Se fosse apenas um transtorno na vida do clã Bolsonaro, não precisaríamos perder tempo com Marçal. O coach, no entanto, virou o grande assunto e o maior problema da eleição paulistana. Foi, de longe, o candidato que mais cresceu nas pesquisas em agosto. No final do mês, dividia a liderança da corrida à prefeitura com Guilherme Boulos, do Psol, e Nunes, do MDB. Algo inusitado para alguém que concorre pelo nanico PRTB contra o prefeito, montado na máquina e amparado por uma coligação de doze partidos, e o candidato das esquerdas, apoiado pelo PT e apadrinhado pelo presidente da República.
Já vimos esse filme. Sem partido forte nem conexões políticas nos estados, praticamente sem tempo de televisão ou dinheiro do fundo eleitoral, Jair Bolsonaro venceu a eleição de 2018. Sua coligação quixotesca, chamada “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, reunia o obscuro PSL e o mesmo PRTB de Marçal, que na ocasião abrigava o general Hamilton Mourão.
Marçal, que despreza os partidos e defende as candidaturas avulsas, proibidas pela legislação brasileira, não tem nem coligação. Sua chapa é puro-sangue. No lugar do general, a vice-candidatura agora é ocupada por uma policial militar. Além de trazer Jesus no nome, Antônia de Jesus Barbosa Fernandes é uma mulher negra. “Negra, da periferia, de Pirituba. Entrou nesse cenário para trazermos essa igualdade entre as raças. Não tem nenhum vice negro aqui, a não ser na minha candidatura”, gabou-se Marçal, dirigindo-se aos demais candidatos no debate promovido pelo Estadão. (Em protesto ao comportamento do coach, que desrespeitou seguidas vezes as regras daquele encontro, Nunes, Boulos e José Luiz Datena, do PSDB, decidiram não participar do debate seguinte, da revista Veja, deixando para Tabata Amaral, do PSB, a tarefa de enfrentar sozinha o franco atirador.)
Chegamos a esse ponto. Datena, o arquiconhecido apresentador do circo televisivo, um tipo demagogo e grosseirão, juntando-se ao coro dos indignados com a falta de compostura de um dos adversários, justamente aquele diante do qual ele, Datena, ficou parecendo peça de museu, uma figura do passado. Na cidade em que foi gestado, e de onde vieram seus principais quadros, o PSDB merecia um fim menos constrangedor, menos patético. O contraste entre o candidato da tevê, obsoleto, e o candidato das redes sociais, hiperconectado ao espírito do tempo, não podia ser mais didático.
Até 6 de outubro, data do primeiro turno, ainda há muita coisa para acontecer. E em São Paulo pode acontecer tudo. Enrolado com a Justiça Eleitoral, Marçal ainda pode ter sua candidatura cassada. Abatê-lo pela via judicial a essa altura, no entanto, só iria reforçar a tese já disseminada entre os bolsonaristas de que a política brasileira é um jogo de cartas marcadas. O PT e Lula sabem o que isso significa. Permanecendo na disputa, Marçal pode ainda sucumbir à artilharia pesada dos adversários, que irão usar a tevê para bombardeá-lo de todas as maneiras, e derreter na reta final. Esse seria o cenário Celso Russomanno. Mas Marçal pode também seguir competitivo e forte, como demonstrou nas últimas semanas, chegando ao segundo turno e eventualmente se elegendo prefeito da maior cidade das Américas. Seria o caso de ainda considerá-lo um azarão?
Depois que Bolsonaro foi eleito (e perdeu a reeleição por um triz), depois que entregamos o país ao pior de nós, depois de descobrir diante do espelho que somos, que nos tornamos ou admitimos ser também isso, ninguém tem o direito de subestimar o potencial político e a capacidade de predação de nenhum aventureiro de extrema direita.
A candidatura de Pablo Marçal nada tem de acidental. Não parece episódica, não é inconsistente nem, muito menos, café com leite. Ele não é o Padre Kelmon da autoajuda. Se foi escalado na largada para difamar Boulos e servir como linha auxiliar de Nunes, Marçal rasgou o script. Ao ascender, provocou uma reviravolta num jogo que parecia encaminhado, instalando uma cunha profunda na aliança entre o prefeito e Bolsonaro. Marçal é uma versão atualizada do bolsonarismo e hoje representa uma opção de poder, por difícil que seja digerir tal fato.
A Faria Lima já está digerindo. Como informou Ana Clara Costa, minha parceira no Foro de Teresina, o podcast da piauí, o movimento de revoada de Nunes para Marçal começou antes do final de agosto. Um desses investidores disse a ela que o Brasil pobre precisa abraçar urgentemente o credo do empreendedorismo que Marçal encarna e vocaliza. É hora de deixar de lado não só a luta de classes, essa velharia, mas também o estado assistencialista, os programas de transferência de renda, toda a tralha que estimula a indolência e inibe a ambição. Na cabeça do farialimer, a faxineira, o servente de pedreiro, o catador de lixo – todos precisam despertar o vencedor que dorme dentro de si.
À luz do que aconteceu na sociedade brasileira nos últimos anos, da vitória da mentalidade de província, do encurtamento do horizonte histórico do país, da deterioração da política e do sentimento antissocial que vende o “cada um por si” (e daí?) como ideal de vida –, à luz de tudo isso seria estranho que na esteira de Bolsonaro não surgisse alguém da mesma laia. Um tipo descompromissado com a verdade, refratário à civilidade, que incita a intolerância em nome da família e delinque gritando liberdade, um bárbaro que se apresenta como instrumento (mito? coach?) de uma cruzada político-religiosa contra “o sistema corrompido”. Marçal é esse tipo.
Como o BolsoDoria de 2018, que elegeu o governador de São Paulo, o BolsoNunes é um casamento de conveniência. As noivas dizem sim no altar de olho no dote do rapaz, mas se julgam superiores ao noivo sem modos. O bolsonarismo de raiz as trata como prostitutas e não costuma perdoá-las. Marçal é hoje o porta-voz desse sentimento, à revelia do próprio Bolsonaro. O pobre capitão está em apuros, precisa do apoio do Centrão para manter viva a esperança de ser anistiado politicamente e afastar, ou ao menos reduzir, a possibilidade de ser preso por seus crimes.
Marçal não tem esse problema. Inclusive porque já foi condenado por integrar uma quadrilha que limpava a conta bancária de pessoas incautas usando a internet. Ele era o sujeito que conhecia os meandros tecnológicos do desfalque. Chegou a passar alguns dias preso, mas o crime prescreveu. Essa foi a origem de sua bem-sucedida carreira nas redes sociais, que ele sabe manobrar como poucos.
Um currículo assim notável pede uma pós-graduação no crime organizado para ficar completo. Temos isso também. Uma reportagem da Folha de S.Paulo trouxe à tona uma gravação na qual o presidente do PRTB, fiador da candidatura de Marçal, declara envaidecido ter sido o responsável pela soltura do traficante André do Rap, um dos líderes do PCC. Em outra passagem da conversa, ele sugere que seu motorista seria aliado de Francisco Antônio Cesário da Silva, vulgo Piauí, ex-chefe do PCC na favela de Paraisópolis.
Assim como o então tesoureiro do PL na época do escândalo do mensalão se chamava Jacinto Lamas, o presidente atual do PRTB se chama Leonardo Avalanche. Lamas e Avalanche. Não falta poesia à nossa desgraça. Fica a sugestão para uma dupla caipira.
Todos sabemos que o PL de Jair Bolsonaro e o PRTB de Pablo Marçal são legendas de fachada. Na vida real, o partido de Bolsonaro sempre foi a banda podre da polícia, a milícia, o partido do amigo Adriano da Nóbrega. Até nisso Marçal é o legítimo herdeiro do pai que hesita em assumi-lo. Afinal, o Escritório do Crime e o PCC empreendem no mesmo ramo de negócios.
Fernando de Barros e Silva