta simbólico, que ocorreu com a demolição da coluna Vendôme. As insurreições são momentos de efervescência coletiva em que as pessoas comuns sentem um desejo incontido de invadir as ruas, ocupar os locais de poder, mostrar sua própria força, se necessário pegar em armas, e celebrar a libertação por meio de manifestações de fraternidade e felicidade. De acordo com Lênin, um dos mais austeros pensadores da revolução, a revolução é um “festival dos oprimidos”. Ciente de que a memória revolucionária precisa de poderosos pontos de referência icônicos, Sergey Eisenstein fez da cena de abertura de Outubro (1927) a imagem da multidão insurgente empenhada em destruir a estátua do czar. Em julho de 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, a liberdade também significava a luta contra o fascismo, sempre representada como o ato de destruir seus símbolos. A violência da luta anticolonial não foi, portanto, nada excepcional. Analisando a queima de plantações durante a revolução dos escravos em Hispaniola, C.L.R. James comparou-a a várias práticas europeias análogas: “Os escravos destruíam implacavelmente. Como os camponeses na jacquerie ou os raspadores luditas, eles buscavam sua salvação da maneira mais óbvia, a destruição daquilo que era, como bem sabiam, a causa de seu sofrimento, e se destruíam muito era porque haviam sofrido muito”. 27
É quase impossível ler as palavras de Arendt sobre a violência anticolonial – “fúria louca” e “pesadelos” – sem pensar no famoso capítulo sobre violência em Os Condenados da terra (1961), de Frantz Fanon. O contraste é impressionante. A separação categórica traçada por Arendt entre liberdade e necessidade lembra o retrato de Fanon da cidade colonial dicotômica, onde, na verdade, coexistem duas cidades: a branca e a de cor; a primeira, europeia e “civilizada”, a segunda, “primitiva”, dominada por preocupações elementares e geralmente descrita com um léxico zoológico: cores, cheiros, promiscuidade, sujeira, desordem, barulho e assim por diante. Fanon se concentrou nos símbolos corporais dessa alienação, que ele descreveu como uma espécie de “espasmo muscular” ou “tetania”. Isso expressava uma agressividade internalizada que poderia levar à “autodestruição”, um comportamento que muitos observadores ocidentais interpretaram como “histeria” indígena 28.
O que Arendt chamou de “fúria louca” foi para Fanon uma violência regenerativa. Em sua opinião, a violência era um meio necessário de libertação que “desintoxicava” e “reumanizava” os oprimidos: “O homem colonizado se liberta com e por meio da violência”.29 Esta, nascida como contra-violência, tornou-se um estágio crucial no processo dialético de libertação, no qual cumpriu, em termos hegelianos, o papel da “negação da negação”: não uma “reconciliação” ilusória (a perspectiva prejudicial de “humanizar” o colonialismo), mas uma supressão radical tanto dos governantes quanto dos governados. A relação sujeito-objeto estabelecida pelo colonialismo foi rompida: o objeto havia se tornado um sujeito. A violência revolucionária não podia ser interpretada como uma luta por reconhecimento, era uma luta para destruir a ordem colonial e, nesse sentido, sua desordem era tanto “um sintoma quanto uma cura ”30.
É claro que esta metamorfose conceitual da “fúria louca” arendtiana na violência redentora de Fanon implica uma mudança epistêmica: ver o colonialismo através dos olhos dos colonizados e adotar um ponto de observação não-ocidental. Arendt foi incapaz de efetuar tal mudança de perspectiva. É interessante notar que Jean Améry (Hans Mayer), um judeu austríaco que foi deportado para Auschwitz e apoiou a Frente de Libertação Nacional (FLN) durante a Guerra da Argélia, admirava Fanon e defendia a sua visão da violência. Fanon, destacou ele, “não estava mais no circuito fechado do ódio, do desprezo e do ressentimento”31. A sua visão era política e nada tinha em comum com as glorificações míticas, niilistas ou místicas da violência, como se podia encontrar nos escritos de Georges Sorel, do jovem Walter Benjamin (“violência divina”) ou de Georges Bataille (o sofrimento como acesso sensualista à violência e ao sagrado). A violência e a opressão não eram um destino inevitável; sua corrente imemorial poderia ser rompida. Em Além do Crime e Castigo (1966), seu depoimento sobre a guerra e a deportação, Améry lembrou que, enquanto era torturado no forte de Breendonk, na Bélgica, por ser membro da Resistência, seu desejo era poder dar uma “forma social concreta à [sua] dignidade com um soco no rosto humano”32. No seu entendimento, a concepção de violência de Fanon era ao mesmo tempo existencial e histórica. Continha, sem dúvida, “aspectos messiânico-milenaristas patentes”, mas isso apenas reforçou a sua legitimidade: “A liberdade e a dignidade devem ser alcançadas por meio da violência, para que sejam liberdade e dignidade”33. Améry não defendeu a concepção de Fanon como um filósofo existencialista (Sartre havia prefaciado Os Condenados da Terra), ele o fez como um sobrevivente judeu dos campos nazistas. A violência revolucionária, escreveu ele, “não é apenas a parteira da história, mas também a do ser humano quando é descoberta e ganha forma na história”34.
Em As Origens do Totalitarismo, Arendt compreendeu a ligação genética que liga o imperialismo do século XIX ao nacional-socialismo e às suas políticas de extermínio, mas nos seus trabalhos posteriores abandonou essa visão poderosa e, em última análise, a sua abordagem à política permaneceu profundamente eurocêntrica. O seu ensaio sobre a revolução não menciona a Revolução Haitiana. A derrubada do colonialismo por um movimento auto emancipatório de pessoas escravizadas era “impensável” dentro da sua categoria de liberdade. Apesar das suas percepções frutíferas no final da Segunda Guerra Mundial, ela acabou por aderir à cultura eurocêntrica predominante.
Como salienta Domenico Losurdo, no século XIX a liberdade era restringida por fortes limites de classe, raça e gênero: apenas a propriedade permitia a plena cidadania aos homens brancos, enquanto os proletários, os povos colonizados e as mulheres não tinham o direito de voto35. Doravante, uma genealogia da liberdade deveria ser vista como um processo que ligava três formas de libertação que historicamente assumiram os nomes de socialismo, anticolonialismo e feminismo.
Nota: Este artigo é um trecho do livro Revolução. Uma história intelectual, FCE, Buenos Aires, 2022. Tradução: Horacio Pons.
Notas:
1. Sobre o conceito de “práticas de liberdade”, v. M. Foucault: «L’éthique du souci de soi comme pratique de la liberté» [1984] in Dits et écrits, 1954-1988 4, 1980-1988, Gallimard, Paris, 1994. [Há uma edição em espanhol: « Ética do cuidado de si como prática de liberdade” em Estética, ética e hermenêutica. Obras essenciais III, Paidós, Barcelona, 1999]. Sobre o conceito de poder como uma rede complexa de “relações de poder”, v. os textos coletados em M. Foucault: Essential Works of Foucault, 1954-1984 3: Power, The New Press, Nova York, 2000.
2. Ver M. Foucault: Technologies of the Self: A Seminar with Michel Foucault, University of Massachusetts Press, Amherst, 1988. [Há uma edição em espanhol: Technologies of the Self e outros textos relacionados, Paidós / Institut de Ciències de l’Educació de la Universidade Autônoma de Barcelona, Barcelona, 1990].
3. Jean-Antoine-Marie-Nicolas de Caritat, Marquis de Condorcet: The Sketch [1795] in Political Writings, Cambridge UP, Cambridge-New York, 2012. [Há uma edição em espanhol: Esboço de um quadro histórico do progresso de o espírito humano, Centro de Estudos Políticos e Constitucionais, Madrid, 2004].
4. Ver Mona Ozouf: «Liberté» em François Furet e M. Ozouf (eds.): Dictionnaire critique de la Révolution française 4: Idées, Flammarion, Paris, 1992. [Há uma edição em espanhol: «Libertad» no Dicionário do Revolução Francesa, Aliança, Madrid, 1989].
5. M. Foucault: «Inutile de se soulever?» [1979] em Dits et écrits, 1954-1988 3: 1976-1979, Gallimard, Paris, 1994, texto no. 269, pág. 790. [Há uma edição em espanhol: «É inútil revoltar-se?» em Estética, ética e hermenêutica, cit.].
6. M. Foucault: “Direito à Morte e Poder sobre a Vida” em História da Sexualidade 1: Uma Introdução, Penguin, Nova York, 1978, p. 135. [Há uma edição em espanhol: «Direito à morte e poder sobre a vida» em História da sexualidade 1: A vontade de saber (1976), Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2016]. Segundo Foucault, a biopolítica implicava “uma nova mecânica de poder, que tem procedimentos muito particulares e específicos, instrumentos completamente novos [e] um aparato muito diferente”. No seu entendimento, esse poder biopolítico era “absolutamente incompatível com as relações de soberania”. Ver M. Foucault: A sociedade deve ser defendida: palestras no Collège de France, 1975-1976, Picador, Nova York, 2003, p. 35. [Há uma edição em espanhol: Defenda a sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976), FCE, Buenos Aires, 2000]. Esta suposta incompatibilidade entre biopolítica e soberania foi criticada por Roberto Esposito em Bíos. Biopolítica e Filosofia, University of Minnesota Press, Minneapolis, 2008. [Existe uma edição em espanhol: Bíos. Biopolítica e filosofia, Amorrortu, Buenos Aires, 2006].
7. Mais do que uma conciliação ou uma síntese impossível entre Marx e Foucault, isso implicaria trabalhar com eles assumindo a sua “disjunção”. V. Étienne Balibar: “L’anti-Marx de Michel Foucault” em Christian Laval, Luca Paltrinieri e Ferhat Taylan (eds.): Marx & Foucault: Palestras, usos, confrontos, La Découverte, Paris, 2015. V. tb. E. Traverso: «Biopotere e violência: sugli usi storiografi di Foucault e Agamben» in Contemporanea vol. 12 Nº 3, 7/2009.
8. H. Arendt: On Revolution [1963], Penguin, Nova York, 2006, p. 82. [Há uma edição em espanhol: Sobre la Revolución, Alianza, Madrid, 1988].
9. Ibid., pág. 104. A oposição traçada por Arendt entre as revoluções norte-americana e francesa não é nova. Como aponta Antonio Negri, o primeiro a pensar nisso foi Friedrich von Gentz, em sua introdução à tradução alemã das Reflexões sobre a Revolução na França, de Edmund Burke, que na época havia sido popularizada pelos partidários de John Adams contra Thomas Jefferson. durante a campanha presidencial de 1800. Ver A. Negri: Insurgências: Poder Constituinte e o Estado Moderno [1992], University of Minnesota Press, Minneapolis, 1999, pp. 25 e 26. [Há uma edição em espanhol: O poder constituinte. Ensaio sobre as alternativas da modernidade, Libertarias / Prodhufi, Madrid, 1994].
10. H. Arendt: As Origens do Totalitarismo, Harcourt Brace Jovanovich, Nova York, 1976, pp. 175-176. [Há uma edição em espanhol: As origens do totalitarismo, 3 vols., Alianza, Madrid, 1981-1982].
11. H. Arendt: Sobre a Revolução, cit., pp. 98-99.
12. H. Arendt: A Vida da Mente, Harcourt Brace Jovanovich, Nova York, 1978, p. 19. [Há uma edição em espanhol: A vida do espírito, Paidós, Buenos Aires, 2002]. V. tb. H. Arendt: A Condição Humana, University of Chicago Press, Chicago, 1958, p. 50. [Há uma edição em espanhol: A condição humana, Paidós, Barcelona, 1993]. Sobre o conceito “agonal” de política em Arendt, v. Seyla Benhabib: O Modernismo Relutante de Hannah Arendt [1996], Rowman & Littlefield, Lanham, 2000, pp. 125-126 e 199-200.
13. H. Arendt: «Introdução à Política» [1950] em The Promise of Politics, Schocken Books, Nova Iorque, 2005. [Há uma edição em espanhol: «Introdução à política» em The Promise of Politics, Paidós, Barcelona, 2008]. Sobre o conceito de política em Arendt como uma reconsideração crítica da ontologia heideggeriana de Ser e Tempo [1927], v. em particular S. Benhabib: ob. cit., pp. 51-57.
14. H. Arendt: A Condição Humana, cit.
15. H. Arendt: Sobre a Revolução, cit., p. 51.
16. E. Hobsbawm: “Hannah Arendt on Revolution” [1965] em Revolutionaries: Contemporary Essays [1973], The New Press, Nova York, 2001. [Há uma edição em espanhol: “Hannah Arendt sobre la Revolución” em Revolucionarios. Ensaios Contemporâneos, Crítica, Barcelona, 2010].
17. V. em particular É. Balibar: “A Proposta de Igualdade”, “A Reversão do Individualismo Possessivo” e “Novas Reflexões sobre Igualdade: Duas Lições” em Igualdade: Ensaios Políticos [2010], Duke UP, Durham, 2014, caps. 1-3. [Há uma edição em espanhol: «A proposição da igualdade», «A inversão do individualismo possessivo» e «Novas reflexões sobre a igualdade (duas lições)» em Igualdade, Herder, Barcelona, 2017].
18. Ver A. de Tocqueville: The Old Regime and the Revolution, University of Chicago Press, Chicago, 1998. [Existe uma edição em espanhol: El Antiguo Régimen y la Revolución, FCE, Cidade do México, 1996].
19. Depois de aprovar com entusiasmo a concepção arendtiana de revolução como expressão da autonomia da política – um “poder constituinte” que, como um “princípio expansivo”, cria o político “do nada” (A. Negri: Insurgencies, cit., pp. 25-30)–, Negri propõe uma interpretação sócio-histórica da Revolução Americana como uma “fronteira” de liberdade na qual “o espaço funda o poder porque é concebido como apropriação, expansão” (ibid., capítulo 4).
20. H. Arendt: “Reflexões sobre Little Rock” em Dissent vol. 6 No 1, Inverno de 1959, p. 51. [Há uma edição em espanhol: «Reflexões sobre Little Rock» em Responsibilidad y Judgment, Paidós, Barcelona, 2007]. Em Kathryn T. Gines: Hannah Arendt and the Negro Question, Indiana UP, Bloomington, 2014, você encontrará uma crítica cuidadosa da posição de Arendt na luta contra a segregação dos negros nos Estados Unidos durante a década de 1950.
21. Sobre as raízes existencialistas do conceito de político de Arendt, v. Martin Jay: “O Existencialismo Político de Hannah Arendt” em Exilados Permanentes: Ensaios sobre a Migração Intelectual da Alemanha para a América, Columbia UP, Nova York, 1986. Ensaios sobre a migração intelectual alemã nos Estados Unidos, El Cuenco de Plata, Buenos Aires, 2017].
22. Ver E. Traverso: «Entre Duas Épocas: Judaísmo e Política em Hannah Arendt» em The End of Jewish Modernity, Pluto Press, Londres, 2016. [Há uma edição em espanhol: «Entre duas eras: Judaísmo e política em Hannah Arendt» em O fim da modernidade judaica. História de uma virada conservadora, FCE, Buenos Aires, 2014].
23. D. Scott: Conscritos da Modernidade: A Tragédia do Iluminismo Colonial, Duke UP, Durham, 2004, p. 217. O adjetivo “impensável” deve ser entendido no sentido dado por Michel-Rolph Trouillot: a Revolução Haitiana era “impensável” no quadro do pensamento ocidental. Ver M.-R. Trouillot: Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História, Beacon Press, Boston, 1995, p. 82. [Há uma edição em espanhol: Silenciando o passado. O poder e a produção da história, Comares, Granada, 2017].
24. H. Arendt: “Sobre a Violência” em Crises da República, Harcourt Brace Jovanovich, Nova York, 1972, p. 123. [Há uma edição em espanhol: «Sobre a violência» em Crisis de la República, Trotta, Madrid, 2015].
25. Ibid., pp. 123 e 124. Sobre o “eurocentrismo generalizado” de Arendt, v. Judith Butler: Parting Ways: Jewishness and the Critique of Sionism, Columbia UP, Nova York, 2012, pp. 139-140.
26. AJ Mayer: As Fúrias: Violência e Terror nas Revoluções Francesa e Russa, Princeton UP, Princeton, 2000. [Existe uma edição em espanhol: Las Furies. Violência e terror nas revoluções francesa e russa, Imprensa da Universidade de Saragoça, Saragoça, 2014].
27. C.L.R. James: Os Jacobinos Negros: Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingo [1938], Vintage, Nova York, 1989, p. 88. [Há uma edição em espanhol: Os jacobinos negros. Toussaint L’Ouverture e a revolução haitiana, Turner/FCE, Madrid-México, 2003].
28. F. Fanon: Os Condenados da Terra [1961], Grove Press, Nova York, 2004, pp. 19 e 217. [Existe uma edição em espanhol: Os condenados da terra, FCE, Cidade do México, 1963].
29. Ibid., pág. 44.
30. Ibid., pág. 217.
31. J. Améry: “O Nascimento do Homem a partir do Espírito da Violência: Frantz Fanon, o Revolucionário” [1969] em Wasafiri vol. 20 No 44, 2005, p. 14. [Há uma edição em espanhol: «O nascimento do homem a partir do espírito de violência: Frantz Fanon» em F. Fanon: Escritos Políticos, Ennegativo, Medellín, 2020].
32. J. Améry: Nos Limites da Mente: Contemplações de um Sobrevivente sobre Auschwitz e suas Realidades [1966], Indiana UP, Bloomington, 1980, p. 91. [Há uma edição em espanhol: Além do crime e castigo. Tentativas de superar a violência por parte de uma vítima, 2ª ed. Rev. e cor., Pré-Textos, Valência, 2004].
33. J. Améry: «O Nascimento do Homem a partir do Espírito da Violência», cit., p. 16.
34. Ibidem.
35. D. Losurdo: Liberalism: A Counter-History [2005], Verso, Londres, 2011. [Há uma edição em espanhol: Contrahistoria del liberalismo, El Viejo Topo, Barcelona, 2007].
Tela de 1802 pintada por Auguste Raffet mostra batalha durante Revolução Haitiana (1791-1804) — grande rebelião de escravos e negros libertos que aconteceu na ex-colônia francesa inspirou outros movimentos de libertação nacional na América Latina
# Leia a matéria de Roberto Peixoto no G1 e entenda como ficou a versão final do NEM.
# No clipplng do site, a histórica luta para impedir que a concepção privada e mercantil da educação brasileira impusesse seu domínio atrasado e obscurantista na formação oferecida pelas escolas.
Cinismo
# Carrocinha humana: Camboriú interna 'sem teto' à força em temporada (Pública)
Cinismo
# Como a Coca-Cola ajudou a enterrar PL que proibe refrigerante em escolas (Intercept)
# Reconhecimento da suposta vitória da oposição a Maduro surpreende o Brasil (Uol) # Maduro reage (Uol) # Brasil, Colômbia e México se unem pela divulgação das atas (Opera Mundi) # Governo venezuelano tem o ônus de provar a vitória de Maduro, diz Amorim (247) # O que é o Conselho Nacional Eleitoral venezuelano? (Carta Capital) # Por que PT mantém apoio a Maduro enquanto parte da esquerda o critica? (BBC)
Desde a década de 1980, as finanças dos EUA cresceram desproporcionalmente em poder e influência, à medida que os fundos de investimento americanos se tornaram os maiores acionistas das corporações americanas, administrando dezenas de trilhões de dólares em investimentos. Este artigo fornece uma nova análise empírica da ascensão do capitalismo de gestores de ativos nos Estados Unidos (leia o texto integral em A Terra é redonda)
Em Gaza, Israel usa pela primeira vez programas que vasculham redes sociais para identificar opositores; e em seguida localizá-los em suas casas e liquidá-los. Quais são; como funcionam; por que é preciso regular a inteligência artificial
"Sinceramente, talvez nunca fique esclarecido se houve ou não fraude. Mas existe uma maneira de resolver isso definitivamente. Se por acaso os militares venezuelanos decidirem fazer acordos com empresas americanas de petróleo, a Venezuela passaria imediatamente a ser um exemplo de democracia e nunca mais ninguém iria questionar o resultado da eleição. Vide o caso da Arábia Saudita, a ditadura mais sanguinária do mundo e tratada como democracia pela mídia em geral", escreve Liszt Vieira, em artigo publicado por A Terra é Redonda (acesse no IHU).
Na Venezuela, embora reprimida, a oposição de direita é tolerada e concorre à eleição presidencial, mas eu não botaria a mão no fogo por um ou outro: tudo tem que ser provado
Como era esperado, tanto o governo como a oposição ganhou a eleição na Venezuela. Nenhum dos lados aceitaria a derrota, já se sabia antes. Pelo resultado oficial, o atual presidente Maduro ganhou com 51% dos votos. Isso é perfeitamente possível, assim como o contrário também seria possível. Como todo candidato perdedor diz que venceu e que houve fraude, isso tem de ser provado. Vide os exemplos de Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil.
A Venezuela é um regime militar com fachada civil. Eu chamo de democracia autoritária. Não chamo de ditadura porque nunca ficou provado que houve fraude em eleição presidencial. E existe oposição. Mas há denúncias de tortura, censura e perseguição política.
Na Venezuela existe oposição de direita, reprimida, mas continua existindo. A líder da oposição, Maria Corina Machado, é de extrema direita. Sua candidatura foi barrada, mas ela não foi presa sem provas, como ocorreu com Lula na democracia brasileira. Segundo li, ela assinou a Carta de Madri, que reuniu fascistas da Europa e América Latina.
Ela é da turma de Jair Bolsonaro e Javier Milei. A presença dela na política venezuelana seria comparável a imaginar Marighela candidato da oposição a presidente durante a ditadura militar. Na ditadura brasileira, a esquerda não era tolerada, pra dizer o mínimo. Na Venezuela, embora reprimida, a oposição de direita é tolerada e concorre à eleição presidencial.
O curioso é que a Venezuela é considerada de esquerda porque os militares não quiseram entregar o petróleo às empresas americanas. Mas a política econômica é neoliberal, existe uma enorme desigualdade social e, para sobreviver, cerca de 20% da população emigrou para outros países.
Nas eleições parlamentares de 2015, a oposição venceu com 7,7 milhões de votos, enquanto os governistas tiveram 5,6 milhões. Os resultados foram reconhecidos e ninguém falou em fraude. Como os exilados em outros países, em grande número, não puderam votar, isso favoreceu o candidato Nicolás Maduro. Não sei se houve fraude, mas isso tem de ser provado. Eu não botaria a mão no fogo, seja em favor do governo ou da oposição. As alegações de violação de direitos humanos, como tortura, também precisam ser provadas.
O assessor internacional do Presidente Lula, o embaixador Celso Amorim, pressionou o presidente Nicolás Maduro a divulgar as atas eleitorais. O Brasil ainda não reconheceu oficialmente a vitória de Nicolás Maduro na eleição presidencial. Enquanto isso, foi anunciado que a Venezuela decidiu expulsar diplomatas de países que contestaram a vitória de Nicolás Maduro e vai retirar o pessoal diplomático da Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai.
Mas há também uma questão geopolítica. O governo da Venezuela foi sancionado pelo governo americano, pelo Tesouro e Departamento de Estado. E sofre um cerco dos EUA. É verdade que, depois de 11 anos no poder, Nicolás Maduro enfrenta um desgaste, mais por “fadiga de material” devido ao fracasso econômico do que por motivos ideológicos. Como ocorre em toda parte, a maioria do eleitorado não vota por razões ideológicas. Ao vencer, se é que venceu mesmo, Nicolás Maduro mostra que, com todo o barulho da oposição na mídia, o governo tem maioria.
Sinceramente, talvez nunca fique esclarecido se houve ou não fraude. Mas existe uma maneira de resolver isso definitivamente. Se por acaso os militares venezuelanos decidirem fazer acordos com empresas americanas de petróleo, a Venezuela passaria imediatamente a ser um exemplo de democracia e nunca mais ninguém iria questionar o resultado da eleição. Vide o caso da Arábia Saudita, a ditadura mais sanguinária do mundo e tratada como democracia pela mídia em geral.
Assim, voltaríamos a ter na Venezuela a “pax americana” e ficaria tudo resolvido. Amém!
Liszt Vieira, professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).
Moradores dos "barrios" de Caracas constituem o reduto do chavismo. É com essa massa que as elites venezuelanas não querem dividir seu poder
Governantes de Israel apostam em conflito internacional de largas proporções para salvar sua pele de criminosos de guerra
# Morte de líder do Hamas e Hezbollah gera temor de escalada (GW) # Irã promete vingança (BBC) # Brasil condena assassinato do lider do Hamas (Opera Mundi) # ONU denuncia torturas cometidas por Israel contra prisioneiros palestinos (OM)
Em 2016, tudo indicava que a democrata Hillary Clinton chegaria lá. Mas mesmo com quase 3 milhões de votos a mais que o republicano Donald Trump, a ex-secretária de Estado americana levou a pior no colégio eleitoral. Não foi daquela vez, portanto, que uma mulher assumiu a principal cadeira do Salão Oval.
Agora, com a desistência de Joe Biden à frente da chapa democrata, a primeira mulher vice-presidente do país, Kamala Harris, de 59 anos, tem a chance de quebrar essa barreira.
# Continue a leitura da matéria de Amanda Gorziza e Renata Buono, na Piauí
Existe vida além do “presidencialismo” e do “parlamentarismo”: a “participação cidadã” para gerir as receitas públicas com ética na política. Luiz Marques, A Terra é redonda (acesse)
Na Segunda Guerra Mundial, a democracia foi apresentada como a guardiã das liberdades frente a ofensiva autoritária do nazifascismo, o que a tornou um sonho de consumo para a paz, bem como um álibi manipulado pelas “elites” por conveniência. Na América Latina, as ditaduras civis-militares nos anos de chumbo torturavam nos porões e acenavam uma volta à normalidade, pois não ousavam repudiar os predicados democráticos. Por ora, o conluio jurídico-midiático-político arquiva a manu militari. Os novos golpes estudam a função de cada talher na mesa, para resguardar as aparências.
A célula de Ipanema
No célebre ensaio A democracia como valor universal (1979), Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) intervém no PCB para denegar a ortodoxia do Comitê Central e também o personalismo de Luís Carlos Prestes que, na Carta aos Comunistas, acusava a linha partidária de reformista como se não o fosse com o Cavaleiro da Esperança. O autor mescla Antonio Gramsci à insurgência do ABC paulista para rebater a instrumentalização da democracia, opondo a questão democrática ao transformismo. Teoricamente sublinha a ligação orgânica entre a demokratia e o projeto de sociedade socialista.
Em Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo no Brasil, Marcelo Braz homenageia o ensaísta: “Postula uma associação entre a transição socialista e a democracia, como ponto de partida e ponto de chegada”, embora andasse a reboque do MDB. Somente depois de dez invernos, já nos estertores do velho Partidão, o insigne intelectual da UFRJ abandona de vez a estratégia do partido-ônibus. Na data que une a Queda do Muro de Berlim e o Consenso de Washington, enfim, a célula de Ipanema filia-se ao PT na defesa de alianças com a hegemonia das classes populares. A agenda política etapista se desmancha e enterra a “fase democrático-burguesa”. Paciência tem limite.
Nos anos 1990, a modernização dos Fernandos (Collor e Cardoso) apoia-se no lema thatcheriano: “o povo não existe, o que existe são os indivíduos e as famílias”, o que desobriga o Estado de formular políticas públicas. O voluntariado converte a condição dos pobres, de credores, em carentes de uma generosidade. Começa a marcha da desindustrialização, o desemprego cria um exército de reserva e a privataria saqueia o patrimônio estatal. Com o caminho aberto, o neoliberalismo festeja o “fim da história – a vitória da economia de mercado e da democracia liberal”; os supostos tetos do possível.
Carlos Nelson Coutinho admite que o título do libelo foi uma escolha ruim. Seria mais adequado intitulá-lo “A democratização como valor universal”. Evitaria a pecha de ilusionista por ignorar a análise concreta da realidade concreta. Se a democracia transcende os horizontes de classe, a tese do esgotamento capitalista espontâneo exagera na dose de otimismo. Erguer barreiras contrárias às mobilizações antissistêmicas e aos eventos insurrecionais de massas, para não provocar um putsch civil e/ou militar, é crer em Papai Noel. Desejar mudanças profundas na sociedade, com a suposição de que elas não serão notadas nem suscitarão uma contraofensiva, é uma imperdoável ingenuidade. O habitus da tolerância não é a regra na trajetória do patriarcado e do colonialismo, no Ocidente.
Equilíbrio de forças
Em priscas eras, se a direita pisava com coturnos os direitos humanos, para a esquerda a democracia tinha um caráter tático. A dimensão estratégica amadurece no contato com os cadernos gramscianos. O polêmico ensaio auxilia oprimidos e explorados a assimilarem o vetor da emancipação. Leandro Konder subscreve a reflexão do camarada de utopias e chopes cremosos no boêmio bairro carioca: “A democracia não é um caminho para o socialismo; é o caminho para o socialismo”, sintetiza.
Mas os desafios aumentam no século XXI. O arco atual de alianças democrático-policlassista é uma resposta em meio às adversidades. As contradições econômicas e extraeconômicas assomam sem que os sindicatos, os partidos e os movimentos avancem na conversão da palavra de ordem “vida, trabalho e dignidade” em uma unidade de ação, para implantar as políticas redistributivas, conscientizar e arregimentar os grupos vulneráveis. Eis o complicador no combate à extrema direita e à mídia corporativa, que flerta com o demônio nas páginas amarelas da cumplicidade e do ódio.
Não obstante, o campo civilizatório imprime uma democratização nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais e institucionais. Basta citar a declaração sobre “a defesa da democracia, pela construção de políticas públicas de interesse do povo e a reinserção soberana do país no mundo, dentre outros avanços”. Ver a Resolução do Diretório Nacional do PT (dezembro de 2023). Como enalteceu o presidente Lula 3.0 no discurso de posse: “O Brasil quer a democracia para sempre”.
A empreitada reatualiza as ideias de um ícone do austro-marxismo sobre a junção das formas direta e representativa da democracia, na “Viena Vermelha” do decênio 1920. “A vantagem dos conselhos obreiros sobre o Parlamento é evidente: as ligações entre eleitores e eleitos são mais estreitas pela fusão do poder legislativo e o poder executivo”, frisa Max Adler, na antologia coletada por Ernest Mandel, Control obrero, consejos obreros, autogestión. A articulação da “democracia política”, fundada em interesses particulares, com a “democracia social” baseada no interesse coletivo reflete o equilíbrio de forças – enquanto durar. Não é um fim, per se, mas um momento da luta de classes.
O espírito jacobino
A peculiaridade do Orçamento Participativo porto-alegrense é haver transcorrido numa conjuntura não revolucionária para acumular forças, na contramão do neoliberalismo. Uma situação que se repete na institucionalização das Conferências Nacionais oficializadas pelo governo federal hoje. O mecanismo bota num bico de sinuca o clientelismo e o fisiologismo característicos do Congresso brasileiro. O Orçamento Participativo celebra a forma de governo que dormitava (sem roncar) na Constituição de 1988. Os prêmios internacionais das gestões petistas revelam competência, criatividade, compromisso, visão de futuro e solidariedade na decisão da coletividade organizada – o melhor técnico é o povo.
Existe vida além do “presidencialismo” e do “parlamentarismo”: a “participação cidadã” para gerir as receitas públicas com ética na política. Segundo Montesquieu, o melhor regime é a República; difícil é achar republicanos para ampará-lo. A alteração do modelo tradicional de governabilidade tem apologistas da res publica na periferia, dispostos a acatar os interesses gerais dos trabalhadores. O grau de escolaridade não é um empecilho, e sim a retração da soberania popular pela tecnocracia.
A transparência no Erário empodera os sujeitos que não têm oportunidade para exercer as funções deliberativas, no teatro da política moderna. O Orçamento Participativo condensa a dialética governantes / governados para: (a) atender o anseio igualitário de acesso a equipamentos urbanos – escolas, postos de saúde, saneamento, transporte, iluminação e; (b) democratizar o planejamento para reduzir o caos e as iniquidades que acompanham a marcha do livre mercado. O povo não é um simples adereço do governo, mas a sua alma. O espírito jacobin emana da rebeldia contra todas as antigas injustiças.
La participation citoyenne serve de bússola-guia para a superação da gramática de dominação e subordinação e, em simultâneo, a constituição do humanismo socialista. No neoconservadorismo, no neoliberalismo e no neofascismo, traçar o próprio destino é um sopro em prol da igualdade e da liberdade. Com Carlos Nelson Coutinho, o Brasil aprendeu que democratizar é verbo no gerúndio. O processo de democratização em curso no país é a chance de construir uma verdadeira nação. A façanha incide no animus da resiliência do Sul global ao declinante imperialismo, para edificação de uma ordem multipolar. Afinal, o “direito a ter direitos” possui uma dinâmica internacionalista.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
Jogo rápido
Na contramão das tendências positivas da economia, Banco Central mantém juros recessivos e criminosos. Leia na Folha e no 247
Na Carta Capital: ➥ Banco Central manteve 'muleta' para justificar posição conservadora ➥ Banco Central mantém Selic em 10,5%, a 3a maior taxa de juros real do mundo
# Governo Lula é aprovado por 47% dos eleitores brasileiros
Essa é a segunda pesquisa a indicar sinais de que a atual gestão iniciou uma recuperação da popularidade no último mês... (Carta Capital)
# Desemprego cai novamente e segue o menor índice desde 2014
Desemprego no trimestre caiu de 7,9% para 6,9%, esse é o menor resultado para um trimestre desde o terminado em janeiro de 2015 (RBA)
# Centrais sindicais unem-se em protesto contra a alta taxa de juros
Para CUT e Força Sindical, reduzir a taxa de juros vai gerar mais empregos e elevar o consumo e a produção nacional (RBA)
A maioria dos eleitores paulistanos prefere que os candidatos sejam independentes. Pelo menos é isso que indica a pesquisa Genial/Quaest (Leia na Carta Capital).
Acompanhe o noticiário sobre a disputa pela prefeitura de São Paulo no clipping do site
# A revolta moral na abertura das Olimpíadas de Paris (Wison Gomes, na Folha)
# Pobreza extrema na Venezuela chega a 80% (El País) # Por que os EUA impõem sanções econômicas ao governo de Maduro? (BBC) # As razões do apoio popular ao chavismo (Outras Palavras)
# Empresa dos EUA é a fonte das acusações de fraude eleitoral (GGN)
# OEA não tem credibilidade para se meter nos assuntos internos da Venezuela, diz presidente do México (Opera Mundi). # E adverte: "Não metam o nariz" (Carta Capital)
# "Nada de grave": Lula diz que Atas colocarão fim nas dúvidas sobre eleição venezuelana (OM)
# Biden concorda com Lula sobre Venezuela e defende divulgação das Atas (247)
# Chavismo reúne multidão em Caracas para defender Maduro (OM)
# Maduro: "Não vou tolerar que questionem a legitimidade destas eleições" (GGN)
# Agressão sionista busca desviar a atenção internacional sobre o genocídio contra os palestinos que continua em Gaza. Enquanto mente sobre a Venezuela, mídia conservadora esconde a verdade sobre os crimes de Telavive
# Leia mais no G1
Um vice-presidente sob medida para a extrema direita
Vance é um novo elo político (e geográfico) entre o meio-oeste da Make America Great Again (MAGA), as elites financeiras de Nova York (Trump) e o capital de risco da Califórnia. O vice de Trump é alguém com muito potencial para influenciar a política americana nos próximos anos e mostra que o trumpismo, após ser derrotado nas urnas na corrida de 2020, está se reconfigurando para atrair novos eleitores e perpetuar seu projeto (# Leia o texto de Bruna Della Torre no blog da Boitempo)
Da Cidade de Deus, atleta brasileira entrou no Judô para não brigar na rua (leia sobre ela e sobre a regra que não lhe deu o Bronze - O Globo)
# Venezuela em chamas e sob o cinturão do neofascismo: se for preciso, extrema direita levará o país à Guerra Civil para compensar a rejeição dos conservadores nas urnas
Duas teses: 1) Articulação internacional de extrema direita cria narrativa da fraude antes mesmo das eleições venezuelanas e aposta em golpe contra Maduro (como ele próprio denunciou depois da proclamação de sua vitória). Base social do chavismo é a fonte de poder de Maduro e seu desempenho eleitoral nas áreas de extrema pobreza do país mostra a legalidade e a legitimidade do processo eleitoral; 2. A segunda tese tem base de sustentação mais frágil porque até agora (a menos que as atas da eleição mostrem o contrário) não há um único indício de que tenha ocorrido fraude eleitoral. O mantra da manipulação do resultados foi construído pelas forças da extrema direita global (inclusive no Brasil) como instrumento de deslegitimação das eleições qualquer que fosse o resultado do pleito, exceto no caso da sua vitória, possibilidade remota desde sempre para o conservadorismo que apoiou Juan Guaidó no passado e que agora se agarra a González (J.S.Faro)
# Eleição de Maduro pode ser questionada? (Uol)
# Postura do governo Lula será decisiva (247)
# Biden quer ouvir Lula (G1)
Jimmy Carter, um dos inimigos da 'linha dura' do exército brasileiro, presidiu os Estados Unidos entre 1977 e 1981.
Comentário do ex-presidente dos EUA foi feito semanas antes do país sul-americano reeleger Hugo Chávez para seu último mandato (leia a matéria do Brasil de Fato no Opera Mundi)
Refratária à campanha orquestrada pela velha mídia, popularidade de Lula cresce
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceria todos os nomes ventilados pelo bolsonarismo para concorrer nas eleições presidenciais de 2026. É o que revela pesquisa divulgada nesta segunda-feira 29 pelo instituto Paraná Pesquisas (leia mais na Carta Capital)
Reportagens da Pública mostram a promiscuidade entre empresários e Ricardo Nunes
Quais as relações entre empresários e a prefeitura da cidade mais populosa do Brasil? Nesta série de investigações, revelamos as conexões entre o prefeito Ricardo Nunes e donos de empresas que têm negócios ou outras relações com o poder.
Não deixe de ler e de divulgar todas as reportagens. São Paulo não pode continuar nas mãos dessa gente:
# O acordo com as creches # A empresa que foi beneficiada com a desapropriação de prédio # O fabuloso contrato de compra de pesticidas # O contrato contra a dengue # A empresa presidida pelo prefeito que recebeu R$ 19 milhões # Todas as empresas que participaram da concorrência eram de amigos do prefeito.
* Opera Mundi # Com 51% dos votos, Maduro vence as eleições # Maduro discursa: "quero amor, diálogo e entendimento" # Oposição recusa resultado e afirma que Eduardo González venceu * BBC: # Conselho Nacional Eleitoral diz que Maduro venceu, mas oposição aponta fraude grosseira * UOL: # Órgão eleitoral anuncia reeleição de Maduro # Brasil vai aguardar atas # Milei: "Argentina não reconhecerá outra fraude" # A manifestação de outros líderes internacionais
* G1: ➥ Quais líderes mundiais reconheceram a vitória de Maduro e quais a contestam ➥ Cartilha Chavista se repete e mergulha Venezuela no Caos
Paris 2024: perspectivas
Do jeito que o Diabo gosta
# Extrema direita de cabelo em pé pela apresentação da Última Ceia em perspectiva transidentitária na abertura das Olimpíadas (Poder 360) # Autor da proposta se explica (G1)
# Vai ter fraude? (Pública)
# Eleições na Venezuela. Manuel Domingos Neto (A Terra é redonda) # O chavismo a caminho de mais uma vitória. Francisco Dominguez (A Terra é redonda) # Oposição pode vencer, mas outros poderes seguem com o chavismo (Pública)
➥ Opera Mundi: # Inflação controlada e lojas abastecidas: o trunfo de Maduro nas eleições # Maduro confia na vitória, mas diz que respeitará o resultado das urnas, mesmo se for derrotado
Clipppings do site
# Palestinização do mundo (Boitempo)
Israel é o laboratório da morte, mas há o movimento inspirado na resistência palestina
Clipping: # Genocídio em Gaza
# Cibervassalos de todos os países, uní-vos (Outras Palavras)
Senhores do mundo capturam a subjetividade das populações
Clipping: # Tecnologia e Sociedade
Fantoche do neofascismo bolsonarista, que tem em Tarcísio seu principal representante em SP, Nunes obedece quem falar mais alto...
O domicílio eleitoral de Tarcísio já foi alvo de polêmicas. Nascido no Rio de Janeiro e com longo percurso em Brasília, o então ministro de Bolsonaro nunca tinha vivido em São Paulo quando foi convencido a disputar o governo do Estado.
Para poder concorrer, transferiu seu título e declarou endereço em São José dos Campos, cidade onde afirmava ter familiare. Apesar de questionamentos judiciais sobre o domicílio eleitoral do ex-ministro, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) deferiu o pedido de registro de candidatura, mas as controvérsias não acabaram. Nem a desconfiança...
# Leia a matéria da CNN e acompanhe o clipping sobre as eleições em São Paulo
No sábado 8 de junho, nos despedimos e saudamos a trajetória de inspiração, brilhantismo e coragem de Maria da Conceição Tavares. Como homenagem, publicamos a primeira entrevista da economista luso-brasileira à Margem Esquerda, concedida a Carlos Eduardo Martins, Rodrigo Castelo Branco e Virgínia Fontes para o n.11 da revista, publicado no 1º semestre de 2008 (acesse).
No último sábado, dia 8 de junho, nos despedimos e saudamos a trajetória de inspiração, brilhantismo e coragem de Maria da Conceição Tavares. A economista luso-brasileira expandiu horizontes, inspirou e continuará a inspirar gerações. Pioneira em diversas áreas, suas ideias não se limitaram ao campo heterodoxo da economia, influenciando pensadores em outras searas, como na ciência política e nas relações internacionais. Como homenagem, publicamos abaixo a primeira entrevista de Maria da Conceição Tavares à Margem Esquerda. Em conversa com Carlos Eduardo Martins, Rodrigo Castelo Branco e Virgínia Fontes, Maria da Conceição Tavares falou sobre sua história de vida, sua formação intelectual, o legado cepalino, o marxismo, a trajetória do pensamento heterodoxo no Brasil, a teoria do capitalismo tardio e muito mais no n.11 da revista, publicado no 1º semestre de 2008. Confira também a entrevista da economista a Luiz Felipe Osório e Maurício Metri, publicada no n.32 da revista, no 1º semestre de 2019.
Apresentação
Para este número, a equipe da Margem Esquerda foi até a residência da professora Maria da Conceição Tavares, no Rio de Janeiro. Virgínia Fontes, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Castelo Branco, no calor do verão carioca de janeiro de 2008, entrevistaram-na sobre grandes temas da economia mundial contemporânea e de nossa região. Foram mais de três horas de conversa regadas a simpatia, água e cafezinho. Autora de teses clássicas sobre o processo de substituição de importações – Da substituição de importações ao capitalismo financeiro (1964) –, os padrões de acumulação de capital no Brasil – Acumulação de capital e industrialização no Brasil (1974) – e a reorganização do capitalismo mundial desde os anos 1980 – A retomada da hegemonia americana (1985) –, Maria da Conceição Tavares discorre, nesta entrevista, sobre sua história de vida, sua formação intelectual, o legado cepalino, o marxismo, a trajetória do pensamento heterodoxo no Brasil, a teoria do capitalismo tardio, o estado atual da hegemonia norte-americana, as novas emergências na economia mundial, a volta do latino-americanismo e as perspectivas do capitalismo brasileiro. Por essas razões, temos a convicção de estarmos apresentando ao leitor um material de enorme riqueza, que contribuirá em muito para ele conhecer mais de perto Maria da Conceição Tavares e pensar sobre questões decisivas do mundo contemporâneo.
Entrevista
Margem Esquerda – Quais são as suas recordações da infância em Portugal? Esse país ainda hoje é uma referência?
Maria da Conceição Tavares – Portugal não é mais uma referência para mim. Cheguei ao Brasil em 1954. Tinha 23 anos e era formada em matemática. Os portugueses tinham um grupo de matemáticos gigantesco, que era uma grande referência. Mas, na economia política, não há uma referência tão marcante. A relação com Portugal afrouxou. Eu nasci em um povoado perto de Anadia. Uma cisão entre a família da minha mãe e a do meu pai, motivada por brigas políticas, fez com que meus pais viessem para Lisboa quando nasci. Minha família materna era de realistas “miguelistas”. Minha mãe praticamente fugiu para casar com meu pai, que era anarquista, de família de comerciantes pequeno-burgueses e republicana. Isso é suficiente no campo para dar em morte. Minha mãe foi uma mulher de vanguarda, católica não praticante que pagava aborto para prostitutas. Além disso, tinha um tio comunista. As brigas no almoço de domingo – quando eu era menina – eram uma coisa monumental, por causa da guerra da Espanha e da Catalunha. No Liceu, fui uma aluna aplicada em todas as matérias, mas gostava mesmo era de filosofia e, aos 16 anos, ganhei o prêmio Descartes.
ME – A razão da sua vinda para o Brasil foi familiar?
MCT – Não. Foi por motivos de trabalho. Casei estudante. Em 1949, papai veio para o Brasil para importar vinho em navio-tanque de Portugal. Ele sempre foi um homem de negócios, anarquista ou não, um pequeno-burguês. Depois, pegou as restrições de importações de 1950 e 1953 e teve de mudar para a produção de cerveja aqui no país. Meus pais estavam no Paraná quando nós chegamos, mas não tinham nada para oferecer, porque meu primeiro marido era engenheiro e eu era matemática. Viemos aqui na nossa lua-de-mel, em 1950. Ele teve uma oferta no Rio de Janeiro. Viemos para ficar em fevereiro de 1954.
ME – Sua impressão do Brasil foi positiva?
MCT – Achei uma coisa deslumbrante. Cheguei em pleno carnaval e nunca tinha visto uma festa popular desse porte. Na Europa, não são assim. Há duas coisas aqui que não têm em lugar nenhum do mundo: o réveillon e o carnaval, esse evento multiculturalista, antropofágico, que o velho Darcy Ribeiro tanto amava. A década de 1950 foi a mais esperançosa do país. A de agora parece uma democracia mais consolidada, mas qual é a diferença? Não se tem a crença no Brasil que se tinha naquele período. Era Brasília, era bossa-nova, eram os salões intelectuais, o crescimento, o Plano de Metas. A fauna intelectual do Rio era espantosa. Tinha para todos os gostos. Cientistas, matemáticos e físicos de primeira; os biólogos mais importantes eram ligados ao Chagas. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência era aqui. Os Aretas e os intelectuais eram quase todos comunas. No Rio, não tinha trotskista, a não ser o Mário Pedrosa. Conheci o Ferreira Gullar no salão do Pedrosa, um promotor e crítico de artes que realizava encontros literários, políticos e musicais abertos a todos. O Aníbal Machado, que era católico, fazia algo semelhante. Eram salões semanais, com umas quarenta pessoas em média.
ME – Onde eram os salões?
MCT – Um era na casa de Aníbal Machado, o outro era na casa do Mário Pedrosa, em Ipanema. Um terceiro se realizava na casa do Jorge Amado, em Copacabana. Quando se tratava de militância, era diferente. As reuniões dos intelectuais de apoio ao PC eram organizadas pelo velho Arruda Câmara, então secretário do Partido Comunista na ilegalidade. Naquela época, o ponto dessas reuniões era a minha casa, porque eu não era filiada, não tinha nada a perder e nem era conhecida. Eu usava franjinha, como agora, e era discretíssima: nunca tinha dito um palavrão na vida porque menina portuguesa não podia dizer palavrão. Depois do golpe de 1964 todas as reuniões passaram a ser “políticas”. Em qualquer reunião que fosse, mesmo uma festa, as pessoas iam me procurar para saber o que eu achava da economia e da política econômica da ditadura, o que passou a ser uma chatice monumental. Isso foi depois que virei economista e escrevi Da substituição de importações… Minha vida social se ferrou dali em diante.
ME – Você nunca pensou em voltar para Portugal? Nem em 1974? Porque aí a situação se inverteu: aqui era uma ditadura e lá não.
MCT – Nunca tive vontade de voltar. Eu estava vindo do Chile, onde passei cinco anos e, após o que se passou por lá, em 1973, eu ia fazer experiências socialistas em algum outro lugar do mundo? De toda forma, a Revolução dos Cravos foi um ícone, para todos nós. Nessa época, meu pai estava na UTI e eu dizia a ele: “Velho, não morra agora. Está havendo a Revolução dos Cravos lá em Portugal”. E meu pai respondeu: “Agora já não dá mais, estou acabando minha filha”, e acabou. No fim de 1974, me prenderam aqui no Brasil por 48 horas e me disseram que se eu fosse para Portugal, ou para algum outro lugar, eles cassavam minha nacionalidade brasileira. Aí resolvi ficar no Brasil de vez. Eu não tinha ligação com a guerrilha, nem com a luta armada, porque sempre fui contra, sempre fui pacifista, sou de frente ampla. A minha ligação com o pessoal mais à esquerda era por meio de seminários que eu fazia lá em casa, no Chile. Iam discutir comigo para saber por que o Celso Furtado tinha dito que haveria estagnação e eu explicava as causas do “milagre econômico”. A tese central dos grupos armados era que, se houvesse estagnação, finalmente a luta se prolongaria e sairia da guerrilha para a massa. Portanto, essa era uma discussão importante.
ME – Como foram o seu desenvolvimento profissional no Brasil e a vinculação à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal)?
MCT – Comecei a trabalhar como estatística para o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic), o atual Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 1955. Depois fui para a Faculdade de Economia da Universidade do Brasil (hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro) e me formei em 1960. Fui ser assistente do Octávio Gouvêa de Bulhões, porque ele não sabia matemática e eu ajudava. Ele não perguntou minha tendência ideológica, se bem que era visível, porque eu metia o pau nos monopólios. Trabalhei no Plano de Metas em 1959, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Primeiro, como matemática, porque ainda era aluna de economia. Depois fui fazer o curso da Cepal. Tirei o primeiro lugar no concurso de acesso e passei a trabalhar no escritório da Cepal-BNDE, convênio reiniciado em 1959 e só rompido pela ditadura.
ME – Como você avalia a contribuição de seu livro Da substituição de importações ao capitalismo financeiro para o pensamento clássico da Cepal?
MCT – O Octávio Rodriguez, que escreveu o primeiro grande livro sobre o pensamento da Cepal, diz que meu trabalho é a última contribuição teórica para o pensamento clássico da Cepal. A escola cepalina, iniciada por Raúl Prebisch com o relatório de 1949, tinha uma teoria do desenvolvimento capitalista do centro e da periferia, posteriormente enfatizada pelo Furtado, para mostrar que o subdesenvolvimento tinha nascido junto com o desenvolvimento. Para mim, o que se chamava de processo de substituição de importações já poderia ser definido como uma industrialização tardia e periférica. A última contribuição ao pensamento da Cepal, depois de esgotado o pensamento clássico, foi a do Fernando Fajnzylber, com as análises sobre desenvolvimento e equidade, depois das crises da década de 1970.
ME – Quais as diferenças das teses do capitalismo tardio em relação às teses da teoria da dependência, de um lado Fernando Henrique Cardoso e de outro Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini?
MCT – É totalmente diferente. O capitalismo tardio, tese do João Manuel Cardoso de Mello, com o qual colaborei, defende que, diferentemente dos capitalismos retardatários do século XIX, o nosso capitalismo, em condições de subdesenvolvimento e de país periférico, é tardio mesmo nas relações básicas de produção: trabalho assalariado e grande indústria. A chamada teoria da dependência, como foi formulada de mil maneiras, não chega a ser teoria nenhuma. Por exemplo, o que diz o Marini é uma coisa, o que dizem o Fernando Henrique e o José Serra é outra. Tanto que teve o debate entre eles. Quando alguém diz, pela teoria da dependência, que o centro cresceu por causa da exploração da periferia, é um disparate. Cresceu à custa da acumulação deles e, en passant, expandiu-se para a periferia e, en passant, explorou, é claro. A expansão do capitalismo em escala internacional é da essência do capitalismo e nem sempre assumiu a forma colonial. Nós não estamos propriamente em um modelo colonial desde meados do século XIX, quaisquer que sejam as relações de trabalho e de “submissão” ao imperialismo.
ME – O que ficou do legado clássico do pensamento cepalino para a análise do capitalismo contemporâneo? E a deterioração dos termos da troca? Que influência a China exerce sobre ela?
MCT – Do velho pensamento cepalino fica o principal, menos uma coisa que é duvidosa hoje: a natureza das relações centro–periferia. A mudança do centro das potências europeias para os EUA já complicou o esquema. Hoje, a Europa não está indo a lugar nenhum, a periferia europeia foi para o diabo, a África inteira capotou e eles perderam o Oriente Médio. Quando você passa a ter a Ásia como produtora barata de manufaturas em grande escala, você passa a ter uma deflação de produtos industriais. A anatomia do sistema muda mais ainda com a proeminência do crescimento chinês. Então, o ciclo de longo prazo das relações de troca sofre uma inversão entre preços industriais declinantes e preços das matérias-primas ascendentes (em boa medida por causa do crescimento chinês). No Brasil, as relações de troca têm sido razoavelmente neutras, porque temos metade da pauta de exportações de commodities e a outra metade de manufaturas. Ninguém sabe direito quais o modo de funcionamento e a duração desta nova anatomia do capitalismo. Uma coisa é saber o que aconteceu na transição do capitalismo dos anos 1980 a 2000, assunto sobre o qual meus escritos são pioneiros. E não renego nada do que escrevi. Só que de 2000 para cá, o papel da China e sua articulação com a economia norte-americana se acentuaram e parecem ser decisivos para a trajetória do sistema, ainda incerto.
ME – Qual a relação com o marxismo na sua formação?
MCT – Meu tio era comunista, tinha uma biblioteca inteira, e meu pai era anarquista. Então, li todos os anarquistas pelo lado do velho e li vários clássicos do marxismo pelo lado do outro. Mas só li Trótski quando tinha trinta e tantos anos. Li Rosa Luxemburgo antes porque ela era economista. Gramsci, mais tarde; aliás, Gramsci só muito tarde teve êxito. Mariátegui, aqui na América Latina. Participei de vários seminários sobre O capital, dois no Chile, alguns em Campinas. Aliás, eu tinha lido de Marx, na minha juventude “filosófica”: “Teses sobre Feuerbach”, Miséria da filosofia, as obras de juventude, que são ótimas. A filosofia ainda está presente no começo do primeiro volume de O capital, depois passa para os capítulos históricos e finalmente, como economista crítico, trata das transformações contraditórias do capital. Em Campinas, com meus amigos Belluzzo e João Manuel Cardoso de Mello, lemos pacientemente O capital, que é a obra magna de Marx. Foi aí que o Belluzzo escreveu sua tese de doutorado, intitulada Valor e capitalismo. Dizia que o central em Marx não é uma teoria da exploração e da mais-valia – que é uma crítica à teoria do valor-trabalho dos clássicos –, mas uma teoria do capital! Da valorização, da expansão do capital e não apenas da exploração do trabalho. Escrevi também a esse respeito um capítulo da minha tese de titularidade: Ciclo e crise no Brasil, de 1978.
ME – Como está o pensamento econômico brasileiro atual?
MCT – Os centros de pós-graduação em economia começaram em 1968 e a partir da década de 1970 ganharam força. Nós, os heterodoxos, ficamos hegemônicos. No Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), na Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), na Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe), na Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec). Como era a ditadura, eles achavam que mandavam e não precisavam de outra coisa, então foi possível fundar a Unicamp, que era uma mistura do pensamento marxista, cepalino e keynesiano. A PUC e a Anpec eram majoritariamente heterodoxas. O Instituto de Economia da USP, que era o mais antigo, sempre foi heterogêneo, e a Fundação Getulio Vargas era ortodoxa. A FGV melhorou muito com o Mario Henrique Simonsen, mas quando o Mario se tornou ministro e largou o curso, a Fundação perdeu a importância. Não foi assim com o curso da PUC. Este começa com alguns ex-alunos meus da graduação, que eram keynesianos. Eles tiveram um período de auge, que foi o famoso estudo da inflação inercial. Mas os modelos heterodoxos de combate da inflação não eram da escola de Campinas. Belluzzo e eu escrevemos um artigo em 1984 criticando teoricamente o modelo de inflação inercial aplicado pela PUC. Na prática, o Plano Cruzado não iria funcionar porque não aguentaria o controle de preço. Aí, eu tive de explicar para o Ulysses Guimarães – quando eu era da Executiva do PMDB. Ele me perguntou se eu achava que daria certo, e eu disse, num primeiro momento, sim. Eu falei para o Dílson Funaro [ministro da Fazenda de 1985 a 1987] que a balança de pagamentos iria arrebentar, e ele disse: “Eu sei, vou botar as reservas no banco central norte-americano para evitar a especulação”. “Sim”, retruquei, “mas vai pegar uma moratória na cara?”. E não deu outra. Claro que eu não andava dizendo isso publicamente. Nós, de Campinas, sempre achávamos que era complicado, já que se usava a mesma técnica para países tão diferentes: Israel, Bolívia, Brasil, Argentina. Tinha alguma coisa errada. Esse era o problema dos meninos da PUC, que acreditavam em modelos e acreditam até hoje. Finalmente, em 1990, o Collor entra e aí é uma desgraceira. Nos anos 1990, nós nos ferramos mesmo. Porque aí, é claro, com o neoliberalismo, estava todo mundo contra nós, a começar pelo próprio Fernando Henrique, que nos odeia. Mas a recíproca também é verdadeira, pelo mal que ele fez ao país e por ter derrotado a esquerda. Na década de 1990, não era possível manter uma hegemonia heterodoxa, quando o neoliberalismo era dominante no mundo inteiro e quando os Estados Unidos faziam um keynesianismo bastardo e ninguém se dava conta. Quer dizer, é tudo neoliberal, exceto as autoridades norte-americanas. Venderam o peixe do neoliberalismo para toda a parte do mundo e jamais aplicaram a si mesmos.
ME – O que mudou no capitalismo mundial a partir de 2000?
MCT – Várias coisas. Em princípio, deveria terminar o ciclo de crescimento norte-americano da década de 1990, mas não terminou. Apesar de crises pontuais entre 2000 e 2003, houve mais cinco anos de crescimento. Isso era esperado? Não, não era esperado. Estão sempre dizendo que os EUA vão capotar e isso ainda não aconteceu. Não capotam porque eles continuam a potência dominante e vivem à custa do resto do mundo, desde a década de 1980. A primeira relação que eles inverteram, e que eu denunciei, foi a de passarem de credores a devedores! Com essa inversão, a ameaça do terror financeiro está na mão deles. E, no começo dos anos 1980, os japoneses desandaram a fazer besteira e compraram tudo que era porcaria nos EUA. Resultado: quando veio a mudança do câmbio, com desvalorização do dólar, em 1985, eles se ferraram. Quem faz a mudança do câmbio são os EUA, com a política do FED. Os outros têm de se adaptar. O dólar teve valorizações de 50% de 1980 até 1985, depois se desvalorizou 50% nos cinco anos seguintes e o Japão pagou a conta. E, depois, de novo valorização e desvalorização e a Europa pagou a conta. Agora quem está pagando a conta são a China e os “mercados emergentes”. E quando eles fazem isso, o sistema financeiro internacional treme todo, mas ainda está pilotado pelo dólar, então quem vem me dizer que o dólar vai deixar de ter o papel financeiro que tem? Ah, sim, se o euro tiver esse papel… Mas o euro vai ter como? Só se mudarem as relações da Ásia a favor da Europa contra os EUA, mas a Europa não está indo a lugar nenhum. Quem substitui os EUA? Na década de 1980, diziam que era o Japão, agora dizem que é a China?!
ME – A senhora enfatiza muito a força do padrão dólar flexível. Afirma que a hegemonia norte-americana está muito concentrada no poder monetário e o balanço de pagamentos não é um problema para essa economia justamente porque ela absorve, graças ao dólar, grande parte da liquidez mundial. Mas há algum limite para a queda do dólar nesse padrão, para que ele mantenha sua credibilidade e estabilize o balanço de pagamentos dos Estados Unidos, uma vez que o dólar apresenta uma longa trajetória de queda?
MCT – Continuar caindo pode ser bom para o balanço de pagamentos norte-americano. Fecha o balanço de transações correntes e mercantil. Agora, a pergunta é: os investidores continuam financeiramente aplicando no dólar? Aparentemente, sim. Os novos fundos de riqueza soberanos são em dólar. Atualmente, existe uma crise bancária que é do tamanho de um elefante! São centenas de bilhões de dólar de prejuízo! Quem banca? Os chineses e os xeques árabes. Foram quantos bilhões que eles emprestaram? Emprestaram uma barbaridade. Por quê? Porque estão indissoluvelmente ligados em termos comerciais e financeiros. A menos que se aposte, e tem gente que aposta, que havendo uma crise norte-americana pesada, o resto do mundo se desacopla. Mas essas apostas são absurdas. Paradoxalmente, é via China que pode haver uma crise geral do dólar, pois é o país que tem hoje mais reservas em dólar, mais fundos aplicados em dólar e depende mais do comércio e do investimento direto norte-americano. Qual será a política monetária e cambial chinesa diante de uma crise geral do dólar? Você sabe? Eu não. E duvido que o banco central da China vá além de um “pragmatismo responsável”. Aliás, diga-se de passagem, a vantagem da China é o seu crescimento para dentro ser também gigantesco, mas, como é muito desigual, “o pau canta para dentro” que é uma beleza. O que tem de discussão entre os comunas chineses sobre o que fazer com a China não está escrito. Não há acordo nenhum e eles também não dizem o que fazer a curto prazo. Mesmo com a atual crise norte-americana, o FED continua comandando o espetáculo e o dólar continua sendo a moeda reserva dominante, apesar de desvalorizada. Caso aconteça uma crise que o FED não controle, quem vai conseguir controlar? A China? O que eu estou falando é o seguinte: desde que o Roosevelt subiu, seja via FED ou Tesouro, são eles que mandam. Uma reunião de Bancos Centrais em que o FED não der a dica, não vai a lugar nenhum. O Fundo Monetário Internacional (FMI) – coitado! – nem avisou que ia ter uma crise do subprime. Quem tem mais liberdade de manobra para fazer o que quer é o governo norte-americano, sempre. Ele tem mais liberdade de manobra do que o governo chinês. O governo chinês tem compromissos com os vários setores de interesse da China e com as multinacionais que estão lá, pesadamente. Quase 1 trilhão de dólares de investimento estrangeiro, um passivo colossal. Claro, tem mais 1 trilhão e tanto de reservas em títulos do Tesouro norte-americano. Se se pudesse fazer abruptamente a troca de reservas do dólar para outra moeda, seria um desastre para a China e para o resto do mundo.
ME – Qual é o risco de uma recessão mundial?
MCT – Por enquanto, há um risco de recessão norte-americana, cuja profundidade é difícil prever. Com a crise da habitação e o consumo frouxo, está havendo um aperto de crédito endógeno ao sistema. O FED manda fazer o contrário, dá liquidez, manda baixar o juros, pede para expandirem o crédito, mas eles não expandem. Hoje, nenhum banco norte-americano expande o crédito. Uma coisa é liquidez, outra coisa é crédito, e outra coisa é patrimônio. Os papéis interbancários, que expandiam o crédito, não funcionam mais. A liquidez, o FED vai injetando. Os outros bancos centrais também. Mas não basta liquidez. Quantas vezes se teve liquidez no mundo e se entrou em recessão? Então, pode ter recessão? Pode. Braba? Não sei. E por que é que não sei? Porque é necessário saber quais são os elos das cadeias financeiras invisíveis. Eu não consigo avaliar, porque não se faz mais análise estrutural no mundo, infelizmente. Todo mundo só fala em macroeconomia, então ninguém sabe do que está falando. De que adianta falar de macroeconomia (em geral ortodoxa), se eu não sei como é que está a estrutura do passivo dos bancos? Não sei, eles não declaram. Às vezes me perguntam: como é que está a estrutura de dívida das famílias? Não sei. Estão muito endividadas, sim, mas qual é a estrutura para saber como é que bate? Bom, se o resto do mundo já saiu da sombra do dólar, então tudo bem, mas eu não creio. A China levará uma pancada, mas não será tão grande por causa do componente interno; a Rússia, porque ela depende basicamente do petróleo; nós, porque a nossa dependência dos Estados Unidos é relativamente limitada, não seremos muito afetados. Estamos crescendo, não estamos tendo problemas de balanço de pagamentos porque os investimentos estão vindo, mas a valorização do real pode ser um problema. Já tivemos várias recessões mundiais. A de 1980, a de 1990, a de 2000. Cada década teve o estigma de uma recessão mundial no começo. Este ciclo não vai durar uma década. Já estamos em 2008, mas nada impede que se entre em uma tendência declinante do próprio ciclo e não haja nenhuma catástrofe. Se houver, será geral.
ME – Poderíamos dizer que o capitalismo brasileiro é um capitalismo de sucesso?
MCT – Como capitalismo, sim. O que ele não é, é de sucesso para o povo brasileiro. Como dizia lá o ditador: “A economia vai bem, o povo é que vai mal”. E desde que entrou em vigor o neoliberalismo, a coisa piorou. Houve retrocesso social em todas as partes do mundo. As políticas sociais foram o eixo para a estabilização fiscal. Todo mundo começou batendo no velho Estado de bem-estar. E agora nós precisamos muito dele. Ademais, não fomos capitalismo tardio? Depois não pegamos um período de estagnação grande? E agora não estamos retomando o crescimento? E estamos, ademais, fazendo políticas compensatórias, políticas sociais para os pobres, pode chamar do que quiser. O atraso é a infraestrutura. Por isso é que se precisa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Sem infraestrutura, não vamos adiante no crescimento. Com vinte anos de estagnação, a primeira coisa que vai para o diabo é a infraestrutura. A coisa mais difícil é a porcaria da distribuição de renda. E, no nosso caso, do meu ponto de vista, você pode melhorá-la. Como o salário-mínimo fez. Com bolsa para lá, bolsa para cá. Pode-se fazer tudo isso e melhorar as políticas universais. Pode-se até fazer uma política agrária melhor, o que vai ser difícil, por que aqui ela começou muito tarde. Eu não sou otimista. Aliás, ninguém está otimista sobre a política agrária. Não é só o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Por quê? Porque o grupo do agrobusiness pesa muito no Congresso e não deixa passar nada. Lembrem-se de que o Estatuto da Terra era do Castello Branco. Era um bom plano e não passou. E quem brecou foi a Sociedade Rural Brasileira… Os nossos representantes patronais são sempre conservadores. No período de 1930 a 1954, sobretudo nos governos getulistas, havia uma Fiesp lutando pela industrialização e era um órgão “progressista”, mas não tocaram na questão agrária. Os fundadores eram gente ilustre. E fomos, no passado, um capitalismo organizado. Quer dizer, o capitalismo, tal como ele se desenvolveu, na sua cara industrial expansiva da época do JK, era organizado. Mas e depois? A Federação do Comércio é essa desgraça. A CNI, uma desgraça…. e a Febraban…. Passa a ser um capitalismo desorganizado. Você tinha lá o tripé organizadinho. Agora é muito mais difícil. Você chama os grandes e o que se resolve? Não se resolve nada.
ME – Como é que a senhora vê essa volta do latino-americanismo na região, do nacionalismo?
MCT – Interessante. Mas não sei que fim levará. Até porque são processos muito diferentes. O “socialismo” na Venezuela é um, na Bolívia é outro, o dos argentinos é outro, o nosso é outro. E digo mais: é tão divergente e complicado que, nisso, temos de tirar o chapéu para o Lula. Se ele não estivesse fazendo mesmo na prática a política latino-americana, a unidade poderia se romper. Porque há lideranças que são tipos muito difíceis como personalidade e as condições internacionais não andam favoráveis, não andam. O que não quer dizer nada. Nenhuma das revoluções do começo do século foi prevista por ninguém. Uma coisa é certa: a classe operária preferiu ir ao paraíso a fazer a revolução. De preferência, se for um paraíso consumista. Isso está claro desde o filme de Elio Petri, A classe operária vai ao paraíso. Não há evidência de revolução operária depois do século XIX. Tivemos grandes greves. Sim, mas e daí? A França acabou de fazer três grandes greves, para o Sarkozy deitar e rolar em cima deles. O neoliberalismo apodreceu a “opinião pública” e, ao apodrecê-la, produziu o que há de pior em matéria de lideranças de direita. E produziu uma ideologia da classe média, que – Trótski tinha razão – é a poeira na humanidade. Todos ficaram com os Estados Unidos. Fazem uma greve, três greves daquele tamanho lá em Paris, milhares e milhares de pessoas, para quê? Fazem uma pesquisa com a opinião pública francesa e eles são a favor das reformas conservadoras da previdência, universitária e do mercado de trabalho. E se fizerem isso aqui? Será que dá no mesmo?
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Carlos Eduardo Martins é professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ). Membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, é autor, entre outros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009).
Rodrigo Castelo Branco é professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Doutor e mestre pelo Programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Grupo de Trabalho (GT) sobre Teoria Marxista da Dependência (TMD) da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e do comitê editorial da revista Germinal: marxismo e educação em debate.
Virgínia Fontes é historiadora, atua na pós-graduação em História da UFF, onde integra o NIEP-MARX – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o marxismo. Autora de Reflexões Im-pertinentes (Bom Texto, 2005), de O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história (EPSJV e Ed. UFRJ,2010), e co-autora de Hegemonia burguesa na educação pública (EPSJV, 2018). Publicou inúmeros artigos em periódicos nacionais e internacionais. Docente da Escola Nacional Florestan Fernandes-MST. Coordenadora do GT História e Marxismo-Anpuh. Integra diversos conselhos editoriais no país e no exterior.
Em ensaio sobre Isak Dinesen —pseudônimo de Karen Blixen, autora de "A Fazenda Africana" (1937)—, Hannah Arendt propõe o seguinte questionamento: "Se é verdade, como sugere [Dinesen], que ninguém tem uma vida digna de ser pensada sem que se possa contar sua história de vida, não se segue então que a vida poderia e até deveria ser vivida como uma história e que o que se tem a fazer na vida é tornar a história verdadeira?".
Com isso, Arendt chama a atenção do leitor para a diferença entre se contar uma história sobre eventos relacionados à própria vida e se tentar viver conforme um determinado enredo, como se a vida pudesse ser tratada tal qual a expressão de um ideal.
Arendt comenta que, durante a juventude, Dinesen teria procurado viver conforme o legado paterno, como se o sentido da sua vida fosse pura e simplesmente o de continuar a história do seu pai, morto quando a autora ainda era criança: "A história que planejara executar em sua vida pretendia realmente ser a sequência da história de seu pai. Esta envolvera ‘une princesse de conte de fées que todos adoravam’, a qual ele conhecera e amara antes de seu casamento, e que morreu subitamente aos 20 anos de idade [...]. A jovem, revelou-se, era uma prima de seu pai, e a maior ambição da filha passou a ser pertencer a esse lado da família paterna [...]. O que então se seguiu foi mesquinho e sórdido, de forma alguma um material que se poderia pôr tranquilamente numa história ou relatá-lo como tal".
Dinesen apaixonou-se por um sobrinho da antiga paixão do seu pai e, como os seus sentimentos não foram correspondidos, acabou se casando com o irmão gêmeo do rapaz. Ela e o marido mudaram-se para o Quênia, mas o relacionamento entre eles não deu certo.
Para Arendt, a lição que Dinesen teria aprendido com esse episódio seria que, "embora se possam contar histórias ou escrever poemas sobre a vida, não se pode tornar a vida poética, vivendo-a como se fosse uma obra de arte (como fez Goethe) ou utilizando-a para a realização de uma 'ideia'. A vida pode conter a 'essência' (o que mais poderia?); a coleta, a repetição na imaginação, podem decifrar a essência e oferecer-lhe o 'elixir'; e finalmente até se pode ser um privilegiado capaz de 'fazer' algo com isso, 'compor a história'. Mas a vida em si não é essência nem elixir e, se se a trata como tal, ela só pregará peças".
Tenho pensado bastante sobre isso em relação a um dos meus livros prediletos, "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe.
Antes mesmo de haver lidado profissionalmente com o mundo da arte, o jovem Meister acreditava que a sua vocação estaria no teatro. Ao longo do romance, o personagem tenta adequar a sua trajetória a esse ideal, mas a vida acaba se mostrando muito mais imprevisível do que ele poderia supor e, pouco a pouco, Wilhelm passa a refletir sobre as fantasias que costumava nutrir antes de dar início ao seu périplo de aprendizagem.
No romance, nada sai exatamente conforme inicialmente planejado pelo protagonista e se, no fim das contas, as coisas terminam bem para Wilhelm, talvez isso se deva menos às suas intenções do que às circunstâncias. Não é à toa que, no diálogo que encerra o romance, um dos personagens comenta, fazendo uma referência à Bíblia: "Eram bons aqueles tempos, e tenho mesmo de rir ao olhar para ti: tu me lembras Saul, o filho de Kis que foi à procura dos jumentos de seu pai e encontrou um reino".
Ao tentarmos viver unicamente segundo um enredo ou ao acharmos que, para nos realizarmos enquanto indivíduos, devemos seguir os mesmos passos das pessoas que admiramos, como se as experiências acumuladas por elas fossem justamente as mesmas que deveríamos ter, acabamos desistindo de nos tornarmos quem realmente poderíamos ser.
Afinal, embora sejamos semelhantes aos outros seres humanos, precisamos ter em mente que também somos únicos. Isto é, a maneira como cada uma das nossas ações se relaciona com o que há de imprevisível na vida sempre acaba imprimindo algo de novo no mundo.
Para Arendt, o erro de juventude de Dinesen ensinou a autora que, em vez de tentarmos "tornar uma história verdadeira" ou "interferir na vida segundo um modelo preconcebido", devemos esperar pacientemente que as histórias surjam a partir das nossas experiências.
Arendt ainda comenta que foi o contar histórias que tornou Dinesen sábia, mas que "a sabedoria é uma virtude da velhice e parece vir apenas para os que, quando jovens, não eram nem sábios nem prudentes".
A Associação Mães da Praça de Maio, conhecida mundialmente por sua luta pelos direitos humanos e pela busca por justiça para os desaparecidos durante a ditadura militar argentina, denunciou nesta quinta-feira (25) a intervenção da Universidade Nacional das Mães (Unma) por parte do governo Javier Milei. Segundo a Associação, o governo vem realizando atos que minam a integridade e o legado da organização, informa a Telesur (Leia em 247)
O caos acabou: sem hiperinflação, a economia cresce. Mas o preço é alto. Refluíram o ímpeto rebelde e parte das conquistas sociais; país está dolarizado. Oposição une-se, pela primeira vez. Chavismo tenta reunir forças para novo impulso (Leia em Outras Palavras)
Apenas de um ponto de vista de administração pública, a privatização da Sabesp é danosa e nem falamos em outros elementos cruciais deste processo, como a qualidade da água e outros aspectos da privatização que estão sendo destacados na imprensa, como a falta de concorrência e a venda abaixo do preço de mercado (# Leia Daniela Constanzo, Boitempo)
Uma cena final parecida com um Spielberg (ou um George Lucas) dos anos 80
Pois então...
O desafio da cerimônia de abertura das Olimpíadas continua sendo - como em edições passadas - o da performance cênica e musical que retrate o poder absoluto que um evento dessa dimensão permite ao Estado que o promove. O resultado em Paris parece dar razão ao comentário de Jamil Chade (leia aqui): a diversidade como matriz do simbolismo que cercou toda a cerimônia e o isolamento discursivo da perspectiva fascista que sempre quer se apoderar das manifestações massivas. A única exceção parece ter sido a exagerada grandiosidade e pretensão da Pira Olímpica - como se a narrativa da festa pudesse ser a versão definitiva da História (J.S.Faro)
O socialismo em Cuba e os eventos de 1953. Matéria publicada no Brasil de Fato em 2023 por ocasião dos 70 anos do movimento que culminou o amadurecimento da revolução de maior impacto anti-imperialista na América Latina (# leia mais)
Sakamoto: Marta faz Boulos subir 10 pontos no 2o turno e Mello sangra Nunes
Quando os eleitores são informados de que Marta Suplicy (PT) será candidata a vice-prefeita de Guilherme Boulos (PSOL), a intenção de votos no segundo turno da chapa passa de 36% para 46%. Enquanto isso, ao ser informado de que o coronel Ricardo Mello (PL), apontado por Jair Bolsonaro, será o vice de Ricardo Nunes (MDB), a intenção de votos da chapa cai de 43% para 36% (# leia mais)
A complexidade dos ícones que nos identificam. Quem somos nós, os brasileiros? Ou a pausterização global torna essa dúvida sem sentido?
Pois então...
Nosso cacoete colonizado pode estar por trás dessa aversão ao registro da autenticidade do nacional, do popular, dos ícones do decolonial? Ou a crítica ao artesanato das artesãs do RN rejeita o exotismo tropical que nos condena à periferia da modernidade? Qual é a imagem que fazemos de nós mesmos? Ela nos redime e emancipa ou nos constrange e envergonha?
Ideia de que o aumento do PIB é o objetivo central da Economia remonta aos anos 1950. Deformou conceitos de Keynes. E, depois de multiplicar a desigualdade e minar a democracia, terminou em… estagnação. Como revertê-la agora? Ann Pettifor, Outras Palavras (acesse)
Este ensaio faz parte de uma série de artigos, editada por Stewart Patrick e originada do Grupo de Trabalho Carnegie sobre Reimaginar a Governança Econômica Global.
“Crescimento” é um termo usado por economistas que têm em vista uma atividade econômica ampliada: um aumento no investimento, emprego, bens e serviços. Também é usado, de forma pejorativa, por ambientalistas convencidos de que a expansão interminável da atividade econômica em um mundo com recursos finitos é insustentável. Eles empregam mais comumente seu antônimo, “decrescimento” – como em The Future Is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism [“O futuro é decrescimento: Um guia para um mundo além do capitalismo”]. O uso e a evolução de “crescimento” e sua ligação com o PIB representam uma etapa importante no surgimento do sistema atual de governança econômica global, baseado nas expectativas de “crescimento” contínuo, por sua vez facilitado pela desregulamentação financeira e mobilidade de capital. Tal “crescimento”, no contexto do capitalismo financeirizado, levou a desequilíbrios ecológicos, sociais e econômicos que ameaçam provocar colapso sistêmico.
Os fluxos globais de liquidez, consequência do desenvolvimento do sistema financeiro, são canalizados em grande parte por instituições financeiras não bancárias, também conhecidas como “bancos-sombra” [shadow banks]. Segundo o Conselho de Estabilidade Financeira, o valor total dos ativos financeiros detidos pelos bancos-sombra em 2022 totalizou 217 trilhões de dólares – mais que o dobro do PIB mundial. Por definição, essas instituições operam além do alcance da democracia regulatória, embora estejam vinculadas aos bancos centrais do mundo. Suas atividades impactam a formulação de políticas econômicas pelos Estado e representam riscos sistêmicos para a economia mundial.
Para reimaginar a governança econômica global, precisamos voltar no tempo e examinar o surgimento de um sistema de “não governança” econômica global, ou um “não sistema”, para citar o economista colombiano José Antonio Ocampo. Uma “não governança” que levou à criação do sistema bancário sombra e a desequilíbrios financeiros e econômicos globais desestabilizadores.
A história começa com o economista britânico John Maynard Keynes. Na década de 1930, Keynes desempenhou um papel muito maior na criação e construção das contas nacionais do Reino Unido (e, por fim, do mundo) do que geralmente se reconhece. Fez isso não com o propósito de contabilidade, mas para avaliar o nível existente de renda em relação ao nível potencial, sob certas condições políticas.
O valor do que então era conhecido como “renda nacional”, e que veio a ser definido por Simon Kuznets como “PIB”, era de menor interesse para Keynes. Como explica Geoff Tily, Keynes considerava a criação desta conta como um meio para um fim, não um fim em si mesmo. “As contas nacionais foram desenvolvidas para apoiar a política: resolver a crise do desemprego da Grande Depressão e ajudar no uso pleno dos recursos nacionais para a condução da Segunda Guerra Mundial.” É importante reconhecer, continua Tily, que
essas iniciativas teóricas e práticas visavam ao emprego ampliado, e em seguida pleno, dos recursos; e à plena extensão da produção nacional – muito mais do que ao crescimento da atividade. Nesta fase, não havia noção, por parte dos formuladores de políticas, de que o nível de atividade poderia ser estimulado de maneira sistemática ou uniforme de ano para ano; a intenção era alcançar mudanças de nível pontuais. Não há dúvida de que eles foram bem-sucedidos nesse objetivo e em sustentar esses ganhos na era dourada do pós-guerra.
Essa abordagem das contas nacionais mudou radicalmente no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. No Reino Unido, vários economistas profissionais – entre eles, Sir Samuel Brittan, colunista proeminente do Financial Times – defenderam um novo conceito de “crescimento” contínuo e se definiram como “os homens do crescimento” [the growthmen]. Foi uma abordagem que mudou o caráter da política ao longo da era pós-guerra. Abandonando o objetivo de fixar o nível de emprego e de produção em níveis sustentáveis, os governos passariam a estabelecer uma meta sistemática e improvável: perseguir o crescimento. Ninguém parece ter parado para considerar se o crescimento – calculado como a taxa de variação de uma função contínua – era uma maneira significativa ou válida de interpretar as mudanças no tamanho das economias ao longo do tempo, escreve Tily.
Em paralelo, a política econômica passou a enfatizar cada vez mais as abordagens a partir da produção [supply-side approaches]e, na prática, um compromisso com a desregulamentação da atividade econômica. Isso é exemplificado pelo Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que adotou, em 12 de setembro de 1961, um “Código para a Liberalização dos Movimentos de Capital”. Esse código, uma estrutura para a remoção progressiva de barreiras aos fluxos de capital entre países, presumivelmente foi projetado para viabilizar o que Tily chama de “ambição ridícula de crescimento rápido e incessante, independentemente da capacidade do mercado de trabalho”.
Em outubro de 1961, a OCDE realizou uma conferência sobre “Crescimento Econômico e Investimento em Educação” no Brookings Institution em Washington. Encorajada por economistas “clássicos” e desanimada com os níveis de atividade econômica – que eram altos, mas sustentáveis – a OCDE propôs impulsionar drasticamente as economias do Reino Unido e de outros países. Na época, o Reino Unido estava na feliz situação de assegurar pleno emprego. Nas palavras do então primeiro-ministro Harold Macmillan, os britânicos “nunca tiveram uma situação tão boa”. Em 17 de novembro de 1961, a OCDE concordou com uma meta de crescimento de 50% para o Reino Unido de 1960 a 1970. Equivalia a 4,1% ao ano. Na época, a taxa de desemprego britânica era de 1,2%.
O resultado destas metas excessivamente ambiciosas era totalmente previsível – uma época de inflação desenfreada nos anos 1970, seguida por períodos de excessos financeiros e crises recorrentes. A culpa por essa inflação tem sido atribuída, injustamente, a Keynes e ao movimento trabalhista. Na verdade, a tentativa de alcançar uma meta de crescimento muito implausível, em condições de quase pleno emprego, levou à desconstrução do legado de Keynes: a “idade de ouro” do capitalismo de 1945 a 1971. Acima de tudo, levou ao desmantelamento do sistema de governança econômica global gerida, que fora estabelecido na conferência de Bretton Woods, em 1944.
Na introdução de seu livro Who Governs the Globe? [“Quem governa o mundo?”], Deborah Avant, Martha Finnemore e Susan Sell argumentam que o termo técnico “governança” obscurece o papel desempenhado pelos que dirigem de fato do mundo. Tais abstrações absolvem de sua responsabilidade indivíduos e instituições poderosas, incluindo atores não estatais. Além disso, como elas explicam,
As estruturas estatais não dão conta (…) da governança real existente no mundo hoje. Apenas uma pequena fração da atividade de governança global envolve representantes do Estado negociando apenas entre si (…) Globalização, desregulamentação, privatização e mudança tecnológica capacitaram atores não estatais. Grande parte da literatura sobre governança global a equipara, implícita ou explicitamente, à provisão de bens públicos globais… [Na verdade,] os resultados da governança frequentemente estão desconectados tanto do público quanto do bem. A inação global sobre as mudanças climáticas, a falta de acesso às vacinas contra HIV/AIDS e COVID são exemplos proeminentes. O colapso financeiro global de 2007–09 é outro.
A ausência de governança pelos Estados na economia global levou a um sistema econômico internacional que, na prática, é governado não por autoridades públicas (ou seja, democráticas), mas privadas – mesmo quando instituições públicas financiadas pelos contribuintes desempenham o papel de subsidiar, reduzir riscos e resgatar instituições financeiras privadas.
Graças à mobilidade do capital, atores privados no sistema financeiro internacional exercem influência indevida sobre políticas vitais para a estabilidade econômica dos Estados, incluindo taxas de câmbio, taxas de juros e fluxos globais de investimento, capital e comércio. Essa perda de autoridade pública sobre as economias global e doméstica levou à desilusão com a democracia. Acima de tudo, gerou níveis obscenos de desigualdade dentro e entre os Estados. Essa desigualdade, como Michael Pettis e Matthew C. Klein ilustram em seu livro Trade Wars Are Class Wars [“Guerras comerciais são guerras de classe”]ajudou a criar desequilíbrios nas contas comerciais e de capital entre os Estados.
O modelo econômico global que surgiu da revolução do crescimento dos anos 1960 volta as economias não para a esfera doméstica – mas para os mercados de capitais internacionais desregulados e as exportações. A orientação para exportação de economias como a da Alemanha e a China aumenta a renda do 1% mais rico – os proprietários e acionistas de corporações orientadas para exportação. As rendas dos 99% restantes – os salários dos trabalhadores na economia doméstica – são deprimidas. A Fundação British Resolution calcula que, após quinze anos de estagnação, as rendas no Reino Unido estão em média £230 [R$ 1700] abaixo de antes da crise financeira global de 2007–2009. O Congresso dos Sindicatos [Trade Unions Congess] argumenta que os trabalhadores suportaram o mais longo aperto salarial desde as guerras napoleônicas, no início do século XIX.
No entanto, o problema é: o 1% mais rico não gasta toda a sua renda. Há limites para o número de superiates, jatos particulares e propriedades luxuosas que seus integrantes podem comprar. Em contraste, os 99% gastam toda a sua renda—usando-a para manter seu teto, comprar comida, proteger sua saúde e enviar seus filhos para a escola. No entanto, como as rendas caíram em termos reais, as populações passaram a carecer do poder de compra necessário para adquirir tudo o que é produzido pela economia orientada para exportação. Não é que o poder de compra da sociedade esteja buscando bens e serviços escassos; há, ao contrário, muitos bens e serviços disponíveis, disputando o pequeno poder de compra das maiorias. Esse desequilíbrio levou a altos níveis de dívida privada, à medida que os 99% tomam dinheiro emprestado para habitação, saúde e alimentação, ao mesmo tempo em que as empresas (que não conseguem vender tudo o que produzem) tomam empréstimos para compensar a queda nas vendas.
As consequências são o oposto da teoria econômica convencional: superprodução, altos níveis de dívida privada e rendas em queda. A experiência mostrou que todos esses elementos levam a crises financeiras globais.
As políticas de Keynes para níveis estáveis de produção e emprego exigiam um sistema econômico global que apoiasse a formulação de políticas domésticas – em vez de se opor a elas. Ao preparar o Tesouro Britânico para a conferência de Bretton Woods, Keynes explicou à Câmara dos Lordes em 1944 que sua “principal tarefa nos últimos vinte anos” tinha sido garantir que
no futuro, o valor externo da libra esterlina estará conforme a seu valor interno, estabelecido por nossas próprias políticas domésticas, e não o contrário. Em segundo lugar, pretendemos conservar o controle sobre nossa taxa de juros doméstica, para que possamos mantê-la tão baixa quanto convier aos nossos próprios propósitos, sem interferência do fluxo e refluxo dos movimentos internacionais de capital ou voos de dinheiro especulativo. Em terceiro lugar, embora pretendamos prevenir a inflação em casa, não aceitaremos a deflação ditada por influências externas. Em outras palavras, rejeitamos os instrumentos de taxa bancária e contração de crédito operando através do aumento do desemprego como um meio de forçar nossa economia doméstica a se alinhar com fatores externos.
Keynes assumiu que um sistema monetário voltado principalmente aos interesses das finanças e da riqueza se opunha a níveis estáveis de produção e emprego doméstico e, em última análise, a relações comerciais e financeiras equilibradas entre Estados. Dado o entendimento científico atual sobre os recursos finitos da Terra, é evidente que um sistema econômico global baseado em juros compostos sucessivamente acumulados e em concentração de capital também se opõe a um clima e ecossistema estáveis. A crença na viabilidade e continuidade de tal sistema é utópica. Dada a crise ambiental, as populações que se defrentam com condições climáticas cada vez mais duras e com quebras de colheitas e de geração energética terão que transformar urgentemente o “não sistema” mundial, para estabilizar as economias domésticas.
A estabilidade econômica global exigirá a restauração do equilíbrio ao sistema comercial internacional e a reorientação das economias. Ao invés de dirigidas para o sistema financeiro global, elas precisarão priorizar aos interesses econômicos domésticos, em particular os da maioria: os 99%. Em outras palavras, a economia global precisa ser levada para longe dos interesses da riqueza globalizada e em direção aos interesses dos trabalhadores na economia doméstica. Devemos novamente construir uma economia para o trabalho—especialmente o trabalho de restaurar o equilíbrio ao ecossistema—e não para a riqueza.
Se queremos manter a aposta na democracia e afastar a ameaça das forças autoritárias, as sociedades devem cooperar para ajudar a restaurar a autoridade pública, democrática e responsável sobre a economia global e doméstica. Essa transformação só pode ser alcançada se a comunidade internacional trabalhar em solidariedade para restringir e gerenciar os fluxos globais de capital e comércio. Para isso será necessária uma nova forma de governança econômica global, baseada na cooperação e coordenação internacional—e em atividade econômica equilibrada e sustentável.
Um dos modos de fomentar a solidariedade internacional é desmantelando o sistema financeiro com mobilidade de capital irrestrita, baseado em uma moeda de reserva hegemônica—um sistema tão prejudicial aos cidadãos do hegemon quanto a muitos outros Estados, como argumenta Michael Pettis. E é essencial para qualquer movimento rumo a “um mundo além do capitalismo” abandonar o sistema que turbinou a globalização: o mito do “crescimento”, visto como variação de uma função contínua.
Tarcísio de Freitas já é, no segundo ano de seu governo, um administrador recordista nos prejuízos que provoca em todas as áreas de atuação do estado
(...) o governo de São Paulo perdeu R$ 4 bilhões com a venda de 32% da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Segundo Kennedy Alencar, a Companhia foi vendida por preço abaixo do mercado. Quem ganhou vai depender ainda de um tempinho para saber. Mas, claramente, o estado de São Paulo perde na largada R$ 4 bilhões: as ações foram vendidas por 22% a menos que o preço de mercado. As ações do último pregão fecharam R$ 87. A empresa foi entregue a um único sócio, agora estratégico, por R$ 67.
# Assista Kennedy Alencar no Análise da Notícia (Uol) # Tragédia para o interesse público (247) # Perda bilionária (GGN) # Tarcísio pode ter 'vendido' Sabesp para aventureiros donos de empresa de "fundo de quintal" (adapt Folha) # Para Nassif é "negociata" (247) # Alemanha privatizou e voltou atrás (Uol) # Zaratini: "um fracasso" (Carta Maior) # O que os moradores de Cametá pensam da empresa que "levou" a Sabesp (leia na postagem abaixo)
Revolta de moradores prejudicados pela inexperiência absoluta da mesma empresa que 'ganhou' a Sabesp de Tarcísio (ninguém sabe direito como)
# Leia a matéria no Dol, do Pará
➥"Trazemos ampla experiência em infraestrutura", diz CEO da Equatorial
➥ Entenda a maracutaia de Tarcísio: "Conflito de interesses: Equatorial é do mesmo grupo que adquiriu a Cemar e a Eletrobrás e repetiu as mesmas manobras para a venda" (Leia Patrícia Faermann no GNN)
Em Pequim, 14 organizações palestinas, incluindo o Hamas e Fatah, assinaram um acordo de “união nacional” nesta terça-feira (23/07) com intuito de incluir todas as forças dentro da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e formar um governo conjunto na Faixa de Gaza após o fim da guerra de Israel no enclave (# leia no Opera Mundi)
A catástrofe algoritmica e a 'nuvem do apagão'. Sérgio Amadeu da Silveira em A Terra é redonda
A sociologia da modernidade produziu um conjunto de reflexões que precisam ser aprofundadas, principalmente nestes tempos de espraiamento das ondas reacionárias que convivem e se alimentam da ascensão de tecnologias que se propõe mediadoras de todas as atividades humanas. O sociólogo Ulrich Beck em Sociedade do risco, publicado na Alemanha em 1986, alertava que os riscos e as incertezas haviam se tornado centrais nas sociedades modernas embaladas pelo progresso tecnológico e industrial (continue a leitura)
1.
Ulrich Beck já apontava que tais riscos seriam cada vez mais invisíveis e sua percepção seria conformada pelas instituições científicas e pela mídia. A dinâmica do risco seria incorporada e a busca constante por responsáveis e culpados pelos desastres nos conduziria para certa política sustentada pela gestão de riscos.
A percepção de Ulrich Beck não poderia ser mais realista, uma vez que as tecnologias digitais dominaram a economia e grandes empresas que as controlam e comandam o seu desenvolvimento impuseram um estilo de gestão de riscos. O filósofo Yuk Hui abriu seu texto Algorithmic catastrophe – the revenge of contingency, de 2020, as catástrofes tecnológicas não são simplemente falhas materiais, mas são falhas da razão. Inspirando-se em Paul Virilio, Yuk Hui pensa os sistemas tecnológicos contemporâneos como portadores de catástrofes e de técnicas de mitigação das próprias tragédias que suas dinâmicas e finalidades geram.
As catástrofes são inevitáveis pela própria natureza das tecnologias de automação e automatização. Nossos sistemas caminham para o uso crescente de soluções de inteligência maquínica baseadas em estatística e probabilidade convertidos em sistemas algorítmicos que operam a partir de um gigantesco poder computacional gerando modelos que são utilizados para automatizar atividades e o risco das mesmas.
Norbert Wiener, no texto Some moral and technical consequences of automation, publicado em maio de 1960 na revista Science, declarou que se as máquinas poderiam desenvolver estratégias imprevistas, uma vez que portavam algoritmos de aprendizado o que nem sempre poderia ser compreendido e acompanhado por seus programadores.
2.
O que aconteceu no dia 18 e 19 de julho de 2024 é exemplo de uma catástrofe algorítmica. O sistema de gestão de risco, mais precisamente de mitigação de ataques cibernéticos falhou. Uma incorreção na atualização de software da empresa de segurança cibernética CrowdStrike que é aplicada no sistema operacional da Microsoft gerou o que a imprensa mundial nomeou de apagão cibernético ou digital. Uma mensagem da Microsoft no antigo Twitter, atual X, dizia: “Estamos cientes de um problema com os PCs em nuvem do Windows 365 causado por uma atualização recente do software CrowdStrike Falcon Sensor”.
Todo sistema digital incorpora de alguma forma a tentativa de detecção e de contenção de erro, falha, ataque, ou seja, de riscos e incidentes. Por isso, existem outros sistemas algorítmicos que atuam o tempo todo para analisar falhas, erros e ataques. Antivírus são um exemplo de atuação preventiva para proteger um sistema de envio de arquivos maliciosos que podem destruir informações e até encriptar base de dados para a obtenção de resgate pelos criminosos que detenham a chave para decifrar as informações. Curiosamente, o problema ocorrido e chamado de “apagão” se deu quando o sistema de proteção ou de prevenção de ataques acabou promovendo um ataque ao sistema de deveria defender.
Anthony Giddens e Ulrich Beck escreveram que na modernidade tardia, os riscos são, em grande parte, produzidos pela própria sociedade, principalmente pela tecnologia, industrialização e globalização. Todavia já estamos há muito tempo na modernidade tardia, estamos em um sistema capitalista em putrefação. O sonho do capitalista é distópico e busca substituir ao extremo o trabalho humano pelos sistemas automatizados com o objetivo de reduzir custos e aumentar a qualidade e a precisão dos serviços e produtos com a elevação da produtividade.
Assim, no capitalismo contemporâneo as grandes empresas de tecnologia avançam na coleta incessante de dados para aprimorar a extração de padrões dos processos humanos, sociais e maquínicos. Mas, esse sonho tem consequências sociotécnicas não previsíveis e não controláveis.
É importante destacar aqui que os riscos se amalgamam com objetivos que os ampliam, entre os quais, está a busca pelo domínio do mercado promovida pelos oligopólios digitais, as chamadas Big Techs. Já na primeira década do século XXI, o modelo de negócios baseado na chamada computação em nuvem se alastrou acelerando a concentração de poder computacional, de armazenamento de dados, e consequentemente, ampliando a concentração econômica.
Como é o negócio de nuvem? O que significa a frase “meus dados estão na nuvem”? Nuvem é uma metáfora para o negócio de armazenamento e processamento de dados e sistemas que estão localizados em data centers que são acessados remotamente pela internet. Como diz a piada “nuvem é o computador dos outros”.
Algumas poucas empresas se especializaram e acabaram dominando o negócio de provimento de nuvem. A Amazon Web Server e a Microsoft Azure, em 2021, detinham 60% do mercado mundial de nuvem que ofereciam a infraestrutura como serviço. O que isso quer dizer. Que diversas empresas, instituições, governos substituíram suas próprias infraestruturas de processamento e armazenamento de dados locais por contratos para que a Amazon e a Microsoft “cuidassem” e “alugassem” espaço de armazenamento de dados e serviços computacionais.
Os custos de contratação da nuvem para as empresas e governos eram convidativos. Isso levou a um crescimento gigantesco desse mercado. A consequência foi mais concentração econômica.
Segundo o Gartner Group, a concentração no mercado de Infraestrutura de nuvem como serviço (IaaS) era a seguinte em 2023: a Amazon detinha 39%, a Microsoft 23 %, o Google 8,2%, o Alibaba 7,9%, a Huawei 4,3%. Essas cinco empresas dominavam 82,4% do mercado global de nuvem. Além disso, esse cenário está se agravando devido ao treinamento dos grandes modelos de linguagem, o LLMs, que necessitam de muitos computadores disponíveis com altíssima capacidade de processamento ou poder computacional. Portanto, a Inteligência Artificial Generativa baseada na extração de padrões de grande quantidade de dados está contribuindo para a concentração de poder computacional que implica em poder econômico.
3.
No dia do apagão, muitas empresas foram acessar seus aplicativos e sistemas na nuvem da Microsoft e deram de cara com a famosa tela azul, ou seja, o sistema operacional não conseguia funcionar. Muitas pessoas que tinham o Microsoft 365 também tiveram o acesso aos seus arquivos bloqueados. O Microsoft 365 é como um serviço de assinatura que dá aos usuários o acesso ao pacote Office e demais serviços pela internet, em vez de instalá-los localmente em suas próprias máquinas.
Isso significa que os dados e arquivos dos usuários são armazenados na nuvem da Microsoft, permitindo que eles acessem seus documentos e informações de qualquer lugar com uma conexão à internet. Exceto quando a própria empresa que oferece o serviço tenha uma falha, um ataque ou promova um bloqueio, intencional ou não.
O apagão demonstrou o poder gigantesco que possui um mediador das relações digitais e um operador de tratamento de dados como a Microsoft. Sem dúvida, a falha não intencional gerou o apagão. Mas, fica evidente que a Microsoft tem o poder de bloquear o acesso de empresas e instituições a seus próprios dados localizados nos seus data centers, bem distante da nossa jurisdição e de nossa capacidade de acesso físico.
Temos aí um problema de soberania digital. Os dirigentes do Estado brasileiro precisam avaliar os riscos de continuar hospedando seus dados estratégicos e usando softwares de uso cotidiano em infraestruturas fora do nosso país. Nossas universidades precisam debater se não seria fundamental manter os dados de sua comunicação e de suas pesquisas em infraestruturas instaladas em nosso país, em nossa jurisdição e submetidas aos nossos comitês de ética. A autonomia necessária ao desenvolvimento cada vez mais passa pela soberania digital.
*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Autor, entre outros livros, de Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal (Autonomia Literária). [https://amzn.to/3ZZjDfb]
Referências
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. The reinvention of politics: Towards a theory of reflexive modernization. Staford University Press, 1994.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 2010.
GARTNER Says Worldwide IaaS Public Cloud Services Revenue Grew 16.2% in 2023
STAMFORD, Conn., July 22, 2024. Link: https://www.gartner.com/en/newsroom/press-releases/2024-07-22-gartner-says-worldwide-iaas-public-cloud-services-revenue-grew-16-point-2-percent-in-2023
HUI, Yuk. Algorithmic catastrophe. The revenge of contingency. Parrhesia: A Journal of Critical Philosophy, n. 34, 2020.
WIENER, Norbert. Some Moral and Technical Consequences of Automation: As machines learn they may develop unforeseen strategies at rates that baffle their programmers. Science, v. 131, n. 3410, p. 1355-1358, 1960.
Clipping diário do site
Acesse: # Cenários # A candidatura Boulos # Ricardo Nunes e a ameaça bolsonarista # A cidade privatizada # A crise humanitária em SP e o abandono das políticas de proteção social
Um capitalismo parasitário e especializado em criar pobreza às custas da espoliação do trabalho
Por trás do hype capitaneado por big techs existe uma cadeia de trabalho opaca e abusiva. Essa série revela as entranhas e os impactos do mercado de inteligência artificial no Brasil.Como a indústria de IA lucra criando uma nova classe trabalhadora sem direitos no Brasil. Tatiana Dias e Sofia Schurig. # Acesse aqui este e outros capítulos da série do Intercept
# Os servidores da nuvem e seu trabalho gratuito (Yanis Varoufakis, IHU)
# Concentração da renda: injusta e entrave ao desenvolvimento (Cândido Vaccarezza, 247)
# 2023: o primeriro ano do governo Lula 3 (Waldir Quadros, Cesit)
# Desoneração: gastos com BPC e Prev vão a R$ 11,3 bi e forçam bloqueio do orçamento (Fernandes e Tomazelli, Folha)
(clipping do site: acesse aqui)
# Lua de Mel entre Milei e mercado acabou
Investidores não querem saber de desvalorização do peso (Folha)
➥ Da crise americana ao vazio hegemônico
Declínio dos EUA ameaça a ordem liberal. China emerge; porém, não aspira ao papel de Washington. Neste vácuo, haverá riscos, mas também cenário favorável ao Sul Global (Outras Palavras)
Lançamento da candidatura de Guilherme Boulos (deputado federal pelo PSOL e cabeça da chapa progressista na eleição municipal de outubro) ocorre em momento de crescimento da popularidade de Lula em todo o Brasil, especialmente em São Paulo. Programa de atuação apresentado à sociedade representa trincheira de luta contra interesses privados que querem continuar destruindo a cidade através de fantoches bolsonaristas. Acompanhe o noticiário postado abaixo.
# Com Lula e Marta Suplicy no palco, candidato apresentou seu programa de governo voltado para a amplição dos serviços sociais, erradicação do abandono em que vive a população sem teto e melhora da qualidade da vida destroçada pela especulação empresarial em todos os setores (leia no G1).
Leia também: # Como foi o evento de lançamento da chapa Boulos-Marta (Uol) # Pesquisa indica forte apoio a Lula entre eleitores paulistanos (247) # Paraná Pesquisa: empate técnico entre Boulos e Nunes persiste, mas selvageria fascista pulveriza votos da extrema direita (adapt Carta Maior) # Armas e homeschooling afastam evangélicos de SP do bolsonarismo (Folha)
Acesse ➥ Dossiê Eleições 2024
A partir desta edição do site, páginas exclusivas sobre os problemas de São Paulo e sobre a ameaça que os partidos neofascistas representam para a cidade
Após expulsar praticantes de religiões afro-brasileiras, traficantes evangélicos passam a perseguir também os católicos.
Imprensa propaga discurso enganoso ao associar pentecostalismo a tráfico de drogas
Magali Cunha
Magali Cunha, especial para o site
Doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora em Comunicação, Religiões e Política no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Jornalista, editora-geral do Coletivo Bereia - Informação e Checagem de Notícias [em ambientes digitais religiosos].
A cena pública brasileira, nas primeiras duas décadas do século 21, foi muito alterada dado o protagonismo alcançado pelas religiões. O enfraquecimento da hegemonia do Catolicismo Romano, o crescimento numérico, geográfico, cultural e político dos evangélicos e as demandas por liberdade religiosa dos grupos afrorreligiosos não apenas impuseram novas pautas como tornaram explícito o lugar das religiões nos diversos modos de vida que formam o Brasil. Porém, foi o lugar que passou a ser ocupado pelo segmento evangélico, o que mais passou a chamar a atenção e a desafiar debates, compreensões, análises e a cobertura da imprensa (continue a leitura)
Isto se deu pelas transformações culturais experimentadas, na virada do século 20 para o 21, com a explosão gospel (presença nas mídias que media produção musical, mercado de bens e serviços e entretenimento religiosos) e a intensificação da presença na política (consolidação de espaço no Legislativo, ampliação de atuação no Executivo e ocupação do Judiciário). O ápice da visibilidade do segmento cristão evangélico foi alcançado com a aliança entre a extrema-direita em consolidação no país e uma significativa parcela das lideranças de corporações evangélicas (em parceria com setores ultraconservadores católicos, espíritas e judaicos) que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018.
A pequena atenção, até então dispensada ao grupo religioso que mais se expandiu no Brasil, segundo os dados dos dois últimos censos populacionais, apesar dos muitos estudos e análises por acadêmicos especialistas das ciências humanas e sociais, se tornou um desafio assumido pela imprensa e por analistas da cultura e da política. E ele passou a se dar entre erros crassos e esforços que merecem louvor.
Considerados, primeiro, os esforços, vale ressaltar o desafio assumido por duas mulheres jornalistas, Andrea Dip e Anna Virgínia Balloussier, que ocuparam o espaço de jornalistas especializados em religião, existente até meados da primeira década dos anos 2000, e depois, lamentavelmente, extinto. Dip e Balloussier assumiram, com primor, as pautas que lhe foram confiadas por editores e não só se especializaram na cobertura sobre o segmento evangélico, com a apresentação de matérias dignas e densas, como produziram relevantes livros-reportagem, com foco na dimensão política, em 2018 e 2024, respectivamente, com base no conhecimento que acumularam.
Já os erros, na forma de tratar a destacada visibilidade de evangélicos, tanto por jornalistas quanto por analistas, foram se acumulando, com: (1) a abordagem do segmento como “os” evangélicos, transparecendo uma homogeneidade neste grupo, historicamente, tão diverso; (2) o credenciamento de alguns poucos líderes midiáticos alçados a porta-vozes do segmento, o que não cabe nesse contexto; (3) ignorância sobre as diferentes ramificações confessionais a ponto de serem registrados erros nos nomes das igrejas e de ramificações; (4) exposição de incompreensão sobre as diferentes teologias e tendências ideológicas históricas, com privilégio de espaço à corrente conservadora.
Avalio que boa parte destes erros se dá por descuido com a apuração e a pesquisa, e pela predominância de práticas jornalísticas “de buscas de internet”. São poucos os redatores buscam especialistas que desafiam o tema com diferentes pontos de vista e questionamentos. Em muitas matérias, observa-se a palavra de pesquisadores usada para confirmar o que se já considera de antemão na construção das notícias e das análises.
É aqui que chegamos ao que penso ser o ponto crucial desta discussão que é o imaginário de jornalistas e analistas. Tratei sobre isto em artigo publicado na revista E-Compós, em 2016, quando avaliei a forma como os diferentes grupos religiosos são representados em matérias de mídias noticiosas do Brasil. O estudo mostra que o noticiário enfatiza o Catolicismo Romano institucionalizado, alimentado pelo imaginário social de “verdadeira e válida religião”. Por meio de uma análise de conteúdo foi possível identificar, a partir de um levantamento das matérias que trataram do tema “religião”, durante o ano de 2014, como uma noção exclusivista de religião é construída no País a partir do noticiário.
Minha análise se ateve aos discursos contidos nas matérias estudadas. No entanto, em 2020, uma importante pesquisa aprofundou o tema, com dados oriundos das próprias redações. Os pesquisadores Jacques Mick e Kevin Furtado, produziram investigação sobre o perfil religioso de jornalistas e identificaram três diferenças marcantes nas redações: a) presença mais significativa de não praticantes e ateus; b) participação significativamente menor de católicos e evangélicos; c) maior expressividade de espíritas (kardecistas) e praticantes de religiões de origem africana. O texto mostra que essas diferenças, entre outros fatores, podem explicar fenômenos como a relativa desatenção da cobertura jornalística sobre evangélicos e as abordagens em geral positivas que o Espiritismo (Kardecista) recebe nas mídias.
Este imaginário de religião dominante, “a” verdadeira, faz com que pessoas, entre elas jornalistas, olhem para a visibilidade do segmento evangélico em busca de confirmação da série de noções construídas, na sua educação formal e informal, e pelas mídias, nos próprios programas religiosos, no jornalismo, nas novelas, em programas de entretenimento. Entre elas estão: evangélicos são ignorantes, alienados e fazem o que o pastor manda; pastores evangélicos enriquecem à custa da exploração das ofertas em dinheiro para as igrejas (dízimos); as igrejas neopentecostais querem tomar o poder político do Brasil; os políticos evangélicos são corruptos e fisiológicos; evangélicos são conservadores e se tornaram “bolsonaristas” facilmente; evangélicos controlam a sexualidade das pessoas, mas pastores são devassos.
Estas noções foram construídas desde a primeira bancada evangélica em 1986 e ganharam ápice com a ascensão do que passou a ser denominado “bolsonarismo” – o processo eleitoral que levou Jair Bolsonaro ao poder, as alianças para sustentação do governo, os desdobramentos pós-derrota em 2022. Neste período recente, estas ideias foram intensificadas com quatro “novas descobertas”, que se tornaram pautas de jornalistas e analistas: o “poder neopentecostal”, teologia do domínio, abuso sexual por lideranças igrejas e a emergência de “traficantes evangélicos e do “narcopentecostalismo”.
O tom da quase totalidade das abordagens, seja de grandes mídias de notícias e de mídias alternativas alinhadas à esquerda, é negativo aos evangélicos, o que reforça e/ou estimula publicações e comentários em mídias sociais que colocam o segmento e sua expressão de fé cristã, imaginariamente concebida como descredenciada, errada, e, portanto, uma ameaça ao Brasil.
A cada caso que surge, relacionado a estas “descobertas”, novas matérias e pautas de programas de análises e entrevistas são veiculadas, com seleção de especialistas com pontos de vistas que corroborem o tom negativo (a busca do “viés de confirmação”, a tendência humana em buscar informações que se adequem às suas crenças prévias, como explica a Psicologia).
Ocorre que as “descobertas” não são fenômenos novos, atuais, como se quer fazer crer, como parte da busca “dos evangélicos” de “dominar do Brasil” e “transformá-lo numa teocracia”. São situações antigas, algumas delas também vivenciadas por outros grupos religiosos. Vejamos a seguir.
Pelo que consta em matérias, análises e comentários de mídias sociais, “os neopentecostais” ajudaram a construir o bolsonarismo e têm um projeto de poder político teocrático. Quem são estes grupos? De quem se está falando? Não temos resposta nas matérias. No máximo um ou outro nome de pastor midiático e de político da Bancada Evangélica no Congresso Nacional. É uma clássica expressão de teoria da conspiração que não encontra assento em dados ou teorias, apenas em histórias, casos, exemplos, coletados das próprias mídias.
Vale lembrar que a categoria “neopentecostalismo” surgiu na academia para dar conta do fenômeno dos novos pentecostalismos, consolidados nos anos 1990, ou seja, há mais de 30 anos. Portanto, este “neo” (novo) já não cabe mais há algum tempo e muitos outros fenômenos já foram identificados. Sem contar que aquelas características dos anos 90 podem ser identificadas em outras tradições cristãs, inclusive a Católica Romana, e não são verificadas em várias das novas igrejas surgidas em comunidades diversas Brasil afora.
Importante registrar também que no primeiro e no segundo escalões do governo Bolsonaro não havia “neopentecostais” (se acionadas a classificação de igrejas dos anos 90), mas maioria de presbiterianos, batistas, entre outros evangélicos tradicionais, católicos e alguns pentecostais. O ministro “terrivelmente evangélico” indicado para o Supremo Tribunal Federal, por Jair Bolsonaro, é um pastor presbiteriano (tradicional, portanto), e, no Congresso Nacional, o poder da chamada Bancada Evangélica está na mão de “assembleianos” (pentecostais clássicos).
Além destes elementos, o silêncio da cobertura de mídias sobre o lugar do Catolicismo Romano nas matérias sobre religião e política nas campanhas eleitorais, no Congresso Nacional e no Poder Judiciário precisa ser também ressaltado.
Hoje é mais correto nos referirmos a “pentecostalismos”, pois são diversas as igrejas, os grupos e as teologias relacionadas a esta ramificação evangélica que nasceu raiar do século 20 nos Estados Unidos e na primeira década dele no Brasil. Há grandes e ricas igrejas, na forma de corporações evangélicas pentecostais, porém uma grande parte das comunidades pentecostais são médias e pequenas, com poucos recursos financeiros, presentes em localidades centrais e periféricas do Brasil afora.
É uma abordagem teológica geralmente atribuída a evangélicos do fundamentalismo estadunidense, nos anos 1970, que relacionaram a ideologia da leitura dominionista da Bíblia (Deus concede domínio sobre a Terra, a partir do Gênesis) à dimensão política. Portanto, não foi criada pela Igreja Universal do Reino de Deus e nem é propriedade “neopentecostal”, como aparece em algumas menções nas mídias brasileiras. Há estudos que até relacionam as raízes do dominionismo ao Integralismo Católico Romano, que é um movimento mais antigo.
A Teologia do Domínio está alinhada a campanhas ultraconservadoras nos Estados Unidos, alimentou os grupos que atuaram no processo eleitoral que elegeu presidente Donald Trump, em 2016, e Jair Bolsonaro, no Brasil, em 2018. Ela tem sido base para alguns grupos evangélicos que têm projeto de ocupação da política relacionados ao chamado neocalvinismo.
Apesar do imaginário construído entre evangélicos no Brasil, desde a chegada dos primeiros missionários estadunidenses, no século 19, de o país ter um presidente e políticos evangélicos para implantar que houvesse governo sob os valores cristãos, a Teologia do Domínio não predomina no segmento. Há outras teologias e tendências pastorais apregoadas e desenvolvidas por evangélicos, uma vez que são tão diversos. Pelo viés dos fundamentalismos, podemos citar as Teologias da Prosperidade, da Confissão Positiva, da Retribuição, da Determinação. Pelo viés progressista, há as Teologias da Libertação, da Missão Integral, Ecumênica, Pública, Feminista, Negra, Ecoteologia.
Algumas publicações tentam abrir um caminho para esta compreensão mais plural, porém, é possível observar que o imaginário do herói, comum às pessoas e à cobertura política pela imprensa, é acionado quando se ancora abordagens mais plurais em poucas figuras, como a do deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), da Igreja Batista do Caminho. A atuação dele tem sido, de fato, relevante como contracomunicação àquela imposta por personagens do campo político evangélico ultraconservador no Congresso Nacional. Porém, a ênfase acaba recaindo na imagem do deputado como “o modelo de evangélico” em contraposição ao que se toma como padrão, com desprezo a outras lideranças (inclusive mulheres e pessoas sem vinculação partidária) e vivências presentes no cotidiano de muitas comunidades.
Abuso sexual por lideranças evangélicas
Há muitas situações, são fatos. Porém, deve ser sempre recordada a extensa lista de situações que envolvem casos de abuso sexual em outros grupos religiosos, como no Catolicismo Romano, em religiões de Tradição Africana e no Espiritismo Kardecista. O que precisa ser reconhecido é que, em todas estas circunstâncias, há líderes religiosos homens que abusam de sua posição de poder, e devem ser criminalmente punidos, como deve ocorrer com situações afins em outros espaços sociais, como as diversas instituições públicas e privadas.
Traficantes evangélicos e narcopentecostalismo
A presença de igrejas evangélicas nas periferias das grandes cidades do Brasil é histórica, e, com ela, a relação com poderes paralelos, criminosos, por questão de sobrevivência. A partir dos anos 1990 apareceu a figura dos “traficantes evangélicos”, líderes do tráfico de drogas no Rio de Janeiro que passaram a se identificar como evangélicos, seja por adesão a uma determinada igreja ou por afinidade, muitas vezes, na qualidade de filhos de pessoas evangélicas. O caso mais expressivo foi a inauguração do Complexo de Israel, uma região da cidade do Rio, dominada por um traficante apelidado “Peixão”, que teria se tornado evangélico e abraçado a simbologia de Israel, do Antigo Testamento da Bíblia.
Estes traficantes passaram a exercer uma espécie de controle religioso sobre os territórios sob seu comando, com a proibição de cultos de terreiros de Tradição Africana, e até mesmo a concorrência católica romana. Há pesquisas acadêmicas, de algumas décadas, sobre o fenômeno. Uma das pioneiras é a da professora da Universidade Federal Fluminense Christina Vital. Em 2023 foi publicado o livro “Traficantes evangélicos”, de Viviane Costa, com foco em pesquisa sobre o Complexo de Israel. O assunto passou a ser explorado recentemente, na trilha “das descobertas” sobre os evangélicos, em tanta evidência no espaço público, porém é tema é antigo.
Vale ressaltar que a afinidade religiosa de criminosos deve ser tomada como uma situação comum, e se considerar a existência de traficantes, e outras figuras que vivem na ilegalidade, que são católicos, candomblecistas, umbandistas. O documentário produzido pela Globoplay em 2023, “Vale o Escrito”, deixa bem clara a adesão, já registrada em matérias jornalísticas, de donos de bancas de jogo do bicho (“bicheiros”) com o Catolicismo Romano e a Umbanda.
Sobre a exploração do termo “narcopentecostalismo” no noticiário, ele é incorreto. Não há dados empíricos que comprovem a existência de uma religião fundamentada na ação criminosa ou de ações criminosas fundamentadas em ensinamentos religiosos, de maneira a conceber uma nova crença ou doutrina que consolide ambos os universos. Sobre isto, a pioneira dos estudos sobre o tema Christina Vital, quando ouvida por diferentes veículos de mídia, não tem a avaliação crítica das abordagens registrada, como declarou ao Coletivo Bereia, dias atrás: “Vemos pessoas que estão no crime e se aproximam de religiões, não só evangélicas, mas com isso não podemos dizer que há uma teologia criminal específica, que haja uma igreja de traficantes, para traficantes, propagando valores criminosos, violentos e o uso de drogas à luz da Bíblia ou de qualquer livro sagrado. Estes termos atendem mais a um anseio sensacionalista de uma mídia e de pesquisadores mal-intencionados ou não tão bem informados”.
Avalio que, este conjunto de “descobertas” atende a um anseio sensacionalista (repito a expressão de Christina Vital) antievangélicos, gerado pelo imaginário de jornalistas e de setores políticos conservadores e progressistas. Seja o imaginário que despreza o lugar da religião na vida das pessoas das diferentes fés, e a elas atribui a ideia de alienação e de exploração das lideranças (financeira, polícia e sexual); seja o imaginário que desqualifica a fé evangélica com base na noção de “religião verdadeira”, atribuída, neste caso, não só por pessoas religiosas, ao Catolicismo Romano e ao Espiritismo Kardecista, que tem alinhamentos com ele.
A construção de material jornalístico, de analistas de mídias e de comentaristas de mídias sociais sobre este tema, tem buscado vieses de confirmação das noções geradas por este imaginário, por meio da seleção de temas e de quem fala sobre eles, e na falta de apuração devida para estas pautas.
Tomo como exemplo que, das dez matérias publicadas pelo Coletivo Bereia na primeira quinzena de julho de 2024, quatro foram conteúdos desinformativos sobre religião publicados pela grande imprensa, especificamente sobre o segmento cristão evangélico. Bereia já checou material de mídias de notícias credenciadas anteriormente, mas não com esta intensidade e frequência.
Esta postura chegou ao ponto de um dos grandes jornais ter tomado como verdade uma postagem satírica de “venda de terrenos no céu” e a transformado em notícia. Além disso, houve sensacionalismo com a declaração de um pastor sobre oração e milagres, em podcast, e com o equivocado tema do “Narcopentecostalismo”, o que se somou ao desconhecimento sobre as Assembleias de Deus, nas matérias sobre a vaia ao ex-deputado Eduardo Cunha, em evento no Maracanãzinho.
É escasso o conteúdo que expõe quem, de fato, são os evangélicos, com a pluralidade de perfis tão diversos e variados significados atribuídos à experiência com a fé, que construiu a memória desse grupo no Brasil, que passa por contribuições significativas à educação do país e pela cruel perseguição da ditadura militar. Levar em conta esta pluralidade em matérias e análises é superar simplificações com a compreensão de que ninguém é só religioso na vida, portanto, ninguém é só evangélico, como o Intercept Brasil se abriu para publicar, em artigo que produzi com Lívia Reis.
Observa-se que a busca pelo “viés de confirmação” leva ao desprezo de dados empíricos sobre evangélicos, há tempos desenvolvidos por acadêmicos reconhecidos e, mais recentemente confirmados por institutos de pesquisa. Entre eles estão o perfil mais católico dos participantes do comício de Jair Bolsonaro, em São Paulo, em fevereiro passado; a rejeição do PL do Aborto (1904/2024); e os dados sobre o perfil do eleitorado evangélico em São Paulo (contra armas e homeschooling, por exemplo, e contra pastor indicar voto).
Pautas críticas, pelas mídias, sobre qualquer grupo social, são muito importantes em um Estado Democrático de Direito, e devem ser feitas com pesquisa e apuração responsáveis, com atenção aos processos determinados por imaginários exclusivistas e seus vieses de confirmação, que moldam preconceitos. A exploração de pautas com base em sensacionalismo referente a grupos em evidência na cena pública, tende a incorrer em erros e produzir desinformação. No caso dos evangélicos, como descrito aqui, pelo teor distorcido e impreciso que tem predominado, conteúdos têm instigado e sustentado julgamentos negativos sobre o segmento. Isto serve para alimentar intolerância religiosa – basta ler os comentários das chamadas de matérias nas mídias sociais. É possível, aos produtores de notícias e análises, corrigir este rumo!
# Quem é Kamala Harris (DW) # Democratas criam fato político para virar eleição (Uol) # Kamala na ofensiva (Uol)
... pode ser o desmonte da prepotência republicana
Pois então...
Rapidamente, ainda lendo a notícia (já aguardada) da desistênca de Biden às eleições presidenciais nos EUA, troquei algumas ideias com o jornalista Francisco Bicudo, assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSp). Fran (ou Chico), como é carinhosamente conhecido, sempre cauteloso, não esconde uma certa animação com a mudança no rumo político com a indicação de Kamala Harris para substituir Biden na cabeça da chapa democrata. "Com o Biden, diz Fran, a derrota seria certa. E acachapante, provavelmente. A Kamala - se for ela mesmo - é uma aposta de risco, porque não foi preparada para a tarefa nos últimos quatro anos. Mas é uma aposta que representa o fato político novo, que chacoalha e embaralha as peças no tabuleiro e que abre uma fresta de frescor de esperança e possibilidade de vitória, ainda que mínima".
Bicudo vê ainda em Kamala um capital político e simbólico bastante positivo: "Mulher e negra, mais jovem, ela vai resgatar um eleitorado que foi decisivo para derrotar o Trump em 2020. Cria dificuldades para a própria campanha republicana, que estava todinha montada para bater na senilidade do Biden. Por fim, reposiciona a disputa por narrativas: a pauta principal agora passa a ser a candidatura democrata, deixando para segundo plano o atentado contra o fascista. Continua sendo difícil vencer Trump, mas Kamala anima o jogo e pode inverter a expectativa de uma vitória garantida da extrema direita". Penso da mesma forma...
J.S.Faro
Presidente argentino já busca oportunidades para atuar em outros países caso não seja reeleito ou precise deixar o país (TV GGN)
O ato grotesco escatológico que o argentino fingiu entender, ainda foi acolhido por governadoires de estado (Muniz Sodré, Folha)
Em campanha pessoal na oferta de seus serviços a quem mais lhe for conveniente (e de costas para a sociedade que não o elegeu), Roberto Campos Neto encontrou-se 52 vezes com Bolsonaro e apenas uma vez com Lula...
Os bancos centrais assumiram, no período da financeirização, pós-1980, um papel crucial e quase exclusivo na gestão da política econômica, magnificando o impacto de suas ações na economia e sociedade. A desregulação radical dos mercados financeiros paradoxalmente exacerbou as ações dos bancos centrais, sobretudo na correção dos distúrbios decorrentes das operações desses mercados. Nesse contexto, é quase incompreensível que o debate sobre esta instituição seja, ainda hoje, marcado pelas propostas de ampliação da independência e não da sua democratização.
# Na contramão das bobagens concebidas pela Folha, Estadão e O Globo, leia Ricardo Carneiro, Carta Capital
Produção material já não reina absoluta. Conectados, rentismo e Big Techs voltam-se à captura de riqueza imaterial. Como isso alarga as desigualdades globais? Quais as táticas da captura digital? Como freá-la antes de que engula democracias?
Sem alarde, sem comunicado à imprensa e sem divulgação no Diário Oficial, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mudou as regras sobre o afastamento de policiais suspeitos de cometer crimes. Um boletim interno ao qual a piauí teve acesso acabou com o poder dos comandantes regionais de afastar e pedir investigação contra militares envolvidos em ocorrências graves.
PSOL pede investigação sobre afirmação do prefeito de que Boletim de Ocorrência da esposa foi forjado. Bancada Feminista afirma que declaração pode ser entendida como 'denunciação caluniosa'.
Os promotores sustentam que a lei, proposta por Tarcísio e aprovada pela Assembleia Legislativa, institui uma modalidade de ensino não prevista na Constituição. Apontam ainda que a rápida tramitação da proposta foi marcada por inconstitucionalidades (leia Ana Luiza Basílio, Carta Capital)
# A manifestação foi encaminhada ao STF (Supremo Tribunal Federal) no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo PT. As razões da recusa do presidente do STF em atender ao pedido (matérias da Folha)
"Sabia que tinha Deus comigo", disse cinicamente Trump na sacramentação pública de uma das maiores mentiras do século
# O que explica que Trump não tenha crescido nas pesquisas depois do 'atentado'? (Intercept)
# Israel nega direito a Estado Palestino e é criticado por Lula
Governo brasileiro repudiou resolução aprovada no Parlamento que “rejeita completamente” um Estado palestino (Opera Mundi)
Por que voto em Boulos
Não escapa ninguém: à esquerda de Nunes, Fauzi Hamuche, dono da Axel, a empresa beneficiada. Nas pontas, os execráveis Fábio Wajngarten e Bolsonaro
A prefeitura de São Paulo vai pagar cerca de R$ 20 milhões pela desapropriação de cinco imóveis no centro da cidade, sendo um deles da empresa de um amigo do prefeito Ricardo Nunes (MDB)
Apenas duas empresas vão receber pelos próximos 20 anos R$ 78 bilhões
Escolha feita sem licitação aumenta a precariedade de serviço essencial para a cidade e mantém prefeito sob a suspeita de conluio com o cartel do lixo que se formou em São Paulo.
Paraquedista da FAB denunciou plano que pretendia explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, em 1968
Há 94 anos nascia Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, alcunhado Sérgio Macaco, paraquedista da Força Aérea Brasileira e partícipe da resistência contra a ditadura militar (1964-1985). Sérgio Macaco se notabilizou por ter se negado a obedecer a ordem de seus superiores para explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro — ideia aventada como parte de uma operação de bandeira falsa que visava justificar o expurgo violento da oposição. A coragem de Sérgio ao se recusar a executar o plano e denunciar seus superiores neutralizou a operação e salvou milhares de vidas.
Entre as personalidades que deveriam ser assassinadas nesses “voos da morte” estavam Juscelino Kubitschek, Dom Hélder Câmara, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, Francisco Teixeira, Mário Covas, Carlos Lacerda, Jânio Quadros e vários outros...
Pensatas
A Amazônia pode perder quase 18 milhões de hectares de floresta, uma área equivalente à do Uruguai (17,6 milhões de hectares), se o Congresso aprovar o projeto de lei 3334/2023, que ampliará a área que donos de fazendas na Amazônia podem desmatar em suas propriedades.
Apresentado pelo senador Jaime Bagattoli (PL-RO), o projeto propõe reduzir a reserva legal, como é chamada a área que precisa ser mantida intacta pelos produtores rurais. Nas regiões de floresta da Amazônia, a reserva legal pode representar até 80% do total da propriedade, fração que Bagattoli quer reduzir para 50%. Se toda a área liberada para corte de fato vier abaixo, isso lançaria na atmosfera uma quantidade de carbono cinco vezes maior do que as emissões líquidas do Brasil em 2022, o que inviabilizaria o compromisso que o país assumiu no Acordo de Paris, que busca minimizar os impactos do aquecimento global.
A meta do Brasil é chegar em 2030 emitindo o equivalente a 1,2 bilhão de toneladas de CO2 por ano; só a derrubada dos 18 milhões de hectares que ficariam desprotegidos com a aprovação do PL do desmatamento lançaria na atmosfera o equivalente a 8,7 bilhões de toneladas de CO2. Se o carbono de toda essa massa verde for parar na atmosfera, vai contribuir para elevar ainda mais a temperatura da terra e do oceano e estimular a ocorrência de eventos extremos como as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul.
Além disso, o projeto de lei proposto por Jaime Bagattoli desobrigaria proprietários rurais da Amazônia de restaurar 6,2 milhões de hectares – uma área maior que a da Paraíba. Somada com a área que seria liberada para desmatamento, a aprovação do projeto colocaria em risco uma área de mais de 24 milhões de hectares – maior que a de Rondônia – que teriam que estar cobertos por vegetação nativa de acordo com a legislação atual.
O cálculo foi feito a pedido da piauí pelo engenheiro florestal Tasso Azevedo, usando a base de dados compilada pelo Mapbiomas, uma iniciativa que reúne centros de pesquisa, organizações ambientalistas e startups para monitorar a cobertura e o uso da terra em todo o Brasil. Azevedo, que é coordenador-geral do Mapbiomas, lembrou que o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento até 2030. “Uma medida como essa criaria uma contradição com as políticas e com as metas de clima do Brasil”, afirmou.
O PL 3334 chegou a ser pautado para ser votado na sessão de 8 de maio na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, quando Porto Alegre e centenas de cidades gaúchas estavam debaixo d’água. O relator Marcio Bittar (União-AC) apresentou uma licença médica e o PL foi tirado da pauta, poupando os senadores de votarem um projeto que estimularia o desmatamento da Amazônia em meio ao desastre climático mais extenso no tempo e no espaço já ocorrido no Brasil.
A tragédia segue em curso, e é improvável que o projeto volte à pauta da CCJ enquanto as águas não baixarem. Mas ele pode ser posto em votação a qualquer momento. Se o parecer de Bittar for aprovado, o projeto de lei será analisado na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Se passar pelas duas comissões, o projeto segue para a Câmara, sem que precise ser votado pelo plenário do Senado. Precisará ainda ser sancionada pelo presidente Lula.
Para além de todo o carbono despejado na atmosfera, a abertura de milhões de hectares da Amazônia para o desmatamento poderia precipitar a chegada do ponto de não retorno desse bioma. Esse é o patamar a partir do qual a floresta atingirá um patamar de degradação além do qual ela será incapaz de gerar as chuvas que garantem a sua própria sobrevivência, mas também aquelas que são levadas pelos chamados rios voadores (massas de ar carregadas de vapor d’água) ao resto do continente, contribuindo para irrigar a maior parte da agricultura brasileira.
A existência do ponto de não retorno foi postulada por estudos de modelagem climática feitos a partir dos anos 1990. Os modelos mostravam que esse ponto poderia ser atingido quando o desmatamento chegasse a 20% ou 25% da Amazônia – o total derrubado já está quase lá, se aproximando da marca de um quinto do bioma original derrubado. Tasso Azevedo notou que a área de 24 milhões de hectares que o PL 3334 tomaria da floresta corresponde a mais de 7% do bioma. “Isso significaria ultrapassar o ponto de ruptura e colocar em risco a própria integridade da Amazônia”, afirmou.
Pesquisas feitas em campo, contudo, constataram que a floresta já está mostrando sinais de perda de resiliência. Um estudo publicado em fevereiro deste ano pelo grupo da matemática e meteorologista Marina Hirota, da Universidade Federal de Santa Catarina, mostrou que uma área que equivale de 10% a 47% da floresta amazônica está sob a ameaça de atingir um ponto de transição irreversível até 2050. Outro estudo, publicado no fim de maio, mostrou que pouco mais de um terço da floresta está mostrando mais dificuldade para se recuperar de secas como a de 2023, um ano de El Niño que teve uma temporada intensa de queimadas. Para os autores, que incluem cientistas europeus e do Brasil, incluindo Hirota, essa constatação é um indicador precoce de que essas áreas podem estar se aproximando do ponto de colapso.
A maioria esmagadora da população brasileira enxerga algum tipo de associação entre a crise climática e as enchentes no Rio Grande do Sul. Essa relação é direta para 64% das 2 mil pessoas ouvidas pelo instituto Quaest no começo de maio, e parcial para 30% dos entrevistados. “Os brasileiros sabem fazer a conexão, a questão é se os seus representantes políticos estão preocupados com as mudanças climáticas”, disse a advogada Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, uma coalizão de ONGs ambientalistas. “A mensagem que eles passam desde sempre é que não conseguem ou não querem entender a conexão entre desmatamento, aumento de emissões e eventos extremos, ou pelo menos não fazem isso publicamente, porque a essa altura do campeonato já devem saber.” Para Araújo, os ruralistas que defendem o avanço do agronegócio sobre a floresta estão dando um tiro no pé. “Eles priorizam uma visão imediatista de ganho a curtíssimo prazo que vai afetar profundamente o setor.”
O agronegócio está sentindo diretamente o prejuízo das quebras de safra por extremos climáticos. No caso das enchentes no Rio Grande do Sul, as perdas projetadas para o setor passam de 3,3 bilhões de reais. Se a temperatura subir 3°C até 2050, a produção agrícola brasileira pode cair até 50%, conforme estimativa citada num estudo produzido pela Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, para projetar o futuro da agricultura brasileira.
A obrigatoriedade de preservar parte da vegetação nativa das propriedades rurais nasceu da constatação de que essas áreas são fundamentais para conservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, além de regularem o clima, protegerem os cursos d’água e contribuírem para a formação das chuvas. Essa ideia está inscrita na legislação brasileira desde 1934, quando o país teve seu primeiro código florestal. A proteção naquele momento era de 25% dos imóveis rurais, mas essa proporção foi aumentando ao longo do tempo na Amazônia.
A proteção de 80% que incomoda os ruralistas foi introduzida em 1996 por uma medida provisória do então presidente Fernando Henrique Cardoso, após seu governo registrar a pior taxa de desmatamento da história – só em 1995, a Amazônia perdeu uma área maior que a do estado de Alagoas. A reserva legal de 80% no bioma foi consolidada com a aprovação do Código Florestal em 2012, após anos de discussões que opuseram ruralistas e ambientalistas.
Suely Araújo, que acompanhou a discussão de perto como consultora legislativa na Câmara para assuntos ambientais, disse que o tamanho da reserva legal foi definido após muita discussão. “Mas os ruralistas estão sempre tentando piorar uma lei com a qual eles haviam concordado”, afirmou. Araújo chamou a atenção para uma ironia. “Os ruralistas foram os vitoriosos na discussão do Código Florestal, mas hoje quem defende essa lei são os ambientalistas”, afirmou.
O PL em discussão no Senado não é o primeiro e nem o único a tentar flexibilizar a reserva legal. Em 2019, Marcio Bittar (que estava então no MDB) apresentou, junto com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), um projeto de lei que ia ainda mais longe e propunha simplesmente extinguir a reserva legal – e, com ela, a obrigação de proteger qualquer fração da vegetação nativa dos imóveis rurais. A argumentação usada no projeto se amparava nos argumentos de Evaristo de Miranda, o agrônomo negacionista da crise climática que inspirou as políticas ambientais do governo de Jair Bolsonaro. A proposta foi retirada pelos próprios autores, mas a discussão pública motivada por ela ajudou a naturalizar a ideia de que a reserva legal representa um obstáculo injusto para os produtores rurais – um argumento que ignora os imensos prejuízos que o agronegócio brasileiro terá devido a eventos extremos como as enchentes gaúchas.
Os ruralistas enxergam os 80% de reserva legal como um ônus injusto aos proprietários de terra na Amazônia. Mas a verdade é que esse percentual se aplica a menos de um quarto dos imóveis rurais da Amazônia, conforme mostrou um levantamento conduzido pelo engenheiro ambiental Heron Martins a pedido da piauí. Martins explica que a proteção de 80% corresponde a apenas um de seis casos previstos no Código Florestal para os imóveis rurais da Amazônia. Na prática, apenas 22,75% das propriedades são obrigadas a obedecer a esse percentual mais restritivo de reserva legal. “A exceção virou regra na Amazônia quando se fala em reserva legal”, disse Martins, que atua como analista do Center for Climate Crime Analysis.
O engenheiro ambiental lembra que, mesmo com todas as exceções previstas no Código Florestal, a reserva legal não tem sido observada pelos produtores rurais. De acordo com um levantamento do Observatório do Código Florestal, uma rede de organizações que monitoram a implementação dessa lei, o déficit de reserva legal na Amazônia – ou seja, as áreas que deveriam estar preservadas conforme a lei, mas foram derrubadas – chega a 9,7 milhões de hectares.
Uma das exceções previstas no Código se aplica aos imóveis situados em estados que tiverem mais de 65% de seu território ocupado por unidades de conservação ou terras indígenas, dentre outras condições. Nesse caso, o estado passa a ter a prerrogativa de reduzir a reserva legal para até 50%. Atualmente, apenas os estados de Amapá e Roraima se enquadram nessas condições. O que o PL 3334 propõe é baixar o sarrafo para o qual essa exceção seria permitida: a regra passaria a valer para os estados com pelo menos 50% de suas áreas ocupadas por unidades de conservação de domínio público, por terras indígenas homologadas ou por áreas de domínio das Forças Armadas.
O PL 3334 em discussão no Senado representa um “retrocesso socioambiental significativo”, conforme a conclusão de uma nota técnica assinada por Heron Martins e pela ecóloga Ima Vieira, do Museu Paraense Emilio Goeldi. A aprovação do projeto de lei em plena crise climática “só agravaria o quadro de degradação ambiental e vulnerabilidade climática na Amazônia”, na avaliação dos pesquisadores.
O cálculo do impacto do PL 3334 feito por Tasso Azevedo a pedido da piauí levou em conta o cadastro ambiental rural (CAR), instrumento pelo qual cada proprietário de terras informa ao governo as coordenadas de seu imóvel e a área em que fica a reserva legal. A estimativa levou em conta como o projeto de lei afetaria a reserva legal em cada um dos 7,5 milhões de imóveis com cadastro no CAR. De acordo com a análise, a aprovação do projeto de lei afetaria o tamanho da reserva legal nas propriedades rurais do Amazonas e do Pará, as duas maiores unidades da federação.
Mas Azevedo alertou que a projeção envolve uma dose considerável de incerteza, já que há muitos casos de sobreposição na área dos imóveis inscritos no CAR, que é um cadastro de natureza autodeclaratória. A equipe responsável pelo cálculo fez ajustes e correções dos dados para contornar os casos de superposição.
O senador Jaime Bagattoli propôs o PL 3334 com o intuito de “incentivar o desenvolvimento dos municípios amazônicos”. No entanto, uma série de estudos feitos na Amazônia ao longo dos últimos vinte anos mostram que a prosperidade gerada pelo desmatamento num primeiro momento é temporária e costuma ser seguida por uma piora no IDH, na renda per capita, na taxa de alfabetização e na expectativa de vida das áreas afetadas, dentre outros indicadores. “Nos últimos vinte anos a gente tem produzido trabalhos que mostram que o desmatamento não é necessário para aumentar a produção agropecuária da Amazônia”, disse à piauí o agrônomo Adalberto Veríssimo, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Eles mostram ainda que o que move o desmatamento não é a necessidade de expandir a produção, mas a necessidade de especulação e a grilagem de terras.”
Já foram desmatados pelo menos 84 milhões de hectares da Amazônia, uma área maior que os territórios de Minas Gerais e São Paulo juntos. De acordo com o relatório O paradoxo amazônico, lançado em 2022 por Veríssimo e outros dois colegas, seria possível ampliar a produção agropecuária brasileira ocupando uma área menor do que a que já foi desmatada, desde que se melhorasse a produtividade da pecuária, que é muito baixa na Amazônia. Ainda assim, sobraria uma área de cerca de 37 milhões de hectares – uma área maior que a de Mato Grosso do Sul – que poderia ser destinada para o reflorestamento ou para cultivos agroflorestais. “Não há justificativa econômica para expandir novos desmatamentos na região”, disse o agrônomo.
O estudo O paradoxo amazônico mostra ainda que a maior parte dos empregos gerados na Amazônia está nas cidades, em atividades sem relação com o agronegócio ou com a economia da floresta. “Não há justificativa para se achar que o desmatamento vai gerar mais emprego”, disse Veríssimo. “O desmatamento não se justifica do ponto de vista social e econômico, e muito menos do ponto de vista ambiental e geopolítico.”
A piauí procurou o senador Jaime Bagattoli para ouvi-lo a respeito dos impactos do PL 3334 sobre o clima, a floresta e o agronegócio brasileiro, mas o parlamentar não quis dar entrevista.
A mesma falsa premissa de que o desmatamento levará ao desenvolvimento parece estar por trás de outros projetos de lei que propõem enfraquecer a proteção legal ao meio ambiente e que se encontram em diferentes fases de tramitação nas duas casas do Congresso. Um levantamento feito pelo Observatório do Clima elencou 25 projetos de lei e três propostas de emenda constitucional que integram o que eles chamaram de “pacote da destruição”.
A começar pelo PL 364/2019, que foi aprovado em março pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O projeto propõe eliminar a proteção a toda a vegetação não florestal, incluindo 48 milhões de hectares de campos nativos no Pantanal, no Pampa e no Cerrado – uma área maior que a de Rondônia e Roraima juntos. Outro projeto que gela a espinha dos ambientalistas é o PL 2159/2021, que está atualmente no Senado. O projeto revê as normas para licenciamento ambiental e amplia a possibilidade de os empreendedores fazerem o licenciamento automático, sem análise prévia por autoridades ambientais. “Você aperta um botão e a licença ambiental sai impressa, sem estudo de impacto ambiental, quanto menos de impacto climático”, alertou Suely Araújo.
Para a ambientalista, a existência de dezenas de projetos que podem trazer retrocesso ambiental mostra que os parlamentares, em sua maioria, enxergam as normas de proteção ambiental como entrave e que, na prática, acabam agindo como negacionistas do clima. “É inadmissível essa postura do Congresso Nacional em plena crise climática”, afirmou Araújo.
Outro projeto que consta na lista dos ambientalistas é o PL 2168/2021, que afrouxa a proteção sobre as áreas de preservação permanente (APPs) que haviam sido estipuladas pelo Código Florestal. O projeto permite o desmatamento das APPs para a instalação de infraestrutura de irrigação e pode aumentar a escassez hídrica em várias regiões. O advogado Marcelo Elvira, do Observatório do Código Florestal, notou que, diferentemente do PL 3334, o PL 2168 continua sendo pautado para apreciação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mesmo com as enchentes do Rio Grande do Sul. “É simbólico que ele não tenha sido tirado da pauta nesse momento”, afirmou o advogado.
Elvira notou que a posição do Congresso vai na contramão do protagonismo que o Brasil pretende assumir na discussão climática internacional. O clima é uma pauta central da presidência do Brasil no G20, que se reúne este ano no Rio de Janeiro, e Belém vai receber no ano que vem a COP30, na primeira vez em que uma Conferência do Clima da ONU será sediada na Amazônia. “Ao propor afrouxar a legislação ambiental, o Parlamento está completamente dissociado dessa agenda ambiental e climática”, disse o advogado.
Desse total, mais de R$ 60 milhões foram para ações militares sigilosas. Sofia Schurig, Pública (acesse)
A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional, encarregada de supervisionar o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), destinou mais de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares para militares e para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) desde 2015. Cerca de 70% desse total foi direcionado para projetos de cibersegurança, defesa de fronteiras e apoio a eventos, beneficiando os comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, além de ações de caráter sigiloso.
A criação do Sisbin e, consequentemente, da Abin foi formalizada em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A lei assinada por FHC exigia também a criação de um grupo no Congresso Nacional, formado por líderes da minoria e da maioria, como forma de fiscalização das atividades de inteligência no país. No entanto, a CCAI, estabelecida apenas em 2013, tem atuação limitada em termos de fiscalização.
A CCAI passou por uma redução significativa nas audiências públicas e um aumento na aprovação de emendas parlamentares ao longo dos anos. Segundo a Agência Pública apurou, desde 2016 a alocação de verbas aumentou e a fiscalização pública diminuiu – os requerimentos de parlamentares solicitando convocações de servidores da Abin para explicarem denúncias de monitoramento de sindicatos se tornaram raros.
Foi em 2015 que surgiram as primeiras emendas parlamentares. As emendas servem como ferramenta para recompor orçamento de pastas que costumam ter suas verbas congeladas ao longo do ano. Das emendas propostas, R$ 10 milhões foram destinados para ações sigilosas do Comando da Marinha. Outros R$ 60 milhões foram para a Abin e R$ 50 milhões, para o Exército e a Aeronáutica, com o objetivo de desenvolver sistemas tecnológicos e apoiar a realização de grandes eventos. Ao todo, foram R$ 120 milhões em emendas no ano.
POR QUE ISSO IMPORTA?
As emendas da comissão do Congresso que foi criada para fiscalizar atividades de inteligência têm sido usadas para aumentar a verba de ações sem transparência pública.
Em 2016, o Brasil presenciou a recriação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um impeachment presidencial e o pedido de demissão do então chefe da Abin Wilson Roberto Trezza. Apesar do tumulto, as atuações da CCAI não seguiram o padrão dos seus três primeiros anos. O grupo realizou apenas três audiências públicas, nenhuma delas deliberando sobre as ameaças de ataques terroristas para a Olimpíada no Rio de Janeiro que haviam sido identificadas pela Abin, nem sobre o protocolo de reconhecimento facial e monitoramento de redes sociais elaborado pela agência para o evento internacional.
Duas das reuniões foram conversas com o recém-nomeado chefe do GSI por Michel Temer, uma delas para a deliberação sobre a Política Nacional de Inteligência (PNI). Promulgada por Temer, a diretriz era uma exigência da lei assinada por FHC nos anos 1990. Ainda em 2016, a CCAI aprovou emendas parlamentares num total de R$ 161 milhões.
Entre essas emendas, o Comando do Exército (CEX) recebeu R$ 70 milhões para a implantação de um Sistema de Defesa Cibernética para a Defesa Nacional. A Marinha foi beneficiada com R$ 1 milhão para ações de caráter sigiloso, enquanto a Abin recebeu R$ 10 milhões destinados a ações de inteligência. O Departamento de Polícia Federal (DPF) foi contemplado com R$ 80 milhões para o aprimoramento institucional.
Entre os anos restantes da gestão de Temer (2017 e 2018), a CCAI foi presidida pelo senador e ex-presidente da República Fernando Collor. A comissão, no entanto, não apresentou nenhum requerimento, fez uma reunião por ano e aprovou, ao todo, sete emendas parlamentares. Muitas para ações de caráter sigiloso.
Apenas ao CEX foram destinados R$ 140 milhões para a criação de um sistema de cibersegurança militar. Para ações de caráter sigiloso, foram R$ 20 milhões para a Aeronáutica e outros R$ 8,6 milhões para a Marinha. Outros R$ 120 milhões em emendas para orçamento adicional foram aprovados para a Abin.
Aprovação de emendas seguiu em alta durante governo Bolsonaro
A aprovação deliberada de emendas – paralela à falta de audiências públicas – continuou em 2019, quando Jair Bolsonaro tomou posse. Foi nesse ano que, pela primeira vez, a ex-deputada federal Joice Hasselmann depôs na Câmara dos Deputados, na CPMI das Fake News, e falou sobre uma “Abin Paralela”, organizada pelo vereador carioca e filho do ex-presidente Carlos Bolsonaro. A CCAI, contudo, não investigou as acusações em audiências públicas, pelo que consta nos relatórios de atividades.
Essas denúncias apenas foram ouvidas pela comissão no ano passado, quando se provaram verídicas, sendo reportado ainda que a Abin comprara um software para rastrear a localização de alvos predeterminados. A única reunião realizada pelo grupo em 2019 teve como foco apenas a aprovação de mais de R$ 180 milhões em emendas parlamentares. Para a Aeronáutica, foram destinados R$ 39 milhões para aquisição e desenvolvimento de foguetes, além de outros R$ 6 milhões para atividades sigilosas. A comissão alocou R$ 70 milhões para o CEX implementar um Sistema de Defesa Cibernética para a Defesa Nacional.
Mais R$ 11 milhões foram direcionados para a instalação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron). A Marinha recebeu um adicional de R$ 6,5 milhões para operações confidenciais. O destaque fica para o maior montante já aprovado em emendas pela CCAI para a Abin: R$ 100 milhões.
A CCAI não tem um relatório de atividades para o primeiro ano de pandemia. No entanto, em 2020, os senadores Jaques Wagner (PT-BA) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), junto ao deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), protocolaram vinte requerimentos diferentes solicitando a convocação do general Augusto Heleno, então ministro do GSI, e de Alexandre Ramagem, na época diretor-geral da Abin.
Boa parte dos requerimentos dos três parlamentares em 2020 foi negada, e a única audiência pública que viria a ser realizada em 19 de março foi cancelada. Não houve relatório de atividades – nem aprovação de emendas parlamentares. Os requerimentos aceitos foram atendidos apenas no ano seguinte, em 2021. Uma das audiências com Augusto Heleno foi secreta. Estiveram presentes Aécio Neves (PSDB-MG), Diego Andrade (PSD-MG), Claudio Cajado (PP-BA) e Augusto Coutinho (Republicanos-PE), indicado pela Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN), que atua muitas vezes ao lado da CCAI.
Uma das reuniões tratou do MCN 9/2020, uma Mensagem ao Congresso Nacional enviada diretamente pelo presidente da República para apreciação ou deliberação sobre um certo tema. Nesse caso, a mensagem se referia à apreciação da Política de Defesa Nacional, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa Nacional. As três diretrizes precisavam ser analisadas e passar pela relatoria da CCAI antes de serem aprovadas. As análises da comissão sobre as propostas foram publicadas no Diário do Congresso Nacional (DCN) em 15 de dezembro de 2021, assinadas pelo então presidente da comissão Aécio Neves e com relatoria do deputado Claudio Cajado.
Nas conclusões e observações finais, os parlamentares tomam como referência orçamentária a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e citam outros países da América do Sul que investiram mais do percentual do PIB em gastos militares, como a Colômbia e o Equador. “Tendo em vista o reduzido percentual do PIB brasileiro destinado à Defesa Nacional, particularmente em face da projeção geoestratégica do nosso país, mesmo em face das adversidades econômicas por que passa o Brasil, há de se considerar a possibilidade do aumento desse percentual, de forma gradativa, na base de um incremento anual de 0,1%, durante seis anos, até alcançarmos o patamar de 2%. Paralelamente, que haja um aumento na dotação orçamentária das Forças Armadas exclusivamente para investimento e custeio dos respectivos equipamentos.”
Ainda em 2021, foram três deliberações para aprovação de emendas para o Planejamento Orçamentário Anual (PLOA) do ano seguinte. Com isso, foram enviados R$ 1,2 milhão para a Aeronáutica em ações de caráter sigiloso e R$ 2 milhões para “aprestamento de forças” do Fundo Naval, além de R$ 189 milhões para o Sisfron, do CEX. Outra reunião aprovou uma complementação às emendas anteriores, destinando R$ 15 milhões para a Abin.
Em 2022, último da gestão de Jair Bolsonaro, o Exército recebeu R$ 424 milhões da CCAI, o maior valor já enviado pela comissão para um único órgão. Para a Abin, foram R$ 40 milhões. As ações de caráter sigiloso da Aeronáutica também continuaram sendo bancadas, com R$ 2 milhões enviados.
Em 2020, CCAI decidiu aumentar gradualmente o percentual destinado às Forças Armadas
O relatório de atividades de 2022 menciona, brevemente, as tratativas da CCAI sobre as invasões aos prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. Um dos requerimentos e ofícios enviados foi ao ministro do GSI, general G. Dias, pedindo explicações sobre a atuação do órgão. A comissão recebeu um relatório classificado como reservado, cujo prazo de sigilo é de até cinco anos.
A CCAI afirmou acreditar que “as informações encaminhadas e classificadas como reservadas devem ser de conhecimento público, uma vez que se referem a fatos pretéritos e não representam qualquer ameaça à sociedade ou ao Estado brasileiro”, e pediu que fosse deliberado um pedido de desclassificação do documento enviado pelo GSI. Um requerimento sobre o assunto foi elaborado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC) e aprovado em maio do ano passado. Outro pedido feito por Amin para desclassificação de documentos com prazo vencido da Abin e do GSI foi negado.
Um dos requerimentos aprovados pela CCAI em 2023 exigia “o envio de cópias de todos os comunicados, relatórios de inteligência, briefings, consciência situacional e relatórios semanais produzidos, recebidos ou replicados” pela Abin na última década “que tenham como tema principal, complementar ou acessório a atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) – nacionais ou internacionais – em solo brasileiro.”
O autor do requerimento é Alexandre Ramagem (PL-RJ), que participou de audiência pública da CCAI enquanto diretor-geral da Abin. Na época, a oposição ao governo Lula avançava com a CPI das ONGs como estratégia política.
Outro pedido feito pelo deputado federal pedia à agência “o envio de cópias de todos os comunicados, alertas, relatórios de inteligência, briefings, consciência situacional, relatórios semanais e alertas emitidos, recebidos ou replicados” nos últimos dez anos sobre a atuação do Movimento Via Campesina, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ramagem retirou o requerimento da pauta da comissão.
Ainda que a fiscalização das atividades da Abin e dos órgãos que compõem o Sisbin tenha aumentado, a comissão aprovou milhões de reais em emendas orçamentárias outra vez. Foram R$ 10,7 milhões para ações de caráter sigiloso para a Aeronáutica, R$ 35 milhões para Abin com o propósito de servir às ações de inteligência, R$ 200 milhões para fiscalização da navegação aquaviária pelo Fundo Naval do Ministério da Defesa e outros R$ 20 milhões para o sistema de defesa cibernética do Exército.
Em 2024, sob a presidência de Renan Calheiros (MDB-AL), a CCAI teve apenas dois requerimentos, apresentados pelo senador Espiridião Amin, enviados em 6 de fevereiro. O primeiro convida Alessandro Moretti, ex-diretor adjunto da Abin, a comparecer à comissão. Ele deveria esclarecer uma reportagem da revista Veja que afirma que Moretti apresentou a altos membros do governo, em reunião na Casa Civil, um relatório de inteligência da Abin responsabilizando o GSI e o Ministério da Justiça pelas invasões na Praça dos Três Poderes.
Já o segundo detalha duas demandas específicas sobre a mesma reportagem, requisitando que o ex-diretor adjunto forneça “informações acerca da reunião citada na matéria, bem como sua data, participantes, registros e demais informações sobre a mesma”, além de uma “remessa imediata do Relatório de Inteligência citado na matéria, e/ou remessa de qualquer outro documento, formalizado ou não, produzido pela ABIN, que tenha pertinência temática com a matéria jornalística supracitada”.
Reportagem da Pública apontou paralisação das atividades da CCAI em 2024. Embora sejam parte do serviço público do Legislativo, Bruno Morassutti, diretor de advocacy da Fiquem Sabendo e membro do Conselho de Transparência, Integridade e Combate à Corrupção (CITCC) da Controladoria-Geral da União (CGU), explicou à Pública que, embora todas as votações e reuniões do Congresso Nacional devam ser transparentes, algumas sessões de caráter sigiloso podem ter uma exceção. “A Comissão de Atividades de Inteligência, ela também tem, pela própria definição, acesso a informações de segurança nacional. Caso não tenha ocorrido, isso é preocupante […] porque demonstra não haver um controle efetivo sobre as atividades de inteligência pelo Congresso Nacional.”
Existem comissões que destinam recursos para a própria área em que elas atuam, então faz sentido que a CCAI destine, ainda que como recurso para ações de caráter sigiloso, emendas parlamentares para o Sisbin. “Digamos que precisamos de um sistema melhor para ter um controle de informações sigilosas que estão sendo produzidas e transferidas pelos órgãos, compartilhadas entre os órgãos. Faria sentido que a comissão destinasse recursos para isso. […] Faz sentido. Agora, se esse recurso está sendo gasto de outra forma, para eventualmente aparelhar, aparelhar no sentido de dar equipamentos, materiais, ajudar na contratação de questões, esse investimento pode fazer pouco sentido, a depender, se a gente for olhar só sob a ótica de controle de atividades”, apontou Morassutti.
As emendas parlamentares são formas pelas quais o Congresso Nacional influencia e direciona recursos públicos dentro de determinada parte do orçamento, explica Morassutti. Em muitos casos, aponta Morassutti, não há uma definição muito clara sobre onde esse recurso pode ou não ser utilizado. O especialista vê como grande problema a falta de transparência para acompanhar as atividades de controle e fiscalização. “Quando a gente está destinando dinheiro de emenda sobre o assunto, acaba que a gente tem menos informação do que a gente costuma ter. E isso é um ponto que acaba prejudicando, efetivamente, saber se a gente está aqui aprimorando a transparência da administração pública ou se a gente está prejudicando a transparência.”
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Pública solicitou ao CEX informações sobre o estado atual do sistema nacional de cibersegurança. A reportagem pediu acesso ao cronograma de execução e plano de trabalho do programa, além de cópias das despesas realizadas até o momento, contratos, licitações, número de profissionais e empresas envolvidas, suas atribuições e as medidas de segurança, como controle de acesso, proteção de dados e gestão de riscos. O CEX respondeu: “O SIC-EB informa que, até o presente momento, não foi possível consolidar as informações sobre o seu pleito”.
Via LAI, a reportagem também questionou a Abin se parte ou a totalidade dos valores enviados pela CCAI em emendas parlamentares havia sido utilizada em atividades de contrainteligência no Brasil. A contrainteligência é descrita pela própria Abin como “atividade que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a inteligência adversa e as ações que constituam ameaça à salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado”. A agência declarou que não pode fornecer detalhes sobre os valores e atividades de contrainteligência devido à sensibilidade dessas informações, conforme as leis n.º 9.883/1999 e n.º 12.527/2011, e que a divulgação poderia comprometer o funcionamento do órgão e sua estratégia.
“O Brasil tem um histórico do ‘inimigo interno’ muito forte, que é o povo – dependendo dos movimentos sociais, dependendo da população, o crime, de maneira geral, mas a gente sabe que é dirigido para a população negra, pobre, periférica”, disse o pesquisador e coordenador de projetos do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (Ip.rec) Pedro Amaral. “A Abin não foge dessa divisão, de alguma forma.”
“Do meu ponto de vista como estudioso, mas também como soldado civil organizado, acho preocupante o gasto ser sigiloso. Não preciso saber exatamente como vai ser usado, ou que ferramenta vai ser comprada, ou como vai ser usado aquele custo. Entre esse sigilo quase total que a gente tem e o sigilo operacional necessário, a operação segura do serviço de inteligência, mas de contrainteligência também.”
A Pública questionou Amaral se as emendas de caráter sigiloso podem ser voltadas para equipamentos aos militares. “Sabemos que tem muito equipamento sendo comprado sigilosamente. Porque também isso faz parte da ideia de que não é só nesse conflito informacional. O setor de inteligência está no conflito informacional, que é, basicamente, saber mais do outro do que o outro sabe de mim – X tem que saber mais de Y do que Y sabe de X. Isso inclui, inclusive, não só saber o que X sabe, mas como X sabe –, ou seja, os métodos empregados para conhecer, para coletar determinadas ferramentas para lidar com esse conflito informacional.”
Amaral concorda que é compreensível manter sigilosos os gastos e recursos, mas pontua, assim como Morassutti, que a falta de transparência com as emendas parlamentares da CCAI dificulta saber como essas ferramentas estão sendo utilizadas. “A gente tem o sigilo de um lado e não tem, por exemplo, um mecanismo para autorizar a operação. Então, não sabemos quais ferramentas são compradas e como o dinheiro está sendo gasto de maneira geral, mas acredito que as ferramentas entram muito no foco, porque o Estado brasileiro não tem tanta capacidade de desenvolvê-las, especialmente as de inclusão cibernética.”
A reportagem questionou também se, como membro da sociedade civil, Amaral tinha conhecimento de visitas, audiências ou reuniões realizadas por empresas que vendem equipamentos e programas militares ou de inteligência com parlamentares que integram a CCAI. Dúvidas sobre a influência dessa indústria brasileira começaram a surgir após o senador Eduardo Gomes (PL-TO), relator da comissão que regulará a inteligência artificial no Brasil, apresentar um texto preliminar para o PL 2.338 que permitia armas autônomas com controle humano em território brasileiro, bem como sistemas de reconhecimento facial – conhecidos também como identificação biométrica – em locais públicos para autoridades de segurança pública.
Carlos Zarattini, que é membro da CCAI no biênio 2023/2024 e hoje integra a CREDN, lidera um projeto de resolução que pretende reformular as atividades da comissão e recebeu apoio de 80 deputados. Se aprovado, o texto expandirá o escopo da comissão para incluir a supervisão completa da execução orçamentária e financeira da Abin, permitindo o monitoramento das despesas sigilosas e a convocação de autoridades para prestar esclarecimentos sobre assuntos relacionados à inteligência e contrainteligência. O projeto exige também relatórios periódicos sobre os gastos da Abin e detalhes completos sobre suas operações, independentemente do nível de sigilo. Ele aguarda despacho desde novembro de 2023.
# Link para acesso à matéria da Pública
Edição: Bruno Fonseca
Bolsonaristas em apuros...
Constrangidos pela rejeição que sofrem aonde quer que estejam, Milei e Bolsonaro tentam evitar a si mesmos no encontro da extrema direita realizado no Brasil
Crônica político-cultural no encontro da ultradireita latina. Como a inacreditável medalha dos três is, entregue pelo “capitão” ao argentino, expõe as diferenças entre ambos. E por que uma irmandade dos ressentidos apara as arestas.
# Leia Alberto Luiz Schneider e Damian Kraus (Outras Palavras)
# Florestan Fernandes (1920-1995)
“Voltamos as costas à organização da revolução e auxiliamos a contrarrevolução, uns mais, outros menos, uns conscientemente, outros sem ter consciência disso”.
# Leia Milton Rondó (Carta Capital)
# Walter Benjamin (1892-1940)
Rua de mão única, uma das obras mais significativas da literatura de vanguarda alemã, é relançada pela Editora 34. A edição conta ainda com textos de Asja Lacis e resenhas de Siegfried Kracauer, Ernst Bloch e Theodor W. Adorno.
# Leia Raíssa Araújo Pacheco (Outras Palavras)
# Ícaro
“Todas as mitologias das culturas da terra nos alertam sobre a hybris: não podemos ser como deuses, porque pereceremos por causa disso. Na tradição grega, a hybris ou hubris é um termo que se refere à arrogância desmesurada, à falta de respeito pelos deuses e pela natureza. De modo que, a hybris na versão capitalista pode ser rastreada em narrativas míticas que apresentam personagens ou situações que refletem a busca desenfreada de poder, riqueza e sucesso, sem considerar as consequências morais ou sociais de suas ações”
Matéria do Jornal Nacional exibida em 15 de julho revela rigor interpretativo de excelente qualidade a partir da composição semiótica daquele que é o principal registro do suposto atentado a Donald Trump. A foto, no entanto, é mais que isso: seu poder de síntese em associação política com os fatos (ver abaixo) que cercaram o incidente mostra uma forte sincronia com o discurso que dá sustentação ideológica à campanha da extema direita - um discurso que agora ganha maior impulso global, inclusive no Brasil
# O corpo sagrado do herói: Trump fala em 'milagre' após (...) comício (Uol) # Agilidade: Republicanos oficializam candidatura de Trump (Opera Mundi) # Wall Street fecha em alta com perspectiva de vitória de Trump (Infomoney) # Trump indica vice e se mantém em alta no noticiário (Metrópole) # Juíza rejeita processo contra sobre roubo de documentos sigilosos (Carta Capital) # Trump leva bolsonarismo à lua (Uol) # Efeito do suposto atentado contra Trump deve ter o mesmo efeito político da facada em Bolsonaro (Folha)
Por que voto em Boulos
Sabatina de Nunes no UOL. A íntegra do evento: festival de mentiras, disfarces e evasivas # Nao sou bolsonarista # Boletim de Ocorrência com denúncia de violência contra a esposa "é forjado" (mas existe) # Sobre o 8 de janeiro # As obras não cumpridas # Josias de Sousa: Nunes mostra estar preso a sentimento democrático por um barbante
# O duelo entre EUA e China pelo domínio da internet (Rodion Ebbighausen, DW)
Não há mais direita na Europa (nem extrema, nem de centro) do que a direita liberal, “extrema” quando é necessário, “democrática” quando é suficiente. Gilberto Lopes, A Terra é redonda (acesse)
1.
Comecemos pelo início: o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Europeia em 1957, inspirado nas ideias de um dos seus arquitetos, Jean Monnet. Um personagem polêmico, como veremos, novelesco, procedente do mundo financeiro, afirma o professor José A. Estévez Araújo, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Barcelona, comentando o livro do historiador britânico Perry Anderson, “O novo velho mundo”, um estudo histórico sobre a origem, evolução e perspectivas da União Europeia. Este elegante homenzinho de Charente, Monnet “foi um aventureiro internacional de primeira ordem, que fez malabarismos financeiros e políticos através de uma série de apostas espetaculares”, diz José A. Estévez.
Naquele momento, afirma, havia um consenso em torno das políticas keynesianas de pleno emprego e uma maior preocupação com a questão social. Era a época da Guerra Fria. Monnet devia seu poder e influência ao apoio dos Estados Unidos, que na época estavam interessados numa Europa Ocidental forte que pudesse fazer frente à União Soviética.
Para Perry Anderson, contudo, o cenário era um pouco diferente. Para ele, Monnet estava “notavelmente livre das fixações da Guerra Fria”. “Ele queria uma Europa unida que servisse de equilíbrio entre os Estados Unidos e a Rússia”.
2.
Em todo o caso, as políticas keynesianas do tempo da Guerra Fria deram lugar a outras, sobretudo após a assinatura do chamado “Ato Único”, em 1986. Este documento implementou, em nível europeu, as políticas de desregulamentação dos mercados que Margaret Thatcher tinha aplicado anos antes na Inglaterra.
Em 1986, o mundo socialista do leste europeu já estava em colapso, incapaz de pagar suas dívidas com os bancos ocidentais. O fluxo de petrodólares, que alimentava as economias dos países da Europa do Leste, tinha sido cortado, desencadeando uma crise que resultaria, em poucos anos, no colapso de seu sistema e no fim da Guerra Fria.
O colapso dos acordos de Bretton Woods, com a desvinculação do valor do dólar norte-americano do ouro em 1973, obrigou a Comunidade Europeia a buscar mecanismos que garantissem uma certa estabilidade do valor de suas moedas. Em 1979, entrou em vigor o Sistema Monetário Europeu. Em 1988, o Conselho Europeu decidiu promover estudos para a criação de uma moeda única: o euro.
Armava-se o labirinto em que o Ocidente europeu se encontraria encurralado. A criação da moeda única previa a independência dos bancos centrais em relação aos governos. O objetivo era evitar que estes pudessem financiar o déficit público, alterar as taxas de câmbio ou as taxas de juro. O fim do fluxo de capitais baratos, fornecidos pelos bancos do norte, colocou as economias dos países endividados do sul da Europa nas mãos do mercado financeiro.
Mas, acima de tudo, as instituições financeiras internacionais condicionavam os novos empréstimos a políticas de ajuste estrutural e às políticas neoliberais de privatização. Em vigor desde novembro de 1993, o Tratado de Maastricht impedia-os de recuperar competitividade por meio da desvalorização. A Grécia foi o exemplo mais dramático quando, em 2009, após uma década de endividamento especulativo, ficou evidente que não conseguiria cumprir seus compromissos financeiros, principalmente com os bancos alemães e franceses.
Tal como tinham feito com os países da Europa do Leste, coube-lhes agora impor programas de austeridade draconianos à periferia do sul e garantir aos bancos a recuperação dos empréstimos comprometidos. Com Wolfgang Schäuble – ministro das finanças do governo de Angela Merkel – à frente, e um bloco de países menores – incluindo a Holanda, cujo primeiro-ministro, Mark Rutte, aspira agora ao cargo de secretário-geral da OTAN – , impuseram à Grécia um programa que reduziu o país a uma condição de dependência que faz lembrar a bancarrota austríaca de 1922, que deu asas ao fascismo.
3.
A unificação alemã em 1990 e o colapso do socialismo no leste tiveram um grande impacto na economia europeia. Como nos lembra o professor José A. Estévez, a reunificação alemã criou uma massa de trabalhadores qualificados sem emprego, resultado do desmantelamento das indústrias da Alemanha do Leste. Entre 1998 e 2006, durante sete anos consecutivos, os salários reais diminuíram na Alemanha.
O euro entrou em circulação em 2002, estabelecendo critérios de convergência impostos pela Alemanha e por alguns aliados do norte europeu aos países da zona do euro. Eram regras que limitavam a dívida pública, os déficits orçamentários e a inflação, mas não regulavam a política fiscal, nem promoviam uma política de convergência real entre os países, nem a criação de uma dívida pública europeia. A ampliação para o leste (seria mais exato chamá-la de “colonização”, diz José A. Estévez) permitiu deslocar unidades de produção para esses países, que tinham uma mão de obra qualificada e um nível salarial muito inferior ao da Alemanha.
A moeda única, a redução dos salários e a contenção da inflação abaixo da média europeia tornaram muito difícil aos países periféricos serem competitivos em relação aos produtos alemães. Assim, a economia alemã, em vez de atuar como a “locomotiva” da economia europeia, tornou-se seu “vagão de carga”. Quando a recuperação chegou em 2006, a Alemanha era o principal exportador da União Europeia e pôde, a partir daí, exercer seu domínio na Europa.
4.
A OTAN começava a ganhar corpo. Seus objetivos, tal como definidos em 1949 pelo seu primeiro secretário-geral, o general inglês (de origem indiana) Lord Hastings Ismay, eram manter os russos fora, os Estados Unidos dentro e os alemães embaixo. Ismay não diz “soviéticos”, diz “russos fora”; nem “nazistas embaixo”, mas “alemães embaixo”.
Não foram bem sucedidos. Impedir o surgimento de uma potência europeia que desafiasse seus interesses era uma preocupação essencial da política externa britânica em meados do século passado. Essa potência era, evidentemente, a Alemanha. Se essa aspiração pudesse ter sentido após a Segunda Guerra Mundial, deixou de ser realista 75 anos depois.
O que emergiu do processo de integração europeia – do qual os britânicos acabaram se retirando – foi uma Europa à medida da Alemanha.[i] Seus laços com a Rússia, particularmente através do fornecimento de energia barata, acabaram destruindo os objetivos enunciados por Lord Ismay. Das três propostas, apenas uma permanecia vigente: “Estados Unidos dentro” (e mesmo essa, como sabemos, enfrenta novas ameaças numa eventual administração de Donald Trump).
Não era essa a intenção da OTAN. Para evitar que a economia alemã ficasse permanentemente dependente do abastecimento estratégico de energia russa, forças especiais, nunca devidamente identificadas, estouraram os gasodutos Nord Stream I e II no mar Báltico. Tudo parecia estar de novo no bom caminho… Todos continuavam presos no labirinto.
Perry Anderson fala da “ansiedade da classe política francesa em não se separar dos projetos alemães dentro da União”, o que faz lembrar “a adesão desesperada da Grã-Bretanha ao papel de ajudante de campo dos Estados Unidos”. Dois regimes – o alemão e o francês – que tentavam “trazer o resto da Europa para o curral de seus planos de estabilização”, mas que, mesmo naquele momento (2012), não pareciam muito duradouros, como de fato não foram (sobretudo o francês, quando Sarkozy perdeu as eleições para o socialista François Hollande. Merkel durou um pouco mais, até 2021). Mas – diria Perry Anderson, de forma incisiva – é outra questão se o regresso da social-democracia ao poder em Paris e Berlim afetaria muito o desenvolvimento da crise. Ou os ajudaria a sair do labirinto…
5.
A ideia da OTAN era manter “os russos fora”. Mas em novembro de 1990, com a Alemanha recém-unificada, a Europa assinou a “Carta de Paris” com a Rússia, cujas primeiras palavras afirmavam que a Europa estava “libertando-se da herança do passado”. “A era da confrontação e da divisão da Europa terminou”. Trinta e quatro anos depois, é evidente que nada disto era verdade.
Mas não foi a Rússia que levou suas tropas para as fronteiras polonesas, alemãs, finlandesas ou as dos países bálticos. Foram os Estados Unidos que trouxeram suas armas e soldados, a 15.000 quilômetros de distância, até as fronteiras russas. Foram os países europeus que se deslocaram para o leste, mais de 1500 quilômetros, uma cortina de ferro que pretendiam estender desde o mar de Barents, na fronteira norueguesa, até o mar Negro, na fronteira ucraniana.
O avanço da OTAN em direção às fronteiras russas não era uma provocação? Têm razão aqueles que negam que a invasão da Ucrânia pelas tropas russas foi uma resposta a essa provocação? O que fizeram os Estados Unidos quando a União Soviética tentou instalar armas nucleares em Cuba? Isso não foi uma resposta a uma provocação?
Em 2007, Vladimir Putin referiu-se ao cenário mundial num importante discurso na Conferência de Segurança de Munique. Falou dos riscos de um mundo unipolar, de sua preocupação com o desmantelamento da rede de tratados destinados a impedir a proliferação de armas nucleares e da intenção dos Estados Unidos de instalar um sistema de defesa antimíssil na Europa. Criticou a decisão da Europa de não ratificar o tratado sobre as forças armadas convencionais e alertou para a decisão da OTAN de expandir suas forças para o leste, a qual não tinha nada a ver com sua modernização ou com a garantia da segurança da Europa.
Ao contrário, afirmou, “representa uma provocação grave que reduz o nível de confiança mútua”. O Ocidente não respondeu a nenhuma destas preocupações. Não é preciso ser um apoiador de Moscou para compreender o que estava em jogo e o que, 15 anos depois, explodiu na fronteira ucraniana e conduziu à crise atual.
Os russos viram novamente as tropas aproximarem-se de suas fronteiras… (nos anos 40, a invasão alemã tinha-lhes custado milhões de mortos). Com que objetivos se aproximavam estas novas tropas? A única explicação possível é a defesa de seus interesses políticos e econômicos, do labirinto cuidadosamente construído nos últimos 75 anos.
Como se pode ler no site do Royal United Services Institute (RUSI), “o mais antigo think tank do Reino Unido sobre segurança e defesa” (como eles mesmos se apresentam), a confrontação entre a Rússia e o Ocidente não é apenas sobre a segurança da Ucrânia; é sobre todo o emaranhado estratégico construído após a Guerra Fria, sobre as tentativas da Rússia de dividir o continente em novas esferas de influência, “algo que os europeus passaram três décadas tentando evitar”.
Uma arquitetura baseada nos mesmos interesses que deram origem à guerra em 1939. Ou o ministro Schäuble representava algum outro interesse quando esmagou os gregos, com o apoio de seus colegas europeus, sobretudo em defesa dos bancos alemães (e franceses)?
6.
Gostaria de sugerir que não há mais direita na Europa (nem extrema, nem de centro) do que esta direita liberal, “extrema” quando é necessário (lembremo-nos de Pinochet), “democrática” quando é suficiente, hoje organizada para a guerra contra a Rússia, como nos lembra o Royal United Services Institute (RUSI).
Gostaria de sugerir que, hoje, a definição mais exata desta direita é a que empurra a cortina de ferro para as fronteiras russas, que tenta impedir que alguém escape do labirinto, um processo que conduziu a uma confrontação inevitável, de natureza global.
Se é assim, não há nada à direita da presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen (social-cristã tal como Schäuble); nem do polonês Donald Tusk; nem da ministra alemã das relações exteriores, a “verde” Annalena Baerbock; nem de Biden, nem de Sunak. Nem dos “Populares”, o maior grupo político do Parlamento Europeu. São – todos eles – representantes de uma direita que está sempre pronta para o extremo.
Parece-me que as posições islamofóbicas, anti-imigrantes, anti-LGBTI, antiaborto, etc., não definem nem a direita nem a esquerda. Nestes grupos há pessoas de ambos os lados, mesmo que sejam mais de um lado do que de outro. Como já disse um dia, se o mundo civilizado não atar as mãos destes selvagens (que já conduziram o mundo a duas grandes guerras), eles nos conduzirão a uma terceira, da qual falam como se essa pudesse ser outra coisa que não uma guerra nuclear.
Quanto à esquerda, perdida em seu caminho, presa no labirinto, não encontrou uma saída. Perdeu a capacidade “de representar o descontentamento com o capitalismo”, dizia o sociólogo Wolfgang Streeck, autor do livro Como o capitalismo vai acabar. Como uma parte desta “esquerda” desistiu desta tarefa, perdeu a confiança das pessoas e acabou reduzida a cotas marginais do eleitorado. Isso deixa um grande espaço para a direita. Por isso, votam em Le Pen, ou em Macron, que “corta as despesas sociais porque faz o que a Alemanha lhe pede”.
Na França, convocadas eleições antecipadas, a esquerda apresenta um programa de unidade para enfrentar a “extrema direita”. Sob o título “Promover a diplomacia francesa a serviço da paz”, propõe uma guerra contra a Rússia em termos ainda mais ferozes do que os alcançados pela própria Ucrânia em sua recente reunião na Suíça. Propõe-se a “fazer fracassar a guerra de agressão de Vladimir Putin e assegurar que ele seja responsabilizado por seus crimes diante da justiça internacional”.
Nenhuma palavra sobre uma solução política, sobre atender a reiterada preocupação russa sobre sua segurança, ameaçada pelo avanço da OTAN; a que fazem referência, por exemplo, os governos do Brasil e da China. “O que mais desestabilizou a Europa foi a expansão da OTAN”, disse o assessor do presidente Lula, Celso Amorim, em agosto do ano passado. Mais recentemente, em maio, apresentou, juntamente com o chefe da política externa chinesa, Wang Yi, uma proposta de seis pontos para a negociação de um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia.
Nada disto interessa à “Nova Frente Popular” francesa, que se propõe “defender sem falta a soberania e a liberdade do povo ucraniano e a integridade de suas fronteiras, entregando as armas necessárias…” A guerra! Um tema que, como sugerimos, faz hoje a diferença entre uma direita que faz lembrar a mesma direita que já nos conduziu a duas guerras mundiais, e o mundo civilizado, que tenta encontrar uma forma de atar as mãos destes selvagens.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Nota
[i] Sobre o papel da Alemanha na crise do euro e o desequilíbrio na zona do euro, a bibliografia é abundante. Sugiro algumas leituras: Quinn Slobodian. “We all live in Germany’s world”. Foreign Policy, 26 março 2021; Juan Torres López. “Europa no funciona y Alemania juega con fuego”. Diario Público, 27 marzo 2021; Adam Tooze. “Germany’s unsustainable growth: austerity now, stagnation later”, Foreign Affairs, v. 91, n. 5 (set./out. 2012), pp. 23-30; Wolfgang Streeck “El imperio europeo se hunde”. Entrevista feita por Miguel Mora, diretor do CTXT. Publicada por CTXT em 13 março 2019.
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Em entrevista, o economista Bruno Carazza comenta seu novo livro, "O País dos Privilégios", em que parte do clássico de Raymundo Faoro para expor como grupos poderosos, "os donos do poder", aprofundaram nas últimas décadas seus mecanismos de extrair rendimentos e privilégios do Estado, em prejuízo da sociedade como um todo. Carazza também elenca as carreiras públicas com maior barganha sobre remunerações e as alternativas para interromper esse processo de produção de iniquidades em série (Link de acesso à matéria original.
Quase sete décadas após o lançamento do clássico "Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro", do jurista Raymundo Faoro (1925-2003), o economista e doutor em direito Bruno Carazza expõe em novo livro como o desenvolvimento do Brasil aprofundou a captura do Estado por grupos de interesse cada vez mais poderosos.
Em conjunto ou separadamente, eles promovem uma verdadeira corrida com o objetivo de obter maiores rendimentos e vantagens da máquina pública, sempre às custas da sociedade.
Em uma espécie de manual didático e bem documentado intitulado "O País dos Privilégios - Volume 1: Os Novos e Velhos Donos do Poder", Carazza esmiúça como magistrados, políticos e advogados públicos, entre outros, se movimentaram nos últimos anos para obter rendimentos acima do teto constitucional, de R$ 44.008,52 atualmente, entre outras benesses.
O economista Bruno Carazza, que lança o livro "O Pais dos Privilégios"), na livraria Travessa, no bairro de Pinheiros, em São Paulo - Adriano Vizoni/Adriano Vizoni/Folhapress
A obra é a primeira de um conjunto de três volumes, nos quais o autor pretende explorar, além da elite estatal, as vantagens recebidas pelas classes empresariais e os benefícios tributários para os mais ricos.
O primeiro livro traz desde marchinhas de Carnaval e declarações nada edificantes de magistrados em causa própria a exemplos prosaicos —como benefícios recebidos pelo Instituto Inhotim e pela atriz Regina Duarte, filha de militar— para frisar como a captura do Orçamento por grupos de interesse alongou seus tentáculos.
A obra conta ainda com a experiência do próprio autor, que atuou por 20 anos em vários órgãos do governo federal, para um mergulho na máquina de promover iniquidades em que se converteu o setor público brasileiro.
Na introdução do livro, você cita o jurista Raymundo Faoro, autor do clássico "Os Donos do Poder", de 1958, em que ele demonstra como o patrimonialismo português se enraizou no Brasil. Quase sete décadas depois, com o desenvolvimento do país, o fenômeno tomou proporções gigantescas.
A tese original do Faoro é um trabalho monumental de ir contando a história de todo o desenvolvimento, desde a unificação do reino em Portugal, a expansão marítima, chegando aqui ao Brasil e, posteriormente, com a Independência e a Proclamação da República. Faoro aponta que tem uma característica básica desse processo de desenvolvimento, de que somos o resultado de um capitalismo politicamente orientado.
Desde o início, a expansão marítima de Portugal foi concebida como uma espécie de parceria público-privada, em que a coroa portuguesa concedia a uma elite empreendedora uma série de monopólios, concessões e direitos de exclusividade sobre aquilo que extraíssem. Primeiro na África, depois na Ásia e finalmente no Brasil.
Esses grupos econômicos de Portugal se beneficiavam em troca de um pagamento de impostos e de taxas para financiar a coroa. Essa parceria público-privada se deu por meio de uma classe aristocrática no início, que eles chamam de intermediários, que é todo um aparato estatal que foi construído à época, envolvendo militares, juízes e fiscais da coroa que fariam a administração desse empreendimento.
Com o passar do tempo, essa classe intermediária, esses donos do poder, na visão do Faoro, foram tomando as rédeas da condução do processo, que vai se adaptando ao longo da história. Ele funciona muito bem com o colonialismo português, mas quando a coroa vem para o Brasil em 1808, isso é reproduzido aqui. Continua com a Independência e, depois, com a Proclamação da República [1889], chegando até o século 20.
A análise dele vai até o Estado Novo do Getúlio Vargas [1937-1945], mostrando que esse processo vai se tornando uma elite burocrática, da estrutura do Estado, que tem esse papel muito grande de gerenciar o Estado. Ao mesmo tempo em que você continua com uma classe empreendedora, de empresários que continuam dependentes desses favores do Estado.
Partindo dessa visão do Faoro, também presente em teorias mais modernas da ciência política e da economia, vislumbrei que isso explica muito do Brasil de hoje. Veio dessa ideia tentar mapear e condensar como funciona esse mecanismo de extração de privilégios.
Isso tem origens no nosso passado ibérico, mas não se extingue com a modernização do Brasil nem com a redemocratização. Pelo contrário, é algo que inclusive se reproduz e, em alguns casos, aprofunda essa distribuição de privilégios para grupos especiais no Brasil.
No capítulo "Privilegiados de toga", você demonstra que nada menos que 93% dos magistrados tiveram rendimento médio mensal acima dos subsídios dos ministros do SFT em 2023 [R$ 44.008,52 hoje], que deveriam ser o teto do funcionalismo. O total chegou a R$ 8,1 bilhões no ano passado —e a quase R$ 40 bilhões desde 2018. A magistratura brasileira também é cara em comparações internacionais. Quais são as principais brechas que permitem isso?
A atividade da magistratura é essencial. É quem decide causas muito relevantes para a vida das pessoas. E esses processos, em muitos casos, têm repercussões significativas. É por isso que a Constituição garante aos juízes uma série de direitos para preservar sua independência. Ela estabelece que o cargo de juiz é vitalício, salvo em exceções muito bem descritas.
Eles não podem ser demitidos e o rendimento não é passível de ser reduzido por alguma decisão do presidente da República ou de governador. Eles também não podem ser transferidos sem motivações claras. São defesas que a Constituição concedeu para preservar sua independência.
Mas a Constituição coloca uma contrapartida. Todos os Poderes, nos níveis da federação, não podem receber mais do que o ministro do STF. A Constituição optou por estabelecer isso como teto remuneratório de todo o funcionalismo e da magistratura.
Mas vemos constantemente o caso de juízes que receberam centenas de milhares de reais em determinado ano. Analisando os dados, percebe-se que existe no Judiciário uma máquina sistemática de criação de benefícios que burlam o teto constitucional, que são chamados, de modo jocoso, de penduricalhos.
Isso funciona por meio de uma série de decisões judiciais, ou mesmo administrativas, em que tribunais de todo o país acabam concedendo benefícios a seus membros. Se um Tribunal de Justiça de um estado cria um auxílio para a formação do magistrado, uma espécie de auxílio livro, outros tribunais requerem a equiparação desse benefício. E assim por diante.
A grande sacada dos magistrados foi classificar que são benefícios de natureza indenizatória, e não remuneração, para que fiquem fora do teto. Isso gera uma transferência de renda, porque são recursos orçamentários que vão para essas categorias, em valores bilionários.
Isso também é decorrência de uma peculiaridade pelo fato de a Constituição estabelecer independência e autonomia orçamentária para o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. O Judiciário não está sujeito aos contingenciamentos que o Executivo faz.
Não há controle, porque os juízes são, em muitos casos, a última palavra sobre decisões no país. Quando tivemos a reforma do Judiciário, havia a ideia de que o Conselho Nacional de Justiça, assim como o Conselho Nacional do Ministério Público, fossem órgãos de controle externo dessa atividade. Mas, ao longo da tramitação da reforma, essas carreiras se articularam e fizeram pressão. Hoje, o Conselho Nacional de Justiça é composto, em sua maioria, por integrantes da magistratura.
O Tesouro Nacional publicou no início do ano estudo mostrando que o Judiciário brasileiro custa 1,6% do PIB, enquanto a média dos países emergentes é 0,5%; os países avançados gastam 0,3%. Há uma distorção grave no Judiciário brasileiro.
Em "Os privilegiados de terno e gravata", você descreve uma corrida ao topo. Uma vez instituído o teto do funcionalismo (2003), praticamente todos os estamentos do setor público passaram a se mobilizar para alcançá-lo, ou superá-lo. E o Brasil se torna o "país dos concursos", com gente atrás de benefícios. Como se dá essa corrida e o que ela já conquistou para seus participantes?
O Brasil tem um corpo de servidores públicos bem selecionado, preparado e remunerado. Mas que gerou distorções. Ter se tornado o "país dos concursos" tem muito a ver com o pós Constituição de 1988. Carreiras dos Três Poderes foram ganhando cada vez mais status e influência. E acabaram se descolando não só do rendimento médio da população e dos ganhos do setor privado, mas dentro do próprio funcionalismo.
São as carreiras judiciais, a advocacia pública, os procuradores da Fazenda Nacional, carreiras fiscais, do Trabalho e uma série de outras. Depois, os delegados da Polícia Federal, os diplomatas, os analistas do Banco Central, os auditores do Tesouro Nacional.
Recentemente, essas carreiras mais poderosas, além de tentarem se aproximar do teto, vêm tentando criar seus próprios penduricalhos. Lógico que no Executivo é mais difícil, porque o ajuste fiscal se dá sobre ele, mas elas vão tentando brechas para turbinar os rendimentos, porque estão mirando o teto e o extra-teto auferidos às carreiras do Judiciário e do Ministério Público.
Há distinções na máquina pública. Se observarmos o percurso pós Constituição de 1988, o total de servidores federais não cresceu. Houve uma expansão modesta dos estaduais e um salto nos municipais, atendendo ao aumento de tarefas repassadas às prefeituras, especialmente em saúde e educação. Mas são justamente esses servidores, na linha de frente com a população, os com menores remunerações. O que explica isso? Seria o fato de estarem mais distantes de quem controla o Orçamento?
Um ponto interessante a ser destacado é que, apesar da expansão em estados e prefeituras, o Brasil não tem mais servidores do que a média dos outros países. Cerca de 12% da força de trabalho brasileira é de servidores públicos, civis e militares. Nos três níveis. Nos EUA, são 15%. Na média dos países avançados, algo em torno de 18%.
O problema não é o número de servidores, mas a folha salarial em proporção do PIB. No Brasil equivale a 13%, ante 7% nos EUA, e entre 8% a 11% na Europa. Temos comparativamente menos servidores, mas eles custam mais caro aos cofres públicos. E se paga menos nos municípios do que nos estados, e mais na União, em que os membros do Executivo ganham menos que no Legislativo, que recebem menos do que no Judiciário.
Essa distorção é explicada pelo poder de pressão, articulação e influência dessas carreiras, que prestam assessoria e atuam diretamente com os chefes dos Três Poderes. Elas acabam extraindo para si benefícios que os servidores em contato direto com a população não conseguem obter.
Outro aspecto impressionante é como os advogados públicos se apropriaram, em ações judiciais entre o Estado e os entes privados, dos chamados honorários de sucumbência [parcela de 10% a 20% do valor de uma ação paga ao advogado vitorioso]. São contabilizados R$ 8,5 bilhões nos últimos sete anos, valor que antes entrava para os cofres públicos. Como se deu essa mudança?
A lógica do honorário de sucumbência é antiga no direito e se propunha a indenizar a parte vencedora em uma ação. Prevê que, se você ganha uma ação, o perdedor que fez você mobilizar recursos para se defender teria que indenizá-lo com o pagamento das despesas que você teve para entrar no processo.
Por um bom tempo isso funcionou. Mas aí entra essa máquina de articulação de defesas de benefícios próprios. A classe da advocacia privada, por meio da OAB, aprovou nos anos 1990 uma regra que mudou essa lógica e determinou que esses honorários de sucumbência fossem pagos para o advogado da parte.
Criou-se um privilégio para uma classe, e os semelhantes pressionaram para ter equiparação, como entidades representativas dos advogados públicos, tanto da União quanto dos estados e municípios. Assim, um valor pago à parte vencedora que antes era destinado aos cofres públicos passou a ser pago aos advogados públicos da mesma maneira que aos advogados privados.
Mas o advogado público tem uma série de prerrogativas, benefícios e direitos que o advogado privado não tem, pois é ele que paga pela estrutura de seu escritório. O público, não. O público tem estabilidade [na função]. Se o advogado privado perde a ação, ele não recebe, uma situação que não acontece com o advogado público, que tem rendimento assegurado, hoje na casa de R$ 20 mil a R$ 30 mil.
A ideia da apropriação desses honorários foi vendida como um incentivo à produtividade dos advogados públicos. Mas não faz sentido. Pois o valor conquistado é dividido igualmente entre todos os advogados. Não importa se ele é dedicado, criativo, eficiente; ou se ele é um advogado que faz tarefas meramente burocráticas. A distribuição dos honorários é equânime.
Você também trata no livro das benesses recebidas pelos militares e da ineficiência do Superior Tribunal Militar, na comparação com as demais instâncias do Judiciário. Poderia dar alguns exemplos de como isso ocorre?
A carreira militar sempre teve muito poder, principalmente depois da Proclamação da República. Todos os grandes ciclos da política brasileira tiveram os militares como um dos pilares. E esse poder foi usado para garantir um status diferenciado, de várias formas.
Um dos exemplos é o regime previdenciário muito mais favorecido. Um caso emblemático é o das filhas de militares que tinham direito à pensão dos pais, mesmo se casassem. O caso da atriz Regina Duarte ilustra isso. Ela é filha de um militar, que faleceu. Ela e seus irmãos tiveram direito à pensão. Para os trabalhadores do INSS, isso se extingue aos 18 ou 21 anos, o que não acontecia com filhas dos militares.
Isso mudou numa reforma feita pelo Fernando Henrique [Cardoso] no fim da década de 1990, mas é algo que ainda vale para quem já tinha o benefício. Mesmo assim, na comparação com o INSS e a Previdência dos servidores civis, a dos militares é a que paga o maior benefício médio.
Já a Justiça Militar é algo que não existe em praticamente nenhum outro país. É um resquício do período de Portugal e do Império. Essa justiça também é composta, em sua maior parte, por egressos das Forças Armadas. Isso acaba colaborando para que, em processos criminais, haja um certo corporativismo nas decisões. Muitas vezes, militares não são punidos com todo o rigor da lei, o que gera uma sensação de impunidade para a sociedade. É um ramo de justiça muito caro, pelo volume de processos que julga.
O movimento mais recente é o de como os congressistas em Brasília conquistaram bilhões de reais do Orçamento com emendas, para além dos vencimentos básicos de R$ 44 mil que recebem mensalmente e das cotas de até R$ 51,4 mil para custear suas atividades. No caso das emendas, com a pulverização de bilhões de reais entre os deputados, há também uma enorme perda de eficiência na adoção de políticas públicas estruturadas, não?
As emendas complementam um kit de vantagens que os políticos, principalmente no Legislativo, têm, para além da cota parlamentar e dos recursos dos fundos partidário e eleitoral. Isso gera uma série de distorções. A primeira é o desequilíbrio do jogo, porque se o parlamentar tem acesso a alguns milhões de reais do orçamento público para aplicar segundo sua indicação, é óbvio que vai usar isso em benefício próprio para fins eleitoreiros.
Isso distorce a competição, que já é distorcida pelo próprio exercício do mandato, combinado com os valores dos recursos do fundão eleitoral. Com as emendas, eles têm maiores chances de ser reeleitos e se perpetuar no poder. É uma barreira para a oxigenação da política.
Mas a distorção mais grave talvez esteja mesmo na eficiência do gasto público. Além de não haver transparência na aplicação dos recursos, há muita possibilidade de desvios, algo que nem o fim do orçamento secreto resolveu. Esses recursos são pulverizados na mão dos parlamentares, sendo distribuídos para suas bases eleitorais. Isso torna muito mais difícil a fiscalização pelos órgãos de controle, pela sociedade e pela imprensa, o que favorece casos de corrupção.
Quais alternativas a sociedade tem para interromper esse processo geral, quando os donos do poder são justamente aqueles que o controlam?
Há uma agenda em que podemos avançar. Uma primeira medida, que não precisaria nem de mudança constitucional, é que se recupere a autoridade do teto remuneratório no serviço público.
Para isso, seria necessário um posicionamento do STF de simplesmente dizer que todos esses penduricalhos não são indenizatórios, mas remuneratórios. Bastaria uma interpretação do Supremo para acabar com a farra de criação de penduricalhos, que nada mais são do que aumentos salariais.
Um segundo ponto seria repensar o poder que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público têm de deliberar administrativamente sobre os rendimentos dos seus membros. Isso só faria sentido se eles fossem efetivamente um órgão de controle externo, com membros exclusivamente de fora da carreira, indicados pela sociedade civil.
Precisamos também desmistificar a discussão sobre reforma administrativa no Brasil. Ela está muito centrada na questão da estabilidade do serviço público e de reduzir o tamanho do Estado. Os números indicam que não temos excesso de servidores públicos. Mas precisamos repensar a estrutura das carreiras e enxugar seu número.
Seria preciso, nos três níveis de Poder, uma estrutura o mais unificada possível de carreira, pensando em um salário de entrada mais baixo e um salário de saída, de topo, que vai ser alcançado ao longo dos anos, mediante avaliações periódicas de desempenho, qualificação e métricas de entregas para a sociedade.
É preciso rediscutir os pilares, e não necessariamente o tamanho do Estado. Avaliar os incentivos presentes no Estado para que possamos cumprir esse objetivo. Para que tenhamos servidores motivados, focados no exercício de suas atribuições, nas entregas para a sociedade. E não servidores que dedicam boa parte de sua energia para extrair benefícios em detrimento dos demais, em prejuízo da sociedade como um todo.
Mestre em economia pela UnB e doutor em direito pela UFMG. Servidor público de carreira (licenciado), trabalhou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e em diversos órgãos do Ministério da Fazenda. Autor, entre outros, do livro "Dinheiro, Eleições e Poder: As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro" (Companhia das Letras, 2018).
O PAÍS DOS PRIVILÉGIOS – VOLUME 1: OS NOVOS E VELHOS DONOS DO PODER
Preço R$ 80 (336 págs.); R$ 44,90 (ebook)
Autoria Bruno Carazza
Editora Companhia das Letras
A fabricação da mentira
Quem acredita nessa farsa?
eleições de outubro, São Paulo
➥ Por que voto em Boulos
Matéria do Jornal Nacional exibida em 12 de julho mostra a realidade social da capital paulista; uma verdadeira tragédia para a qual em raros momentos da sua história a Prefeitura apresentou e implementou projetos para tentar corrigir o descalabro do favorecimento dos interesses privados sobre a sociedade. Em nome da reversão do que tem sido feito pelos grupos reacionários e obscurantistas que tentam se manter no poder, meu candidato é Boulos. Assista aqui a reportagem do JN
41 anos de maturidade política: chegou a hora da representação parlamentar
Aliados de peso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participaram nesta quinta-feira (11/7) do último dia da plenária nacional das pré-candidaturas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
O encontro é uma iniciativa inédita do MST para organizar e qualificar as pré-candidaturas de acampados, assentados e simpatizantes, que, como mostrou o Painel, podem chegar a até 700 em 2024, entre postulantes aos cargos de vereadores, vice-prefeitos e prefeitos (leia na Folha)
Evidências do aparelho criminoso que Bolsonaro e seus apoiadores montaram no interior do governo têm as dimensões de uma determinação doentia, como se seus protagonistas imaginassem ter se apropriado da História para fazer dela o que bem entendessem. As denúncias postadas abaixo indicam que a conspiração até agora não deu certo, mas... continua ativa.
# Agentes da "Abin paralela" de Bolsonaro discutiram 'tiro na cabeça' de Alexandre de Moraes (247) # A blindagem de Flávio Bolsonaro (Carta Capital) # Abin de Bolsonaro espionou Lira, ministros, jornalistas... (Carta Capital)
Leituras imperdíveis na Folha de hoje (12/7): # "Abin paralela" atuou contra Judiciário, Congresso e eleições # Mônica Bergamo, um dos alvos da Abin de Bolsonaro, comenta o avanço das investigações # Abin atuava em todos os setores e em todas as ramificações do bolsonarismo.
# Índices de popularidade do presidente se distanciam dos índices de reprovação plantados pela mídia conservadora # 66% concordam com críticas de Lula à política de juros do Banco Central # Lula tem dificuldade em dialogar com quem não votou nele (tudo no G1)
➥ A Faria Lima não convenceu as ruas: população não engole discurso da "austeridade" (Outras Palavras)
A última pesquisa DataFolha, realizada nos primeiros dias de julho, não trouxe variações importantes sobre os humores populares, até porque 55% da população ainda não decidiu em quem poderia votar. As eleições para prefeito não atraíram até agora a atenção da maioria absoluta. A principal novidade da campanha foi a confirmação do ex-comandante da Rota (tropa de elite da PM-SP), coronel Ricardo Mello Araújo como vice de Ricardo Nunes e o alinhamento com o bolsonarismo.
# Leia Valério Arcary (A Terra é redonda) ➥ Leia também Marina Verenicz (Carta Capital)
Arthur Lira impôs sem debate algum projeto que torna a escola segregadora e aberta às fundações privadas. Ministro da Educação e líder do governo curvaram-se. Presidente tem chance de mostrar por quê foi eleito. Luis Felipe Miguel, Outras Palavras (acesse)
Um golpe de Arthur Lira permitiu que (...) a Câmara dos Deputados aprovasse o “Novo Ensino Médio” (NEM) tal como desenhado pelo bolsonarista Mendonça Filho, hoje relator do projeto e antes – vocês lembram? – truculento ministro da Educação no governo ilegítimo de Michel Temer.
A resistência de estudantes, professores e administradores escolares tinha obtido algumas vitórias no Senado. A meu ver, ainda insuficientes, mas, pelo menos, tornavam o NEM menos pior, sobretudo garantindo carga maior para o conteúdo disciplinar obrigatório.
Mendonça Filho descartou as principais dessas mudanças e seu relatório foi aprovado por votação simbólica.
O mais triste: a manobra de Lira recebeu o apoio do líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE). O MEC de Camilo Santana já tinha, há muito tempo, optado por lavar as mãos.
Atravessado por representantes das fundações empresariais, de costas para estudantes, profissionais e especialistas engajados, o MEC tem fracassado na tarefa de garantir uma educação pública igualitária e de qualidade.
O “Novo Ensino Médio” foi um dos retrocessos impostos pelo golpe de 2016. A gente sabe que direitos trabalhistas foram perdidos, a economia foi desnacionalizada e as políticas sociais do Estado foram asfixiadas (com o teto de gastos), tudo aprovado a toque de caixa, sem discussão com a sociedade ou mesmo no Congresso. Com a educação foi pior ainda – a mudança veio por meio de medida provisória, baixada por Temer em 2016 e convertida em lei em 2017.
Apesar de toda a propaganda, o “Novo Ensino Médio” logo mostrou que é: precarização do ensino dos mais pobres.
Sob o pretexto de dar “flexibilidade” aos estudantes, o “Novo Ensino Médio” esvazia a formação básica de quem é submetido a ele. História do Brasil, por exemplo, não existe mais. De maneira geral, disciplinas voltadas à formação do senso crítico e da cidadania ativa foram extirpadas.
Em seu lugar entram conteúdos relacionados a “empreendedorismo” e “marketing”. A reforma se exibe como perfeitamente alinhada ao espírito do neoliberalismo.
A anunciada “flexibilidade” é uma balela, já que a esmagadora maioria das escolas não oferece quase nenhuma alternativa de “percursos formativos”. Na prática, a educação é segregada, oferecendo aos filhos da classe trabalhadora uma formação “adequada” às posições subalternas que eles estão destinados a exercer – e reservando aos herdeiros das elites horizontes mais alargados.
Um colunista da Veja, na época, foi sincero: tratava-se de restaurar “a fórmula tradicional de uma formação profissional para os pobres e uma educação clássica para as elites”.
As mudanças introduzidas agora minoram muito pouco os problemas do projeto.
O fato de que Lira julgou necessária essa manobra golpista mostra como, para a direita, a reforma é prioridade.
Barrá-la e inaugurar uma discussão ampla e democrática sobre o tema – que ensino médio queremos, para formar cidadãos para que país – também devia ser prioridade para a esquerda.
O MEC está rendido, mas Lula tem mais uma chance de mostrar que ouve os profissionais da educação e os estudantes. Que não a perca.
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* Publicado inicialmente no GGN
A luta ainda não acabou: # No clipping do site, os principais momentos dessa história
# Entenda o que muda e a reação contra a proposta aprovada pelos Deputados (Patrícia Faerman, GGN)
# Daniel Cara critica Novo Ensino Médio e denuncia manobra de Lira (Diário do Centro do Mundo)
México: # Por que o projeto progressista de Obrador funcionou? (Brasil de Fato)
# De novo "rebelde"? (Outras Palavras)
Jacobin, via Outras Palavras
Nada há de inevitável no avanço da ultradireita, mostram os resultados. Com programa claro e unidade surpreendente, Nova Frente Popular salvou o país. Mas Marine Le Pen conserva força, Macron busca sacar uma nova carta da manga... e é chamado de "mau perdedor"
Numa biografia magistral, emergem o revolucionário, o pensador anticolonial, o psiquiatra rebelde. E surgem com mais nitidez a relação com a psicanálise, a dissidência política após a vitória e a visão nuançada sobre o papel da violência. Arvin Alaigh, Dissent Magazine, via Outras Palavras (acesse)
Resenha de:
The Rebel’s Clinic: The Revolutionary Lives of Frantz Fanon
Por Adam Shatz
Farrar, Straus e Giroux, 2024, 464 pp.
A estatura de Frantz Fanon cresceu no final da década de 1950, à medida que ele atravessava o emergente Terceiro Mundo, conquistando apoio para a causa nacionalista argelina. Como membro da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido que travava uma guerra de independência contra os governantes coloniais franceses da Argélia, Fanon tinha um elenco assombroso de responsabilidades: oferecia tratamento psiquiátrico aos combatentes da FLN; ajudou a produzir o jornal oficial do partido; deu palestras sobre filosofia e história para soldados no front; e viajou por todo o continente africano como embaixador formal do governo provisório argelino no exílio, angariando capital político e financeiro para o movimento revolucionário.
Tal destaque resultou num risco enorme. À medida que Fanon ascendia na hierarquia da FLN, as forças francesas colocaram-no na mira. Em 1959, La Main Rouge, um esquadrão da morte paramilitar anti-FLN financiado pela espionagem francesa, seguiu-o até Roma, onde tinha viajado para receber tratamento médico após um acidente de carro em Marrocos. Pouco antes de um agente da FLN ir buscar Fanon no aeroporto, uma bomba detonou sob seu carro, matando uma criança próxima. Ao saber que seu paradeiro havia sido divulgado em uma reportagem sobre a explosão, Fanon exigiu mudar de quarto no hospital e escapou por pouco de um assassino armado que invadiu o aposento original. Após viver essa situação difícil, deixou Roma e voltou para Túnis, onde estava exilado.
Os inimigos de Fanon não estavam apenas nas forças coloniais francesas; ele também encontrou adversários dentro da própria FLN, uma organização marcada por lutas internas pelo poder. Crítico silencioso da liderança, ele poderia muito bem ter emergido como alvo dos expurgos pós-revolução, que levaram à expulsão de dezenas de militantes do partido e à morte de muitos outros. Mas morreu de leucemia aos 36 anos, meses antes de a Argélia conquistar a sua independência, em 1962. Um dos atos finais da sua vida truncada foi ditar à sua secretária, já no leito de morte, o que se tornaria seu trabalho mais influente. Os Condenados da Terra, apontado por Stuart Hall como a “Bíblia da descolonização”, diagnosticou as condições políticas, sociais e psicológicas do domínio colonial com um grau de clareza e força nunca visto até a sua publicação – ou desde então. Também defendeu o uso da violência revolucionária pelos colonizados contra os seus opressores coloniais, um aspecto do seu trabalho que recebeu atenção desproporcional e foi despido de todas as suas nuances.
Nos anos que se seguiram à sua morte, Os Condenados elevou Fanon ao panteão dos luminares anticoloniais. Movimentos nacionalistas radicais em toda a África, Ásia e América do Sul defenderam a obra, assim como o Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos. Nas décadas de 1980 e 1990, o seu trabalho foi abraçado pela academia, onde a teoria da cultura e o pós-estruturalismo inscreveram o seu corpus em debates muitas vezes esotéricos e politicamente inertes. Enquanto isso, ativistas corretamente empenhados em evitar as tentativas de desfiguração de sua política revolucionária lutavam entre si para decidir qual Fanon era o autêntico. Na busca por definir “o” Fanon, porém, corremos o risco de perder o que o tornou tão extraordinário. Fanon não tinha identidade única. Ele passou a vida em movimento perpétuo – física, intelectual e politicamente.
Das numerosas biografias em inglês que narram a vida e a obra de Fanon, The Rebel’s Clinic: The Revolutionary Lives of Frantz Fanon, de Adam Shatz, é talvez a mais rica intelectualmente. Shatz, um dos grandes ensaístas do nosso tempo, apresenta uma figura imperfeita e brilhante – uma figura que compromete o mito predominante de Fanon como um apologista unidimensional da violência. Shatz fez, por mais de duas décadas, reportagens da França e do Norte da África, escrevendo sobre os legados persistentes do domínio colonial. Tem vasto domínio dos múltiplos contextos intelectuais e políticos que moldaram Fanon, incluindo o movimento Négritude, a filosofia francófona e o meio literário do pós-guerra, as fissuras que dividiram a FLN durante a revolução e os crescentes movimentos clínicos que substituíram a psiquiatria francesa ortodoxa.
A admiração de Shatz pelo seu tema é evidente, mas ele evita cuidadosamente o impulso hagiográfico que impulsiona grande parte dos estudos sobre Fanon. Examina a abordagem desconfortável e, às vezes contraditória, de Fanon sobre a violência revolucionária; revela dimensões mais profundas das dívidas de Fanon para com escritoras como Suzanne Césaire e Simone de Beauvoir; e avalia criticamente a aparente rejeição de Freud por Fanon, iluminando os numerosos legados que ele recebeu do fundador da psicanálise. No processo, Shatz dá vida a Fanon, incitando-nos a pensar ao lado dele para dar sentido ao nosso mundo atual.
* * *
O corpo de Fanon jaz num cemitério de mártires no leste da Argélia. Embora tenha morrido como argelino honorário, ele nasceu a milhares de quilômetros de distância, na pequena ilha caribenha da Martinica. Foi aqui que habitou pela primeira vez a hierarquia racial que estruturava a sociedade colonial, embora demorasse anos para desenvolver uma compreensão mais profunda da condição colonizada. Dois episódios ajudaram a fornecer esta consciência: o encontro com o racismo, por parte dos europeus brancos durante a Segunda Guerra Mundial, na qual lutou como membro das Forças Francesas Livres, e as suas experiências subsequentes como estudante de medicina em Lyon, no final da década de 1940. Seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, é um amplo estudo sobre a alienação social dos negros colonizados e suas manifestações na política, literatura, filosofia e psicanálise. O livro começou como sua dissertação médica, até que seu departamento rejeitou o tópico (ele finalmente apresentou uma dissertação respeitosa, porém rigorosa, sobre a ataxia de Friedreich, uma doença neurodegenerativa).
Após sua residência e um curto período praticando psiquiatria na Martinica e na França, Fanon recebeu um posto clínico na Argélia em 1953, em Blida-Joinville, o maior centro psiquiátrico do país. Já politizado, juntou-se secretamente à FLN dois anos depois de se mudar para o país. Fanon tratou os policiais e militares franceses ocupantes em sua atividade clínica oficial durante o dia e os combatentes da resistência da FLN à noite.
Ao contrário de David Macey, autor da última grande biografia de Fanon há mais de duas décadas, Shatz oferece um exame robusto da carreira de Fanon como psiquiatra, um aspecto de sua vida que recebeu atenção renovada desde a publicação de dezenas de seus escritos psiquiátricos em 2015. Shatz explora a relação tênue, mas formativa, de Fanon com a psicanálise. As noções de inconsciente, repressão e estágio de espelho de Lacan informaram suas concepções da subjetividade negra e colonial, e ainda assim ele argumentou que as ideias psicanalíticas centradas nas estruturas familiares europeias, como o complexo de Édipo, não poderiam ser aplicadas acriticamente ao sujeito argelino. (Ele também manteve um interesse pessoal: “Assim que eu terminar esta revolução argelina”, disse ele à sua secretária, “farei uma análise”.) Como chefe da Blida-Joinville, ele se esforçou para reformar a abordagem terapêutica da clínica. Experimentou a psicoterapia institucional, uma forma radical de institucionalização que visava devolver a subjetividade aos pacientes, confundindo as fronteiras entre a sociedade e o hospital.
Para Shatz, o trabalho psiquiátrico de Fanon está no centro do seu projeto político. Foi a manifestação mais prática da sua ambição de restaurar a agência de sujeitos fundamentalmente alienados. Nas sociedades colonizadas, tal como nos hospitais psiquiátricos, a liberdade exigia o desenvolvimento da consciência através da criação ativa de novas estruturas sociais, políticas e psíquicas. Para Fanon, esta capacidade de liberdade era crítica – o que o distinguiu de segmentos do meio intelectual francês do pós-guerra que, sob o feitiço do surrealismo, romantizaram a loucura como uma força “visionária” ou libertadora. “Para um descendente de escravos numa antiga colônia açucareira”, escreve Shatz, “era impossível confundir a condição de desintegração mental e física com a emancipação de uma ordem social opressiva”.
* * *
No final da vida, Fanon encontrava-se cada vez mais desiludido com a FLN. Ele havia sido inspirado pela promessa de um movimento revolucionário que pudesse cultivar uma nação alicerçada numa consciência social libertadora. Mas agora via um partido invadido por militares míopes e ideologicamente desequilibrados, ansiosos por mobilizar o chauvinismo étnico-religioso para forjar uma identidade argelina que excluísse as minorias étnicas e religiosas. Com base nestas experiências, Fanon previu nos Condenados da Terra que a maioria dos movimentos de independência nacional terminaria com uma consolidação do poder político pelas elites nativas, cujos impulsos de auto-enriquecimento calcificariam as divisões sociais e económicas da era colonial. Entretanto, as potências neocoloniais, como as corporações transnacionais, continuariam a saquear as nações anteriormente colonizadas. Contra este futuro sombrio, era fundamental construir a solidariedade internacionalista – para Fanon, isto significava um projeto pan-africano – capaz de libertar as nações recentemente independentes das estruturas de poder do velho mundo.
Ao contrário de alguns pensadores pós-coloniais, Fanon nunca rejeitou a modernidade ocidental per se. Em vez disso, como escreveu nos Condenados, procurou transcendê-la criando uma consciência universal enraizada num “novo humanismo”. Este projeto radical, que exigia “procurar noutro lugar além da Europa” em busca de inspiração para “inventar um homem completo”, continuou a ser o seu objetivo até ao fim da vida. A consciência nacional pós-colonial foi um canal para esse fim. É difícil dizer o que isso significou concretamente para um novo Estado-Nação.
Fanon fez algumas recomendações explícitas para uma sociedade pós-colonial, incluindo a redistribuição da riqueza, a fim de solapar o poder da burguesia nativa e das classes dominantes. Mas nunca forneceu modelos granulares de construção de instituições políticas, nem discutiu detalhadamente a mecânica da governação. Como escreveu Edward Said em Cultura e Imperialismo, Fanon não apresenta “uma receita para fazer uma transição após a descolonização”. Ainda assim, podemos esboçar os contornos de uma nação pós-colonial reordenada segundo as linhas fanonianas: uma sociedade emancipada, democrática, pluralista e coletivista, sintonizada com as necessidades de reparação psíquica e comprometida com o desmantelamento das hierarquias coloniais.
Esta visão ambiciosa foi em grande parte ofuscada pelo envolvimento controverso de Fanon com a questão da violência. O prefácio de Jean-Paul Sartre a Condenados, que exalta a virtude da ação violenta, acabou ofuscando e descaracterizando a posição mais matizada de Fanon. Alguns leitores consideraram a violência revolucionária como expressão suprema da agência e da autodeterminação e, por extensão, o único vetor importante através do qual o compromisso revolucionário de Fanon pode ser avaliado. Ao fazê-lo, sustentam que qualquer ato de violência dos oprimidos contra os seus opressores é (moral ou politicamente) santificado. Para Shatz, Fanon tem uma relação mais complexa com a violência, que é parcialmente ofuscada pelo problema da tradução. Por exemplo, em algumas versões em inglês de Condenados, a frase “la violence désintoxique” aparece como “a violência é uma força de limpeza”, algo distante do sentido de “desintoxicar”. A implicação da frase em francês é que a condição colonial induz uma espécie de estupor, que a violência pode servir para desfazer, despertando os colonizados. Esses tipos de equívocos podem parecer menores, mas moldaram desproporcionalmente a forma como nos lembramos hoje de Fanon.
Duas semanas depois de 7 de outubro, Shatz escreveu um ensaio na London Review of Books refletindo sobre a violência em Israel e em Gaza. Grande parte do artigo refletia sobriamente sobre o sofrimento causado pela ocupação israelense e oferecia um prognóstico sombrio do derramamento de sangue que os habitantes de Gaza estavam na iminência de sofrer. Shatz também mirou alguns membros da esquerda “descolonial”, que “parecem quase fascinados pela violência do Hamas e caracterizam-na como uma forma de justiça anticolonial do tipo defendido por Fanon”. O ensaio desencadeou um debate acirrado e produtivo sobre como os defensores da liberdade palestina deveriam envolver-se no uso da violência.
Assim como em The Rebel’s Clinic , Shatz procurou contrariar leituras simplistas de Fanon apresentando uma figura mais multidimensional. Como partidário da FLN, Fanon apoiou ativamente táticas violentas. Ao mesmo tempo, como psiquiatra, preocupava-se com as feridas psíquicas e sociais persistentes que a violência poderia causar. Fanon termina Condenados da Terra com estudos de caso de argelinos e franceses que sofreram de doenças mentais induzidas pela guerra. “A impressão esmagadora deixada pelos estudos de caso de Fanon. . . é que os efeitos desintoxicantes da violência são, na melhor das hipóteses, efêmeros”, escreve Shatz. A violência é semelhante à terapia de choque – e tal como a terapia de choque por si só não pode curar um paciente (e pode causar novos danos), a violência por si só não pode gerar uma sociedade justa. Contra a tendência de transformar Fanon num ícone de resistência violenta e nada mais, Shatz apresenta o retrato de um homem cuja posição evoluiu à medida que lutava com as questões mais urgentes na busca pela libertação.
Escritor, ativista e estudante de doutorado na Universidade de Cambridge.
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Sete Irmãs dominam a medicina de negócios no Brasil. Quem são. Como estão presentes na teia que controla a economia do país – e quais seus laços com fundos e corporações globais. Por que o Estado precisa reduzir drasticamente seu poder
Processo que vem sendo conduzido sob a batuta de Tarcísio de Freitas é o pior possível
# Leia Camila Rocha, na Folha
# Perseguição, morte e parada no posto de gasolina. O que revelam as câmeras corporais de três dos quatro homens na viatura da Força Tática que encurralaram dois adolescentes de moto até uma batida letal e sumiram sem prestar socorro. Leia João Batista Jr, na Piauí
Pois então...
Estou encantado (enchanté) com a vitória da democracia na França. Participei dia desses de uma acalorada troca de ideias em torno da inevitabilidade do avanço da extrema direita no mundo todo. Agora me parece que esse determinismo fatalista - a julgar pelo que ocorreu na Inglaterra, no México, aqui mesmo em várias circunstâncias e, ontem, na França - só tem como fundamento uma certa incompreensão sobre a dinâmica dos conflitos e tensões que o capitalismo gera o tempo todo e contra o qual só não pode prevalecer a resignação. Então, sem querer me estender nessa chatice de argumentação, nada na História "está escrito nas estrelas". Animem-se! Vamos esvaziar todas as nuvens carregadas que o fascismo traz consigo, cada uma a seu tempo... Vive la France!
# A estratégia que levou à vitória da esquerda francesa sobre a extrema direita (Folha) # As esquerdas se uniram e venceram (A Terra é redonda) # Vencedor da eleição francesa, Mélenchon pede mobilização popular e aumento de salário mínimo por decreto (247) # Impasse político: Macron não quer entregar o poder (247)
A também primatóloga explora em seu último livro a evolução da paternidade e sua relação com uma masculinidade tóxica que “leva à destruição”: “O fato de que os homens manifestem seus sentimentos através do cuidado lhes faz muito bem e não deveria ser uma ofensa, mas o é para muitos”. Sarah Blaffer, IHU
A entrevista é de Sergio Ferrer, publicada por El Diario, 01-07-2024. A tradução é do Cepat (acesse)
O ser humano é um animal muito raro em termos de sexo e reprodução quando comparado a outros primatas e mamíferos. Na lista de excentricidades está o fato de que os machos do Homo sapiens cuidam cada vez mais de seus filhotes. Sarah Blaffer Hrdy (Estados Unidos, 1946) é uma antropóloga e primatóloga conhecida por seus livros sobre a evolução das mulheres, das mães e dos cuidados compartilhados. Em seu último livro Father Time: A natural History of Men and Babies (que, no próximo ano, será publicado em espanhol pela Captain Swing) ela se concentra nos homens para quebrar preconceitos biológicos e sociais sobre o papel que desempenham na criação dos filhos.
A tese de Blaffer Hrdy resume-se no fato de que as duras condições de vida dos nossos antepassados forçaram todo o grupo a se dedicar aos cuidados, inclusive os homens. Mais tarde, o aparecimento dos Estados e do patriarcado dividiu os papéis de gênero e, com eles, o cuidado. Somente os avanços da modernidade (do feminismo à mamadeira) trouxeram à tona algumas características de nossa espécie que estavam escondidas há muito tempo. Sua conclusão pode não parecer surpreendente hoje: nada em nossa biologia impede que os homens sejam capazes de cuidar dos pequenos tão bem quanto suas companheiras.
Nota: a língua inglesa permite fazer uma diferenciação entre fathers e parents, mas ambas as palavras são traduzidas para o espanhol [e o português] como “pais”. Para maior clareza, nesta entrevista o termo “pais” referir-se-á sempre ao plural de “pai”, salvo indicação em contrário para esclarecer que também inclui as mães.
São os mamíferos e primatas “bons” pais?
Cinco porcento dos mamíferos são bons pais, mas a maioria não é. Em relação aos símios, somos grandes exceções: alguns macacos como os saguis, micos e lêmures têm muito cuidado paterno, mas isso não é visto em nenhum dos grandes símios dos quais fazemos parte. Chimpanzés, bonobos, orangotangos e gorilas são parentes muito próximos e os machos não se importam com filhotes pequenos.
Há casos, como o de um chimpanzé macho adulto num zoológico que adotou um órfão que estava quase prestes a desmamar, mas são exceções. Acontece que os circuitos neuronais existem, as inclinações existem, mas as condições para que despertem são muito raras. Na natureza, não creio que um chimpanzé macho teria acesso ao bebê de uma mãe, porque são muito protetoras com seus recém-nascidos.
Como surgiu uma exceção como a nossa?
Tudo começou com a evolução dos mamíferos, porque a fertilização interna significa que os machos não podem ter certeza da sua paternidade. Os primatas ainda menos: desde que existe o infanticídio, as fêmeas acasalam com muitos machos para manipular as informações sobre a paternidade. Assim, a evolução selecionou os machos de primatas para ficarem perto das fêmeas após o acasalamento, algo incomum para os mamíferos. Não era para cuidar dos pequenos, mas para protegê-los de serem mortos por outro macho e para salvaguardar o seu acesso à fêmea. A partir daí tem a ver com o tempo e a proximidade íntima que passam com os bebês desde o nascimento, e que parece ativar antigos potenciais [do cérebro orientado para o cuidado paterno].
Tudo começou antes da nossa espécie?
Existem circuitos neuronais e moléculas, ancestrais da ocitocina e da prolactina, por exemplo, que já estavam presentes nos peixes. O hormônio da lactação já existia nos peixes muito antes da evolução dos mamíferos, há mais de 400 milhões de anos. Temos esses genes dentro de nós, fósseis herdados de nossos ancestrais vertebrados. O cuidado parental em peixes nem sempre existe, mas quando existe é sempre masculino. São os machos que protegem o ninho, os ovos e os filhotes, e os circuitos para isso parecem ser persistentes. A mãe natureza, minha metáfora pessoal para a seleção natural, é muito econômica. Guarda esses ingredientes na despensa e se precisar deles depois vai lá pegá-los. Se existirem condições que afetem o sucesso reprodutivo e a sobrevivência, essas características serão favorecidas pela evolução.
A ‘mãe natureza’ tinha os ingredientes. Por que os nossos antepassados humanos tinham necessidade deles?
Nossa espécie tem uma maturação muito lenta, com crias muito caras que demoram muito para se defenderem sozinhas. Não teríamos sobrevivido no Pleistoceno se as mães não tivessem tido muita ajuda. Antes, presumia-se que isso vinha do pai, a hipótese do homem caçador. O problema é que os etnólogos que trabalharam com pessoas como os hadza demonstraram que um pai sozinho não pode fornecer carne suficiente para manter vivos um bebê e a mãe. Tinha que haver partilha e mais de um homem caçando.
A maior parte das calorias provavelmente veio de alimentos vegetais coletados pelas mulheres. Necessitava-se de uma grande variedade de alomães [membros do grupo que não são a mãe e que podem ser homens ou mulheres] além das mães, e os pais ajudavam quando estavam presentes. Essa criação com os outros era essencial. Hoje, muitos filhos de caçadores-coletores crescem em comunidades onde seus pais não estão presentes e são alimentados da mesma forma que todos os outros.
A criação humana não é tarefa nem de um nem de dois?
Em Mothers and Others [2009] apresentei a ideia de que os seres humanos eram criadores cooperativos, porque as mães deviam ter tido ajuda para manter os seus bebês vivos. Eu era conservadora e disse que tudo começou no Pleistoceno, com o Homo erectus. Há cerca de 1,8 milhão de anos, começávamos a desmamar os bebês mais cedo e as mães tornavam-se muito mais dependentes dos outros, mas na realidade todos dependiam mais dos outros. Partilhar a comida foi uma mudança radical na evolução humana junto com a linguagem.
Já escrevi muito sobre quanto apoio as mães precisam, porque é muito difícil para uma mulher cuidar de um bebê completamente sozinha, mas acho que não ressaltei o suficiente quanto apoio os pais precisam. Até eles precisam de muita ajuda, e também de um aval social. Ninguém deveria ter de cuidar de um bebê sozinho 24 horas por dia.
A necessidade da criação cooperativa fez com que todos nós evoluíssemos para sermos cuidadores?
Penso que a maioria dos humanos, talvez todos, tem um substrato aloparental no cérebro que nos torna receptivos aos bebês. Os homens que estão em proximidade íntima e prolongada atingem um ponto crítico que estimula essas áreas cerebrais antigas.
No livro especulo que a decisão de cuidar – ou não – é tomada no córtex pré-frontal do cérebro do homem. É uma porção muito nova que evoluiu na última metade do Pleistoceno, quando começou o cuidado cooperativo. Acho que o córtex pré-frontal e a criação cooperativa evoluíram juntos.
No entanto, um estudo de 2014 sobre casais de homens homossexuais que cuidavam de bebês desde o nascimento, sem nenhuma mulher envolvida, revelou que o que estava acontecendo nos seus cérebros não ocorria apenas no córtex frontal: também envolvia áreas cerebrais muito antigas, profundamente envolvidas no cuidado materno, como o sistema límbico, o hipotálamo e as amígdalas.
No livro, você argumenta que mudanças socioculturais, como o patriarcado, distanciaram os homens e os bebês porque os Estados precisavam de soldados e mães. O feminismo moderno contribuiu para trazer à tona a nossa biologia oculta?
As mães sempre trabalharam, mas antes não recebiam uma remuneração significativa, mas à medida que o mundo mudou e elas começaram a contribuir significativamente para a economia familiar, os homens reconheceram que precisavam dos seus rendimentos. Queriam ajudar mais, as ideologias estavam mudando, as rígidas normas de gênero estavam afrouxando e os homens podiam expressar sentimentos de cuidado para com os outros com um pouco mais de facilidade, sem serem desprezados.
A sociedade estava mudando de uma forma que possibilitava aos homens passar mais tempo perto das crianças, uma coisa às vezes até necessária. Quando os homens passam mais tempo próximos e cuidando dos bebês, este potencial ancestral que não tinha sido expresso ao longo da evolução, mas que agora está sendo exposto pela primeira vez em centenas de milhões de anos, é despertado e ativado. É algo que me impressiona.
Os desenvolvimentos tecnológicos também contribuíram, juntamente com as mudanças históricas, ideológicas, socioeconômicas e educacionais, para os direitos e a influência das mulheres. O leite já foi essencial para a sobrevivência, mas isso mudou com as mamadeiras com bicos de borracha e as melhorias na fórmula do leite. Além disso, temos extratores [de leite], então não há mais necessidade de ter a mãe por perto.
No entanto, não sei se isso acontece na Espanha, mas está certamente acontecendo no meu país: há um enorme retrocesso em relação aos direitos das mulheres, especialmente contra os direitos reprodutivos. E devo dizer que esta história termina quando as mulheres perdem a autonomia reprodutiva.
O que você quer dizer com “esta história termina”?
Se as mulheres já não conseguem controlar quando dão à luz, pensa no quanto isso afeta o seu acesso à educação, o seu desenvolvimento profissional e a sua capacidade de trabalhar fora de casa. De repente, uma mulher que quer sustentar a sua família só pode fazê-lo, mais uma vez, com o apoio masculino, porque ela sozinha não pode fazê-lo. [Controlar quando dão à luz] foi uma grande mudança, e se houver uma guerra toda a ênfase recai sobre a necessidade de guerreiros do sexo masculino para proteger o povo. Temos uma congressista nos Estados Unidos que diz que precisamos de mais masculinidade tóxica, e não menos, porque precisamos de guerreiros ferozes.
Vemos essa busca masculina por status, de querer ser dominante, o macho alfa, nos homens. Trump, Putin e Netanyahu preocupam-se com o seu status e com a possibilidade de permanecerem fora da prisão. Eles têm impulsos sexualmente selecionados descontrolados. É uma masculinidade nostálgica.
Como lutar contra esses impulsos que também têm um fundo biológico?
Somos humanos, passamos por períodos em que éramos muito dependentes dos outros e nos preocupávamos com a nossa reputação: é aqui que entra em jogo a seleção social, à qual estranhamente os humanos são suscetíveis porque se preocupam com o que os outros pensam deles. Esta é uma proteção contra os impulsos sexualmente selecionados desenfreados, que podem levar à destruição do seu grupo.
No livro menciono uma espécie de macaco em que a cada 27 meses entra um novo macho, expulsa o morador e mata todos os bebês. Se isso acontecer com frequência suficiente, esses grupos desaparecem. Se um destes líderes, desesperado por status acima de tudo, iniciar uma guerra nuclear ou não se importar com as mudanças climáticas, isso poderá levar à destruição da sua própria posteridade. Se a seleção sexual estiver no comando, tudo o que importa é o seu status pessoal. Precisamos que as pessoas se preocupem com o mundo que oferecerão aos seus herdeiros.
É por isso que você diz no livro que as crianças estão em melhor situação em sociedades onde as mulheres têm mais poder?
Se tivermos sociedades em que os homens estão mais envolvidos com as crianças, eles também se preocupam, mudam as suas prioridades, tornam-se mais maternais. Não creio que os homens sejam o problema; o problema é a seleção sexual irrestrita. Os homens têm dentro de si o potencial para cuidar, só precisa ser exercitado. Isto cria “ambientes mais agradáveis”, um termo para peixes, aves e espécies em que as fêmeas selecionam os parceiros com base na sua utilidade para a prole, resultando numa maior sobrevivência da prole. Tweet
Os bonobos machos também brigam, mas nunca matam ninguém e não existe infanticídio, são muito menos agressivos e violentos. Os chimpanzés às vezes tentam eliminar o grupo vizinho, e algumas sociedades humanas também o fazem e estão fazendo isso neste exato momento.
Que conselho daria a um futuro pai?
Ah, o meu principal conselho seria para os legisladores: precisamos de uma licença parental mais longa, horários de trabalho mais flexíveis e mais apoio, tanto para as mães como para os pais e para aqueles que os ajudam. O velho debate sobre se é melhor o cuidado em creche ou o maternal estava muito errado, porque sempre evoluímos como uma espécie com cuidado maternal, o que faz com que nossos filhos sejam mais empáticos e mais capazes de se comunicar. Há muitas evidências de que o bom cuidado prestado por outras pessoas é altamente benéfico para o desenvolvimento infantil.
Em vez do velho debate, hoje a questão é simplesmente pagar por essas coisas e fazer com que os governos reconheçam que isso é benéfico. Relatórios de empresas de consultoria mostram que seus resultados melhoram se seus funcionários estiverem mais satisfeitos com a vida familiar e com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Um estudo da Harvard Business School diz que mesmo os homens muito ricos querem passar mais tempo com as suas famílias. É uma coisa geracional e é incrível a rapidez com que as coisas mudaram ao longo da minha vida. Mudaram não apenas as oportunidades das mulheres, mas também as dos homens.
Um dos estudos mais famosos que você cita no livro é aquele que mostra que os níveis de testosterona caem com a paternidade. Esses estudos são comunicados de forma excessivamente negativa, com certo sarcasmo?
Um estudo longitudinal muito bem realizado analisou os mesmos homens desde o nascimento, durante a infância, durante a puberdade, antes do casamento, depois do casamento e depois de ter um filho. Foi quando a testosterona caiu. Na sociedade ocidental há tanta ênfase na genitália masculina... às vezes os homens comparam seus órgãos genitais. Portanto, a ideia de que a testosterona diminui depois que os homens passam muito tempo com os bebês, embora não permaneça sempre baixa mas depois suba, incomoda alguns homens. Isto tem a ver com as nossas definições de masculinidade: se a definimos como ser uma pessoa boa e amorosa, o problema desaparece.
A masculinidade também precisa ser redefinida? Tweet
Nossas definições de masculinidade, de que os homens devem ser fortes e emocionalmente seguros e dominantes e nunca podem mostrar fraqueza, prestam um péssimo serviço aos homens. Quando olhamos para os dados nos EUA sobre as “mortes por desespero”, overdoses e suicídio, três em cada cinco são homens. Muitos homens de meia-idade estão tão zangados e magoados que sentem que perderam o seu propósito. Tinham a ideia de que deviam ser o provedor da família, o que nunca foi possível: não foi assim no Pleistoceno e não é hoje. Não é possível que um estilo de vida de classe média possa ser sustentado por um único homem, mas sentem que fracassaram e que uma mulher tomou o seu emprego.
O fato de que os homens manifestem seus sentimentos por meio do cuidado e terem uma nova fonte de satisfação e propósito em suas vidas lhes faz muito bem. Não deveria ser uma fonte de queixa, mas é para muitos e tem a ver com as nossas definições muito tendenciosas e unilaterais de masculinidade.
No livro você menciona o conceito de “paternidade múltipla” que algumas culturas possuem, em que alguns homens consideram como seus filhos aqueles que sabem que não são seus filhos. Estamos muito obcecados com genes?
Não creio que isso [a obsessão pelos genes] tenha servido para alguma coisa. Foram encontradas dezenas de tribos na América do Sul com essas crenças, depois se viu a mesma coisa na África Central. É muito mais comum do que se pensava, e há muitas razões para isso, como quando os recursos são escassos e a mãe precisa de mais ajuda. Tweet
Também reduz a tensão dentro do grupo, não que o ciúme sexual desapareça, mas o modera: se algo acontecer comigo, meus filhos serão mais bem cuidados. A essa altura [os pais não biológicos] já passaram algum tempo com esses bebês e passaram a amá-los. Há 11 milhões de crianças nos Estados Unidos vivendo como enteadas e muitas estão bem. Um estudo realizado na Alemanha mostrou que alguns padrastos que passam muito tempo com estas crianças investem nelas quase tanto como o pai [biológico].
Como será o pai do futuro? Aonde essa evolução nos levará?
É muito difícil e não há provas de que isso vá acontecer, mas poderíamos evoluir para cuidados masculinos obrigatórios se o fizéssemos o suficiente e isso afetasse a sobrevivência infantil. Dependerá de onde os homens veem o seu interesse próprio alinhado, mas não creio que tenhamos esse tempo. Vejo ameaças como as mudanças climáticas. Se houver uma guerra, todas as apostas na criação dos filhos serão canceladas. E quem se importará? Já estamos numa crise de cuidados, é óbvio que não há cuidados suficientes e há muitas crianças abandonadas no mundo. E haverá ainda mais. Se, porventura, as guerras na Ucrânia e em Gaza acabarem, haverá muitos órfãos.
Sete exemplos de masculinidade tóxica que você reconhecerá no seu dia a dia
Masculinidade e presidência. Artigo de Luca CastiglioniGuerra e masculinidade. Artigo de Paola Cavallari
Os homens se tornaram culturalmente redundantes? Por uma nova visão de masculinidade
Um rosário só para homens como "expressão da fé católica e recuperação da masculinidade"
Procurando conselhos sobre masculinidade? Tente São José e ignore Jordan Peterson
"Imbrochável" é a síntese do bolsonarismo: "Masculinidade frágil", aponta psicanalista
Um bíblico tiro de “estilingue” contra a masculinidade tóxica
Feminismo: "Estes últimos dez anos viram o triunfo da masculinidade". Entrevista com Anne Soupa
“Nova masculinidade” virá por meio de uma paternidade diferente, afirma antropólogo
Enquanto isso: # Flávio Bolsonaro paga R$ 3,4 milhões em dinheiro vivo para quitar sua mansão em Brasília (Carta Capital)
# Projeções divulgadas por emissoras britânicas indicam que o Partido Trabalhista conquistou 410 dos 650 assentos na Câmara dos Comuns, contra 131 dos conservadores (Carta Capital e Opera Mundi)
# Jornal Le Monde usa Bolsonaro para alertar franceses sobre o risco da eleição (Jamil Chade, Uol)
O 7×1, que completa uma década neste mês de julho, é o acontecimento cultural mais importante do primeiro quarto do século no Brasil (continue a leitura)
Ocorrido no campo decisivo do futebol, onde o país fincou as raízes de sua identidade a partir dos anos 1930, fez muito mais do que chocar as 58 mil pessoas presentes no Mineirão, as 428 milhões que assistiram ao vivo do mundo inteiro e as incontáveis que travaram contato com as imagens nos dias que se seguiram
A derrota espetacular, vivida no contexto das manifestações de 2013 e dos protestos contra a realização da Copa do Mundo, trouxe complexos nacionais à superfície, inspirou uma torrente inesgotável de memes e fez morada permanente em nosso imaginário coletivo. Tornou-se o segundo resultado futebolístico, além do frustrante 0x0, a ter um significado geral na língua portuguesa
Passados dez anos, convém examinar esse acontecimento com mais atenção do que aquela que lhe foi dedicada até o momento. José Miguel Wisnik, autor do livro definitivo sobre o futebol brasileiro, Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008), publicou apenas uma coluna de jornal sobre o 7×1, em O Globo, quatro dias após o jogo, onde se refere ao acontecimento como “catástrofe” (“ainda é 1950, só que sem a mesma inocência trágica”) e vê no colapso da seleção brasileira o fantasma de dom Sebastião, o jovem rei português que desapareceu na África após perder a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, durante a qual se diz que ele ficou sem ação, paralisado. “O sebastianismo doentio”, escreveu Wisnik, “é a crença na volta da entidade Futebol Brasileiro, como se este estivesse sempre pronto a encarnar. (…) Polarizado pelo passado e por um futuro de miragem, o presente contém o buraco negro em que colapsa inconscientemente a seleção, quando fracassa o seu papel messiânico”.
Nuno Ramos, autor do ensaio Os suplicantes: aspectos trágicos do futebol, nos dedicou um pouco mais, algumas páginas na piauí de agosto de 2014. É um texto com boas observações sobre a campanha do Brasil na Copa, mas que acaba trilhando o caminho que Wisnik já havia indicado. Se saiu na piauí de agosto, de toda forma, é porque foi finalizado em julho. As reflexões de Nuno Ramos e José Miguel Wisnik sobre o 7×1, em suma, foram escritas poucos dias após o jogo.
Os bons comentários, nos anos seguintes, vieram de onde seria mesmo de se esperar. Para Tostão, segundo Wisnik o mais literário de nossos críticos esportivos, o resultado foi o mais espetacular da história do futebol. Os professores Marcelino Rodrigues da Silva e Elcio Cornelsen, que comandam desde 2010 um importante núcleo de estudos dedicado ao futebol na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escreveram respectivamente sobre o impacto do 7×1 na imagem que fazemos de nós como país e a cobertura na mídia alemã da Copa de 2014, retratada como Um conto de fadas de verão, título do artigo de Cornelsen. Sérgio Rodrigues, autor do melhor romance brasileiro sobre futebol, O drible (2013), colocou o 7×1 no centro de sua retrospectiva da década na Folha de S.Paulo. Mas ninguém parece ter levado a cabo o programa indicado por Wisnik em Veneno remédio: “prestar a atenção no jogo como um todo, como uma partitura, como uma trama onde cada detalhe diz algo sobre o conjunto, como um texto cifrado e cheio de enigmas”, adotando diante de uma partida de futebol “um procedimento de leitura do jogo que corresponde ao melhor estilo de um crítico literário”.
Analisar um jogo de futebol com procedimentos e categorias da crítica literária talvez soe como um projeto disparatado. Para o leitor de Veneno remédio, no entanto, a sugestão feita na página 401 parece menos uma extravagância do que um desdobramento natural das quatrocentas páginas anteriores. O livro é, ao fim e ao cabo, uma obra de crítica literária aplicada ao futebol. A análise do jogo de futebol como livro, no entanto, é um programa a se desenvolver. Wisnik não esboça uma metodologia ou indica procedimentos críticos, que ficam, então, por ser inventados. É o que venho tentando episodicamente ao longo dos últimos anos, movido pela crença, amplamente amparada em Veneno remédio, de que os detalhes do jogo entre Brasil e Alemanha dizem algo não somente “sobre o conjunto” da partida, mas também, junto com o conjunto, sobre o nosso país e seu momento histórico.
Se a forma romance vem encontrando dificuldades para expressar a era dos eventos climáticos extremos, como sugere o escritor indiano Amitav Ghosh em um livro recém-lançado no Brasil, quem sabe um jogo de futebol não terá sido a inesperada obra-prima literária capaz de revelar algo sobre nosso tempo.
A afinidade entre futebol e literatura não é um devaneio de críticos literários. Christian Bromberger, antropólogo que estudou as rivalidades e identidades torcedoras em cidades da França, da Itália e do Irã, afirmou que uma grande partida de futebol é “um evento exemplar que condensa e teatraliza, à maneira da ficção lúdica e dramática, os valores fundamentais que moldam nossas sociedades”. No Brasil, também no campo da antropologia, Arlei Sander Damo definiu o jogo de futebol como um complexo de relações “que a cada mudança de posição constituem uma trama, um enredo”, e as ações dos jogadores como “processos sociais e simbólicos que podem ser tomadas como narrativas em primeira mão”.
E se é mesmo possível interpretar uma partida de futebol como literatura, o impulso inicial terá partido de um cineasta, Pier Paolo Pasolini, para quem o futebol era um “sistema de signos não verbal” nos moldes da pintura, do cinema ou da moda. O curto e nada rigoroso ensaio Il calcio “è” un linguaggio con i suoi poeti e prosatori (o futebol “é” uma linguagem com seus poetas e prosadores), que o italiano publicou em 1971 sob o impacto da final da Copa de 1970, é onde aparecem pela primeira vez as noções de prosa e poesia para se referir a procedimentos e estilos de jogo no futebol.
Para Pasolini, as “palavras futebolísticas” eram “formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada”, através da combinação de fonemas. Suas variações eram potencialmente infinitas, mas era possível discernir de forma geral entre um futebol europeu em prosa, fosse ele realista como o dos ingleses ou estetizante como o dos italianos, e um futebol sul-americano em poesia, cujo melhor exemplo seria o brasileiro. Wisnik, que aponta o texto de Pasolini como a motivação inicial para que considerasse escrever sobre futebol, resume assim: “Futebol em prosa significava, para ele, jogo coletivamente articulado, buscando o resultado por meio da sucessão linear e determinada de passes triangulados”, enquanto “o futebol poético suporia dribles e toques de efeito, ao mesmo tempo gratuitos e eficazes, capazes de criar espaços por caminhos não lineares”.
Ao falar em prosa e poesia em 1971, Pasolini alçava o futebol a objeto da semiologia então em voga e estabelecia um novo arcabouço conceitual para tratá-lo como expressão cultural. Nove Copas do Mundo depois, Wisnik partiu do dualismo de Pasolini para apresentar o futebol como uma batalha “que admite o épico, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico”, capaz de comportar “múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e (…) de absorver e de expressar culturas.”
Essa capacidade de absorver e expressar culturas será a característica decisiva para o triunfo global do futebol como esporte popular. Será, também, a que lhe permitirá tornar-se um campo fundamental da experiência brasileira a partir da década de 1930. O futebol brasileiro é, afinal, uma invenção modernista, e em dois sentidos. Primeiro dentro de campo, na medida em que a maneira de jogar futebol que vai se consolidando no Brasil a partir da década de 1920 tem todas as características da antropofagia defendida por Oswald de Andrade em 1928: as camadas populares brasileiras se apropriam da invenção inglesa e lhe imprimem uma configuração original – devoram-na e a regurgitam em forma superior. Mas o futebol brasileiro também é uma invenção modernista em sentido propriamente literário, uma vez que os escritores responsáveis pela imbricação entre futebol e identidade nacional, principalmente Gilberto Freyre e Mário Filho, são representantes do que Antonio Candido chamou de “projeto ideológico” do Modernismo dos anos 1930 – surgido durante o primeiro governo de Getúlio Vargas com a ambição de unificar o país, em contraste mas também em continuidade com o “projeto estético” da década anterior.
No clássico ensaio Literatura e Cultura de 1900 a 1945, publicado em duas partes entre 1953 e 1955, Candido atribui ao Modernismo uma “adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como o negro, o mestiço, o filho de imigrantes, o gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice”. São os mesmos elementos destacados pelos autores que reivindicarão o futebol como fator de identidade nacional. O esporte inventado na Inglaterra participa tanto do momento estético quanto do momento ideológico do Modernismo brasileiro: primeiro propriamente como jogo, investido da paixão popular e dentro do qual começa a se desenvolver um estilo brasileiro a partir da aceitação de jogadores negros e mulatos na década de 1920 (processo descrito por Mário Filho em O negro no futebol brasileiro); depois através de sua elaboração literária por Gilberto Freyre e Mário Filho nos anos 1930. O futebol de poesia de Pasolini é a versão tricampeã do mundo do futebol dionisíaco anunciado por Freyre em 1938, que exprimia “o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro” presente “em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil”.
Com o tricampeonato mundial, conquistado em 1970, o Brasil realiza no esporte mais popular do planeta a façanha que Antonio Candido atribuíra ao Modernismo: “inaugura um novo momento na dialética do universal e do particular, inscrevendo-se neste com força e até arrogância, por meio de armas tomadas a princípio daquele”. A partir daquele ano, em que Pelé se consagrou como rei, o futebol brasileiro oscilará também dialeticamente entre o universal e o particular, entre os modelos e inovações europeus e a identidade local, com resultados diversos e também complexos, onde nem a vitória nem a derrota, como aliás é próprio do futebol, são capazes de resolver as questões que levantam.
Wisnik afirma que o futebol brasileiro consolidou uma linguagem, um repertório próprio, e que não se tratará mais, a partir da conquista no México em 1970, “de descobrir e afirmar as suas bases, mas de recriar-se ou perder-se em função delas, dentro do quadro das grandes transformações pelas quais passará o futebol a partir dos anos 70”. As derrotas tecnocráticas de 1974, 1978 e 1990, a tragédia da seleção utópica de 1982 e seu prolongamento em 1986, o título incaracterístico de 1994 e a tentativa fracassada de repeti-lo em 2010 (com um time defensivo liderado por Dunga, primeiro capitão, depois técnico), a síntese de 2002 e as atuações catatônicas de 1998 e 2006 diante da França de Zinedine Zidane: todas as Copas do Mundo desde 1970 se inscrevem na tentativa do futebol brasileiro de acertar as contas com seu passado mítico. Wisnik e o psicanalista Tales Ab’Sáber, este em artigos publicados na Folha de S. Paulo em 2002 e 2006, são os cronistas do futebol brasileiro como índice dos nossos sonhos e também dos nossos fracassos como país.
Universidade Yale, Estados Unidos, abril de 1994. O Brasil não vence a Copa do Mundo desde o tricampeonato em 1970. Um mês antes de a seleção brasileira desembarcar no país para conquistar o tetra, Roberto Schwarz apresenta pela primeira vez seu ensaio Fim de século. Fazia já alguns anos que os escritos e conferências de Schwarz sobre o Brasil eram influenciados pelo alemão Robert Kurz e seu O colapso da modernização, publicado na Alemanha em setembro de 1991. Desde a década anterior, afirmou Schwarz em Yale, já estava claro que no chamado terceiro mundo “o nacionalismo desenvolvimentista se havia tornado uma ideia vazia, ou melhor, uma ideia para a qual não havia dinheiro”, uma vez que, nas novas condições tecnológicas, para o Brasil e outras nações com características similares, “as inversões necessárias para completar a industrialização e a integração social do país se haviam tornado tão astronômicas quanto inalcançáveis”. A modernização brasileira, portanto, colapsara.
O futebol brasileiro, original e triunfante, fora uma espécie de fiador dessa modernização, além de um sucedâneo da própria literatura na formação e elaboração do país. Daí o futebol ter se tornado, como apontou Wisnik, “uma via incontornável para se pensar as formas paradoxais de inserção do Brasil no mundo contemporâneo”, ou “a maneira privilegiada pela qual a nação ritualiza um acerto de contas consigo mesma (…), do qual as Copas do Mundo se tornaram, a cada quatro anos, a cena principal”.
O que a derrota de 2014 revela, portanto, sobre a inserção do Brasil no mundo contemporâneo? Isaiah Berlin atribui ao obscuro filósofo alemão Johann Georg Hamann a crença de que Deus fala conosco através da história. Se a história fala conosco através do futebol, como parecem crer Wisnik, Ab’Sáber e outros, o que diabos Deus quis nos dizer com o 7×1? Será essa a esfinge que vem nos devorando à espera de que a decifremos?
Símbolo da desilusão com o Brasil, o colapso do 7×1 parece ser também síntese e sintoma de processos anteriores, de longa duração: o impasse da modernização brasileira após as crises do petróleo e a terceira revolução industrial, lentamente assimilado desde a década de 1980 até sua eclosão como revolta popular em 2013; e o consequente fracasso da nossa industrialização, que resultou no fim da esperança de um futuro grandioso, substituída pela reprimarização da economia e a contenção de danos como horizonte político.
Mas não foi só isso. Tales Ab’Sáber apontou, em seus artigos, para um processo correlato no campo simbólico: o desencantamento da seleção e do futebol brasileiros a partir do que podemos chamar de uma derrota civilizatória na Copa do Mundo de 1982.
Escrevendo em maio de 2002, às vésperas da conquista do penta, Ab’Sáber se referiu à seleção brasileira de 1982 como um “objeto mágico de nosso desejo perdido de uma civilização local” e classificou a reação à derrota frente à Itália como um ataque cruel dirigido a nós mesmos. A “demanda de eficácia sem espírito que passou a tomar conta de nosso futebol” correspondia, segundo ele, à “mesma eficácia sem valores humanos ou sociais que tomou de assalto a nossa política e a nossa cultura nos últimos dez anos”. E o “horror maior” denunciado pela história da seleção brasileira de 1982, por fim, faz lembrar os textos de Schwarz da década de 1990: o fato de que “mesmo que façamos tudo certo não atingiremos a vitória, reservada aos detentores da ordem econômica deste mundo”.
A crítica do 7×1 é uma tarefa tanto estética quanto politicamente relevante, para a qual este aniversário parece um bom ponto de partida. Uma década soa como a distância mínima a partir da qual avaliar os grandes acontecimentos políticos e culturais. Para fazê-lo, é preciso olhar para a campanha do Brasil até as semifinais, como fez Nuno Ramos na piauí, mas também para os lances da partida (cenas), seu encadeamento na trama geral do jogo (enredo), os estilos exibidos em campo (linguagem), as atuações dos jogadores (personagens principais e secundários), textos jornalísticos e ensaísticos sobre o jogo (fortuna crítica) e a narração da partida na Rede Globo, canal de tevê com a maior audiência no país (recepção).
O cenário parece um bom começo. Se o Maracanã, maior estádio do planeta na época da primeira Copa do Mundo disputada no Brasil, foi em 1950 “a arena ideal para o balanceio fragoroso entre a ambição de grandeza máxima e a impotência infantilizada” do povo brasileiro, como escreve Wisnik em Veneno remédio, o que se pode dizer do Mineirão, palco do 7×1, inaugurado em 1965 na planejada Belo Horizonte como o mais moderno estádio do país? Diz-se que os engenheiros responsáveis pela construção do Mineirão fizeram um raio X no estádio carioca, sua referência evidente, em busca de deficiências a serem evitadas. Não puderam deixar de reproduzir, ao que parece, a vocação para sediar derrotas traumáticas do Brasil.
Os personagens principais: o goleiro Júlio César, protelando a aposentadoria na desconhecida liga canadense de futebol, e seus sete gols sofridos; o zagueiro David Luiz, destaque do Brasil na Copa do Mundo, e seu surto voluntarista que leva ao que o jornalista inglês Tim Vickery classificou como a pior atuação de um jogador de alto nível em um jogo de grande importância em todos os tempos; e o técnico Luiz Felipe Scolari, campeão em 2002, cujas aparições estupefatas agora simbolizam o próprio fracasso da modernização brasileira.
Há também alguns protagonistas ausentes: o contundido Neymar, principal jogador daquela equipe, com uma vértebra quebrada por uma joelhada na partida anterior, e o suspenso Thiago Silva, capitão do time, cujo pranto diante de uma decisão por pênaltis uma semana antes permanece desconcertante. Além deles, podemos acrescentar outros dois: Paulo Henrique Ganso, o parceiro e antípoda de Neymar em seus primeiros anos como profissional, jogador cerebral, elegante e radicalmente associativo, cuja carreira aquém das expectativas simboliza o ocaso da figura organizadora do camisa 10; e Robinho, principal jogador brasileiro na Copa do Mundo anterior, disputada na África do Sul, cuja trajetória, de resgatador do “verdadeiro futebol brasileiro” a condenado por estupro na Itália, acabou se tornando um comentário perverso sobre as esperanças e fracassos do Brasil no primeiro quarto do século XXI.
Um goleiro e um zagueiro em ação, um técnico à beira do campo, um craque ferido, um capitão suspenso. Mais onze alemães e nove brasileiros. O jogo vai começar. Durante a execução dos hinos nacionais, três protagonistas estão ligados de maneira curiosa: Júlio César e David Luiz seguram, em atitude inédita, o uniforme do lesionado Neymar, exibindo para as câmeras o nome e o número do craque ausente. Eles cantam a plenos pulmões o hino brasileiro. Diante do desaparecimento da figura do camisa 10 como “totalizador do time”, que Tostão foi o primeiro a notar – ou, nas palavras de Wisnik, o “declínio do papel eminentemente dialético do meia-armador” –, é fascinante que o capitão e o jogador mais experiente da seleção tenham portado como estandarte, a minutos da maior humilhação do futebol brasileiro, a camisa 10 de uma figura ausente. No último lance, no apagar das luzes, o único gol brasileiro será marcado justamente por Oscar, o verdadeiro meia-armador do time (a camisa 10 é o índice de uma função mas também um símbolo de status, e Neymar a usava não por ser o organizador, mas por ser a estrela da seleção), que deveria pensar e dialetizar o jogo, conferir um sentido e uma síntese à equipe, do que obviamente não foi capaz.
Para analisar a partida proponho dividi-la em sete atos de 15 minutos cada um. No primeiro, em que a Alemanha consegue abrir o placar após falha de marcação numa cobrança de escanteio, temos ainda um jogo mais ou menos convencional de Copa do Mundo. No segundo ato a história acontece: implosão psíquica, quatro gols em seis minutos e com meia hora de jogo a seleção mais tradicional do futebol perde uma semifinal de Copa do Mundo por 5×0 jogando em casa. Franco Moretti vê o romance europeu do século XIX como uma mistura de “bifurcações” e “enchimentos”, sendo estes a inovação que permitiu à literatura acompanhar o ritmo da vida. O futebol, surgido no mesmo século XIX, é o esporte dos enchimentos por excelência, feito de tempos mortos e especulações que só ocasionalmente se bifurcam em chances de gol. Naqueles seis minutos, porém, as bifurcações se sucedem de forma vertiginosa e então, quando cessa a avalanche, só resta matar o tempo até que os heróis humilhados possam deixar o palco.
O terceiro ato, então, é o mais comovente. Em todos os outros esportes com bola ou há um intervalo entre os pontos, cuja duração não é limitada (vôlei e tênis são exemplos), ou o cronômetro é interrompido com frequência, tanto de forma automática quanto por solicitação de atletas ou treinadores (basquete e futebol americano são exemplos). Já o jogo de futebol, “um pouco como o mar, está rugindo à nossa frente – uma vez posto em movimento, não deve ser interrompido”. As aspas são de Nuno Ramos, que afirma que muitos dos “aspectos propriamente trágicos” do futebol “vêm desta literalidade de tempo e espaço, desta contiguidade com a vida”. A tragicidade do 7×1 aparece com força, portanto, nesses 15 minutos de contiguidade entre o quinto gol da Alemanha e o fim do primeiro tempo.
“O apito final”, escreve Ramos já nas primeiras linhas de Os suplicantes, “estabiliza violentamente aquilo que, no transcorrer do jogo, parece um rio catastrófico de mil possibilidades”. Além do apito final, somente o fim do primeiro tempo pode parar o cronômetro e o “rio catastrófico”. Ele liberta os jogadores e ao mesmo tempo consuma a tragédia. Embora falte ao jogo o caráter heroico que facilitaria sua inclusão no universo do “trágico”, observação pertinente que agradeço a Elcio Cornelsen, acredito haver sim uma dimensão trágica no 7×1. O herói é o próprio futebol brasileiro com seu passado mítico.
O 7×1 é uma tragédia apressada, contemporânea, onde a fúria do destino não é sequer capaz de esperar o último ato. Zeus volta o olhar para Belo Horizonte e vê o Brasil jogando uma semifinal de Copa do Mundo em crise política, econômica e social, com jogadores e futebol medíocres, enfrentando a melhor seleção do torneio. Apenas vinte minutos e o Brasil já perde por 1×0, seremos eliminados, será mais um jogo normal de Copa. Mas Zeus acha que o Brasil não devia sequer ter chegado até essa fase. Foi coisa de Poseidon aquela vitória nos pênaltis contra o Chile. E ele resolve, por isso, nos dar uma lição.
“O instante traumático e a catástrofe súbita estão no horizonte do provável, se uma superioridade numérica inequívoca não vier a dissipá-la”, escreve Wisnik citando Ramos e pensando nas derrotas tardias ou injustas, quando o gol “abate-se como um nocaute que surpreende à traição uma equipe que vinha de martelar incessantemente a posição adversária”. O 7×1, em sua excepcionalidade, é um caso atípico onde o “instante traumático” é antes uma sucessão de instantes traumáticos, e a “superioridade numérica inequívoca” é o resultado da “catástrofe súbita” em vez de dissipar sua possibilidade.
Os próximos 15 minutos são os do intervalo. Relatos reunidos pela ESPN Brasil no aniversário de seis anos do 7×1 dão conta de que os jogadores se negavam a aceitar a derrota, enquanto o técnico Luiz Felipe Scolari procurava chamá-los à realidade. Ao mesmo tempo, milhões de telespectadores assistiam a propagandas que manifestavam apoio e confiança na seleção brasileira, que a essa altura, para desespero dos departamentos de marketing, perdia por 5×0 uma semifinal de Copa. Uma música do Itaú, muito repetida durante e no período anterior ao torneio, exortava o Brasil a “mostrar sua força”. E na peça de maior repercussão, produzida pela Sadia, crianças pediam que os jogadores “jogassem pra elas” já que nunca haviam visto o país vencer uma Copa.
Aproveitemos para colocar em foco a transmissão da partida. Além de fornecer uma camada discursiva ao jogo, o relato de Galvão Bueno merece atenção por ter se tornado, para os brasileiros, um elemento inseparável da memória do 7×1. No aniversário de um ano da derrota, em 8 de julho de 2015, o Globo Esporte colocou no ar a Galvãoteca do 7×1, acervo online com as frases mais marcantes do narrador durante a transmissão.
Na narração de Galvão, duas frases se tornaram emblemáticas. Virou passeio, proferida no momento do quarto gol alemão, se destaca pela concisão perfeita ao resumir em duas palavras o sentimento geral do espectador da partida. Mas e lá vêm eles de novo, soando poucos segundos depois, na iminência do quinto gol, é a que parece mais rica em significados. Quem são eles, para além dos jogadores alemães que de fato se precipitavam avidamente em direção à área brasileira? Os europeus de novo, uma nova colonização? A recondução do Brasil, agora no futebol, a seu lugar subalterno de destino? É o que parece sugerir Elcio Cornelsen ao lembrar a estadia da seleção alemã na vila de Santo André, que pertence ao município baiano de Santa Cruz Cabrália: “num revival simbólico de Cabral, os ‘conquistadores’ alemães chegavam a 8 de junho de 2014 para ‘descobrir’ o Brasil a partir de seu ponto inicial, Santa Cruz Cabrália, na costa Sul do estado da Bahia.” Cornelsen conta ainda que “a imprensa alemã deu amplo destaque ao contato que os ‘conquistadores’ tiveram com os índios”; e lembra que “a dança que os jogadores aprenderam com os pataxós foi reproduzida por eles durante as comemorações após a vitória contra a seleção da Argentina (…) ainda no gramado do Maracanã”.
Que “eles” sejam os europeus, que “lá vêm de novo” colonizando o Brasil ou ao menos devolvendo-nos ao polo atrasado de alguma ordem global, é hipótese de todo compatível com a interpretação do 7×1 como figuração do colapso da modernização brasileira descrito por Roberto Schwarz. Em linhas gerais: décadas de industrialização haviam sido em vão e a integração nacional era agora uma hipótese improvável, pois chegamos atrasados e não tínhamos mais como acompanhar a evolução tecnológica dos países ricos. A superação do subdesenvolvimento, de todo modo, sempre fora uma miragem. Pois bem: a Alemanha se tornou a maior potência econômica europeia no intervalo entre os textos de Schwarz e a Copa de 2014; à seleção brasileira faltou sobretudo integração em Belo Horizonte, ou coesão, outra palavra frequente do crítico, com os alemães avançando pelo mesmo “lugar de um vazio” que Tales Ab’Sáber identificou na seleção de 1982; e a situação pós-catastrófica dos jogadores brasileiros após o quinto gol alemão, batalhando sem esperança como os trabalhadores urbanos onde a modernização colapsou, não deixa de lembrar a dos “sujeitos monetários sem dinheiro” de que fala Robert Kurz. A dinâmica da seleção brasileira em Belo Horizonte, resumindo, foi a mesma desagregação que sucede a falência do desenvolvimentismo no Brasil.
Mas peço licença para juntar à hipótese dos europeus uma outra, complementar. Recuamos pouco mais de um milênio e então a Europa sequer foi nomeada, a América sequer foi imaginada e os alemães já não são os portugueses, com quem aliás nunca se pareceram, mas bárbaros germânicos invadindo uma Roma decadente. Os arianos de semblante calmo, enfrentando o Brasil com camiseta idêntica à do clube brasileiro de maior torcida, são de repente bárbaros dentro da muralha do Mineirão. Seria o 7×1 o nosso saque dos visigodos? O fim prefigurado de um império corroído e vazio por dentro, preservado apenas enquanto sua ficção fosse conveniente aos invasores? Era esse o país que emergira da revolução digital, da reprimarização da economia nacional e por fim, decisivamente, das manifestações de 2013?
O 7×1, então, aponta o futuro? Para seguir na pista de Edward Gibbon, cujo Declínio e queda do império romano responsabiliza silenciosamente o cristianismo pela ruína do Império, podemos nos perguntar: seria o neopentecostalismo de David Luiz, que durante a Copa pregava abstinência sexual em suas redes sociais, e de cada vez mais brasileiros, no futebol, na sociedade e na política, o vírus que acelerou a deterioração da Nova República e do futebol que nos dera um lugar no mundo?
Sérgio Rodrigues escreveu que a “segunda etapa foi disputada em ritmo de farsa, com os alemães preocupados em não humilhar demais os desarvorados anfitriões – o que, claro, só os humilhava mais”. O Brasil volta do intervalo atacando com um ímpeto novo, decidido a diminuir a vantagem para sonhar, quem sabe, com a maior virada da história do futebol. Nos primeiros 15 minutos do segundo tempo, aliás amplamente esquecidos, cria uma sequência impressionante de oportunidades claras de gol, impedidas por movimentos às vezes espetaculares do grande goleiro alemão Manuel Neuer.
No trecho seguinte, entre os 15 e os 30 minutos, o ímpeto brasileiro arrefece e a Alemanha chega naturalmente a seu sexto gol. Por fim, entre os 30 e os 45 do segundo tempo, vem o sétimo. O oitavo fica por um triz: no último minuto, o meia alemão Mesut Özil aparece sozinho diante de Júlio César, mas erra o chute, e o Brasil, na sequência, marca seu único gol. Caio Prado Júnior, lembra Wisnik, defende na Formação do Brasil contemporâneo “que o ‘Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe’ no ‘quadro imenso’ da mundialização dos mercados como empreitada da Europa sobre a América, a África e Ásia”. O gol brasileiro, nosso último gesto no torneio que trouxe europeus, americanos, africanos e asiáticos a nossas terras, parece confirmar essa afirmação ao nos transformar, no terreno onde a utopia modernista da vantagem brasileira mais prosperou, em um pequeno detalhe no placar.
Depois do gol de Oscar, o jogo termina. Os repórteres entram em campo, e quem serão os entrevistados senão Júlio César e David Luiz? O goleiro reconhece o grande futebol alemão, fala em “apagão” após o primeiro gol, deixa “um beijo no coração de cada brasileiro” e cita sua falha na Copa de 2010, que trocaria de bom grado pelos sete gols que sofreu. O zagueiro-atacante, em meio às lágrimas que acabaram se tornando a imagem do 7×1, diz que só queria poder dar alegria ao seu povo, pede desculpas a todos os brasileiros, afirma ter aprendido “a ser homem em todos os momentos” e traz à consciência nacional a definitiva formulação “quatro gols em seis minutos”, estranhamente não enunciada ao longo de toda a transmissão da Globo. O espetáculo termina.
O que ficou? Para a seleção brasileira, uma assombração pairando sobre sua participação em Copas. Nas duas edições que sucederam 2014 o Brasil foi eliminado nas quartas de final por adversários sem tradição, ficando, portanto, a uma vitória de voltar às semifinais de onde saiu desfigurado. Melhor assim? A derrota de 2022, com o empate croata saindo nos minutos finais da prorrogação após a equipe brasileira se lançar desnecessária e atabalhoadamente ao ataque, parece pedir uma interpretação psicanalítica na tradição dos artigos de Tales Ab’Sáber.
Marcelino Rodrigues da Silva escreveu, em agosto de 2014, que após o 7×1 nós rapidamente “passamos da apreensão ao susto, do susto à tragédia e da tragédia à comédia, que se espalhou rapidamente pelo mundo virtual”, onde o “tsunami humorístico que se seguiu à derrota brasileira teve o condão de lavar nossa alma e nos deixar livres de qualquer trauma, de qualquer peso na consciência ou na memória”. Sérgio Rodrigues também lembrou a “saraivada imediata de memes e piadas” e afirmou que “o Mineiraço foi comédia-pastelão” em comparação à tragédia de 1950. Será?
Silva afirmou, em seu artigo, que as interpretações na “velha chave do atraso e do subdesenvolvimento” haviam prevalecido, com a culpa atribuída “às estruturas arcaicas que governam o futebol brasileiro e, de resto, toda a nossa sociedade”. O texto então termina com uma inesperada hipótese otimista: “Chegou a hora, enfim, de renegociarmos a imagem que fazemos de nós mesmos, no futebol e em outros campos. O mito populista do Brasil malandro, do Brasil do samba, do carnaval e do futebol, talvez já não nos represente mais com a mesma eficácia. A oportunidade histórica de reconstruir o passado e fazer brilhar nele uma promessa de futuro está novamente aberta”.
A oportunidade se abriu, como sabemos, para o movimento que se transformará no bolsonarismo. É na ressaca do 7×1, com o futebol brasileiro humilhado e o país supostamente achando graça, que a direita mobilizada pelo impeachment, uma nova força social conservadora e bastante avessa ao samba, ao carnaval ou à malandragem, adota justamente a camisa da seleção brasileira de futebol como traje. Apoiadores de Jair Bolsonaro sairão às ruas de amarelo durante a campanha eleitoral de 2018, depois em apoio a ele durante seus quatro anos de mandato e por fim, espetacularmente, em 8 de janeiro de 2023. Para Gregório Duvivier, em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 2021, “o maior vexame da seleção fez com que a extrema direita abraçasse seu figurino e dissesse: esse Brasil sou eu, e seu uniforme será meu manto. (…) Sete gols? Eu acho é pouco. Então aplaude a volta da fome, celebra a inflação, cultua o incêndio, espalha o vírus, boicota a vacina e ri dos enlutados”.
Descontado o tom jocoso, a hipótese de uma espécie de gozo na destruição ligando o 7×1 ao 8/1 através da camisa amarela da seleção soa plausível. As próprias grafias, aliás, sugerem contiguidade: números subsequentes, um símbolo mediando, o número um mantido à direita. 7×1, 8/1, e que algum deus nos proteja do que o colapso da modernização brasileira estiver preparando para o número nove.
Pedro Arantes, Fernando Frias e Maria Luiza Menezes parecem reconhecer, no recém-lançado A rebelião dos manés, a continuidade entre os eventos de Belo Horizonte e os de Brasília ao afirmar que “a entrada em campo para o quebra-quebra fora das quatro linhas já estava condenada ao fracasso, ou a novo 7×1”. Os três autores talvez lembrem que o mais malandro dos nossos craques, a cuja comparação com Macunaíma Wisnik dedicou vinte páginas de Veneno remédio, era conhecido como mané, e que o principal estádio de Brasília, transformado no segundo maior do país para a Copa, chama-se justamente Mané Garrincha. Mas o trecho citado serve também para introduzir um último tema: o uso metafórico da expressão “7 a 1”, que se tornou desde 2014 uma constante em conversas pessoais e todo tipo de discurso que ocupa a esfera pública no Brasil. “Fruto de aberração futebolística, expressão passou a evocar ruína do orgulho nacional”, afirmou Sérgio Rodrigues na Folha, acrescentando que o 7×1 tornou-se “um ponto destacado na fraseologia da década” e “não vai embora nunca mais”.
O site colaborativo Dicionário inFormal tem hoje um verbete dedicado ao 7×1. A primeira definição: “Semifinal entre Brasil vs. Alemanha disputada no dia 8 de julho de 2014, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte, durante a Copa do Mundo FIFA de 2014”. E a segunda: “Por conta da humilhação e surpresa do placar, a expressão virou um meme e gíria que significa humilhação ou obstáculo”. Chama atenção, aqui, a palavra obstáculo, distante da grandiloquência e dramaticidade associadas ao 7×1. Ela ecoa, por outro lado, a existência do outro e o obstáculo intransponível que a evolução tecnológica de países como a Alemanha teria representado, segundo o brasileiro Roberto Schwarz na esteira do alemão Robert Kurz, para a modernização de países periféricos como o Brasil.
Mas para quem acredita que “o futebol vem antes e depois das artes”, participando “da força que as gerou ao mesmo tempo em que é o último dos seus avatares”, como Wisnik, as palavras mais relevantes sobre o 7×1 talvez sejam as de Marcelino Rodrigues da Silva: “O futebol, de uma forma que ninguém esperava, havia dado uma mostra estupenda de vigor, de capacidade de oferecer um espetáculo imprevisível, emocionante e dramático.” Para o bem ou para o mal, o 7×1 é nosso. Passada uma década, que críticos mais competentes comecem a interpretar nossa obra-prima.
Eventual derrota dos conservadores britânicos (depois de 14 anos) pode equilibrar o jogo europeu e compensar a ascensão da extrema direita francesa
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# Uol # CNN # G1
# Sabesp: Trabalhadores vão à Justiça contra venda da estatal "a preço de banana" (Rede Brasil Atual). # Leia também no Uol
Considerações sobre a aula magna de Silvio Almeida. Erick Chiconelli Gomes, A Terra é redonda (acesse)
A aula magna de Silvio Almeida Estado, Direito e Desenvolvimento no Pensamento Social Brasileiro proferida na Escola da Advocacia Geral da União oferece um terreno fértil para uma análise historiográfica que considera a interação entre a experiência vivida e as estruturas econômicas e culturais. Ao examinar as contribuições de Silvio Almeida, é possível identificar como suas reflexões sobre desenvolvimento econômico, ideologia e cultura dialogam com uma tradição historiográfica que valoriza a agência das classes trabalhadoras e marginalizadas, assim como a importância das lutas cotidianas na construção da história.
Silvio Almeida começa sua aula ressaltando a centralidade da economia política no desenvolvimento. Ele argumenta que a espinha dorsal das dinâmicas de prosperidade está enraizada na capacidade de estabelecer uma dinâmica econômica que permita uma espiral de prosperidade. Essa visão contrasta com a abordagem neoliberal que reduz a economia a uma série de técnicas desprovidas de contexto social e político.
Em vez disso, Silvio Almeida insiste que o desenvolvimento econômico deve incorporar uma dimensão ideológica e cultural robusta. Esse ponto de vista reconhece que a economia não é meramente um conjunto de gráficos e tabelas, mas uma construção social que envolve desejos e possibilidades que ainda não se realizaram.
A citação de Celso Furtado por Silvio Almeida, que define o desenvolvimento como uma “fantasia organizada”, reforça a ideia de que a cultura é um campo de disputa onde as classes sociais articulam suas resistências e constroem significados alternativos. Para Celso Furtado, assim como para Silvio Almeida, o desenvolvimento nacional exige a criação de um projeto que não apenas melhore as condições materiais, mas também inspire uma visão cultural e ideológica de um Brasil novo e próspero. Esse projeto nacional, ao incorporar as dimensões subjetivas da existência, transforma-se em uma luta contra as estruturas de poder estabelecidas.
Walter Benjamin, outro autor citado por Silvio Almeida, oferece uma perspectiva crucial sobre a disputa pelo passado. Ele argumenta que o passado não é um objeto fixo, mas está em constante disputa, sendo ressignificado continuamente. Silvio Almeida utiliza essa noção para enfatizar que o processo de desenvolvimento envolve não apenas a criação de novas condições materiais, mas também a reinterpretação das histórias e memórias que formam a identidade nacional. Ao reconhecer e honrar os heróis e heroínas do passado, Almeida sugere que estamos construindo um futuro que respeita e incorpora as lutas históricas das classes marginalizadas.
A dimensão ideológica, discutida por Silvio Almeida através das ideias de Louis Althusser, é apresentada como uma prática material essencial para o desenvolvimento. Althusser vê a ideologia como uma estrutura que molda as condições subjetivas da existência, influenciando diretamente as práticas sociais e econômicas. Silvio Almeida, ao afirmar que a ideologia é central para o desenvolvimento, reforça a importância de criar tanto as condições objetivas quanto subjetivas necessárias para uma espiral de prosperidade. A ideologia, portanto, não é apenas um reflexo das condições materiais, mas uma força ativa que pode transformar essas condições.
Além disso, Silvio Almeida aborda a questão da subordinação internacional do Brasil, destacando a necessidade de uma atitude rebelde contra o papel subordinado que as grandes potências reservam ao país. Ele argumenta que desenvolver o Brasil significa recusar esse papel e afirmar uma postura de igualdade no cenário internacional. Essa visão crítica da geopolítica e das relações internacionais ressoa com a ideia de que a verdadeira emancipação econômica e social só pode ser alcançada através da autodeterminação e da resistência às forças hegemônicas.
Antonio Gramsci, com seu conceito de “pessimismo da razão e otimismo da vontade”, oferece uma visão estratégica para as lutas sociais e políticas. Gramsci argumenta que, apesar das dificuldades e das barreiras estruturais, é essencial manter a esperança e a determinação na luta por um desenvolvimento justo e inclusivo. Silvio Almeida, ao enfatizar a importância das políticas públicas e da mobilização social, ressoa com a perspectiva de Gramsci, sublinhando a necessidade de uma abordagem proativa e esperançosa no enfrentamento das desigualdades.
Implicações históricas e teóricas
A influência de José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o Patriarca da Independência do Brasil, é também fundamental na construção de um projeto nacional. Alberto Torres, em seu pensamento social, dialoga com as ideias de Bonifácio ao defender a necessidade de um desenvolvimento autônomo e soberano para o Brasil. Silvio Almeida, ao valorizar as raízes históricas do pensamento brasileiro, destaca a continuidade dessas ideias na luta por um desenvolvimento que respeite as especificidades e as potencialidades do país.
Roberto Schwarz, com seu ensaio “As Ideias Fora do Lugar”, oferece uma crítica perspicaz sobre a importação de conceitos estrangeiros para o Brasil sem a devida contextualização. Schwarz argumenta que muitas ideias importadas não se adequam à realidade brasileira, criando uma dissonância cultural e social. Silvio Almeida, ao enfatizar a necessidade de desenvolver teorias e práticas que reflitam a realidade local, ressoa com a crítica de Roberto Schwarz, defendendo um desenvolvimento que seja autenticamente brasileiro.
Leda Paulani, com suas análises sobre economia política, supervisionou Silvio Almeida em seu segundo pós-doutorado, influenciando significativamente seu pensamento. Paulani destaca a importância de uma abordagem crítica e interdisciplinar para entender as complexas interações entre economia e sociedade. Silvio Almeida, ao integrar essas perspectivas, reforça a necessidade de uma análise crítica que leve em conta as diversas dimensões do desenvolvimento.
Alessandro Travian, ao estudar a obra de Celso Furtado, destaca a riqueza teórica do desenvolvimento econômico no Brasil. Furtado, com suas análises sobre a formação econômica do Brasil, oferece uma compreensão profunda das estruturas econômicas e sociais que moldam o país. Silvio Almeida, ao dialogar com Travian e Furtado, enfatiza a importância de um desenvolvimento que seja ao mesmo tempo econômico e social, integrando as diversas dimensões da realidade brasileira.
Desenvolvimento e a a questão inorgânica
Maria Odília Teixeira, com sua obra Impasses do Inorgânico, oferece uma análise crítica das contradições e impasses do desenvolvimento capitalista no Brasil. Maria Odília Teixeira argumenta que o desenvolvimento inorgânico caracteriza-se por uma modernização que não integra de forma sustentável as estruturas sociais existentes, gerando uma série de impasses que dificultam o progresso econômico e social. Esse desenvolvimento desarticulado resulta em uma sociedade fragmentada, onde os benefícios do progresso não são igualmente distribuídos.
Silvio Almeida, ao abordar a necessidade de um desenvolvimento inclusivo e sustentável, ecoa as preocupações de Maria Odília Teixeira. Ele destaca a importância de criar um projeto nacional que não apenas promova o crescimento econômico, mas também enfrente as desigualdades estruturais. Essa visão se alinha com a crítica de Maria Odília Teixeira à modernização desorganizada, reforçando a necessidade de políticas públicas que integrem as dimensões sociais e econômicas de maneira coesa.
A perspectiva histórica e social
Emília Viotti da Costa, em sua análise histórica das estruturas sociais brasileiras, oferece insights valiosos sobre as raízes das desigualdades que ainda persistem. Sua obra Da Senzala à Colônia examina a transição da escravidão para a sociedade moderna, revelando como as estruturas de poder e opressão se perpetuam ao longo do tempo. Silvio Almeida, ao discutir a importância de políticas públicas que promovam a equidade racial e social, dialoga com a análise de Viotti da Costa, reconhecendo que o desenvolvimento verdadeiro deve abordar e reparar as injustiças históricas.
Guerreiro Ramos, com sua crítica às teorias importadas e a necessidade de uma sociologia genuinamente brasileira, também influencia a visão de Silvio Almeida. Guerreiro Ramos argumenta que o Brasil precisa desenvolver suas próprias teorias e práticas que reflitam a realidade local, em vez de adotar modelos estrangeiros que não se adequam ao contexto brasileiro. Silvio Almeida, ao enfatizar a necessidade de uma abordagem de desenvolvimento que leve em conta as especificidades culturais e sociais do Brasil, reflete a crítica de Guerreiro Ramos à dependência intelectual.
Estrutura de classes e movimentos sociais
Florestan Fernandes, um dos maiores sociólogos brasileiros, contribui significativamente para a compreensão das relações de classe e dos movimentos sociais no Brasil. Florestan Fernandes argumenta que a superação das desigualdades estruturais só pode ocorrer através de uma mobilização social consciente e organizada. Silvio Almeida, ao discutir a importância da participação ativa das classes marginalizadas no processo de desenvolvimento, ecoa as ideias de Florestan Fernandes sobre a necessidade de uma transformação social profunda e estruturada.
Gilberto Bercovici, com suas análises sobre direito econômico e desenvolvimento, complementa essa visão ao destacar a importância de uma estrutura jurídica que suporte e promova políticas de desenvolvimento inclusivas. Gilberto Bercovici argumenta que o direito econômico deve ser utilizado como uma ferramenta para regular e direcionar o desenvolvimento econômico de maneira que beneficie a sociedade como um todo. Silvio Almeida, ao discutir a importância das reformas jurídicas para o desenvolvimento, integra a perspectiva de Gilberto Bercovici, reforçando a necessidade de um arcabouço legal que promova a justiça social.
Cultura e identidade nacional
Além das contribuições teóricas, Silvio Almeida enfatiza a importância da cultura e da identidade nacional no processo de desenvolvimento. A valorização da cultura popular e das manifestações culturais brasileiras é vista como essencial para a construção de um projeto nacional inclusivo. Isso se alinha com a visão de Florestan Fernandes sobre a importância de uma identidade cultural forte para a mobilização social. Silvio Almeida argumenta que o desenvolvimento não pode ser apenas econômico; deve também envolver a construção de uma identidade nacional que inspire orgulho e unidade.
Eric Hobsbawm, com seu conceito de “invenção das tradições”, argumenta que a história e as tradições são constantemente reinterpretadas para servir aos interesses presentes. Silvio Almeida, ao discutir a importância da cultura e da identidade nacional, ressoa com a perspectiva de Hobsbawm, destacando a necessidade de valorizar e reinterpretar as tradições brasileiras de maneira que promovam um desenvolvimento inclusivo e sustentável.
John Holloway, em sua crítica ao keynesianismo como uma “perigosa ilusão”, argumenta que as políticas keynesianas, embora bem-intencionadas, muitas vezes reforçam as estruturas de poder existentes. Silvio Almeida, ao discutir a importância de políticas públicas que promovam a equidade social, ressoa com a crítica de John Holloway, defendendo uma abordagem que vá além das soluções superficiais e enfrente as raízes estruturais das desigualdades.
Sérgio Miceli e Lúcia Lippi, com suas análises sobre a cultura e a sociedade brasileira, oferecem definições que ajudam a entender as complexas interações entre diferentes esferas da vida social. Almeida, ao utilizar essas definições, enfatiza a importância de uma análise que leve em conta as diversas dimensões da realidade brasileira, integrando aspectos culturais, sociais e econômicos.
David Harvey, com suas análises sobre o capitalismo e a geografia, oferece uma compreensão crítica das dinâmicas espaciais do desenvolvimento. Silvio Almeida, ao dialogar com David Harvey, destaca a importância de entender como as estruturas espaciais e econômicas se interrelacionam, influenciando as possibilidades de desenvolvimento.
Michel Aglietta e Suzanne de Brunhoff, com suas análises sobre a violência da moeda e a economia política, respectivamente, oferecem uma compreensão profunda das dinâmicas econômicas globais. Almeida, ao dialogar com esses autores, destaca a importância de uma análise crítica das estruturas econômicas globais e suas implicações para o desenvolvimento nacional.
Robert Boyer e Alain Lipietz, com suas teorias sobre a regulação e as crises do capitalismo, oferecem uma compreensão crítica das dinâmicas econômicas contemporâneas. Silvio Almeida, ao integrar essas perspectivas, enfatiza a importância de uma abordagem crítica que leve em conta as crises e as transformações do capitalismo global.
Bob Jessop, com suas análises sobre o estado e a regulação, oferece uma compreensão crítica das dinâmicas políticas e econômicas. Almeida, ao dialogar com Bob Jessop, destaca a importância de entender o papel do estado nas dinâmicas de desenvolvimento, defendendo uma abordagem que promova a justiça social e a equidade.
Relações entre história e estrutura social
Silvio Almeida também cita Jacob Gorender e Ciro Flamarion Cardoso, reforçando a importância de entender a história do Brasil através das lentes das lutas sociais e das dinâmicas de poder. Jacob Gorender, com sua análise marxista da formação social brasileira, destaca como as estruturas de classe e as relações de produção moldaram a sociedade brasileira. Sua obra O Escravismo Colonial é essencial para entender as bases econômicas e sociais que continuam a influenciar as desigualdades no Brasil. Ao integrar a análise de Jacob Gorender, Silvio Almeida aponta para a necessidade de enfrentar essas raízes históricas para construir um desenvolvimento verdadeiramente inclusivo.
Ciro Flamarion Cardoso, por sua vez, oferece uma abordagem historiográfica que enfatiza a importância das estruturas sociais e econômicas no entendimento da história. Sua análise detalhada das formações sociais na América Latina fornece uma compreensão profunda das interações entre economia, sociedade e cultura. Ao dialogar com Cardoso, Almeida reforça a ideia de que o desenvolvimento deve ser analisado não apenas em termos econômicos, mas também considerando as complexas interações sociais que moldam as possibilidades de mudança.
As análises de Jacob Gorender e Emília Viotti da Costa convergem ao destacar as raízes históricas das desigualdades sociais e econômicas no Brasil. Jacob Gorender, com sua abordagem marxista, identifica como as estruturas coloniais e escravistas perpetuaram um sistema de exploração que continua a moldar a sociedade brasileira contemporânea.
Emília Viotti da Costa complementa essa visão ao explorar as transições históricas e as continuidades das opressões sociais, destacando que as mudanças nas formas de trabalho e de organização social são fundamentais para entender a persistência das desigualdades. Almeida, ao integrar essas perspectivas, enfatiza a importância de uma abordagem histórica para o desenvolvimento, que reconheça e confronte as raízes profundas das desigualdades.
Além disso, a abordagem de Cardoso sobre as formações sociais na América Latina, quando vista em conjunto com a análise de Viotti da Costa, revela a importância de compreender o desenvolvimento em um contexto regional mais amplo. Cardoso destaca as particularidades das dinâmicas econômicas e sociais na América Latina, enfatizando as interações entre diferentes países e regiões. Viotti da Costa, ao focar nas transições internas do Brasil, proporciona uma visão detalhada das estruturas de poder locais. Silvio Almeida, ao dialogar com ambos, sublinha que o desenvolvimento brasileiro deve ser analisado não apenas dentro de suas fronteiras, mas também em relação às dinâmicas regionais e globais, reconhecendo a interdependência das lutas sociais e econômicas.
Lúcio Kowarick, citado por Silvio Almeida, contribui significativamente para a compreensão das questões urbanas e da marginalização social no Brasil. Sua obra A Espoliação Urbana destaca como a urbanização no Brasil resultou em processos de exclusão e marginalização das classes populares. Lúcio Kowarick analisa a formação de favelas e a precarização das condições de vida urbana como resultados das políticas econômicas e de desenvolvimento que ignoram as necessidades das classes trabalhadoras.
Integrando essa perspectiva, Silvio Almeida enfatiza que um verdadeiro desenvolvimento deve abordar essas desigualdades urbanas e promover políticas que incluam as vozes e as necessidades das populações marginalizadas.
No contexto das políticas públicas, Silvio Almeida é enfático ao afirmar que quem se opõe ao financiamento do sistema único de saúde adota uma postura racista. Essa declaração vincula diretamente a luta por políticas públicas justas com a luta contra as desigualdades raciais e sociais. A saúde pública, como um direito fundamental, é um campo de batalha onde se manifestam as tensões entre diferentes visões de desenvolvimento e justiça social. Ao prefaciar a nova edição de Geografia da Fome de Josué de Castro, Silvio Almeida reintegra a questão da fome no debate nacional, destacando que enfrentar a fome é essencial para um Brasil insubmisso e próspero.
Conclusão
A aula de Silvio Almeida se volta para a importância da cultura no desenvolvimento nacional. Ele argumenta que a cultura popular brasileira deve ser valorizada e integrada no projeto de desenvolvimento. Essa visão reconhece que o desenvolvimento não é apenas uma questão de políticas econômicas, mas de construção de uma identidade cultural que inspire orgulho e unidade nacional. As manifestações culturais, como o samba e o carnaval, são elementos vitais da vida brasileira que devem ser respeitados e celebrados como parte do processo de desenvolvimento.
Silvio Almeida discute a importância das estratégias institucionais para o desenvolvimento. Ele ressalta que o desenvolvimento não é um acidente natural, mas o resultado de ações deliberadas no campo da política e do direito. A dinâmica institucional é crucial para estabelecer as condições para uma espiral de prosperidade. Isso inclui não apenas políticas econômicas, mas também reformas jurídicas que garantam a justiça e a equidade. Silvio Almeida defende uma abordagem integrada que reconhece a interdependência entre economia, política e cultura.
Para complementar a análise apresentada na aula magna de Silvio Almeida “Estado, Direito e Desenvolvimento no Pensamento Social Brasileiro” é necessário abordar, dentro de uma perspectiva thompsoniana, a importância da cultura política das classes trabalhadoras e suas formas de resistência. Edward P. Thompson enfatiza que as experiências vividas das classes marginalizadas e suas práticas culturais cotidianas são cruciais para a formação da consciência de classe e para a resistência contra as estruturas de poder dominantes.
Nesse sentido, Silvio Almeida poderia ter aprofundado a discussão sobre como as tradições, festividades populares e formas de organização comunitária não apenas refletem, mas moldam as lutas sociais e a construção de um projeto de desenvolvimento inclusivo. A ausência dessa perspectiva limita a compreensão completa das dinâmicas sociais e culturais que sustentam as mobilizações e resistências no Brasil, impedindo uma análise mais rica e integral das forças que impulsionam a transformação social.
A aula magna de Silvio Almeida oferece uma visão integrada e multifacetada do desenvolvimento no Brasil. Ao dialogar com pensadores como Maria Odília Teixeira, Emília Viotti da Costa, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes e Gilberto Bercovici, entre outros expoentes, Silvio Almeida constrói uma narrativa que valoriza a interseção entre economia, direito e cultura.
Essa abordagem reconhece as complexidades sociais e econômicas do Brasil e propõe um caminho para um desenvolvimento que seja ao mesmo tempo inclusivo e sustentável. Essa visão crítica e integradora é essencial para entender os desafios e as possibilidades do desenvolvimento no Brasil contemporâneo, proporcionando um caminho para um futuro mais justo e próspero.
Além disso, é importante destacar a contribuição de Alysson Mascaro, que em sua obra sobre a sociologia do Brasil, complementa essa discussão ao oferecer uma análise profunda das estruturas jurídicas e sociais do país. Alysson Mascaro enfatiza a necessidade de uma compreensão crítica das relações de poder e das dinâmicas sociais que moldam a realidade brasileira. Ao integrar essa perspectiva, A Silvio lmeida reforça a importância de uma abordagem que não apenas promova o desenvolvimento econômico, mas também a transformação social e a justiça.
*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.
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João Saldanha (1917-1990)
Atuante nas lutas operárias nos anos 50, se consagrou como comentarista esportivo e foi técnico da Seleção Brasileira, garantindo a classificação para a Copa de 1970.
# A vida e a luta de Saldanha (Opera Mundi) # João Sem Medo e o golpe no futebol (Jacobina) # O futebol e o jogo da vida (Vermelho) # Quem foi o comunista que enfrentou Médici e comandou a seleção brasileira quase até o tri em 1970? (Ecoa, Uol)
Nem é preciso levar em conta esse deslize ético que Roberto Campos Neto cometeu ao se oferecer ao 'governador' Tarcísio de Freitas para um ministério (caso este último seja eleito em 2026) para que o modo alerta se acenda. É só observar os movimentos do Banco Central sobre as taxas de juros e o câmbio do dólar para se perceber que Campos Neto, hoje, assumidamente, um militante bolsonarista e um opositor de Lula, está fazendo de tudo quando age, menos levando em conta os interesses nacionais, se é que não está tirando vantagens pessoais do descalabro em que se transformou sua gestão. As matérias abaixo falam sobre todas essas suspeitas e alimentam ainda mais a convicção de que o Banco Central nem é um órgão técnico e nem pode ter qualquer tipo de autonomia que o deixe fora do controle do governo (J.S.Faro)
Manutenção da Selic elevada impõe custo aos tomadores de crédito e ganho aos detentores de capital
Campos Neto informou banqueiros que não irá intervir no câmbio, abrindo caminho para especulação que fortalece o dólar
A social-democracia se baseia em um sistema econômico misto por combinar elementos de mercado com uma ampla rede de proteção social e intervenção estatal. Fernando Nogueira da Costa
A social-democracia não exige necessariamente a estatização completa dos meios de produção, como é comum em sistemas socialistas mais radicais. Em vez disso, a social-democracia se baseia em um sistema econômico misto por combinar elementos de mercado com uma ampla rede de proteção social e intervenção estatal para garantir o bem-estar da população (acesse)
Entre algumas características do modelo social-democrata, em relação à propriedade dos meios de produção, encontram-se as seguintes.
Constitui uma economia mista, porque respeita a propriedade privada como um avanço social diante da exclusiva posse da riqueza, seja da nobreza na Era das Monarquias Absolutista, seja do Estado na Era do Mercantilismo. A maioria dos meios de produção permanece nas mãos de empresas privadas e elas operam com base no lucro e na competição de mercado.
Entretanto, o governo desempenha um papel ativo na regulação da economia, implementando políticas para corrigir falhas de mercado, promover a igualdade de oportunidades e proteger os direitos dos trabalhadores e consumidores.
Há uma estatização seletiva. Em alguns países, setores considerados estratégicos para o interesse público, como energia, transporte, saúde e educação, são parcial ou plenamente estatizados para garantir acesso universal e equitativo a esses serviços.
O Estado mantém participação acionária ou controle majoritário em empresas públicas prestadoras de serviços essenciais ou detentoras de monopólios estratégicos como a extração e a comercialização de petróleo. Mas também podem existir empresas privadas concorrentes nesses setores.
O mais característico da social-democracia é promover uma ampla rede de proteção social. Inclui seguro-desemprego, saúde pública, educação gratuita, aposentadoria e outros benefícios sociais financiados pelo Estado de Bem-Estar.
Políticas trabalhistas, como salário mínimo, limites de horas de trabalho, licenças parentais e proteção contra demissões injustas são estabelecidas. Protegem os direitos dos trabalhadores e garantem condições de trabalho dignas.
Há regulação do mercado de trabalho e redistribuição de renda via política fiscal. Impostos progressivos são aplicados nas faixas de renda mais elevadas, para financiar programas sociais e reduzir a desigualdade de renda, garantindo uma distribuição mais equitativa da riqueza e oportunidades.
A Autoridade Monetária implementa regulamentações para controlar o sistema financeiro. Previne abusos, garante a estabilidade econômica e o acesso ao crédito para indivíduos e empresas.
Embora a social-democracia possa envolver alguma estatização seletiva de setores estratégicos e uma forte intervenção estatal na economia, ela não faz a estatização completa dos meios de produção como fazem os Estado autodenominados de socialistas. Em vez disso, a social-democracia busca um equilíbrio entre o mercado e o Estado, com o objetivo de garantir o bem-estar da população, promover a igualdade de oportunidades e mitigar as desigualdades sociais e econômicas.
É importante observar: embora as ditas Revoluções Socialistas tenham tido participação popular, as conquistas sociais não foram tão intensas como nos países nórdicos com socialdemocracia. Claro, é necessário “dar o desconto” pelo diferencial crucial entre os tamanhos das populações, embora a de Cuba se assemelhe à da Suécia. Mas a Europa é melhor vizinha diante os Estados Unidos…
A Revolução Russa (1917) foi impulsionada por protestos de operários e a deserção de soldados do exército czarista. Conselhos de trabalhadores, soldados e camponeses foram estabelecidos em Sovietes e desempenharam um papel crucial na organização da revolução. Os camponeses participaram ativamente nas redistribuições de terras e nas revoltas locais contra os proprietários de terras. Ao fim e ao cabo, predominou a nomenclatura do PC da URSS.
O Exército Popular de Libertação na Revolução Chinesa (1949) foi composto majoritariamente por camponeses, liderados pelo Partido Comunista Chinês. Mobilizaram o apoio camponês através da redistribuição de terras e da luta contra os senhores feudais. Depois, passaram por fome e mortandade.
O Movimento 26 de Julho da Revolução Cubana (1959) incluía estudantes, trabalhadores e camponeses. Todos se juntaram às guerrilhas lideradas por Fidel Castro e Che Guevara. Após a revolução, políticas de alfabetização e redistribuição de terras mobilizaram o apoio popular. Hoje, todos passam fome, exceto os militares da ex-FAR (Forças Armadas Revolucionárias), dominantes da economia.
“As FAR fazem parte da estrutura de poder de Cuba, constituindo um pilar central da estabilidade e continuidade do governo dito socialista. A Revolução Cubana não produziu um governo democrático no qual os conselhos de trabalhadores, camponeses e combatentes fizessem parte das decisões políticas. Ao contrário, criou um Estado burocrático, centralizado e controlador, sufocando as liberdades populares por meio de repressão e exílio, em nome do dogma do socialismo”.
Laura Tedesco e Rut Diamint, autoras dessa sentença em “Forças Armadas Cubanas: Os Negócios são a Pátria”, capítulo do livro Entre a Utopia e o Cansaço: Pensar Cuba na Atualidade (2024), não a caracterizam como uma ditadura militar só porque a forte concentração de poder está registrada no Partido Comunista.
Isto apesar de comentarem: “o país é a pior versão de esquerda das ditaduras militares latino-americanas”. O controle social em Cuba é capilar, detalhado em cada quarteirão, através dos Comitês de Defesa da Revolução, fundados em 1960, onde militantes do oficialismo denunciam imediatamente quaisquer dissidências.
Com a perda do monopólio da informação pelo governo, graças às redes sociais (embora com acesso à internet muito precário), as novas gerações crescidas em regime de escassez, criticam a oligarquia burocrático-militar governante do país. Tem condições de vida distantes do restante do povo.
As FAR controlam o turismo, o mercado de câmbio, o transporte aéreo e a mineração. O GAESA (Grupo de Administración Empresarial S.A.), dirigido por um general (ex-genro de Raúl Castro, irmão de Fidel), tem mais de 800 negócios, responsáveis por mais da metade da receita do país, grande parte desses recursos investida no paraíso fiscal do Panamá para fugir do embargo estadunidense. Estima-se as FAR controlarem 844 empresas, entre as quais, as de turismo, comércio, lojas arrecadadoras de divisas estrangeiras, comunicações e produção agropecuária.
Em outro capítulo, “Por que irromperam protestos em Cuba”, Jessica Dominguez Delgado informa: “a situação econômica precária de um número cada vez maior de pessoas, a dolarização da economia e o difícil acesso a alimentos e produtos de primeira necessidade – comercializados desde o fim de 2019 em moedas estrangeiras – aumentaram as desigualdades e foram alguns dos principais motivos do mal-estar cívico em 2021”.
Apesar de todo o esforço de comunicação para desacreditar as ações dissidentes como “contrarrevolucionárias”, a carestia (alimentar e de energia elétrica) e a censura aos jovens críticos criaram um terreno fértil em condições naturais para uma convulsão social. “Embora o governo cubano não reconheça sua legitimidade e prefira falar de ‘um golpe promovido e orquestrado pelos Estados Unidos’, ele tem a responsabilidade pelas causas acumuladas provocadoras dos protestos”.
A formalização do câmbio paralelo para compra de dólares não estancou a desvalorização do peso no mercado e provocou uma hiperinflação em Cuba desde o fim do sistema bi monetário (peso e dólar) no início de 2021. Praticamente todas as mercadorias do consumo cotidiano tiveram subida de preços em torno de 1.200%. O salário-mínimo, alçado a 2.100 pesos pela reforma econômica, equivalente em 2021 a 87,5 dólares, passou a valer com o novo câmbio apenas 17,5 dólares. Logo, a população cubana com renda em moeda nacional empobreceu, perdendo drasticamente poder de compra.
A crise alimentar e econômica em Cuba agravou-se ao ser forçada a realização do consumo pago em divisas estrangeiras e com mercado paralelo superprecificado. Para obtenção de dólares e remetê-los às famílias, há emigração massiva para o exterior, principalmente de jovens e mulheres para os Estados Unidos, com desagregação dos núcleos familiares. Afinal, ficar na ilha significa passar fome, perder horas do dia em filas e sofrer longos apagões de energia. Dizem: basta!
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]
Na região, que compreende os bairros de Itaquera, São Mateus, Cidade Tiradentes, Guaianases e Itaim Paulista, o deputado federal tem 36% dos votos, ante 22% do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), seu principal adversário na disputa. A diferença é de 14 pontos percentuais (leia mais)
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# As lições de esperança da Nova Frente Popular. Josué Medeiros (Carta Capital)
# A noite em que a Revolução Francesa morreu. Martin Martinelli e o livro de Guadi Calvo (A Terra é redonda)
# Postagem transcrita (sem autorização) do blog de Wilson Ferreira
Pregação evangélica, coaching e crime financeiro em O vendedor de ilusões: o caso Geração Zoe
(...) a Sociologia deveria ter a mesma preocupação da Medicina: diagnosticar patologias e procurar remédios para a cura (acesse)
Link para a postagem original em Cinegnose
Se o demônio existe, ele está na intersecção desses mundos: a pregação evangélica combinada com técnicas de vendas e coaching “ontológico”. O argentino Maximiliano Cositorto conseguiu isso e criou um dos maiores golpes recentes de “Esquema Ponzi”: a plataforma financeira Geração Zoe, uma espécie de Matrix financeira em que os trader lidavam com número irreais, gerando lucro imaginários exorbitantes. O documentário argentino Netflix “O Vendedor de Ilusões: O Caso Geração Zoe” (2024) narra a ascensão e queda de um negócio que prometia ganhos estratosféricos e transformação pessoal coaching. Hoje Cositorto está preso e se diz vítima do sistema que o teria sabotado. Seguindo a pista deixada por Durkheim sobre a função social dos crimes, podemos compreender porque entidades reguladoras parecem fazer vistas grossas ao surgimento desses esquemas. Por contraste, ajuda a ocultar que na verdade toda a financeirização do capitalismo já é um gigantesco Esquema Ponzi.
Se a sociedade funciona de forma semelhante ao corpo humano, com seus vários órgãos e cada um cumprindo a sua função em relação ao todo, então a Sociologia deveria ter a mesma preocupação da Medicina: diagnosticar patologias e procurar remédios para a cura.
Assim pensava aquele que é considerado o pai da Sociologia, o francês Emile Durkheim (1858-1917). E entre todo o remédios que o estudioso francês procurava, o mais paradoxal era o crime. Para ele, o crime cumpria uma função no corpo social – ele provocaria e estimularia uma reação no corpo social: estimularia o sentimento coletivo que sustentaria a conformidade às normas.
O que então Durkheim pensaria dos crimes de Leonardo Cositorto: pastor das finanças, encantador de cobras do mercado financeiro, coach “ontológico” (seja o diabo que isso significa), o homem que enganou centenas de milhares de incautos em diferentes lugares do mundo com apenas três letras: Zoe.
O documentário Netflix O Vendedor de Ilusões: O Caso da Geração Zoe (2024), detalha minuciosamente e cronologicamente a criação, ascensão e queda de uma ambiciosa plataforma financeira que explodiu na cara tanto dos seus criadores quanto para seus clientes, pessoas comuns que sonharam com a tranformação das suas vidas com o lucro rápido e acordaram no centro de um escândalo financeiro de proporções internacionais.
Certamente Durkheim veria um fato social que reforçaria a ideia de que “o crime não compensa” – reforçando a conformidade das pessoas com o sistema financeiro legal. Da mesma forma como, no campo do jornalismo, a fake news, por oposição, reforçaria o “jornalismo profisional”, supostamente imune às mentiras porque é “profissional”.
Em abril de 2022, Leonardo Cositorto, criador e cérebro da Geração Zoe, foi preso na República Dominicana pela Interpol. O CEO da organização estava fugitivo da Justiça desde meados de fevereiro. Hoje espera o julgamento em um presídio em Córdoba, Argentina.
Assim, fechou um capítulo que tinha começado apenas cinco anos antes, quando um novo esquema de negócios prometia dividendos exorbitantes em dólares, a partir da contribuição de uma determinada soma de dinheiro de incautos “investidores”.
O documentário descreve um perfil de um homem cujo pai era um editor que faliu e o colocou para vender livros de porta em porta, tornando-se um hábil vendedor e profundo conhecedor empírico da natureza humana. Daí para virar um pastor evangélico e, a evolução natural nesse meio, tornar-se um “coach ontológico”, encontrou a convergência natural: o encontro da fé religiosa com a fé do negócio dos investimento financeiros.
Com a pitada de algo que vai além da fé: a crença mágica ou fetichista de que a energia do pensamento de um líder somado com a ambição do cliente gerariam riquezas extraordinárias. Apenas com a força da atitude certa, positiva – daí o termo “ontológico”: se é a linguagem e o penamento que no definem, então a realidade erá aquilo que nós quisermos que seja.
O escândalo e as manchetes em letra garrafais dos jornais argentinos levaram ao espanto: como tanta gente foi enganada por uma empresa irregular que nem estava registrada na Comisão de Valores argentina? Como acreditaram em lucro tão fácil?
Durkheim tem razão em uma coisa: o sensacionalismo midiático criminal legitima o próprio campo do mercado financeiro, pela operação semiótica de contraste – é como se alertasse: “procure sempre profissionais responsáveis”. Assim como aqueles alertas em comerciai de bebidas alcoólica: “beba com moderação” – o alcoólatra é o crime que legitima o mercado etílico, sempre por contraste.
Mas Durkheim acredita que a verdade é o corpo social, o todo. Mas e se o sistema financeiro legal for da mesma natureza de golpes de pequenos escroques como Cositorto? A única diferença seria que o mercado financeiro global é grande demais para quebrar... ou ser deixado para quebrar.
Porque sempre pode contar com o socorro das injeções de liquidez públicas. Socializando perdas e privatizando o ganhos.
“São coisas que só poderiam acontecer na Argentina ou num país sul-americano qualquer”, poderia alguém dizer. Mas o que O Vendedor de Ilusões nos descreve é o notório golpe do tipo piramidal, conhecido como “Esquema de Ponzi”, executado por um grupo de espertalhões. Um tipo de golpe que conta na sua história com gente da credibilidade filantrópica de Mernie Madoff que, nos EUA, elevou ao estado da arte o esquema criado por Charles Ponzi, em Chicago, na década de 1920 – por décadas Madoff enganou milhares de clientes em Wall Street, provocando prejuízos de bilhões de dólares.
Tudo começou paradoxalmente na cidade próspera (o que contradiz a ideia de que onde há golpe, há desespero) de Villa Maria, Córdoba, que caiu nas influências da Geração Zoe de Cositorto. Pessoas com empregos regulares, mas que viram no evangelismo financeiro a oportunidade de mudar de vida e a si próprios – fascinados pela ostentação de viagens, luxo e riqueza na redes sociais da comunidade Zoe.
A Geração Zoe tinha uma pregação evangelista cruzada com técnicas de venda e coaching ontológico. Se o demônio existe, ele está no encontro desses mundos. Cositorto descobriu que podia combiná-los, e ser uma espécie de telepregador ao estilo americano, longe da ética católica que enobrece os pobres e dos pastores suburbanos com alto-falantes e cadeiras de plástico brancas.
A religião não foi o único catalisador: também utilizavam o feminismo como discurso de venda.
Cositorto logo percebeu que não alcançaria a pirâmide ideal, e viu nas criptomoedas o próximo público-alvo. Acima de tudo, aqueles que não eram ainda “criptobros”, mas ansiavam por ser. Novamente, a questão aspiracional como eixo do tema. Ele ofereceu-lhes uma moeda criptográfica - a Zoe Cash - e até terrenos virtuais em um país virtual. Em uma jogada de ficção que desafia a teoria econômica, eles anunciaram a compra de supostas minas de ouro (não se pode comprar minas de ouro na Argentina), para gerar o lastro da criptomoeda.
O mais impressionante: Cositorto e seu vice, Maximiliano Batista, contratavam traders profissionais para trabalharem baicamente numa plataforma que criou uma espécie de Matrix financeira: as telas simplesmente informavam uma realidade ficcional, com ganho inexistentes.
Zoe oferecia a todos a oportunidade de entrar em um mundo de influenciadores que otentavam em posts e vídeos do Instagram: como ganhar quinhentos por cento em 24 horas com investimentos em dólares, enquanto dirigem carros alemães de luxo e se autoproclamavam traders ou closers.
A derrocada começou com os chamados “Robos de Natal”: Zoe ofereceu às suas vítimas retornos de 150% em dólar com Bots que operavam com operações de alta frequência... coisa de ficção científica. Na verdade, era o desepero de Cositorto no final de 2021: a pirâmide começava a ruir e precisava de uma nova campanha mais agressiva para conseguir dinheiro novo.
Quando os investidores deram pé da situação já era tarde: as unidades Geração Zoe estavam fechadas com centenas de investidores deseperados esmurrando as portas e Leonardo Cositorto já estava escondido na República Dominicana, procurado pela Interpol, enquanto postava vídeos nas redes alertando seus seguidores que estava sendo sabotado pelo sistema.
Será?
Desde que o dinheiro deixou de ser um simples equivalente geral para compra de mercadoria e, ele próprio, transformou-se em mercadoria, sua liquidez tornou-se objeto de um fascínio religioso, mágico, fetichista.
No cinema ganha uma aura de glamour. Na telona a liquidez está quase sempre associada a protagonistas inteligentes e com “sex appeal”: Gordon Gekko no filme Wall Street, o yuppie que se transforma em gênio dos mercados financeiros através das “smart drugs” em Sem Limites (Limitless, 2011), ou ainda a sexy personagem interpretada por Annette Bening no filme Os Imorais (The Griffers, 1990) que trabalhava num escritório de corretagens onde ajudava a aplicar golpes nos mercados financeiros.
Desde que a financeirização ocupou o lugar da economia real como drive social, o mundo do investimentos basicamente e dividiu entre acionistas e devedores. Investimos em ações, fundos etc. Emprestamos liquidez para empresas cuja única preocupação é render dividendos a curto prazo. O que torna a economia real frágil, voltada apenas a resultados rápidos, sem planejar investimentos de longo prazo.
Eventualmente, nesse esquema de liquefação econômica bolhas financeiras explodirão – papéis terão que ser liquidados, lucros realizados e... o crash financeiro inicia por crise de liquidez. Alguma coisa parecida com a Geração Zoe de Cositorto.
A diferença é que o Estado, Banco Central, Ministério da Fazenda ou Comissão de Valores não estão do lado dele. Ao contrário dos mercados globais, grandes demais para quebrarem e arrastarem a sociedade inteira junta.
Wall Street ou Zona Euro serão socorridos pela injeção de liquidez pública com a justifica esotérica do perigo da “crise sistêmica”. Enquanto pirâmides Ponzi de gente como Cositorto e Maximiliano vão para a cadeia.
Ao assistir O Vendedor de Ilusões chegamos a uma indagação: como uma empresa que, pelo menos não inicialmente, não tinha registro na Comisão de Valores conseguiu estender um negócio criminoso por quase toda a América Latina, chegando a Espanha e Indonésia?
Seguindo a pista de Durkheim, porque todo crime cumpre uma função social para a manutenção de um sistema social.
Por contraste, figuras folclóricas como Leonardo Cositorto na verdade ocultam que todo o sistema financeiro opera como um esquema Ponzi. Por contraste, ao meter na cadeia o golpista, legitima o retante do sistema.
Crimes como os da Geração Zoe são bodes expiatórios do cassino financeiro global.
Ficha Técnica
Título: O Vendedor de Ilusões: O Caso Geração Zoe
Diretor: Matias Gueilburt
Roteiro: Nicolás Gueilburt
Elenco: Leonardo Cositorto, Maximiliano Batista, Juliana Companys
Produção: Anima Films
Distribuição: Netflix
Ano: 2024
País: Argentina
# Só faltaram a cartola e o coelho
Promoção do site Fronteiras do Pensamento agita a galera nazi-fascista que está em busca de alguma referência intelectual que justifique sua existência. Herdeiro de Olavo de Carvalho, Jordan Peterson é um mascate dos lugares comuns e ganha muito dinheiro com isso. A matéria abaixo foi publicada na Ilustríssima e é assinada por Martin Vasques da Cunha (acesse)
Link para acesso ao texto original da Ilustríssima, mas observe a linha fina que serve como legenda do "anúncio" do Fronteiras do Pensamento (melhor seria "Abismos do Pensamento"): no patrocínio da vinda ao Brasil de Peterson associaram-se o que há de pior na cultura política nacional...
Martim Vasques da Cunha
Doutor em ética e filosofia política pela USP, é autor de "A Tirania dos Especialistas" (Civilização Brasileira) e "O Contágio da Mentira" (Âyiné)
[RESUMO] Ícone da direita, o psicólogo canadense Jordan Peterson já vendeu milhões de livros e arrasta multidões para vê-lo mundo afora. Em passagem por São Paulo na semana passada, atraiu políticos, milionários e celebridades da internet para ouvi-lo falar de Caim, Abel e sacrifício. Neste relato, autor descreve como a movimentada noite de palestra, embalada por ingressos salgados, Bach, uísque e apertos de mão a R$ 1.300, espelhou a nova cara da direita e o futuro político do Brasil.
"E se alguém jogasse uma bomba aqui? Com certeza, a direita brasileira seria destruída para sempre." Sim, foi isso o que se ouviu na fila de espera, gigantesca, na frente do Espaço Unimed, em São Paulo, no último dia 18, enquanto cerca de 4.000 pessoas se preparavam para assistir à palestra do doutor Jordan Peterson, provavelmente o intelectual público mais pentelho do planeta.
"Pentelho? Como assim? Esses esquerdistas são foda. Ficam preocupados com essa história da Nubank, da Erika Hilton. Estamos pouco nos lixando com isso. Você não entende nada: Jordan salvou a minha vida", poderia responder algum fã ali presente. Naquele lugar, a voz do povo era de fato a voz de Deus.
Salvar é uma palavra meio forte, mas é a exata sensação que se respirava quando finalmente os portões do local se abriram e os que estavam ali há mais de uma hora começaram a entrar, prontos para enfim receber, via inspiração divina, o que o bom doutor tinha a dizer.
O psicólogo canadense Jordan Peterson, ícone da direita, durante palestra em São Paulo, no dia 18 de junho - Greg Salibian/Fronteiras do Pensamento
Porque Jordan Peterson é, de fato, o bom doutor. E não só isso: ele é o bom doutor que, graças ao seu talento, se tornou milionário. Com seus livros ("Mapas do Significado", "12 Regras para a Vida", "Além da Ordem") vendeu mais de 10 milhões de exemplares. O próximo, "We who Wrestle with God" ("Nós que Lutamos contra Deus"), está previsto para novembro.
Mas havia outra coisa que se respirava ali na entrada, antes de ir ao palco, onde o público, que pagou no mínimo R$ 600 por ingresso, se espalhava em diferentes setores, divididos por fitas de cores que iam do azul ao preto, passando pelo amarelo. O que se respirava ali, além do tesão por uma bomba que pudesse destruir todos os presentes, era "a nostalgia do gulag".
A "nostalgia do gulag" é o seguinte: antes, durante e depois de Olavo de Carvalho, toda a direita brasileira —que simplesmente idolatra Jordan Peterson porque ele combate como poucos a política identitária, o comunismo e o ateísmo— sempre sonhou ir para uma Sibéria particular. No entanto, ela não tinha dinheiro para isso. Diferente da esquerda burguesa, a direita é pobre.
Então, para ter a Sibéria particular, a direita seguiu essa estratégia: acusou todo mundo de persegui-la. Universidades, imprensa, o Congresso, o Palácio do Planalto, mais recentemente o Supremo Tribunal Federal. Faça sua escolha. Com isso, conquistou um público que, humilhado por uma casta que não para de aumentar a morte e os impostos, resolveu se revoltar com protestos. Como consequência, Dilma Rousseff foi expelida do poder. Ainda assim, a direita continuava miserável, no bolso e na cabeça.
A solução foi apelar para as redes sociais e vender cursos. Mais do que isso: seus integrantes tornaram-se "influenciadores", os infames "coaches de vida". Foi quando o dinheiro passou a cair como maná. A esquerda alega que isso faz parte de uma conspiração internacional, mas também não hesitou em imitar sua competidora. Agora com a grana correndo a solta, a direita poderia ter o seu gulag. A diferença é que esse lugar era nada mais, nada menos que o próprio Brasil.
Com a pandemia, a direita brasileira entrou em sua fase mais recente: a de ser o contraponto à cultura oficial. Teve até um levante de velhinhos no famoso 8 de janeiro para marcar essa passagem. Mesmo com a morte de Olavo de Carvalho e a derrota de Jair Bolsonaro em 2022, ela não parou de crescer. Tornou-se, de fato, um país paralelo. Não à toa, a empresa que mais simboliza esse movimento —e é a encarnação suprema da "nostalgia do gulag"— se chama justamente Brasil Paralelo.
E também não por acaso, a empresa promoveu a visita de Jordan Peterson, junto com a produtora oficial do evento, o grupo gaúcho Fronteiras do Pensamento. O Brasil Paralelo, contudo, fez mais do que divulgar a vinda do bom doutor. Praticamente o sequestrou para seus próprios interesses.
O problema é que Jordan Peterson gostou disso, sofrendo da habitual síndrome de Estocolmo, ao tirar fotos festivas com gente do naipe de Eduardo Bolsonaro, em encontro intermediado por ninguém menos que o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP).
Se você, leitor, estivesse no Espaço Unimed no dia da palestra, iria respirar essa atmosfera nostálgica da direita. Mas, se estivesse nos camarotes, e não no gargarejo do palco, também iria respirar o cheiro salgado dos pastéis e das fritas (R$ 35 a porção), o odor doce dos fondues de chocolate, a fragrância dos vinhos que custavam, no mínimo, R$ 120, e ouviria o tilintar dos cubos de gelo em copos cujas doses milimétricas de uísque eram contabilizadas em R$ 45. Havia também outros tipos de comida, com direito a hambúrger e cerveja, para pessoas menos "descoladas".
Entre uma música de Bach e outra que tocava antes da apresentação, só "descolados" circulavam ali. O elenco era vasto —e profundo: do pré-candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal (PRTB) ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), passando por Leda e Duda Nagle (mãe, jornalista, e filho, ator), a deputada federal Bia Kicis (PL- DF), o ator Juliano Cazarré, Marco Antonio Costa (ex-Jovem Pan), André Marinho (atual Jovem Pan), Caio Coppola (comentarista na CNN Brasil), o cientista político e ex-deputado Heni Ozi Cukier, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (PL), Adolfo Sachsida (ex-ministro de Bolsonaro), até a influencer Lara Brenner , Gabriel Kanner (herdeiro da Riachuelo) e sua esposa, Marthina Brandt (miss Brasil 2015), ali estava a nostalgia do gulag transmutada no radical chique de direita (muito obrigado, Tom Wolfe).
E não eram apenas as celebridades deste Brasil paralelo. O economista Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha, também compareceu; Maria Homem, psicanalista e professora da FAAP, que cobra R$ 1.700 por sessão avulsa de terapia (via Skype), fez graça com Schopenhauer quando a palestra finalmente terminou.
"Finalmente" é um termo exato porque o show —foi um show mesmo, pois Peterson se tornou uma espécie de Taylor Swift do intelecto— durou quase duas horas. Quem prestou atenção no conteúdo ficou com torcicolo. Afinal, o tema não era nada leve: sacrifício, Caim e Abel, Abraão e Isaac. Enfim, o velho e conhecido problema do mal, o tema que obceca —já podemos chamá-lo assim?— "Jordan".
Portanto, "Jordan" começou com um sacrifício a ser imposto ao seu público tão querido: a abertura foi uma série de quatro músicas cantadas por um aluno seu, Victor Swift (nada a ver com Taylor, graças a Deus), o qual, com seu violão, simplesmente assassinou "Hallelujah", de Leonard Cohen (é melhor nem comentar as outras três).
Antes de Jordan entrar, veio sua esposa, "Tammy" (que o chama de "Dr. Peterson"), aplaudida efusivamente —afinal de contas, não é qualquer pessoa que consegue escapar de um câncer nos rins.
E eis que ele surgiu. Sozinho no palco, vestindo um terno que parecia figurino do longa "Coringa" (2019), "Jordan" foi celebrado como o sacerdote que todos esperavam. O show foi todo dele: por quase uma hora e meia, houve um passeio pelo "significado político" da história bíblica de Caim e Abel, mas sobretudo pelo fato de que "Deus é o juiz do sacrifício", sem que o bom doutor se importasse com a definição exata do termo "sacrifício" (a violência sagrada que molda o comportamento humano).
Na verdade, Abel não pratica rituais violentos para Deus, ao contrário do seu irmão homicida, e sim oferendas pacíficas (agradecemos esta distinção ao professor doutor Maurício Righi), e isto também foi tratado de forma displicente. Mas quem está preocupado com rigor nessas horas, não é mesmo?
No mundo do Brasil paralelo, o que importa é falar que "o maior descendente de Caim nos tempos atuais é o marxismo" —uma afirmação recebida pelo público com tamanha energia nos aplausos que era de se perguntar se o próximo sacrifício a ser feito pelo filho maldito de Adão e Eva não aconteceria na esquina ali ao lado.
É claro que aconteceria. Mas antes disso, o "gran finale": apertar as mãos de Jordan e conversar com ele por alguns minutos. Havia, porém, uma condição (feita sem o conhecimento prévio da produção): pagar US$ 250 (cerca de R$ 1.380).
Quem se habilitou? Várias pessoas, a julgar por outra fila longuíssima formada, desta vez com os radicais chiques da vez, entre eles Nikolas Ferreira —que não conseguia andar, tamanho o assédio das fãs, e depois escreveu no seu Instagram, como legenda de sua foto com a estrela da noite: "Pick your damn sacrifice" ("escolha o seu maldito sacrifício")— e Pablo Marçal, cuja forma de se aproximar do palestrante foi astuta: deu a impressão de que Jordan o conhecia há tempos; os dois se olharam como amigos, um apertou a mão do outro e até se abraçaram.
Este gesto foi a prova de que a palestra de Jordan Peterson simbolizou uma mudança no eixo de poder político do país. Os Bolsonaros não estavam mais no topo da cadeia alimentar da direita; Nikolas e Pablo eram, desta vez, a carne fresca.
E a imprensa, como sempre, desprezou o evento. Uma jornalista que estava ali chegou a relatá-lo como se fosse uma "reunião de reacionários". Na realidade, era o futuro, o mesmo futuro caótico eleito em 2018, suspenso durante a pandemia e que agora, amadurecido e devidamente financiado, deixará de ser o Brasil paralelo e será o Brasil oficial por meio de uma única regra: o sacrifício em uma roupagem "descolada", pleno da "nostalgia do gulag", criando assim uma terceira etapa na carnificina da nossa violência sagrada —a síndrome de Caim.
Como reflexo disso, o bom doutor afirmou à produção oficial do evento que não daria entrevistas. E não deu, exceto para um veículo de imprensa: a Jovem Pan, representada pelo humorista André Marinho.
A razão dessa proeza é que Marinho é amigo de Robert F. Kennedy Jr., o candidato independente à Presidência dos EUA e aliado de Jordan em causas mais do que polêmicas (guerra contra a cultura woke, oposição a vacinas). É óbvio que um jornalista qualquer jamais teria chance de trocar uma palavra com o palestrante. Afinal, quem pode competir contra Camelot?
Ninguém, especialmente se levar em conta que, na saída do evento, por volta das 22h30, três amigos, que ainda digeriam os insights sobre Caim e Abel, foram em direção ao metrô mais próximo, a estação Barra Funda, repleta de pessoas deitadas no chão e moradores de rua pedindo dinheiro.
Enquanto esperavam um táxi, um vendedor ambulante, chamado Douglas, se aproximou e perguntou se eles queriam comprar um kit "dieta balanceada" —na verdade, uma modesta caixa de brigadeiros caseiros (R$ 10). Desconfiados, recusaram a oferta. Mas Douglas foi insistente e soltou outra questão: "Quem estava ali dando show?". Não foi show, foi uma palestra, responderam. "De quem?" Jordan Peterson. "Jordan Peterson? Puxa, tão brincando? Sou fã dele! Li todos os livros."
O vendedor sacou o celular gasto pelo uso e mostrou, na tela, que de fato tinha a obra completa do bom doutor. "Eu aplico as 12 regras da vida dele todos os dias!" Sorridente, Douglas se despediu. Os três amigos estavam completamente surpresos. Era o Brasil verdadeiro a se sacrificar pelo Brasil paralelo (e, quiçá, oficial) que pagou uma fortuna para apertar a mão de um mero homem.
Militante do Exército Zapatista de Libertação Nacional
“Diante da decomposição do sistema-mundo e a crise de legitimidade dos estados, pode ser a hora dos movimentos e dos povos”, conclui o jornalista e pesquisador Raúl Zibechi (Montevidéu, 1952), em um dos artigos publicados no jornal La Jornada (Entre la caída de occidente y transiciones inciertas, 31 de maio. A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 25-06-2024 e transcrita no site IHU (acesse)
A entrevista:
Em novembro de 1983, foi fundado o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que se levantou em 1º de janeiro de 1994, em Chiapas. Você dedica um artigo do livro ao zapatismo (Semear sem colher). Quais são as principais contribuições do movimento?
Muitas. Talvez a principal delas é a de que é possível, mesmo neste período tão difícil, continuar transformando o mundo. Não se renderam, não claudicaram, nem se venderam. A dignidade continua sendo a direção do zapatismo, segundo o que posso compreender. Penso que é muito para esta época.
Contudo, o que mais surpreende e entusiasma no EZLN é a sua capacidade de mudar a si mesmo, não apenas de mudar o mundo. Criaram os municípios autônomos e a juntas de bom governo, e agora as fecham porque acreditam que não são adequados para as situações que se avizinham. Fizeram uma autocrítica muito profunda, algo que a esquerda deixou no esquecimento, ao dizer que essas estruturas funcionavam de forma piramidal, separando as autoridades dos povos, e decidiram cortar a ponta da pirâmide ou invertê-la.
Nos últimos tempos, você constata novidades nas práticas do EZLN?
As iniciativas zapatistas sempre vão além. Agora, nestes novos 20 comunicados, apostam no “comum”, superando o conceito de propriedade, mesmo o de propriedade comunal ou comunitária. Convidam as pessoas que concordarem a ir até essas terras comuns para trabalhá-las, algo que nenhum movimento anticapitalista é capaz de fazer hoje, porque encarnam uma rejeição concreta ao capitalismo, não só discursiva como estamos acostumados em outros lugares.
Se eu tivesse que resumir, diria que a sua maior contribuição é a ética. Eles nos mostram que é possível fazer política a partir da ética de fazer o que dizem e de dizer o que fazem, e toda uma série de “princípios” que vêm divulgando nestes 30 anos, como o “mandar obedecendo”. E se propõem a lutar desde já para que as meninas e os meninos que nascerem dentro de sete gerações, 120 anos, sejam livres. No meu modo de ver, este semear sem eles próprios colher supõe uma mudança de fundo na cultura revolucionária.
Que análise geral você faz dos seis anos na presidência de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), após a vitória eleitoral - em 2 de junho - da candidata progressista Claudia Sheinbaum?
Militarizou o país, os desaparecimentos e os crimes continuaram, mas, além disso, as fronteiras, os aeroportos e as obras de infraestrutura foram entregues às forças armadas que agora impedem o protesto com a aplicação em massa da força.
Aprofundou o capitalismo no México. Fragilizou os movimentos e as resistências com programas sociais que concretamente agridem o tecido comunitário. Desempenha o papel de atenuar as migrações para impedir que mais pessoas cheguem aos Estados Unidos.
Em absoluto, não foi um governo popular. O seu apoio em massa se deve ao enorme desprestígio dos partidos da direita tradicional, como o PRI e o PAN, e às transferências monetárias para os setores populares.
Por outro lado, para os movimentos populares na Argentina, quais são as consequências da presidência, desde dezembro de 2023, do ultraliberal Javier Milei?
Agora, há mais repressão e mais pobreza. O alinhamento com os Estados Unidos e Israel mostra a cara geopolítica regressiva que também impede a integração regional, que já vinha em franca decadência. No entanto, não conseguiu romper com a China, como disse durante a campanha, porque o país asiático é o principal mercado das exportações agropecuárias argentinas.
Apesar da sua política profundamente antipopular, Milei mantém um amplo apoio em todos os setores da sociedade, o que se explica em grande medida pelo desprestígio da oposição, pois o governo progressista de Alberto Fernández deixou o país muito mal, com 100% de inflação anual e metade da população na pobreza.
Milei é o produto de uma sociedade em decomposição, um processo de longa data que teve um salto qualitativo na ditadura militar (1976-1983). Uma sociedade polarizada em que os jovens não têm futuro e cada parte considera a outra como se fossem estranhos ou estrangeiros. Uma sociedade que não reconhece as e os outros como parte do mesmo conglomerado humano.
Quais consequências prevê em relação às possibilidades de organização e mobilização dos coletivos sociais?
Há muita raiva acumulada e um grande desgaste nos movimentos, que passam por um período de acentuada fragilidade organizacional e falta de horizontes próprios. No curto prazo, não vejo alguma chance de recuperação dos movimentos, pois a deterioração ocorreu ao longo de mais de uma década em que as políticas sociais desempenharam um papel determinante na conversão dos movimentos em meros administradores desses programas e em colaboradores dos governos.
No entanto, existem pequenos núcleos que permanecem autônomos, mas não possuem mais a projeção que o movimento piquetero alcançou em torno do Argentinazo de dezembro de 2001. A minha perspectiva é que a reconstrução e a refundação dos movimentos devem superar a dependência das políticas sociais.
Em que sentido?
Em um primeiro momento, após 2001, fazia certo sentido utilizar os programas sociais para gerar organização, mas ao longo de duas décadas os movimentos se tornaram aparelhos de gestão com doses de corrupção interna e de controle da população receptora dos planos sociais.
Algumas organizações mapuches, alguns núcleos territoriais nas periferias urbanas e um pouco mais, seguem resistindo. Contudo, a maioria se mobiliza contra Milei para restaurar algum tipo de governabilidade progressista em que voltem a ter um papel de intermediários entre o governo e os movimentos. Será um processo longo e doloroso, porque há necessidades urgentes que ninguém cobre e uma repressão preocupante.
Em ‘Mundos otros y pueblos en movimiento’, você não se concentra apenas na América Latina. Que lições destacaria da resistência das mulheres no Curdistão?
As mulheres curdas e o pensamento crítico de Abdullah Öcalan são referências imprescindíveis para as lutas anticapitalistas e antipatriarcais.
As mulheres desenvolveram o seu próprio pensamento feminista (a Jineolojî) que não deve nada ao Ocidente, mas, sim, à sua própria experiência. São muito críticas ao feminismo acadêmico que busca somente um lugar melhor para as mulheres com formação universitária e exclui os homens.
Elas ergueram o Instituto Andrea Wolf, onde as mulheres do movimento trabalham com os homens em seu processo de despatriarcalização. Penso que é uma proposta muito interessante, muito complexa para ser implementada, mas necessária porque não se pode almejar a emancipação de apenas metade da humanidade.
Você mencionava o líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), Abdullah Öcalan, fechado nas prisões do Estado da Turquia há mais de duas décadas...
Quanto ao pensamento de Öcalan, penso que a sua crítica profunda ao marxismo economicista é tão necessária quanto pertinente. Öcalan diz que o capitalismo não é economia, mas poder, o tipo de poder que os estados-nação encarnam. Por isso, o movimento curdo não luta pela criação de um Estado curdo, o que seria o mesmo que reproduzir a opressão que já sofrem.
Ao longo de seus livros, o líder curdo desenvolve um conjunto de análises que enriquece o pensamento crítico, muito estagnado e em retrocesso no Ocidente, onde a esquerda fez do pragmatismo a sua principal marca. Sinto que o EZLN e o PKK são os movimentos mais interessantes para nós que seguimos empenhados em superar o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.
Quais são as últimas ações protagonizadas na Colômbia pelo Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC): cerca de 200.000 pessoas de oito grupos étnicos?
O CRIC está passando por situações muito complexas. Por um lado, há uma presença cada vez mais forte de paramilitares e traficantes de drogas, em seus territórios do Cauca, assassinando homens e mulheres que se destacam na defesa das comunidades. Por outro, há um cerco político do progressismo de Gustavo Petro, que com suas políticas de apoio aos grandes proprietários de terra, combinadas com discursos que dizem defender os povos, geram confusão entre os indígenas nasa, misak e outros grupos.
Apesar da tendência à cooptação e à desorganização, considero que a Guarda Indígena continua sendo uma instância autônoma, capaz de assumir a defesa do território e avançar em ações muito fortes, como a que aconteceu durante a paralisação de três meses em Cali.
O que aconteceu durante a revolta social de 2021, na capital do Valle del Cauca?
Cali é uma cidade de dois milhões de pessoas, a maioria afrodescendentes que são a parcela mais pobre da população. Durante a paralisação, foram criados 25 pontos de resistência onde as juventudes ensaiaram as formas de vida que desejam, com muita confraternização e criatividade. No entanto, houve uma repressão brutal que deixou 40 mortos na cidade e também um grande número de desaparecidos.
Nessa situação, cerca de 10.000 guardas foram até Cali, com mais de uma hora e meia de estrada, para apoiar jovens que não conheciam, que têm uma cor de pele diferente, outros modos e costumes. Permaneceram por semanas em Cali, contribuindo com os seus conhecimentos de autodefesa. Penso que este gesto fala por si da capacidade dos povos originários do Cauca e, concretamente, da Guarda Indígena, em agir de forma solidária, generosa e autônoma.
Na coletânea de artigos, você destaca as análises do filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis acerca do marxismo, bem como as interpretações do sociólogo peruano Aníbal Quijano. Por quais motivos você se interessa por estes dois autores?
Castoriadis porque compreendeu a fundo os problemas da herança revolucionária comunista, os seus limites e os aspectos que reproduzem o sistema. Compreendeu em especial as amarras daqueles que militam em um partido hierárquico no momento de formular críticas ou abandoná-lo, os problemas que uma atitude independente traz para os militantes formados em uma cultura opressiva e hierárquica.
O pensamento de Quijano é muito importante para nós que vivemos na América Latina. Seu trabalho posterior à queda do socialismo real demonstra criatividade e compreensão da realidade. Analisa em detalhes as particulares relações sociais existentes, que sintetiza na “heterogeneidade histórico-estrutural”.
Pela primeira, entende as diversas origens e trajetórias dos povos que habitam este continente, pertencentes às duas civilizações que povoam o planeta, um caso único no mundo. A segunda supõe compreender que existem cinco relações com o trabalho: salário, escravidão, servidão, reciprocidade e iniciativa mercantil e produtiva familiar, ou seja, a chamada informalidade. Todas elas controladas pelo capitalismo, mas com espaço-tempos próprios.
Por que considera que essa conceituação é relevante?
Isto é muito importante porque os movimentos mais críticos e anticapitalistas não nascem da relação salarial (como os sindicatos), mas de espaços em que predominam a reciprocidade, a servidão e a informalidade. O zapatismo, os nasa e misak, os mapuche, nascem em propriedades onde existiam relações de servidão, mas também em comunidades onde a reciprocidade é uma prática crucial, para dar um exemplo.
Estamos acostumados a pensar a política de esquerda ancorada nos assalariados organizados, mas não sabemos como se faz política em chave comunitária, partindo dos mercados populares e dos bairros periféricos.
Qual é a diferença?
Quando se faz política a partir da comunidade, da produção de valores de uso e não de mercadorias, os lugares e os modos dessa política vão ser muito diferentes daquela que se funda na representação diante do Estado.
Então, Quijano nos abre uma porta para compreender melhor as resistências em nosso continente. É profundamente anti-eurocêntrico, mas não a partir de um teoricismo abstrato, mas da realidade concreta dos povos que lutam.
Por último, quais movimentos sociais emergentes – e quais setores – você destacaria na América Latina?
Há povos e lutas que já são patrimônio dos que resistem: o zapatismo e o povo mapuche, no Chile e na Argentina, pelo menos. No entanto, vejo que os povos amazônicos no Brasil e no Peru estão transitando caminhos de autonomia e autogoverno como a melhor forma de defender seus territórios frente ao extrativismo e a violência do capitalismo.
No Peru, existem nove governos territoriais autônomos, na região fronteiriça com o Equador, e no Brasil 64 povos indígenas, em 48 territórios, estão criando protocolos autônomos de demarcação de seus territórios. Também no Brasil existe a Teia dos Povos (Rede de Povos) onde convergem povos indígenas, quilombolas (comunidades negras) e assentamentos sem terra (não o MST), em uma nova e combativa coordenação não hierárquica que está se expandindo de forma notável.
Vejo como as comunidades garífunas de Honduras e as maias da Guatemala se adiantam em resistências muito importantes à expansão do modelo de espoliação e que as comunidades aymaras do sul do Peru estão debatendo como seguir a luta contra o governo de Dina Boluarte e a oligarquia.
Em conclusão…
Há muito mais e acredito que surgirão novas resistências da decomposição da sociedade argentina, menos centralizadas do que aquelas que já conhecemos, que entraram em colapso frente ao progressismo. E os feminismos continuarão nos surpreendendo positivamente, em particular os populares, negros e indígenas.
Enfim, assim como existe um regime cada vez mais repressivo e opressivo, também há poderosas resistências e renovação, o nascimento de novos coletivos e confluências aos quais devemos estar atentos.
O Ocidente em declínio persiste sendo o modelo. Artigo de Raúl Zibechi
Entre a queda do Ocidente e as transições incertas. Artigo de Raúl Zibechi
Os custos de não fazer reformas estruturais. Artigo de Raúl Zibechi
A violência substitui o direito internacional. Artigo de Raúl Zibechi
Invasão Zero: paramilitares sob o progressismo. Artigo de Raúl Zibechi
Quando milionários se preparam para o colapso. Artigo de Raúl Zibechi
"O pensamento crítico morreu". Entrevista com Franco Berardi
“O 'sim, é possível' se dá em detrimento do pensamento crítico”. Entrevista com Pablo Pineau
Um milhão de indígenas brasileiros lutam por mais autonomia e buscam alternativas para sobreviver
“Tempo presente e tempo passado, são ambos presentes no tempo futuro”. T. S. Eliot, na citação de Nicolau Sevcenko
Artigo de José Luiz Fiori publicado no caderno mais!, da Folha de S.Paulo, em 3 de julho de 1994; transcrito de A Terra é redonda (acesse)
“Afinal é preciso admitir, meu caro, que há pessoas que sentem necessidade de agir contra seu próprio interesse…”
(André Gide).
“É importante para um ‘technopol’ vencer a próxima eleição para continuar a implementar sua agenda e não para manter-se no cargo. Vencer uma eleição abandonando suas posições é para ele uma vitória de Pirro”
(John Williamson).
1.
Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado “think tank” de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por John Williamson, “In Search of a Manual for Technopols” (Em Busca de um Manual de ‘Tecnopolíticos’), num seminário internacional cujo tema foi: “The Political Economy of Policy Reform” (A Política Econômica da Reforma Política).
Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com representantes de 11 países da Ásia, África e América Latina “as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um ‘technopol’ a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso” o programa de estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de “Washington Consensus” (Consenso de Washington).
Um plano único de ajustamento das economias periféricas, chancelado, hoje, pelo FMI e pelo Bird em mais de 60 países de todo mundo. Estratégia de homogeneização das políticas econômicas nacionais operada em alguns casos, como em boa parte da África (começando pela Somália no início dos anos 1980), diretamente pelos técnicos próprios daqueles bancos; em outros, como por exemplo na Bolívia, Polônia e mesmo na Rússia até bem pouco tempo atrás, com a ajuda de economistas universitários norte-americanos; e, finalmente, em países com corpos burocráticos mais estruturados, pelo que Williamson apelidou de “technopols“: economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu “mainstream” (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do “Consensus”, como é ou foi o caso, por exemplo, de Aspe e Salinas no México, de Cavallo na Argentina, de Yegor Gaidar na Rússia, de Lee Teng-hui em Taiwan, Manmohan Singh na Índia, ou mesmo Turgut Ozal na Turquia e, a despeito de tudo, Zélia e Kandir no Brasil.
Um programa ou estratégia sequencial em três fases: a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de “reformas estruturais”: liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico.
2.
Foi ainda nos anos 1980 que o reiterado insucesso das políticas monetaristas de estabilização introduziu nos debates econômicos a importância crucial para o sucesso no combate antiinflacionário do “fator credibilidade”, e teve como consequência a canonização de uma heterodoxia, a da re-regulação do câmbio ou “dolarização”. Logo à frente, já nos anos 1990, as novas avaliações pessimistas, tanto do FMI como do Bird, puseram em destaque a importância decisiva do “fator poder político” no sucesso ou fracasso de seu programa econômico.
Esta nova preocupação dos intelectuais e gestores do Consenso de Washington é que explica não só a realização do Seminário de Bergsten e Williamson, como a presença nele de dois cientistas políticos, Joan Nelson e Stephan Haggard, responsáveis por um dos mais abrangentes estudos comparativos já feitos sobre este assunto nos Estados Unidos.
No seu documento introdutório, Williamson resume as perguntas e hipóteses centrais relativas às dificuldades próprias de cada uma das etapas do plano e sobre as respostas alternativas encontradas pelos diferentes países. Porque reconhece os perversos efeitos sociais e econômicos das medidas de austeridade e liberalização sobre as economias e populações nacionais, o autor também entende, com este programa, como fica difícil eleger e sustentar um governo minimamente estável. De onde surgiram várias táticas ou artifícios políticos capazes de fazer os eleitores aceitarem os desastres sociais provocados em todo lugar pelo programa neoliberal como sendo transitórios ou necessários em nome de um bem maior e de longo prazo.
Listam-se ali, como condições mais favoráveis, quando o programa consegue ser ampliado depois de alguma grande catástrofe (guerra ou hiperinflação) capaz de minar toda e qualquer resistência; quando os “technopols” conseguem defrontar-se com uma oposição desacreditada ou desorganizada; quando, além disto, eles disponham de uma liderança forte capaz de “insularizá-los” com relação às demandas sociais.
Condições que não dispensaram, entretanto, em todas as situações conhecidas, a formação prévia de uma coalizão de poder suficientemente forte para aproveitar as condições favoráveis e assumir, por um longo período de tempo, o controle de governos sustentados por sólidas maiorias parlamentares. Esta, sim, uma condição considerada indispensável para poder transmitir “credibilidade” aos atores que realmente interessam, neste caso: os “analistas de risco” das grandes empresas de consultoria financeira, responsáveis, em última instância, pela direção em que se movem os capitais “globalizados”.
3.
Poucos ainda têm dúvidas de que o Plano Real, a despeito de sua originalidade operacional, integra a grande família dos planos de estabilização discutidos na reunião de Washington, onde o Brasil esteve representado pelo ex-ministro Bresser Pereira. E aí se inscreve não apenas por haver sido formulado por um grupo paradigmático de “technopols“, mas por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo: ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc., para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento.
Neste sentido, os seus “technopols“, como bons aprendizes, sabem que a dolarização inicial da economia será sempre um artifício inócuo se não estiver assegurada por condições de poder inalteráveis por um período prolongado de tempo.
Desde este seu ponto de vista, aliás, o Plano Real não foi concebido para eleger FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial.
4.
Por isto, não surpreende a confusão popular frente à candidatura de FHC e suas relações sinergéticas com o Plano Real. O que surpreende, sim, é a confusão ainda maior que reina entre os intelectuais que criticam ou justificam emocional ou ideologicamente as suas atuais preferências políticas.
Erro que não cometeria o FHC professor, lógico e realista, se não estivesse impedido de recorrer a si mesmo e ao que ainda melhor explica suas preferências políticas atuais: os seus próprios ensaios sobre o empresariado industrial e a natureza associada e dependente do capitalismo brasileiro, datados dos anos 1960. Eles permitem entender e acompanhar de forma perfeitamente racional o caminho lógico que levou FHC à sua posição atual no xadrez político-ideológico brasileiro. Mas é verdade que, ao mesmo tempo, contêm o libelo mais duro, veemente e essencial contra a sua própria opção.
Em termos muito sintéticos: (a) O trabalho acadêmico de FHC pode ser todo ele definido como uma busca incansável dos “nexos científicos” entre os interesses e objetivos desenhados pelas situações “histórico-estruturais” e os caminhos possíveis que vão sendo construídos politicamente nas sociedades concretas pelos grupos sociais e suas coalizões de poder.
(b) Com esta perspectiva, FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, de maneira implacável, já em 1963, que “a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía” e que, por isto, “havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de uma vez por todas de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócio-menor do capitalismo ocidental.”
Constatação que lhe permitiu redescobrir muito cedo no empresariado brasileiro uma condição universal do capitalismo: a de que pode estar associado, indiferentemente, segundo as circunstâncias, a um discurso ideológico protecionista ou livre-cambista, estatista ou anti-estatista, obedecendo apenas ao interesse maior da liberdade de movimento do capital e dos desdobramentos geoeconômicos e políticos da sua continuada internacionalização.
Esta descoberta foi responsável direta pelo seu passo seguinte e mais original: para FHC, se a condição periférica do capitalismo se definia pela ausência de moeda conversível e capacidade endógena de progresso tecnológico, a sua “condição dependente” se definia pela forma peculiar de associação econômica e política do empresariado nacional com os capitais internacionais e o Estado. Tripé de sustentação econômica da fase de “internacionalização do mercado interno” (em que as empresas multinacionais assumiram a liderança em quase todos os setores de ponta, responsabilizando-se por cerca de 40% do produto industrial) e de um tipo de “industrialização associada”, tão viável quanto inevitável do ponto de vista da “burguesia industrial brasileira.”
Durante os anos 1970, o trabalho intelectual de FHC consistiu em demonstrar que esta “situação estrutural” não impedia o crescimento econômico nem o associava necessariamente a um só modelo social e político. Concluindo, logo antes de entrar para a vida política, que o caráter predatório, excludente e autoritário do capitalismo brasileiro era a marca própria que a coalizão conservadora de poder imprimira ao Estado desenvolvimentista brasileiro.
5.
Não é difícil estender e atualizar a análise de FHC à nova “situação estrutural”, definida por uma internacionalização mais avançada ou globalizada do capitalismo, associada ao aumento de nossa “sensibilidade” interna às mudanças da economia mundial. Sobretudo porque a nova realidade ultrapassa, mas não invalida, o que de essencial FHC escreveu nos anos 1960 e 1970. E a sua inteligência lhe impede repetir bobagens e lhe permite saber que o que interessa para o Brasil no novo contexto globalizado não tem nada a ver com a queda do Muro de Berlim nem tampouco com o esgotamento do modelo de substituição de importações que já ocorrera nos anos 60/70…
Nessa atualização, basta ter claro que a globalização não é um processo completamente apolítico, envolvendo desde os anos 1980 pressões crescentes de governos e organismos multilaterais sobre a condução doméstica das economias periféricas. Por isto, os ajustes nacionais tampouco são puramente econômicos. Os Estados nacionais têm que optar e decidir como se conectam à nova redefinição das coalizões interna e externa de poder.
No nosso caso, o velho tripé econômico e sua aliança com as elites políticas regionais entrou em crise e precisa ser refeito. Dos antigos aliados, a velha elite política está esfacelada regionalmente; o sócio internacional “financeirizou-se”; o empresariado local, que já se “ajustou” a nível microeconômico, mantém sua velha opção ainda quando tenha encontrado seu exato lugar enquanto “sócio menor associado”, e por isto já se alinhou plenamente com o livre-cambismo anti-estatista do “Washington Consensus“; e, por fim, o Estado, falido financeiramente, já foi além disto destruído de forma absolutamente irracional e ideológica pelo governo Collor.
FHC sabe como ninguém que mudar ou refazer esta articulação econômica e aliança política é o problema central que hoje está posto no cenário brasileiro. E, frente a esse desafio, tomou sua primeira e decisiva decisão: resolveu acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como um fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais. Deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico abdicando dos “nexos científicos” para se propor como “condottiere” da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira.
6.
Como consequência natural, aderiu à estratégia de ajustamento do FMI e do Banco Mundial. Mas sua opção mais importante não foi esta. Dispunha de um elenco de alternativas políticas para implementar essa mesma estratégia. Mas, diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia revolucionar o sistema político e social brasileiro aproximando-o do social-liberalismo de Felipe González, FHC preferiu o caminho de Oraxi, Vargas Llosa ou Mitsotakis, e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL que lhe garante o apoio natural dos demais partidos conservadores num eventual segundo turno. Uma aliança que, obviamente, não se explica por razões puramente eleitorais, pois afinal Collor e Berlusconi já demonstraram que nesse campo é possível obter melhores resultados por caminhos mais diretos e “modernos”.
O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar a tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este o verdadeiro significado direitista de sua decisão que, aliás, não é de hoje, mas data de maio de 1991, quando apoiou a reorganização do governo Collor em aliança com o próprio PFL de ACM e Bornhausen.
Se ali não teve sucesso, foi por obra do destino ou de Mário Covas, mas as cartas já estavam lançadas. Desde então, costurou de forma brilhante e eficiente a adesão de quase toda a grande imprensa e do empresariado, mas sobretudo os apoios internacionais que faltaram a Collor, haja vista, além das avaliações de risco das grandes consultoras financeiras publicadas pela imprensa internacional, o desfile recente de personalidades mundiais (públicas e privadas) do neoliberalismo que têm vindo dar apoio ao programa de estabilização e reformas de FHC. Faltam-lhe ainda, contudo, duas coisas: o apoio das lideranças políticas regionais que vêm negociando com imensa dificuldade a partir do PFL e, sobretudo, o dos eleitores que pretende obter através do sucesso instantâneo de seu Plano Real.
Em síntese, FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington, valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária. E, com isto, em nome do seu realismo, na verdade está se propondo, ainda uma vez, a refundar a economia sem refundar o Estado brasileiro. E aqui sim, contradiz um ponto essencial de suas ideias e de seu passado reformista.
7.
Não nos interessa discutir aqui porque o programa FMI/Bird pode ser virtuoso para o empresariado e catastrófico para um país continental e desigual como o Brasil, mas apenas nos ater aos dilemas internos e específicos de tal proposta, e de sua experimentação concreta, para assim esclarecer o significado mais radical da opção de FHC. Mas para isto devemos voltar brevemente a Washington.
Não mais às sugestões práticas do seminário de John Williamson, mas às conclusões do estudo comparativo de J. Nelson e S. Haggard, sobre um grupo de 25 países que antecederam o Brasil na adesão ao “Washington Consensus”. E aqui todas as experiências apontam numa mesma direção: se o projeto não avança sem “credibilidade”, não há credibilidade possível sem governos com autoridade centralizada e forte. Mas por que chegaram a esta conclusão de que era indispensável recorrer à política e a Estados fortes para alcançar o “mercado quase perfeito”?
Primeiro, porque na maioria dos países que já aplicaram as políticas e fizeram as reformas recomendadas não houve a esperada recuperação dos investimentos. E isso porque, em segundo lugar, o apoio empresarial, interno e externo, não passa do entusiasmo retórico para a cooperação ativa, indispensável inclusive para a primeira etapa da estabilização sem ter garantias sobre as reformas liberalizantes.
Em terceiro lugar, como consequência, aliás, todos os países que lograram vencer a etapa da estabilização contaram com uma ajuda externa politicamente orientada; no caso chileno, 3% do PIB durante cinco anos, de ajuda pública mais um aporte equivalente, durante três anos, por parte dos bancos comerciais; 5% do PIB durante cinco anos no caso da Bolívia; 2% do PIB durante seis anos no caso do México, etc.
Mas, em quarto lugar, mesmo quando obtiveram ajuda externa e se estabilizaram, estas economias “reformadas” atravessaram profundas recessões, perdas significativas da massa salarial e aumento geométrico do desemprego, os famosos “custos sociais” da estabilização.
Em quinto lugar, mesmo ali onde houve retomada do crescimento, esse tem sido lento e absolutamente incapaz de recuperar os empregos destruídos pela reestruturação e abertura das economias. Sendo que para culminar, em sexto lugar, no caso das experiências bem-comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento.
Neste quadro, como é óbvio, fica difícil obter credibilidade para as políticas neoliberais junto ao empresariado, seu aliado indispensável, e pior ainda, junto aos trabalhadores. Segue-se daí a conclusão inevitável: a longa espera pelos eventuais resultados positivos das políticas e reformas preconizadas pelo FMI e Bird demandam uma estabilização prolongada da situação de poder favorável às reformas. Solução que desemboca, entretanto, num novo problema: o da viabilização eleitoral duradoura da coalizão “reformista”. Eis aí a questão: como fazer com que o povo compreenda e apoie por um longo período de tempo, e apesar de sua dura penalização, a verdade dos “technopols”? Ou em termos mais diretos: nestas condições, como ganhar eleições e manter tanto tempo uma sólida maioria no Congresso Nacional?
8.
Frente a este desafio, descartada a “alternativa Menem” (usar um programa para a campanha eleitoral e outro no governo) defendida entusiasticamente no seminário de Washington por Nicolas Barlette do International Center for Economic Growth, os estudos apontam para três caminhos conhecidos: (a) o dos partidos capazes de assegurarem a vitória e a maioria parlamentar por mais de uma década, o que em geral se deu em sociedades com menores índices de inflação e/ou de desigualdade social; (b) o da existência de condições excepcionais, de guerra ou recuperação democrática, favoráveis ao logro de acordos sociais e políticos entre partidos, sindicatos e empresários; (c) ou então, como os estudos mencionados indicam em quase todos os casos dos países com economias de alta inflação, grande fragilidade externa e extrema desigualdade social, o apelo a regimes autoritários permanentes ou “cirúrgicos”, como foi o caso da Turquia no início dos 1980 e do Peru mais recentemente.
9.
FHC, desde 1991, pelo menos, optou claramente por este projeto de modernização neoliberal e por um bloco de sustentação de centro-direita. Neste sentido, segundo nos relata a experiência, optou por uma estratégia socioeconômica que tem gerado ou aprofundado os níveis preexistentes de desigualdade e exclusão social. E além disto, para culminar, também optou para levar à frente este projeto anti-social e quase sempre autoritário, através de uma coalizão política que foi sempre autoritária e que já logrou forjar, antes e durante a era desenvolvimentista, esta nossa sociedade que ocupa hoje o penúltimo lugar mundial em termos de concentração de renda.
Neste sentido é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de “aggiornamento” do autoritarismo anti-social de nossas elites.
10.
Mas agora o jogo já começou e as coisas já evoluíram. Hoje, FHC se transformou em refém de seus próprios “technopols“. Como sua proposta neolibeal satisfaz o empresariado mas deixa pouca margem para costurar as alianças com as velhas elites políticas regionais, e como a situação dos eleitores piorou enormemente desde que assumiu o Ministério da Fazenda, só lhe resta esperar pelo milagre dos três meses prometidos pelas cabeças “iluminadas” de sua equipe econômica.
Neste ponto, aliás, o Brasil produz uma novidade que talvez possa ser relatada no próximo seminário de Washington: em vez de silenciar sobre os efeitos perversos do programa, faz-se de seu sucesso antecipado de curtíssimo prazo a grande arma para obter a vitória eleitoral… Mas é por isto também que neste caso o plano de estabilização já nasceu de forma autoritária, de tal forma que, desde agora, a condução independe do conhecido senso público do ministro Ricupero.
Lançado num período eleitoral quando, por definição, as escolhas são livres e os resultados indeterminados, o pré-anunciado sucesso do Plano supõe que só possa haver um ganhador, ou pior, supõe que, quem quer que seja o ganhador, terá que se submeter aos “technopols“, a menos que queira enfrentar uma hiperinflação explícita, com fuga de capitais, sobrevalorização cambial e desequilíbrio fiscal gerado pelas altas taxas de juros.
Para não falar que, nestes três meses de engodo, tudo o que faz parte normal de uma campanha eleitoral será considerado subversivo do ponto de vista do Plano… Sendo desnecessário acrescentar, neste momento, que mesmo que FHC ganhe as eleições dificilmente terá a maioria parlamentar de que falam, o que nos candidata fortemente, segundo a experiência relatada, a prolongarmos no tempo a concepção originariamente autoritária do Plano.
Neste sentido, ao contrário do que alguns defendem, FHC está dando uma nova e sofisticada colaboração para a irracionalidade da política brasileira.
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E quanto à moeda que nasce, depois de chegar a Brasília protegida pelos tanques do Exército, seguirá sendo uma moeda virtual ancorada numa paridade cambial, que, por sua vez, está atrelada a futuro político impossível de ser assegurado de antemão. Sorte teríamos neste sentido se sobre ela pudéssemos apenas parafrasear Helmut Schmidt (quando disse aqui no Brasil, comentando a possibilidade de sucesso imediato das reformas liberais no Leste europeu): “Ter-se-ia que ser professor de Harvard para crer nestas tolices”. Nossa situação é ainda mais triste, porque temos que reconhecer que nossos “technopols” conseguem reunir à “tolice dos professores de Harvard” a irresponsabilidade dos moedeiros falsos do André Gide.
*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Os moedeiros falsos (Vozes).
À nossa geração cabe fazer o enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade, desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras necessárias para o avanço das políticas privatizantes. Ricardo Normanha, A Terra é redonda (acesse)
O governo de São Paulo, sob a gestão do governador de extrema direita Tarcísio de Freitas (Republicanos), está implementando o projeto “Novas Escolas” através de uma parceria público-privada (PPP) para construir e “modernizar” 33 unidades escolares, atendendo 35 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio (São Paulo [2024?]).
O decreto publicado no último dia 11 de junho concretiza a iniciativa que já vinha sendo noticiada há tempos e faz parte do pacote de “desestatização”, um dos pilares da gestão de Tarcísio em São Paulo, junto com a política de segurança pública baseada no aval para a violência policial, no punitivismo e no populismo penal.
O tema das privatizações das escolas públicas ganha ainda mais os holofotes da imprensa em um momento propício em que a ofensiva ultraconservadora de extrema direita pauta o debate público. No início de junho, projeto semelhante foi aprovado a toque de caixa na Assembleia Legislativa do Paraná, mesmo sob os protestos de professores e estudantes. Vale mencionar também que o plano de privatização das escolas públicas estaduais do Paraná foi gestado quando Renato Feder, atual secretário de educação do estado de São Paulo, ocupava a mesma pasta na gestão do governador Ratinho Júnior (PSD) no Paraná.
Ainda no campo da educação, outros ataques da extrema direita vêm se efetivando em São Paulo na gestão Tarcísio/Feder: substituição de livros didáticos – avaliados e aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático – por materiais digitais (slides) de qualidade, no mínimo, duvidosa; utilização de Inteligência Artificial para a confecção dos materiais digitais; plataformização irrestrita da educação por meio do uso compulsório de inúmeros aplicativos e recursos digitais tanto para atividades administrativas quanto para as atividades pedagógicas, afetando profundamente – e negativamente – o processo de ensino-aprendizagem e o controle do trabalho docente; a aprovação do programa que institui as escolas cívico-militares no estado, transferindo para quadros da reserva da Polícia Militar as funções administrativas e disciplinares das escolas, sob o argumento de que o desempenho acadêmico dos estudantes das escolas cívico-militares é melhor em relação ao dos estudantes das escolas convencionais.[i]
Transferência direta de recursos públicos para a iniciativa privada
O plano de privatização das escolas públicas estaduais em São Paulo, que faz parte do Programa de Parcerias de Investimentos do Estado (PPI-SP), envolve um investimento de R$ 2,1 bilhões e prevê a construção, adequação e manutenção predial das novas escolas, com a promessa de que metade das unidades serão entregues em dois anos e o restante até janeiro de 2027. A licitação para a privatização da administração dessas escolas foi autorizada, com concessão prevista por 25 anos, segundo informações do portal G1.[ii]
O projeto prevê que as empresas concessionárias serão responsáveis pela construção, manutenção, conservação, gestão e vigilância das unidades, além de outros serviços não pedagógicos, como limpeza, portaria, monitoramento de câmeras, controle de acesso, alimentação, jardinagem e controle de pragas. Ou seja, as empresas que vencerem a licitação receberão do governo do estado grandes montantes de recursos públicos para realizar a gestão das escolas. O critério de julgamento da licitação será o menor valor da contraprestação pública máxima a ser paga pelo governo, com o leilão previsto para o terceiro trimestre e a assinatura do contrato no final deste ano.
Em tempos de pós-verdade e de narrativas que suplantam a realidade concreta, faz-se necessário dizer o óbvio. Empresas privadas objetivam lucro e, como em toda atividade capitalista, buscam maximizar os seus ganhos. Tendo em vista que a gestão das escolas não se constitui, necessariamente, como uma atividade produtiva, isto é, não produz diretamente uma nova mercadoria, a possibilidade de maximização de lucros reside na redução dos custos de tal forma que o que elas irão receber do governo do estado seja sempre mais – e quanto mais, melhor – do que o montante que será investido na construção, manutenção e gestão administrativa e de zeladoria das escolas.
Em outras palavras, indiscutivelmente, serão realizados progressivos cortes de gastos em todas essas atividades de gestão: materiais de baixa qualidade, infraestrutura mínima, redução de gastos com salários e direitos.
Separação entre gestão e atividade pedagógica
O projeto de privatização das escolas tem como argumento principal centralizar a contratação para “otimizar” a gestão, reduzir custos e “melhorar a qualidade” dos gastos, o que permitiria que gestores e professores se concentrem nas atividades pedagógicas. A proposta é que as atividades pedagógicas continuem, do ponto de vista formal, sob a responsabilidade da Secretaria da Educação. Parte-se, portanto, da premissa da separação entre gestão e atividades pedagógicas, como se pertencentes a universos distintos e não diretamente relacionados.
Desde os anos de 1990, a onda neoliberal que assolou o mundo após o fim do bloco socialista articulada à reestruturação produtiva no mundo capitalista, de acordo com Reginaldo de Moraes (2002) consolidou uma narrativa que buscou descrever e explicar os supostos problemas do mundo social “politicamente regulado”. No que diz respeito à reforma dos serviços públicos, essa narrativa defende a supremacia do mercado como o melhor e mais eficiente mecanismo para alocar recursos, promovendo, portanto, justiça, igualdade e liberdade.
Nesse sentido, no âmbito da Nova Gestão Pública, paradigma administrativo que defende a aplicação direta de práticas de gestão do setor privado na Administração Pública e cujo objetivo é alcançar maior eficiência, reduzir custos e aumentar a eficácia na prestação de serviços, compreendendo os cidadãos como clientes e os servidores públicos como gestores, observamos ao longo dos anos de 1990 e primeira década de 2000, uma série de reformas do aparelho estatal que logrou consolidar um modelo de gestão executiva dos serviços públicos pensado de maneira separada e autônoma das atividades fins.
Assim, vimos ao longo das últimas décadas um processo acentuado de privatização da gestão dos serviços públicos, seja no sentido de uma transferência direta da gestão para a iniciativa privada, seja no sentido da adoção das práticas e valores do mercado na administração pública, visando uma aparente “profissionalização” da gestão. Na mesma direção, nota-se a emergência de novos atores que compõem e orientam as redes de governança pública, como as instituições, fundações e empresas privadas que não só pautam o debate público como incidem com o peso de fortes investimentos financeiros na formulação e implementação das políticas públicas.
No campo da educação, essa segmentação entre gestão escolar e gestão pedagógica vem se intensificando na medida em que diretores e diretoras de escolas assumem cada vez mais funções relacionadas à gestão de recursos humanos, verbas, insumos e materiais – vale dizer, recursos esses cada vez mais escassos – distanciando-os das reflexões e práticas pedagógicas das escolas (Souza, 2004). Nesse sentido, o projeto de privatização em curso nos estados de São Paulo e Paraná, reforça essa distinção, assumindo que a gestão administrativa das escolas se constitui como um fim em si mesmas.
Na educação, a “atividade fim” é a própria prática pedagógica. A administração é, portanto, uma “atividade meio”, necessária para o desenvolvimento da prática educacional. Desta forma, a gestão não pode ser separada, apartada e autonomizada em relação à atividade propriamente pedagógica. A condição para o desenvolvimento do modo de produção capitalista reside justamente na separação entre produtores diretos e os meios de produção, mas também na separação entre produtores e gestores da produção. A educação pública, ao sucumbir a essa lógica, dissipa sua dimensão pública e rende-se aos interesses privados de acumulação de capital.
Ultraliberalismo como expressão da ofensiva de extrema direita
As transformações econômicas e políticas que atravessaram o mundo globalizado a partir do final da primeira década do século XXI, apontam para um aprofundamento e radicalização da lógica neoliberal que regeu a economia global desde meados da década de 1980. Entende-se aqui que o termo neoliberalismo passa a ser insuficiente e anacrônico para dar conta das complexidades do mundo contemporâneo, sobretudo a partir da crise de 2008.
Além disso, o uso do termo neoliberalismo passou a ser usado de forma difusa e confusa incorrendo muitas vezes no esvaziamento do seu significado. Nesse sentido, é necessário acionarmos categorias e conceitos que apontem com precisão para o processo em curso na economia global. Desta forma, o argumento de Miranda (2020) defende que o uso do termo “ultraliberalismo” é mais adequado pois enquanto o prefixo “neo” sugere uma novidade temporal – e o neoliberalismo já está em voga há algumas décadas e já não se apresenta mais como novidade – o prefixo “ultra” destaca a radicalização dos preceitos do liberalismo clássico e do próprio neoliberalismo.
Assim, o ultraliberalismo não representa uma nova era, mas uma intensificação das práticas capitalistas de exploração e expropriação da classe trabalhadora e de aprofundamento da ideologia de redução do Estado e de transferência de toda a gestão pública para a iniciativa privada.
Nesse sentido, quando se observa o processo explícito e escancarado de privatização das escolas públicas, é nítido o aprofundamento e radicalização daquilo que já vinha sendo implementado desde o final do século XX. Enquanto a Nova Gestão Pública, instrumento ideológico do neoliberalismo dos anos 1990 e 2000, forçou a permeabilidade da lógica do mercado no coração da administração pública, do estado e dos serviços públicos, o momento atual aponta para uma transferência direta desta gestão para a iniciativa privada em setores, até então, relativamente protegidos dessa ofensiva.
Se a reforma gerencialista do Estado não hesitou em vender empresas estatais estratégicas, como as de telefonia, mineração e bancos, alguns serviços públicos, graças à resistência oferecida pelos movimentos sociais, especialmente no campo da saúde e da educação, não permitiram o entreguismo privatista às custas do sucateamento de tais serviços.
No entanto, o avanço da extrema direita em todo o mundo e, em especial, no Brasil, sobretudo a partir do golpe contra Dilma Rousseff em 2016, impôs aos movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos e outras formas de organização da classe trabalhadora, um cenário defensivo e de baixa, ou quase nenhuma, capacidade de resistência.
Resta-nos, agora, analisar a conjuntura dessa quadra da história e compreender o papel das forças progressistas, democráticas e da esquerda radical no confronto direto a essa ofensiva ultraliberal da extrema-direita. Como convocou Franz Fanon: “cada geração tem que descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la” (Fanon, 2022, p. 207).
À nossa geração coube fazer esse enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade, desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras necessárias para o avanço das políticas privatizantes.
Ricardo Normanha é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp.
Referências
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
Souza, Silvana Aparecida de. “Os sentidos da separação entre gestão pedagógica e gestão escolar nas políticas públicas educacionais do Paraná”. Ideação, vol. 6, no 6, 2004, p. 176-85.
MORAES, Reginaldo C. “Reformas neoliberais e políticas públicas: hegemonia ideológica e redefinição das relações Estado-sociedade”. Educação & Sociedade, vol. 23, setembro de 2002, p. 13–24.
MIRANDA, João Elter B. O ultraliberalismo enquanto categoria conceitual. LavraPalavra, 2 de dezembro de 2020, https://lavrapalavra.com/2020/12/02/o-ultraliberalismo-enquanto-categoria-conceitual/.
NEVES, Ian. Greve no paraná, privatização e militarização das escolas | Cortes do Ian Neves. 2024. YouTube, https://www.youtube.com/watch?v=ga98DLupzIs.
SÃO PAULO, Secretaria de Parcerias em Investimentos. Novas Escolas. [2024?]. Disponível em https://www.parceriaseminvestimentos.sp.gov.br/projeto-qualificado/ppp-educacao-novas-escolas/#:~:text=O%20projeto%20Novas%20Escolas%2C%20qualificado,apenas%20servi%C3%A7os%20n%C3%A3o%2Dpedag%C3%B3gicos).
Tarcísio autoriza licitação para privatizar gestão de 33 novas escolas estaduais de SP. G1. 12 jun. 2024. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/12/tarcisio-autoriza-licitacao-para-privatizar-gestao-de-33-escolas-estaduais-de-sp.ghtml.
Notas
[i] Argumento facilmente desmontado por inúmeros pesquisadores e pesquisadoras especializados. O suposto melhor desempenho dos estudantes das escolas cívico-militares está associados a outros fatores que não estão relacionados à gestão militarizada, como investimentos, valorização da profissão docente, infraestrutura e trajetórias e bagagens culturais familiares desses estudantes. Para entender mais sobre as falácias das escolas cívico-militares ver SAMORA, Frederico. A arte do golpe: cinco pontos para pensar as escolas cívico-militares. Brasil de Fato. São Paulo (SP) | 24 de outubro de 2019. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2019/10/24/artigo-or-a-arte-do-golpe-cinco-pontos-para-pensar-as-escolas-civico-militares.
[ii] Tarcísio autoriza licitação para privatizar gestão de 33 novas escolas estaduais de SP. G1. 12 jun. 2024. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/12/tarcisio-autoriza-licitacao-para-privatizar-gestao-de-33-escolas-estaduais-de-sp.ghtml.
Jogo rápido
# Tarcísio manipula dados para derrubar preços das ações na privatização da Sabesp (Rede Brasil Atual)
Ricardo Kotscho, Uol
Se um marciano pousasse aqui esta semana, e lesse o noticiário e os editorais da nossa imprensa ou visse as redes sociais para se informar, ficaria com a nítida impressão de que o Brasil está à beira do abismo, condenado ao apocalipse das contas públicas, em mais uma crise do fim do mundo. Mas...